RELATÓRIO ANUAL 1996

RELATÓRIO Nº 14/97
CASO 11.381
Sobre Admissibilidade
NICARÁGUA
12 de março de 1997


I. RESUMO

 

1. Em 1993, os empregados das alfândegas nicaragüenses realizaram uma greve que foi declarada ilegal; esses servidores foram demitidos do emprego, não obstante diversas resoluções judiciais haverem ordenado sua reintegração nos respectivos postos de trabalho. Além disso, um ano depois de interposto um recurso de amparo, a Corte Suprema de Justiça proferiu uma sentença baseada em fatos ocorridos no ano de 1992, envolvendo outra categoria de trabalhadores. Desta forma, assinalam os peticionários, houve um erro flagrante de direito que deixou 142 pessoas que dele foram vítimas totalmente indefesas e constitui grave violação de seus direitos humanos, de modo especial o de garantias judiciais (artigo 8), o de associação (artigo 16), o de indenização por erro judiciário (artigo 10) e o de proteção judicial (artigo 25) definidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

 

II. ANTECEDENTES

 

A. Fatos

 

2. Segundo os fatos referidos na denúncia, em maio de 1993 os empregados das alfândegas entraram em greve, após malogradas tentativas de negociar, junto ao Ministério do Trabalho da República da Nicarágua (doravante denominado "Estado" ou "Nicarágua"), as condições enunciadas num memorial no qual se reivindicavam, inter alia, reclassificação nominal dos cargos próprios e comuns da Direção-Geral de Alfândegas, estabilidade no emprego, correção salarial de 20% para compensar a desvalorização monetária, etc.

 

3. O Estado da Nicarágua, por intermédio do Ministério do Trabalho, resolveu, em 27 de maio de 1993, declarar a greve ilegal, alegando que o artigo 227 do Código do Trabalho não permite o exercício do direito de greve aos empregados no serviço público ou em atividades de interesse coletivo.

 

4. Em 7 de junho de 1993, os empregados da Alfândega interpuseram um recurso de amparo contra a declaração de ilegalidade da greve formulada pelo Ministério do Trabalho.

 

5. Em 9 e 10 de junho de 1993 ocorreram sérios confrontos entre os empregados das alfândegas e a Polícia Nacional. Esses trabalhadores foram agredidos pela polícia, que fez uso de gás lacrimogêneo, cassetete e armas de fogo. Também foram detidos aproximadamente 50 servidores aduaneiros, dos quais 30 foram acusados em processo penal e posteriormente removidos de seus cargos pela administração de justiça.

 

6. Em 24 de junho de 1993 o Tribunal de Apelações resolveu suspender os efeitos da resolução do Ministério do Trabalho, o que implicava a reintegração no emprego dos servidores demitidos e a suspensão das demissões que as alfândegas vinham efetuando de forma arbitrária. Não obstante essa medida, as autoridades aduaneiras exoneraram 142 empregados, na sua maioria líderes de classe. Ademais, o Diretor-Geral do Trabalho, mediante notificação de 7 de julho de 1993, ordenou a reintegração dos servidores demitidos, bem como dos que foram submetidos a processo penal arbitrário. Posteriormente, a própria Corte Suprema de Justiça determinou, em 9 de setembro de 1993, por meio de mandado judicial, o cumprimento da sentença do Tribunal de Apelações. Nenhuma dessas ordens judiciais foi cumprida.

 

7. Por sua vez, a Lei de Amparo fixa o prazo de 90 dias para a tomada de decisão sobre este recurso. A sentença número 44-94 da Corte Suprema de Justiça foi, entretanto, exarada um ano depois de interposto o recurso de amparo, ou seja, em 12 de junho de 1994, tendo confirmado a decisão do Ministério do Trabalho sobre a ilegalidade da greve. Os magistrados invocaram, como razões para essa decisão, fatos acontecidos em fevereiro de 1992, ou seja, um ano antes da greve dos empregados da Alfândega, tendo alegado que esses servidores haviam colocado obstáculos na pista do aeroporto, episódio em que se envolveram os empregados da AERONICA.

 

8. Em conseqüência desse erro judiciário e de arbitrariedades cometidas pelas autoridades administrativas, perderam seus empregos 142 trabalhadores, dos quais 600 pessoas são economicamente dependentes, sendo mais da metade crianças.

 

B. Violações alegadas

 

9. Os reclamantes assinalam que os artigos 8 (relativo às garantias judiciais), 10 (relativo ao direito a indenização por erro judiciário), 16 (relativo ao direito de associação) e 25 (relativo ao direito à proteção judicial), consagrados na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, foram violados pelo Estado da Nicarágua.

