RELATÓRIO ANUAL 1996

 

RELATÓRIO Nº 11/96
CASO 11.230
CHILE 1/
3 de maio de 1996


I. ANTECEDENTES

 

1. Em 21 de abril de 1993, o Senhor Francisco Martorell e a Editorial Planeta publicaram na Argentina um livro sob o título Impunidad diplomática, sobre as circunstâncias que conduziram à partida do ex-embaixador argentino no Chile, Oscar Spinosa Melo. O livro devia estar disponível no dia seguinte para sua comercialização no Chile.

 

2. Entretanto, no mesmo dia 21 de abril de 1993, o Senhor Andrónico Luksic Craig, empresário chileno, apresentou um "recurso de proteção" perante a Sétima Câmara da Corte de Apelação de Santiago. O Senhor Luksic, alegando que o livro violava seu direito à privacidade, solicitou que se proibisse sua circulação. A Corte de Apelações de Santiago expediu uma ordem de proibição temporária da entrada, distribuição e circulação do livro no Chile até que se tomasse uma decisão definitiva sobre o caso.

 

3. Posteriormente, pessoas que alegavam ser o livro Impunidad diplomática calunioso e injurioso à sua honra e dignidade moveram várias ações penais perante os tribunais chilenos contra o Senhor Martorell. Tais processos continuam ainda hoje em tramitação no âmbito da jurisdição interna do Chile.

 

 

Litígio perante os tribunais chilenos

 

4. Em 31 de maio de 1993, a Corte de Apelações de Santiago, em sentença de dois votos contra um, acolheu o recurso de proteção interposto pelo Senhor Luksic e expediu uma ordem de proibição da "entrada e comercialização" do livro no Chile.

 

5. Apresentou-se apelação mediante "recurso extraordinário" perante a Corte Suprema de Justiça do Chile invocando as garantias constitucionais sobre liberdade de imprensa. Em 15 de junho de 1993, em decisão unânime, a Corte Suprema rejeitou o recurso de apelação, e a distribuição do livro foi proibida.

 

6. Em 28 de junho de 1993, a Corte de Apelações notificou oficialmente o Senhor Martorell de sua decisão final sobre o recursos de proteção.

 

II. PROCESSO PERANTE A COMISSÃO

 

7. Em 23 de dezembro de 1993, a Comissão recebeu a denúncia interposta por Human Rights Watch/Americas e pelo Centro por la Justicia y el Derecho Internacional (CEJIL) em relação ao caso. Alegava-se na denúncia que a proibição da entrada, distribuição e circulação no Chile do livro intitulado Impunidad diplomática constituía violação do artigo 13.2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que protege o direito de liberdade de pensamento e expressão e dispõe especificamente que: "o exercício do direito ... não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores".

 

8. A Comissão transmitiu as partes pertinentes da petição ao Governo chileno em 16 de fevereiro de 1994 e solicitou a este que apresentasse informação sobre os fatos e outras informações pertinentes dentro do prazo de 90 dias.

 

9. Em 30 de março de 1994, a Comissão recebeu informação adicional dos peticionários, que foi transmitida ao Governo em 15 de abril de 1994.

 

10. Em 8 de junho de 1994, a Comissão recebeu uma nota do Governo na qual este solicitava prorrogação de 60 dias para responder à demanda, a qual foi outorgada.

 

11. O Governo chileno solicitou prorrogação adicional de 30 dias em 7 de setembro de 1994, que também foi concedida.

 

12. Em 13 de outubro de 1994, a Comissão recebeu a resposta do Governo e a transmitiu aos peticionários em 28 do mesmo mês e ano.

 

13. A Comissão recebeu, em 16 de novembro de 1994, uma comunicação da CEJIL e de Human Rights Watch/Americas na qual expõem os termos de sua participação no caso.

 

14. Em 5 de dezembro de 1994, a Comissão recebeu as observações dos peticionários sobre a resposta do Governo, cujas partes pertinentes foram transmitidas ao Governo em 19 de dezembro de 1994.

 

15. Em 1º de fevereiro de 1995, realizou-se uma audiência sobre o caso da qual participaram os peticionários e representantes o Estado chileno.

 

16. Em 6 de fevereiro de 1995, a Comissão dirigiu-se às partes a fim de colocar-se à disposição das mesmas com vistas a chegar a uma solução amistosa para o assunto. Os peticionários responderam que aceitariam a proposta da Comissão desde que o Estado chileno suspendesse a proibição do livro Impunidad diplomática do Senhor Martorell e permitisse sua livre entrada, distribuição e circulação em seu território.

