RELATÓRIO ANUAL 1996

RELATÓRIO Nº 9/97
CASO 11.509
Sobre Admissibilidade
MÉXICO
12 de março de 1997

 

Neste relatório, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada "Comissão") considerará a admissibilidade do presente caso, uma vez que os Estados Unidos Mexicanos (doravante denominados "Estado" ou "México") expressaram em reiteradas oportunidades que o mesmo deve ser declarado inadmissível, por considerarem que os peticionários não esgotaram todos os recursos da jurisdição interna.

 

I. FATOS DENUNCIADOS

 

1. De acordo com a informação fornecida pelos peticionários à CIDH em 9 de junho de 1995, no dia 2 de junho de 1990, enquanto o indígena otomí Manuel Manríquez San Agustín trabalhava como mariachi na Praça Garibaldi do Distrito Federal, vários indivíduos solicitaram os serviços de seu grupo. Havendo os componentes do grupo entrado na camioneta que habitualmente utilizavam para deslocar-se, os mesmos indivíduos os obrigaram a deitar-se de bruços e os conduziram à repartição policial do Ministério Público. Aí chegando, foram forçados a descer do veículo, tendo os olhos vendados. Os peticionários assinalam que posteriormente ficaram sabendo que os indivíduos que os haviam capturado eram agentes da Polícia Judiciária do Distrito Federal; que a detenção fora ilegal e arbitrária, pois não foram apresentadas nem ordem de detenção nem provas, e sequer se configurava então a hipótese de que Manuel Manríquez houvesse cometido o delito que depois lhe seria imputado.

 

2. Acrescentam que, uma vez dentro da delegacia policial do Ministério Público, os funcionários torturaram o Senhor Manríquez com o propósito de fazê-lo confessar a autoria dos homicídios de Armando e Juventino López Velasco. Que com fundamento nessa confissão extraída à força de tortura, tendo dela conhecimento e embora a mesma fosse refutada pelo acusado, o juiz do Trigésimo Sexto Tribunal Penal imputou-lhe o delito de homicídio, condenando-o a 27 anos de prisão, decisão que foi confirmada pela Décima Primeira Câmara do Tribunal Superior de Justiça, sendo a seguir negados os recursos interpostos contra a mesma pelo Primeiro Tribunal Colegiado em Matéria Penal do Distrito Federal, pela Nona Câmara do Tribunal Superior de Justiça do D.F. e pelo Primeiro Juizado de Distrito em Matéria Penal, em 15 de outubro de 1992, 31 de agosto de 1994 e 27 de janeiro de 1995, respectivamente. No momento, Manuel Manríquez San Agustín encontra-se recluso na Penitenciária de Santa Marta Acatitla, cumprindo a pena que lhe foi imposta, acima referida.

 

II. TRAMITAÇÃO NA COMISSÃO

 

3. Em 12 de julho de 1995, a Comissão, agindo nos termos do artigo 34 de seu Regulamento, comunicou as partes pertinentes da denúncia ao Estado, ao qual solicitou informação sobre os fatos denunciados e em relação a qualquer outro elemento de juízo que lhe permitisse apreciar se no caso haviam sido esgotados todos os recursos internos, havendo para tanto concedido um prazo de 90 dias.

 

4. No dia 6 de outubro de 1995 o Estado solicitou uma prorrogação de 30 dias, a fim de reunir a documentação necessária para dar uma resposta adequada; a Comissão acedeu a essa solicitação em 10 de outubro de 1995.

 

5. Em 7 de novembro do mesmo ano o Estado solicitou uma segunda prorrogação de 30 dias, a fim de arrolar a informação que lhe permitisse dar uma resposta adequada; a prorrogação foi concedida pela Comissão no dia 8 desse mês e ano.

 

6. Em 7 de dezembro de 1995 o Estado apresentou sua resposta sobre o caso em tramitação.

 

7. Em 14 de dezembro de 1995 a Comissão comunicou aos peticionários as partes pertinentes da resposta do Estado sobre o caso.

 

8. Em 29 de janeiro de 1996 os peticionários solicitaram uma prorrogação de 30 dias para formular suas observações à resposta do Estado, pois estavam aguardando o recebimento de informação relevante; em 31 de janeiro do mesmo ano a Comissão acedeu a essa solicitação.