 

III. PROCEDIMENTO PERANTE A COMISSÃO

 

10. Em 7 de junho de 1994, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada "Comissão") recebeu a denúncia referente aos 142 empregados das alfândegas da Nicarágua, ampliada em 13 de setembro do mesmo ano com a informação da relação nominal dos mesmos. Em 21 de setembro de 1994, a Comissão deu entrada no caso Milton García Fajardo e outros, registrado sob o número 11.381, e comunicou as partes pertinentes da petição ao Estado da Nicarágua, ao qual solicitou que prestasse informação sobre os fatos relatados nessa denúncia, dentro do prazo de 90 dias. Solicitou, ainda, que fosse fornecido qualquer elemento de prova que permitisse apreciar se no presente caso haviam sido esgotados os recursos da jurisdição interna.

 

11. Dentro do prazo indicado, o Estado da Nicarágua enviou sua resposta, datada de 27 de outubro de 1994. Nessa comunicação, o Estado solicitou à Comissão que declarasse inadmissível o caso 11.381, de acordo com os artigos 47,d da Convenção e 39,b do Regulamento da Comissão, pelo fato de o mesmo encontrar-se pendente de solução no âmbito de outra organização internacional intergovernamental. Esclareceu que desde 6 de junho de 1993 o Comitê de Liberdade Sindical da Organização Internacional do Trabalho (OIT) estava conhecendo do caso, registrado sob o número 1.719, por denúncia originalmente interposta pela Central Sandinista dos Trabalhadores e pela União Nacional dos Empregados.

 

12. Mediante nota de 7 de novembro de 1994, a Comissão encaminhou as partes pertinentes da resposta inicial do Estado aos peticionários e concedeu-lhes o prazo de 45 dias para que formulassem suas observações.

 

13. Em 21 de dezembro de 1994, os peticionários encaminharam à Comissão suas observações sobre a resposta do Estado, as quais se resumem no seguinte:

 

A razão para a inadmissibilidade invocada pelo Estado não é aplicável, dado que as violações alegadas nas duas instâncias internacionais não são idênticas.

Embora em ambos os casos as partes sejam as mesmas, já que tanto perante a OIT como a Comissão o denunciado é o Estado da Nicarágua e as vítimas são os 142 empregados das alfândegas, as denúncias e os fatos aduzidos em seu apoio são totalmente distintos; a denúncia à OIT decorre de violações dos direitos trabalhistas por parte do Estado da Nicarágua, da legislação nacional e dos Convênios número 87 e 98 da Organização, e os fatos sucederam antes de 6 de junho de 1993. Em contraposição, a denúncia à Comissão tem origem estritamente na Sentença Número 44, a qual viola os direitos humanos reconhecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Portanto, a denúncia perante a Comissão não é, substancialmente, a reprodução da que se encontra pendente de solução no âmbito da OIT.

De acordo com o artigo 39.2, a, de seu Regulamento, a Comissão não pode abster-se de conhecer e examinar uma denúncia quando "o procedimento seguido perante a outra organização ou organismo se limitar ao exame da situação geral sobre direitos humanos no Estado aludido e não existir uma decisão sobre os fatos específicos que forem objeto da petição submetida à Comissão, ou não conduzir a uma solução eficaz da violação denunciada".

O procedimento estabelecido pela OIT não configura um exame ou solução internacional no sentido previsto no artigo 39; portanto, não haveria uma reparação do dano causado pela violação denunciada, já que é sabido que a OIT, em suas resoluções, faz tão-somente recomendações ou reprovações que não envolvem uma obrigação jurídica, mas, sim, moral.

14. A Comissão comunicou ao Estado da Nicarágua, em 14 de fevereiro de 1995, o conteúdo das observações formuladas pelos reclamantes à informação fornecida pelo Estado.

 

15. Em 24 de março de 1995, os peticionários forneceram informação adicional, reiterando que na Sentença Nº 44, de 2 de junho de 1994, a Corte Suprema havia deliberado com base em fatos passados em fevereiro de 1992, quando os que fundamentavam o recurso haviam acontecido em maio e junho de 1993, período em que ocorreu a greve dos empregados aduaneiros. Sustentaram, ainda, que a Corte Suprema de Justiça havia levado um ano para pronunciar-se sobre um recurso de amparo, quando a Lei de Amparo fixa o prazo de 90 dias para a tomada de decisão nessa matéria.