 

17. Em 6 de março de 1995, o Governo chileno, em resposta à proposta dos peticionários, enviou nota à Comissão em que declarava que, enquanto o Senhor Martorell se recusasse a apresentar-se perante os tribunais chilenos não se consideraria uma solução amistosa. Essa nota foi transmitida aos peticionários em 9 de março de 1995.

 

18. Em 5 de julho de 1995, o Governo do Chile apresentou comentários sobre as observações formuladas pelos peticionários, mediante os quais ratificou, em todas as suas partes, as petições formuladas pelo Governo em sua resposta à denúncia. Em 18 do mesmo mês, transmitiu-se aos peticionários cópia desses comentários.

 

19. Em 8 de setembro de 1995, realizou-se uma audiência sobre o caso da qual participaram os peticionários e representantes do Governo chileno.

 

20. Em 14 de setembro de 1995, a Comissão aprovou, de acordo com o artigo 20 da Convenção Americana, o Relatório 20/95 sobre o caso e o transmitiu ao Governo do Chile em 6 de outubro de 1995. O Governo chileno respondeu ao relatório em 8 de fevereiro de 1996.

 

21. Em 19 de março de 1996, Comissão transmitiu ao Governo do Chile o Relatório 11/96. Na nota de transmissão, informou-se ao Governo do Chile que a Comissão dera sua aprovação final ao relatório e ordenara sua publicação.

 

22. Em 2 de abril de 1996, a Comissão dirigiu-se ao Governo do Chile a fim de informá-lo de que se decidira adiar a publicação do relatório 11/96, dada a informação sobre novos fatos que os peticionários apresentaram à CIDH em 27 e 29 de março de 1996.

 

23. Em 22 de abril de 1996, o Representante Permanente do Chile junto à Organização dirigiu-se à Comissão com o objetivo de transmitir o parecer de seu Governo sobre a decisão de adiar a publicação do Relatório 11/96.

 

24. Em 2 de maio de 1996, realizou-se uma audiência a pedido dos peticionários, da qual participaram estes e representantes do Governo chileno e, em 3 de maio do mesmo ano, introduziram-se modificações no corpo do Relatório 11/96, mas não introduziram as conclusões e recomendações do relatório.

 

 

III. ADMISSIBILIDADE

 

25. A Comissão goza de competência para considerar este caso, pois se trata de ações a respeito das quais se alega violação dos direitos estabelecidos no artigo 13 da Convenção.

 

26. A petição não se acha pendente de nenhum outro processo interno de solução, nem é uma repetição de petição já examinada pela Comissão.

 

27. O procedimento de solução amistosa estabelecido pelo artigo 48.1, f, da Convenção e pelo artigo 45 do Regulamento da Comissão foi proposto pela Comissão às partes, mas não se pôde chegar a acordo.

 

28. Como consta dos registros, o peticionário esgotou os recursos estabelecidos na esfera da legislação chilena. Entretanto, o Governo declara que a petição foi apresentada fora do limite de seis meses estabelecido pelo artigo 46.1, b, da Convenção e pelo artigo 38 do Regulamento da Comissão.

 

A. Posição das partes acerca da admissibilidade do caso

 

1. Do Governo

 

29. O Governo afirma que a decisão final sobre o caso foi a sentença proferida pela Corte Suprema do Chile em 15 de junho de 1993. Segundo o Governo, os peticionários confundiram a data de notificação, pela Corte de Apelações, da decisão da Corte Suprema com a data real da sentença final desta. Para expedir notificação, que na realidade constitui somente parte da execução da sentença, a Corte deve verificar que não há apelações pendentes.

 

30. O Governo declara que a denúncia apresentada à Comissão foi efetuada em função da notificação da Corte de Apelações, estando desse modo fora do limite de seis meses estabelecido pelo artigo 46.1, b, da Convenção e pelos artigos 35, b e 38.1, do Regulamento da Comissão. Ante o exposto, o Governo solicitou que a Comissão declarasse inadmissível a petição.

 

2. Dos peticionários

 

31. Os peticionários alegam que a notificação pessoal. de 28 de junho de 1993, feita pela Corte de Apelações, mediante a qual se comunicou ao peticionário que a Corte Suprema confirmara a decisão de proibir a entrada e distribuição no Chile do livro Impunidad diplomática, devia ser considerado pela CIDH como a data a partir da qual se começa a contar o prazo de seis meses que estabelece o artigo 46.1, b, da Convenção.

 

32. Por outro lado, os peticionários afirmam que a total proibição da entrada, distribuição e circulação do livro no Chile constitui violação contínua e que, por esse motivo, o limite de seis meses não se aplica ao caso.