 

9. Em 7 de março de 1996 os peticionários transmitiram à Comissão suas observações à resposta do Estado.

 

10. Em 21 de março de 1996 a Comissão comunicou ao Estado as partes pertinentes das observações dos peticionários.

 

11. Em 29 de abril de 1996 o Estado apresentou à Comissão suas observações finais.

 

12. Em 22 de maio do mesmo ano, os peticionários apresentaram à Comissão informação adicional sobre este caso.

 

13. Em 10 de junho de 1996 a Comissão comunicou ao Estado a informação adicional fornecida pelos reclamantes.

 

14. Em 8 de julho de 1996 o Estado apresentou à Comissão suas observações acerca da informação adicional fornecida pelos peticionários.

 

15. Em 9 de outubro de 1996 foi realizada uma audiência a fim de discutir aspectos relacionados com a admissibilidade do caso.

 

III. POSIÇÃO DAS PARTES

 

A. Posição dos Peticionários

 

16. Os reclamantes sustentaram que houve demora injustificada no julgamento dos recursos internos interpostos, pois o processo de investigação das torturas sofridas pelo acusado havia sido extremamente lento e longo. Acrescentaram que o processo de averiguação prévia teve início em 17 de novembro de 1992 — dois anos e meio depois de ocorridos os fatos —, e que mais de três anos transcorreram até que fossem expedidas as respectivas ordens de prisão, uma demora que não foi justificada pelo excesso de zelo na investigação, já que esta, na maior parte do tempo, esteve paralisada.

 

17. Os reclamantes afirmaram que a Procuradoria-Geral de Justiça do Distrito Federal havia se declarado incompetente em 17 de dezembro de 1992 e encaminhado o caso à Procuradoria-Geral da República. Esta tampouco aceitou a competência, havendo devolvido o expediente em 27 de janeiro de 1993; desde então nenhuma diligência foi empreendida, o que denota falta de vontade de investigar e esclarecer o caso.

 

18. Disseram, ademais, que a Comissão Nacional de Direitos Humanos, em sua recomendação 35/94 de 17 de março de 1994, estabeleceu que Manuel Manríquez San Agustín fora vítima de tortura e detenção arbitrária e prolongada, ressaltando que cumpria concluir a investigação desses fatos, propor a ação penal correspondente, solicitar a emissão das ordens de prisão e velar no sentido de que tivessem imediato cumprimento.

 

19. Assinalaram, outrossim, que somente quando a denúncia foi apresentada à Comissão houve progresso na investigação das torturas praticadas e alguns resultados foram alcançados, como a detenção de alguns dos funcionários responsáveis por esses atos delituosos. Entretanto, o Senhor Manríquez ainda não foi indenizado nem ressarcido material e moralmente das violações de que foi vítima, havendo-se igualmente atrasado o processo sobre tortura instaurado contra os funcionários policiais, em virtude, inter alia, da declaração de incompetência de parte do juiz titular do 63º Tribunal do Distrito Federal, em 29 de novembro de 1995.

 

20. Que, de acordo com os artigos 5.2 e 8.3 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, é vedado o emprego de tortura, devendo ser privados de todo valor probatório os elementos obtidos por esse meio, disposição que é aplicável não só à tortura como a qualquer meio que configure uma coação; que no caso em tela foi provada a prática da tortura, que o próprio Ministério Público admite, e que cumpre, por conseguinte, retirar todo valor probatório da citada confissão.

 

21. Expressaram, ainda, que de acordo com o princípio da presunção de inocência consagrado na Convenção em seu artigo 8.2, toda pessoa submetida a uma investigação criminal deve ser tratada como inocente enquanto não se declarar a sua culpa; deste modo, qualquer dúvida em relação à culpa da pessoa deve traduzir-se numa absolvição. Neste sentido, acrescentaram que o Senhor Manríquez continua privado de liberdade pelo suposto delito de homicídio, em relação ao qual a única prova existente de sua participação no crime é uma confissão à Polícia Judiciária obtida por meio de tortura.

 

22. Finalmente, manifestaram que o Estado tem o dever de investigar a denúncia de um delito; por conseguinte, caberia ao Estado e não ao acusado investigar e reunir provas; que, ademais, como o próprio Estado ressalta, embora o acusado haja esgotado todos os recursos legais à sua disposição a fim de que os tribunais de justiça eliminassem, como prova, a confissão obtida por meio de tortura, todos os seus esforços foram inúteis.