 

16. Mediante nota de 30 de março de 1995, o Estado da Nicarágua respondeu às observações dos peticionários. Afirmou que a greve dos empregados das alfândegas tivera início em maio de 1993 e que a Central Sandinista dos Trabalhadores e a União Nacional dos Empregados haviam apresentado sua queixa à OIT em 6 de junho de 1993, ou seja, antes da que foi apresentada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O Estado também indicou que os peticionários haviam reconhecido que "em ambos os casos as partes são as mesmas, já que tanto perante a OIT como a Comissão o denunciado é o Estado da Nicarágua e as vítimas são os 142 servidores aduaneiros e que ambas as petições versam sobre os mesmos fatos".

 

17. O Estado acrescentou, na mesma nota, que os peticionários haviam declarado que o Comitê de Liberdade Sindical da OIT se limita a examinar a situação geral dos direitos humanos do Estado aludido e que a denúncia à OIT decorre da violação de direitos trabalhistas por parte do Estado da Nicarágua; em contraposição, a denúncia que está sendo tramitada na Comissão refere-se à violação dos direitos humanos reconhecidos pela Convenção, e prossegue afirmando que os peticionários "em um parágrafo expressam, fazendo abstração de que os direitos trabalhistas são direitos humanos, que somente aqueles (os trabalhistas) são objeto da denúncia à OIT, e em outro parágrafo afirmam, para justificar a falta de competência desse organismo intergovernamental, que o mesmo examina a situação geral dos direitos humanos na Nicarágua".

 

18. A Comissão comunicou aos peticionários, em 4 de abril de 1995, o conteúdo da resposta preparada pelo Estado da Nicarágua sobre este caso.

 

19. Em 30 de maio de 1995, a Comissão comunicou ao Estado da Nicarágua as partes pertinentes da informação adicional fornecida pelos reclamantes.

 

20. Os peticionários apresentaram suas observações mediante nota de 8 de junho de 1995. Nesta, fazem referência à sua comunicação anterior de 30 de abril e solicitam à Comissão que solucione o conflito de competência oriundo do fato de que tanto o Comitê de Liberdade Sindical da OIT como a Comissão Interamericana estão conhecendo do caso Nº 11.381.

 

21. Em 12 de julho de 1995, a Comissão comunicou ao Estado o conteúdo da informação adicional fornecida pelos reclamantes.

 

22. Durante os meses de junho e julho de 1995 foram recebidas numerosas comunicações dos peticionários. Nelas, estes expunham a situação econômica em que se encontravam pelo fato de terem sido demitidos, reiteravam que o fundamento de sua denúncia era o erro judiciário presente na Sentença Nº 44 da Corte Suprema de Justiça e acrescentavam que o Diretor-Geral do Trabalho, em 6 de julho de 1993, havia expedido uma ordem de reintegração dos servidores em seus cargos, porém o Diretor-Geral da Alfândega havia feito caso omisso da mesma e prosseguira com as demissões de pessoal.

 

23. Em 13 de julho de 1995, a Comissão comunicou ao Estado da Nicarágua as partes pertinentes da informação adicional fornecida pelos reclamantes.

 

24. Em 3 de outubro de 1995, o Estado da Nicarágua enviou informação adicional relacionada com o caso 11.381. Esta continha anexos referentes às recomendações formuladas ao Estado da Nicarágua pelo Comitê de Liberdade Sindical, em conexão com a denúncia 1719. Estava igualmente apensa uma comunicação datada de 22 de setembro de 1994, assinada pelo Ministro do Trabalho da Nicarágua e dirigida ao Diretor do Departamento de Normas Internacionais do Trabalho da OIT, relativamente à denúncia em curso naquela instância internacional, na qual essa autoridade nicaragüense destaca o seguinte:

 

Considero que não é competência do Comitê de Liberdade Sindical discutir a justeza ou não da resolução do órgão máximo do Tribunal de Justiça. Todo cidadão que submeter um assunto à decisão de um tribunal tem a obrigação de acatar e respeitar a decisão que este tomar sobre o mesmo, sobretudo em se tratando de um tribunal de última instância, como é o caso do que nos ocupa. Da mesma forma, com base na independência dos poderes do Estado, o Poder Executivo deve acatar o que a autoridade judicial ordenar.

25. Em 12 de outubro de 1995, a Comissão deu conhecimento aos peticionários do conteúdo da informação fornecida pelo Estado.

 

26. Em 2 de novembro de 1995 foi comunicado ao Estado o conteúdo da informação adicional fornecida pelos reclamantes sobre a situação dos trabalhadores representados neste caso, na qual os mesmos reiteram que sua petição se fundamenta no erro judiciário configurado na Sentença Nº 44, de 2 de junho de 1994, proferida pela Corte Suprema de Justiça.