 

B. Análise da Comissão sobre a admissibilidade da petição

 

33. O limite de seis meses estabelecido no artigo 46.1, b, da Convenção tem duplo propósito: assegurar a certeza jurídica e proporcionar à pessoa envolvida tempo suficiente para considerar a posição.

 

34. Contrariamente ao que declara o Governo do Chile neste caso, o prazo de seis meses não deve ser contado a partir da data em que a Corte Suprema tomou a decisão final mas, como estabelece a Convenção Americana, "a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha sido notificado da decisão definitiva".

 

35. Ante o exposto, a Comissão considera que a denúncia que interpuseram os peticionários no caso de que se trata foi apresentada dentro do prazo previsto no artigo 46.1, b, da Convenção Americana e no artigo 38 do Regulamento da Comissão e que, por conseguinte, o caso é admissível.

 

36. Por outro lado, com referência à disposição citada no parágrafo anterior, a Comissão considera que a mesma não deve ser interpretada de maneira excessivamente formal e que comprometa o interesse da justiça. A esse respeito, Corte Interamericana declarou o seguinte:

 

É em geral aceito que o sistema processual seja uma forma de conseguir justiça e que esta não pode ser sacrificada por meras formalidades. Dentro de certos limites oportunos e razoáveis, pode-se escusar certas omissões ou demoras no cumprimento do procedimento, desde que se mantenha adequado equilíbrio entre a justiça e a certeza jurídica.2/

 

IV. POSIÇÃO DAS PARTES SOBRE O FUNDO DA QUESTÃO SUSCITADA

 

A. Dos peticionários

 

37. Os peticionários afirmam que a Convenção, quando garante a liberdade de pensamento e de expressão, procura preservar a autonomia individual ao reconhecer e proteger os direitos de expressar, criar e receber informação. Ademais, a proteção desse direito assegura o funcionamento de um governo democrático al garantir o livre intercâmbio de idéias na vida pública.

 

38. O artigo 13 garante o direito de "buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza", por qualquer meio de sua escolha. A Convenção procura maximizar a possibilidade de participar do debate público, não só assegurando a liberdade de pensamento mas também reconhecendo o direito coletivo de estar informado e o direito de réplica. A Convenção assegura o direito de expressão de maneira que também proteja o direito a diversas fontes de informação. O direito de réplica também é protegido a fim de assegurar que as pessoas afetadas por informação inexata ou difamatória possam ter acesso à esfera pública.

 

39. Como conseqüência dessa ampla interpretação do conceito de liberdade de pensamento e de expressão, previram-se limitações estritas às restrições que podem ser aplicadas a esses direitos. A Convenção contém normas gerais que prevêem as possíveis restrições aos direitos que assegura. Entretanto, no caso da liberdade de pensamento e de expressão, essas normas devem ser interpretadas de acordo com os limites específicos estabelecidos pelo artigo 13 da Convenção.

 

40. Os peticionários também alegam que a censura prévia do livro do Senhor Martorell viola uma proibição explícita do artigo 13.2 da Convenção. O artigo 13.2 contém uma distinção clara e intencional entre a censura prévia e a subseqüente imposição de responsabilidade. A primeira, na opinião dos peticionários, está expressamente proibida, ao passo que a segunda só é permitida quando necessária para assegurar o respeito dos direitos e da reputação de outrem.

 

41. Considerando que a liberdade de expressão é um direito fundamental, a Convenção proíbe absolutamente qualquer recurso de censura prévia como meio de proteger o direito à honra e estabelece que a imposição subseqüente de responsabilidade constitui a única forma adequada e aceitável de evitar abusos no exercício da liberdade de expressão.

 

B. Do Governo

 

42. O Governo do Chile observa que o conflito entre a liberdade de expressão e o direito à honra e à dignidade é um tema difícil. O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, no qual o Chile é parte, estabelece que a liberdade de expressão (embora não de opinião) pode estar sujeita a certas restrições, as quais devem estar previstas nas leis, quando sejam necessárias para assegurar o respeito dos direitos e da reputação de outrem.

 

43. O artigo V da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem reconhece que:

 

Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra os ataques abusivos à sua honra, à sua reputação e à sua vida particular e familiar.

44. A Convenção também reconhece no artigo 11 a proteção do direito à honra e à dignidade pessoal, concluindo no parágrafo 3 que:

 

Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerência ou tais ofensas.