 

B. Posição do Estado

 

23. O Estado afirmou que no ordenamento jurídico mexicano, para dar fé ao elemento subjetivo do delito e à responsabilidade do acusado, é necessário existir prova clara e cabal da qual se depreendam acusações diretas a pessoas determinadas e na qual sejam indicadas com precisão as circunstâncias de lugar, tempo e forma de execução do ato delituoso. Ao contrário do que alegam os reclamantes, o Poder Judiciário considerou que provas distintas da confissão e do testemunho haviam corroborado a participação de Manuel Manríquez no delito que motivou sua condenação.

 

24. Igualmente expressou que, no tocante à suposta violação do Princípio da Presunção de Inocência, alegado pelo queixoso, não se afiança nem se configura qualquer violação das garantias individuais consagradas nos artigos 16 e 20 da Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos, porque, efetivamente, a autoridade judicial responsável pelo caso aplicou esse preceito jurídico a toda a tramitação processual, em consonância com o artigo 8.2 da Convenção, e somente no final do processo se configurou a culpa do acusado, com fundamento nas provas apresentadas pelo Ministério Público na fase de instrução do processo.

 

25. Ademais, sustentou que, atendendo à Recomendação 35/94, a Procuradoria-Geral de Justiça do Distrito Federal havia procedido às devidas investigações, ao final das quais concluiu que os agentes da polícia judiciária Fernando Pavón Delgado e José Luis Bañuelos Esquivel haviam se excedido em suas atribuições e praticado atos de tortura contra o Senhor Maníquez San Agustín. Que em 15 de novembro de 1995 a mencionada repartição encaminhou o correspondente ofício de consignação ao 63º Juizado do Tribunal Penal, que expediu as ordens de detenção pertinentes, as quais foram executadas em 24 de novembro de 1995 pela Procuradoria-Geral de Justiça do Distrito Federal.

 

26. O Estado é de opinião que, relativamente à petição de que se trata, não foram esgotados os recursos da jurisdição interna, dado que o processo penal contra os policiais judiciários segue o seu curso e, além disso, o peticionário não exerceu o direito de receber indenização do Ministério Público, nos termos do artigo 20 da Constituição que consagra, como garantia individual, o direito da vítima "a que lhe seja feita a reparação do dano, quando procedente".

 

27. Por último, o Estado sustenta que na investigação dos fatos empreendida pelo Ministério Público não há qualquer demora injustificada, uma vez que o ritmo das diligências correspondeu à necessidade de uma investigação exaustiva e meticulosa, tal como a que se levou a efeito neste caso, e que, portanto, não é aplicável a exceção indicada no artigo 37, parágrafo 2, alínea c, do Regulamento da Comissão Interamericana.

 

IV. CONSIDERAÇÕES GERAIS

 

A. Considerações quanto à competência da Comissão

 

28. A Comissão é competente para conhecer deste caso, por se tratar de alegações em matéria de direito assim reconhecidas e consagradas na Convenção Americana: artigo 1.1, obrigação do Estado de respeitar e garantir os direitos das pessoas que estejam sujeitas à sua jurisdição; artigo 5, direito à integridade pessoal; artigo 7, direito à liberdade pessoal; artigo 8, direito às garantias judiciais, e artigo 25, direito à proteção judicial, tal como disposto no artigo 44 da citada Convenção, da qual o México é parte desde 3 de abril de 1982.

 

B. Considerações quanto aos requisitos formais de admissibilidade

 

29. A presente petição reúne os requisitos formais de admissibilidade previstos nos artigos 32, 37, 38 e 39 do Regulamento da Comissão. De fato, contém os dados dos peticionários, uma relação dos fatos denunciados, a indicação do Estado responsável, bem como informação minuciosa sobre o esgotamento dos recursos da jurisdição interna. Ademais, a denúncia foi interposta dentro do prazo fixado para sua apresentação, não está pendente de outro processo de solução internacional, nem é substancialmente a reprodução de uma petição que se encontre pendente na Comissão ou já tenha sido por esta examinada e resolvida.

 

30. Com relação ao requisito de esgotamento dos recursos internos, o artigo 46.1,a da Convenção Americana assinala que, "para que uma petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos 44 ou 45 seja admitida pela Comissão", será necessário que "hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos".