 

27. Em 23 de janeiro de 1996, a Comissão comunicou ao Estado o conteúdo das observações dos reclamantes à sua resposta datada de 3 de outubro de 1995. Em suas observações os reclamantes afirmam o seguinte: "...que o objetivo principal da petição, no presente caso, é responsabilizar o Estado nicaragüense pelo fato de que um dos seus órgãos, como o é a Corte Suprema de Justiça, atuando irregularmente causou, no exercício de suas funções em nome do Estado, dano aos trabalhadores". Por essa razão, os peticionários rechaçam a argumentação do Estado no sentido de que se trata de um procedimento pendente de solução em outra instância internacional e reiteram que o conteúdo da petição à OIT tem a ver com a violação de direitos trabalhistas praticada anteriormente ao pronunciamento da Sentença Nº 44. Por sua vez, a petição interposta perante a Comissão, conforme expressado em suas múltiplas comunicações, tem a ver com o erro presente na sentença acima referida.

 

28. Durante os meses de março e abril de 1996 a Comissão continuou a receber numerosas comunicações dos servidores das alfândegas expondo a situação econômica em que se encontravam desde a data em que haviam sido demitidos. Essas comunicações foram oportunamente levadas ao conhecimento do Estado da Nicarágua.

 

IV. CONSIDERAÇÕES SOBRE A ADMISSIBILIDADE

 

29. Vistos os antecedentes e a tramitação da denúncia referida nos parágrafos anteriores, a Comissão considerou as condições de admissibilidade do caso 11.381 nos seguintes termos:

 

IV.1 Quanto à competência da Comissão

 

30. A Comissão poderá conhecer de um caso submetido à sua consideração desde que, prima facie, o mesmo reúna os requisitos formais de admissibilidade dispostos nos artigos 46 da Convenção e 32 do Regulamento da Convenção.

 

31. A competência, ratione loci, dá à Comissão faculdade para conhecer de petições sobre violações de direitos humanos que afetem uma pessoa sujeita à jurisdição de um Estado Parte na Convenção Americana. Considerando que os fatos referidos na denúncia ocorreram no território da República da Nicarágua, Estado Parte na Convenção desde 25 de setembro de 1979, a Comissão pode conhecer do caso Milton García Fajardo e outros.

 

32. In casu, a denúncia apresentada pelos peticionários refere-se a fatos que caracterizam supostas violações dos artigos 8 (relativo a garantias judiciais); 16 (relativo ao direito de associação); 10 (relativo à indenização por erro judiciário), e 25 (relativo à proteção judicial), todos constantes da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual a Nicarágua é Estado Parte. Em conseqüência, a Comissão é competente ratione materiae para conhecer do presente caso, em conformidade com os artigos 44 e 47, b, do referido instrumento internacional.

 

33. A Comissão considera que inexistem razões para alegar que a denúncia seja notoriamente mal fundada, uma vez que os peticionários demonstraram que a suposta violação é imputável a um órgão ou a agentes do Estado, conforme estipulado no artigo 47,c da Convenção. Nos parágrafos referentes à análise do esgotamento dos recursos internos, assinala-se que as supostas violações seriam o resultado de ações ou omissões cometidas por funcionários do Ministério do Trabalho e do Poder Judiciário da Nicarágua.

 

34. A Comissão considera que os fatos que motivam a denúncia podem ser corrigidos mediante a aplicação do procedimento de solução amistosa previsto no artigo 48.1,f da Convenção e no artigo 45 de seu Regulamento, razão por que se coloca à disposição das partes para chegar a uma solução amistosa do assunto, fundada no respeito dos direitos humanos.

 

IV.2 Quanto à alegada duplicação de processos no nível internacional

 

35. Durante a tramitação do presente caso, o Estado da Nicarágua pleiteou que se considerasse a inadmissibilidade da petição, alegando a duplicação de processos; por esse motivo, a Comissão analisará em primeiro lugar o requisito de admissibilidade. Para tanto, serão expostas as posições das partes nos parágrafos que se seguem:

 

A. Posição do Estado

 

36. Nas respostas e observações sobre o Caso 11.381, o Estado da Nicarágua argumentou que a Comissão Interamericana deve abster-se de conhecer do presente caso pelo fato de haver duplicação de processos no nível internacional, uma vez que, anteriormente à denúncia à Comissão, uma petição fora apresentada ao Comitê de Liberdade Sindical da OIT em 6 de junho de 1993. A denúncia à Comissão foi formulada em 7 de junho de 1994. Em conseqüência, o Estado solicita à Comissão que declare inadmissível o presente caso, com fundamento no artigo 47,d da Convenção e 39,b de seu Regulamento.