45. Ademais, o Governo declara que está sujeito a obrigações diferentes e contraditórias no contexto do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, por um lado, e no da Convenção Americana, por outro. Segundo o Governo, há uma diferença fundamental entre as obrigações que estabelece o Pacto e as que prevê a Convenção Americana, e o Estado chileno deve respeitar ambos os instrumentos. A Convenção, quando estabelece que este direito só estará sujeito à imposição subseqüente de responsabilidade, é menos ampla do que o Pacto, que aceita as restrições previstas na lei que protege os direitos e a reputação de outrem. O Pacto faz a distinção entre liberdade de expressão e direito à liberdade de opinião. A primeira pode estar sujeita a várias restrições, ao passo que o segundo constitui um direito absoluto.

 

46. A ação movida contra a publicação e distribuição do livro Impunidad diplomática não afetou, segundo o Governo, a liberdade de opinião do autor, uma vez que seu conteúdo não expressava opiniões ou pensamentos do autor mas somente material difamatório e ofensivo sobre a vida privada de várias pessoas.

 

47. O Governo também faz referência ao artigo 25, que estabelece o direito a recurso simples e oportuno para a proteção dos direitos assegurados pela Convenção. Segundo o Governo, essa disposição estabelece que o recurso seja adequado para garantir os direitos protegidos na Convenção, inclusive antes de que haja ocorrido uma violação, sempre que um direito esteja em perigo iminente de ser violado. Essa é a petição de proteção aplicada nesse caso.

 

48. Segundo o Governo, a legislação chilena estabelece um equilíbrio harmônico entre o direito à honra e à privacidade e à liberdade de expressão. Embora a censura prévia seja inaceitável e contrária ao governo democrático, isso não significa que não possa ser aplicada a certos casos excepcionais previstos na lei.

 

49. No Chile existe uma divisão absoluta entre os Poderes Executivo e Judiciário. No caso de que se trata, o Governo não moveu ação alguma contra o livro. A sentença foi uma decisão independente dos tribunais baseada na legislação chilena. Na opinião do Governo chileno, não se pode considerar que uma decisão independente adotada pelo Poder Judiciário, que admite recurso prescrito na Constituição, constitua violação de um direito humano.

 

50. Quanto à imposição subseqüente de responsabilidade, apesar dos numerosos recursos interpostos perante os tribunais chilenos, isso foi até agora impossível uma vez que o acusado se negou a submeter-se à jurisdição dos tribunais chilenos. Ademais, na opinião do Governo do Chile, o peticionário não pode exigir seu direto de liberdade de expressão enquanto se recuse a aceitar as decisões dos tribunais chilenos nos casos apresentados contra ele pelos fatos alegados no livro de que se trata.

 

 

V. ANÁLISE

 

51. O Governo do Chile não controverte nenhum dos fatos alegados na denúncia. Questiona, porém, o seguinte:

 

— Em primeiro lugar, se as decisões dos tribunais chilenos de proibir a entrada, distribuição e circulação do livro intitulado Impunidad diplomática no Chile constitui violação dos direitos protegidos no artigo 13 da Convenção;

 

— Em segundo lugar, se a violação desse direito poderia justificar-se, como pretende o Governo, pela violação de outro direito, qual seja a proteção da honra e da dignidade que o artigo 11 da Convenção reconhece; e

 

— Por último, se o Senhor Martorell estaria, por sua conduta, impedido de reclamar da Comissão que a ele se assegure o gozo do direito que pretende.

 

52. Analisam-se a seguir cada uma das considerações do Governo do Chile.

 

1. O direito de publicar, distribuir e fazer circular um livro sem censura prévia

O artigo 13 da Convenção diz o seguinte:

 

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.

2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:

 

a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou

 

b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.

 

3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.

 

4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2.

 

5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à violência ou qualquer outra ação ilegal similar contra qualquer pessoa ou grupo de pessoas, por motivo algum, inclusive de raça, cor, religião, língua ou origem nacional.

53. O artigo 13 da Convenção engloba dois aspectos: o direito de expressar pensamentos e idéias e o direito de recebê-los. Por conseguinte, quando esse direito é restringido por meio de interferência arbitrária, afeta não só o direito individual de expressar informações e idéias, mas também o direito da comunidade em geral de receber qualquer tipo de informação e opinião. A Corte Interamericana declarou o seguinte sobre o assunto:

 

... quando a liberdade de expressão de uma pessoa é restringida legalmente, não é só o direito dessa pessoa que se está violando mas também o direito dos demais de "receber" informações e idéias. Por conseguinte, o direito protegido pelo artigo 13 é de alcance e caráter especiais, que se evidenciam pelo aspecto duplo da liberdade de expressão. Por um lado, requer que ninguém seja limitado ou impedido arbitrariamente de expressar seus próprios pensamentos. Nesse sentido, é um direito que assiste a cada pessoa. Por outro lado, em seu segundo aspecto, implica o direito coletivo de receber qualquer informação e de ter acesso aos pensamentos expressos pelos demais.3/