 

31. O parágrafo 2 do mesmo artigo estabelece que as disposições sobre o esgotamento dos recursos da jurisdição interna não se aplicarão quando:

 

a) não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados;

b) não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; e

c) houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.

32. Os peticionários manifestaram que o processo de averiguação prévia teve início em 17 de novembro de 1992, dois anos e meio depois de ocorridos os fatos, e que mais de três anos se passaram até a expedição das ordens de detenção correspondentes, sem que até o momento — mais de quatro anos após a ocorrência dos fatos — o processo tenha sido concluído.

 

33. A esse respeito, o Estado declarou que na apuração dos fatos levada a efeito pelo Ministério Público não houve demora injustificada, uma vez que o ritmo das diligências correspondeu à necessidade de uma investigação exaustiva e meticulosa, a qual havia culminado na ação penal contra os agentes da polícia judiciária Fernando Pavón Delgado e José Luis Bañuelos Esquivel e na sua posterior detenção.

 

34. Sobre esse ponto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já declarou que "de maneira alguma a regra do esgotamento prévio deve conduzir ou tardar até a inutilidade da ação internacional".7/

 

35. A Comissão, a respeito do mesmo ponto, expressou que "o direito a um processo instaurado dentro de um prazo razoável previsto na Convenção Americana fundamenta-se, entre outras razões, na necessidade de evitar dilações indevidas que se traduzam numa privação e denegação de justiça em prejuízo de pessoas que invocam a violação de direitos protegidos pela referida Convenção".8/

 

36. Depreende-se dos autos que mais de seis anos se passaram desde a ocorrência dos fatos e que apenas em 1995 foram expedidas as respectivas ordens de detenção dos supostos torturadores, contra os quais até o momento não foi pronunciada sentença. Neste sentido, a Comissão considera que, nas circunstâncias concretas do presente caso, um prazo de mais de seis anos configura uma demora injustificada nas investigações e nos processos. Ademais, é de parecer que o Estado em nenhum momento comprovou a sua afirmação de que "o ritmo das diligências correspondeu à necessidade de uma investigação exaustiva e meticulosa".

 

37. Esta Comissão também deseja consignar que reconhece o progresso alcançado nas investigações dos atos de tortura e no processo instaurado contra seus supostos autores, comprovando a disposição das autoridades mexicanas de cumprir as recomendações da CNDH. Considera, entretanto, que no caso em análise se havia excedido o prazo razoável que a Convenção estabelece em seu artigo 8.

 

38. A Comissão considera, outrossim, que nos autos ficou suficientemente provada a inexistência de qualquer recurso que possa ser interposto a fim de impugnar a decisão mediante a qual Manuel Manríquez San Agustín foi condenado, matéria que em nenhum momento foi refutada pelo Estado.

 

39. Ante o exposto, a Comissão conclui que a exceção ao esgotamento dos recursos internos estabelecida no artigo 46.2, c, da Convenção é aplicável neste caso e exime, por conseguinte, os peticionários de cumprir com esse requisito de admissibilidade.

 

Com fundamento nas considerações acima, de fato e de direito,

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

 

ACORDA:

 

40. Declarar admissível a denúncia apresentada no caso 11.509, de acordo com os artigos 46, 47 e 48 da Convenção Americana.

 

41. Transmitir o presente relatório ao Estado e aos peticionários.

 

42. Pôr-se à disposição das partes, nos termos do artigo 45 do Regulamento da Comissão, para que estas cheguem a uma solução amistosa no presente caso. Dentro dos trinta (30) dias seguintes à notificação do presente relatório, as partes deverão manifestar à Comissão, por escrito, a sua disposição de recorrer ao processo de solução amistosa.

 

43. Prosseguir com a consideração das questões de mérito levantadas no presente caso.

 

44. Publicar o presente relatório no Relatório Anual à Assembléia Geral da OEA.

 

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7 . Corte I.D.H., Caso Velásquez Rodríguez, Exceções Preliminares, Sentença de 26 de junho de 1987. Série C Nº 1, parágrafo 93.

8 . Demanda perante a Corte I.D.H., Caso 11.219 (Nicholas Chapman Blake), 3 de agosto de 1995, pág. 32.