 

B. Posição dos reclamantes

 

37. Os reclamantes indicaram que a justificativa de inadmissibilidade não é aplicável, dado que as violações alegadas nas distintas instâncias internacionais não são idênticas. Embora seja certo que os fatos constantes das duas comunicações são os mesmos, os direitos denunciados como infringidos diferem, e a decisão da OIT não leva a uma solução efetiva da violação denunciada. Isso ocorre porque na denúncia à OIT é feita referência às represálias do Estado e ao excessivo uso de força pela polícia na dissolução das manifestações associadas à greve dos servidores aduaneiros; a petição à Comissão, por sua vez, diz respeito a violações ao devido processo na tramitação judicial interna, assunto de que o Comitê de Liberdade Sindical da OIT não se ocupou.

Considerações da Comissão quanto à duplicação de processos perante organismos internacionais:

 

38. É importante assinalar que a inadmissibilidade de uma petição por duplicação de processos perante a Comissão deve ser motivada pelas seguintes razões:

 

A. É requisito da admissibilidade que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro processo de solução internacional (artigo 46.1,c da Convenção Americana). Este requisito implica que, para a petição ser declarada inadmissível, as denúncias devem concordar objetiva e subjetivamente:

- Sobre a coincidência em relação ao tema ou pretensão da denúncia:

 

i. A presente denúncia à Comissão diz respeito a violações da liberdade de associação, do direito a indenização por erro judiciário, da violação de garantias judiciais e da violação do direito de proteção judicial (artigos 16,10, 8 e 25, respectivamente, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos).

ii. A denúncia ao Comitê de Liberdade Sindical consubstanciou uma queixa contra as graves violações praticadas no mês de junho de 1993, na Nicarágua, em matéria de liberdade sindical. No tocante aos empregados das alfândegas, denuncia-se a repressão sindical contra esses trabalhadores e a violação dos Convênios 87 (sobre a liberdade sindical e a proteção do direito de sindicalização) e 98 (sobre o direito de sindicalização e negociação coletiva), da OIT.

39. Nesse sentido, é claro o estabelecido no artigo 47,d da Convenção Americana, que reza o seguinte:

 

A Comissão declarará inadmissível toda petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos 44 ou 45 quando:

...

d) for substancialmente reprodução de petição ou comunicação anterior, já examinada pela Comissão ou por outro organismo internacional.

40. Ao utilizar o termo "reprodução", o artigo 47, d, refere-se, pois, a uma denúncia idêntica, apresentada a distintas instâncias internacionais, situação que, como antes se indicou, em nenhum momento é sugerida no presente caso.

 

41. Em situações desse tipo, o Comitê de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas costuma admitir denúncia conhecida em outras instâncias internacionais, se a mesma referir-se a direitos reconhecidos no Pacto de Direitos Civis e Políticos e não estabelecidos no outro instrumento internacional que está sendo aplicado simultaneamente, ainda que as duas denúncias se refiram a fatos coincidentes.9/

 

42. Outro aspecto é o da coincidência quanto ao denunciante. No presente caso as vítimas são as mesmas nas duas denúncias interpostas, tanto junto à OIT como junto à Comissão, ressalvando-se que a denúncia à OIT, formulada pela Central Sandinista dos Trabalhadores e pela Associação dos Trabalhadores no Campo, não só focaliza o problema dos empregados das alfândegas como analisa a situação trabalhista no âmbito da Associação dos Trabalhadores no Campo, da Administração Pública, do Banco Nacional de Desenvolvimento, do Sindicato dos Trabalhadores na Educação (ANDEN) e dos Trabalhadores na Indústria e Filiados à Central Sandinista dos Trabalhadores, bem como vários atos de repressão sindical nas zonas francas e iguais medidas contra trabalhadores que se queixam de contaminação química.

 

B. A Comissão Interamericana continuará a conhecer do caso; não existe litispendência quando não se tratar de uma decisão sobre os fatos específicos objeto da petição apresentada à Comissão e quando a decisão do órgão internacional não levar a uma solução efetiva da situação denunciada.

De fato, o artigo 39.2, a, do Regulamento da Comissão estabelece as exceções em razão das quais a Comissão não se absterá de conhecer do presente caso:

 

i. Quando não existir uma decisão sobre os fatos específicos que forem objeto da petição submetida à Comissão

43. Cabe ressaltar que o Comitê de Liberdade Sindical pronunciou-se em seu 304º Relatório sobre as recomendações acerca da efetiva violação dos direitos sindicais de várias categorias profissionais na Nicarágua, por motivo da denúncia formulada pelo Centro Sandinista dos Trabalhadores e pela Associação dos Trabalhadores no Campo.

 

44. De acordo com sua competência e com as alegações das supracitadas entidades sindicais, a recomendação do Comitê de Liberdade Sindical refere-se ao direito de greve e liberdade sindical e em nenhum momento faz menção às arbitrariedades e erros judiciários e à demora injustificada na administração de justiça que se alegam na presente petição. Desta maneira, a decisão da OIT manifesta:

 

A este respeito, o Comitê deseja lembrar que o reconhecimento aos funcionários públicos do princípio da liberdade sindical não implica necessariamente o direito de greve... Neste sentido, observando que no presente caso a quase totalidade dos dirigentes sindicais e sindicalistas que participaram da greve prestava serviços em diferentes alfândegas do país — serviços esses executados por servidores que podem ser considerados como funcionários públicos que exercem funções de autoridade por delegação do Estado —, o Comitê entende que a proibição de greve feita aos empregados deste setor não é contrária aos princípios da liberdade sindical, levando especialmente em conta que a categoria de que se trata desfruta concretamente de garantias compensatórias, sob a forma de negociações na junta de conciliação.

Não obstante, "o Comitê deseja lembrar que as demissões em massa de grevistas implicam graves riscos de abuso e um sério perigo para a liberdade sindical; as autoridades competentes deveriam receber instruções adequadas a fim de evitar os riscos que essas demissões possam representar para a liberdade sindical"... Nessas condições, o Comitê conclama o Estado a que, com o propósito de favorecer o reatamento de relações profissionais harmoniosas, se esforce para promover a reintegração no emprego dos dirigentes sindicais e sindicalistas da UNE demitidos no setor aduaneiro. O Comitê solicita ao Governo que o mantenha informado a esse respeito.

45. Como se depreende da recomendação acima, o Comitê de Liberdade Sindical fez uma revisão do direito de greve como componente essencial da liberdade sindical e condenou a demissão de dirigentes sindicais por essa razão, porém em nenhum momento se referiu às arbitrariedades cometidas na tramitação judicial do caso, como o são a demora injustificada e o erro judiciário em que se fundamenta a Sentença Número 44-94 da Corte Suprema de Justiça da Nicarágua.

 

46. O fato de a OIT qualificar o direito de sindicalização como um direito fundamental não implica que os direitos civis e políticos se esgotem em um só direito, mas, antes, que o direito de sindicalização é um direito trabalhista importante, embora a alegação de sua violação não exclua que em outros contextos se alegue a violação de outros direitos civis e políticos, como acontece no caso de Milton García Fajardo e outros sob exame da Comissão.

 

ii. Quando a decisão do órgão internacional não conduzir a uma solução efetiva da violação denunciada

47. A recomendação do Comitê de Liberdade Sindical não implica qualquer efeito jurídico vinculante, de restituição pecuniária ou de caráter indenizatório para o Estado nicaragüense. Levando em conta que a denúncia à OIT compreendeu tão-somente a violação da liberdade sindical, a recomendação formulada por esse órgão não se pronuncia sobre as violações do devido processo alegadas na denúncia à Comissão. O Comitê não seria competente para pronunciar-se nesse sentido, por se tratar de assuntos que não foram denunciados a essa instância, contrariando assim o princípio ultra petita.

 

IV.3 Esgotamento dos recursos internos

 

48. O artigo 46 da Convenção exige, como requisito para a admissibilidade de uma denúncia, que hajam sido esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de Direito Internacional.

 

49. Conforme foi apontado nos fatos acima enunciados, os empregados aduaneiros recorreram a todos os recursos judiciais previstos na legislação interna para o caso de que se trata. Tanto as resoluções do Tribunal de Apelações de 24 de junho de 1993 como a sentença número 44-94 da Corte Suprema de Justiça indicam que foram esgotados os recursos da jurisdição interna nicaragüense.

 

50. Levando em conta a natureza do presente caso, cuja origem é um conflito trabalhista para o qual a legislação interna prevê o esgotamento da via administrativa, e depois a via judicial, a Comissão fará uma descrição dos recursos que foram esgotados pelos reclamantes.

 

51. No que respeita à alínea a do artigo 46.2 da Convenção, a Comissão analisará se os peticionários esgotaram os recursos disponíveis na legislação interna, tanto na esfera administrativa como na judicial, tendo por base os ofícios e informações contidos no expediente e oportunamente enviados ao Estado.

 

A. Esgotamento do procedimento estabelecido na esfera administrativa

 

52. Em 8 de março de 1993, os servidores aduaneiros apresentaram à Inspetoria Departamental do Ministério do Trabalho de Manágua um memorial de reivindicações e deram início, paralelamente, a uma rodada de negociações entre a Junta Diretora do Sindicato e as autoridades do Ministério do Trabalho.

 

53. Visto o fato de que as negociações não chegavam a um acordo, foi formulado à Direção de Conciliação do Ministério do Trabalho um pedido de designação de um Juiz de Greve, nos termos do procedimento estabelecido no artigo 305 do Código do Trabalho. A designação de um Juiz de Greve jamais foi feita, como tampouco se designou uma Junta de Conciliação, que são as autoridades expressamente indicadas pelo próprio Código do Trabalho para declarar a ilegalidade ou legalidade de uma greve. Por conseguinte, até essa fase do procedimento na esfera administrativa não houve o cumprimento, de parte do Ministério do Trabalho, das disposições do Código do Trabalho.

 

54. Em virtude de o Ministério do Trabalho não se haver pronunciado em tempo hábil, o que supõe contrariar o direito de petição previsto em todas as legislações, segundo o qual na esfera administrativa o particular tem direito a resposta oportuna, pois do contrário incorre-se em denegação de justiça, os peticionários decidiram valer-se do preceito constitucional que consagra o direito de greve (artigo 83 da Constituição da Nicarágua). Imediatamente a seguir o Ministério do Trabalho, mediante resolução de 27 de maio de 1993, declarou a ilegalidade da greve, aduzindo que os servidores públicos não podem exercer esse direito, posto que as disposições do Código do Trabalho assim estabelecem.

 

55. Inconformados com a resolução que declarava a ilegalidade da greve, esses servidores recorreram a um recurso denominado "recurso de apelação", na esfera administrativa, a fim de lograr que o Executivo reconsiderasse a sua decisão. O recurso administrativo de apelação acha-se previsto no artigo 68 do Regulamento da Lei do Trabalho, de cujo teor se depreende o seguinte:

 

Procede, contra as resoluções das autoridades do Ministério do Trabalho, o recurso de apelação. Este deve ser interposto dentro das 24 horas seguintes — com a devida consideração da distância — à notificação de uma resolução. Isso feito, a autoridade que emitiu a resolução submeterá imediatamente as ações de que se tratar ao funcionário de hierarquia superior competente, para que este, dentro do prazo improrrogável de cinco dias úteis, confirme, modifique ou declare sem efeito a resolução objeto do recurso...

56. Em 4 de junho de 1993, o Diretor-Geral do Trabalho decidiu confirmar a resolução emitida em 27 de maio de 1993 pela Inspetoria-Geral do Trabalho, no todo e em cada uma de suas partes, e em conseqüência declarou ilegal a greve promovida pelos Sindicatos da Direção-Geral de Alfândegas.

 

57. Esgotados os recursos disponíveis na esfera administrativa, os peticionários recorreram à via judicial mediante a interposição de um recurso de amparo de efeito suspensivo.

 

B. Esgotamento dos recursos na esfera judicial

 

58. Em 7 de junho de 1993, os peticionários interpuseram um recurso de amparo para o Tribunal de Apelações da Câmara Civil e Trabalhista da Região III, nos termos do disposto no artigo 31 da Lei de Amparo, Lei Nº 49, publicada no Diário Oficial Nº 241, de 20 de dezembro de 1988, o qual prescreve o seguinte:

 

Artigo 31: Interposto na devida forma o Recurso de Amparo para o Tribunal, dele será informada a Procuradoria-Geral de Justiça, à qual será enviada cópia do Recurso. Dentro do prazo de três dias, de ofício ou a pedido da parte, o Tribunal deverá decretar a suspensão do ato contra o qual se reclama, ou denegá-la, conforme o caso.

59. Em 24 de junho de 1993, o Tribunal de Apelações decidiu suspender os efeitos da resolução do Ministério do Trabalho, havendo ordenado a reintegração dos servidores aduaneiros em seus cargos. Esta sentença, entretanto, não foi acatada pelas autoridades, as quais continuaram a demitir pessoal, o que forçou esses trabalhadores a solicitar à Corte Suprema de Justiça, em duas oportunidades, 25 de agosto de 1993 e 7 de setembro de 1993, que expedisse um mandado executivo a fim de obrigar o cumprimento da sentença do Tribunal de Apelações. Em 9 de setembro de 1993, por meio de citação judicial, o Superior Tribunal ordenou a execução da sentença interlocutória suspensiva de amparo pronunciada pelo Tribunal de Apelações.

 

60. Cabe, então, perguntar se o amparo era o recurso pertinente para considerar esgotados os recursos da jurisdição interna. Nesta ordem de idéias, é necessário citar o que a Corte Interamericana entendeu como um recurso adequado:

 

O artigo 46.1, a, da Convenção remete aos "princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos". Estes princípios não se referem apenas à existência formal de tais recursos, mas também a que eles sejam adequados e efetivos, conforme se depreende das exceções previstas no artigo 46.2.

Que sejam adequados significa que a função desses recursos, no contexto do sistema de direito interno, deve ser idônea para proteger a situação jurídica infringida. Em todos os ordenamentos internos há múltiplos recursos previstos, porém nem todos são aplicáveis a todas as circunstâncias. Se em determinado caso o recurso não for adequado, é óbvio que não caberá esgotá-lo. Assim o indica o princípio de que a norma se destina a produzir um efeito e não pode ser interpretada no sentido de que não produzirá efeito algum ou que seu resultado será claramente absurdo ou irrazoável...

Um recurso também deve ser eficaz, isto é, capaz de produzir o resultado para o qual foi concebido.10/

61. A própria sentença da Corte Suprema de Justiça da Nicarágua assinala a existência de outros recursos que poderiam ter sido utilizados contra a resolução do Ministério do Trabalho, como, por exemplo, o recurso de inconstitucionalidade. Todavia, o recurso do amparo era mais adequado, pois com a sua interposição se lograva a suspensão dos efeitos do ato administrativo que declarava a greve ilegal.

 

62. A legislação interna prevê, portanto, um recurso que sendo de solução rápida e sumária permite de maneira categórica evitar que se consuma uma violação, obstando no caso in comento a demissão dos trabalhadores em conseqüência da convalidação da citada resolução pela autoridade hierárquica superior do Ministério do Trabalho.

 

63. A utilização do recurso de amparo na Nicarágua está condicionada ao esgotamento dos recursos ordinários, tal como dispõe o artigo 27.6 da Lei de Amparo. Por recursos ordinários deve-se entender o esgotamento da via administrativa. Por conseguinte, se o juiz a quo houvesse considerado o recurso de amparo inadmissível, por não terem sido cumpridos integralmente os requisitos estipulados no artigo 27 da Lei de Amparo, assim deveria havê-lo declarado; o juiz do Tribunal de Apelações determinou, entretanto, a suspensão do ato, posto que tais requisitos haviam sido cumpridos.

 

64. Todavia, em que pese ao fato de o amparo ser um recurso de rápida solução, no presente caso seu mérito foi julgado extemporaneamente, um ano após haver sido o mesmo interposto, embora a legislação fixe o prazo terminante de 90 dias para que a Corte Suprema decida sobre o mérito dessa medida.

 

65. Contra a decisão do Tribunal Superior não cabe recurso algum, o que deixa claramente demonstrado que os peticionários esgotaram tanto a via administrativa como a judicial, cumprindo as exigências previstas nas leis internas.

 

66. Com base no acima exposto, a Comissão considera que os reclamantes confiaram em que haviam utilizado os recursos da jurisdição interna previstos na legislação da Nicarágua, razão por que se tem por cumprida a regra do esgotamento prévio dos recursos internos estabelecida no artigo 46 da Convenção.

 

IV.4. Interposição da petição no prazo fixado na Convenção

 

67. No que respeita ao prazo (ratione temporis), conforme assinala a Convenção no artigo 46, b, combinado com o artigo 38 do Regulamento da Comissão, a petição deve ser apresentada dentro dos seis meses contados a partir da data em que o peticionário houver sido notificado da decisão definitiva (res judicata).

 

68. A Sentença Nº 44 foi pronunciada em 2 de junho de 1994; no próprio texto do despacho ordena-se que o conteúdo da mesma seja notificado, por meio de citação judicial, à Direção-Geral do Trabalho.

 

69. Em 7 de junho de 1994 a Comissão recebeu a petição, a qual foi ampliada em 13 de setembro de 1994, a pedido da Comissão, a fim de precisar certos pontos. Desta maneira, a petição foi apresentada em tempo hábil, em conformidade com as disposições da Convenção e do Regulamento da Comissão.

 

70. Levando em conta o acima exposto,

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

 

DECIDE:

 

71. Declarar admissível o caso 11.381 referente a Milton García Fajardo e outros.

 

72. Pôr-se à disposição das partes a fim de chegar a uma solução amistosa do assunto, fundada no respeito aos direitos humanos reconhecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Para esse efeito, as partes deverão, dentro dos 30 dias seguintes à notificação deste relatório, manifestar à Comissão sua intenção de iniciar o processo de solução amistosa.

 

73. Publicar o presente relatório de admissibilidade no Relatório Anual à Assembléia Geral da OEA.


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9 . Ver, neste sentido, O'Donnel, Protección Internacional de los Derechos Humanos, página 450.

10 . Sentença "Velásquez Rodríguez", datada de 29 de julho de 1988, Corte Interamericana de Direitos Humanos, parágrafos 63, 64 e 66.