54. No mesmo parecer, a Corte também considerou que os dois aspectos da liberdade de expressão devem ser simultaneamente assegurados.4/

 

55. A Convenção permite a imposição de restrições ao direito de liberdade de expressão com a finalidade de proteger a comunidade contra certas manifestações ofensivas e de prevenir o exercício abusivo desse direito. O artigo 13 autoriza algumas restrições ao exercício desse direito e estipula os limites permissíveis e os requisitos necessários para pôr em prática essas limitações. O princípio estipulado nesse artigo é claro no sentido de que a censura prévia é imcompatível com o pleno gozo dos direitos protegidos pelo mesmo. A exceção é a norma constante do parágrafo 4, que permite a censura dos "espetáculos públicos" para a proteção da moralidade dos menores. A única restrição autorizada pelo artigo 13 é a imposição de responsabilidade ulterior. Além disso, qualquer ação desse tipo deve estar previamente estabelecida na lei e só pode ser imposta na medida necessária para assegurar: a) o respeito dos direitos ou da reputação dos demais ou b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública ou da saúde ou da moral públicas.

 

56. A interdição da censura prévia, com a exceção prevista no parágrafo 4 do artigo 13, é absoluta. Essa proibição existe unicamente na Convenção Americana. A Convenção Européia e o Pacto sobre Direitos Civis e Políticos não contêm disposições similares. O fato de que não se preveja nenhuma outra exceção a essa norma é uma indicação da importância atribuída pelos que redigiram a Convenção à necessidade de expressar e receber qualquer tipo de informação, pensamentos, opiniões e idéias.

 

57. O caráter fundamental do direito de liberdade de expressão foi realçado pela Corte quando declarou que:

 

A liberdade de expressão é um dos elementos fundamentais em que se baseia a existência de uma sociedade democrática. É indispensável para a formação da opinião pública. Também constitui conditio sine qua non para o desenvolvimento dos partidos políticos, dos sindicatos, das sociedades científicas e culturais e, em geral, de todos os que desejam influenciar o público. Em resumo, representa a forma de permitir que a comunidade, no exercício de suas opiniões, esteja suficientemente informada. Por conseguinte, pode-se dizer que uma sociedade que não está bem informada não é verdadeiramente livre.5/

58. O artigo 13 determina que qualquer restrição que se imponha aos direitos e garantias constantes do mesmo, deve ser efetuada mediante a imposição de responsabilidade ulterior. O exercício abusivo do direito de liberdade de expressão não pode estar sujeito a nenhum outro tipo de limitação. Conforme assinala a mesma disposição, quem exerceu esse direito de maneira abusiva, deve enfrentar as conseqüências ulteriores que lhe incumbam.

 

59. Pelos raciocínios expostos, a Comissão considera que a decisão de proibir a entrada, distribuição e circulação do livro Impunidad diplomática no Chile infringe o direito de divulgar "informações e idéias de toda natureza", que o Chile está obrigado a respeitar como Estado parte na Convenção Americana. Em outras palavras, essa decisão constitui restrição ilegítima do direito à liberdade de expressão, mediante ato de censura prévia, que não está autorizado pelo artigo 13 da Convenção.

 

2. Os direitos à privacidade, à honra e à dignidade

 

60. Cabe analisar a seguir o segunda questão suscitada pelo Governo do Chile neste caso; a obrigação de proteger o direito à honra e à dignidade e seu possível conflito com o direito à liberdade de expressão.

 

61. O Governo do Chile assinalou que os direitos à honra e à dignidade com freqüência estão em conflito com a liberdade de expressão e que o Estado deve procurar equilibrar esses direitos com as garantias inerentes à liberdade de expressão e, por último, que um direito pode ser sacrificado em virtude de outro direito considerado mais importante.

 

62. A Convenção Americana reconhece que pode haver limitações quando os diferentes direitos protegidos na mesma se achem em conflito. Além disso, o texto do artigo 13 reconhece que o direito à liberdade de expressão está sujeito a restrições a fim de assegurar o "respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas".

 

63. Na opinião do Governo do Chile e também dos tribunais chilenos que decidiram o assunto, em caso de conflito entre as normas do artigo 11 relativas à proteção da honra e da dignidade e as do artigo 13 que reconhecem a liberdade de expressão devem prevalecer as primeiras.

 

64. Por sua vez, os peticionários declararam que não apresentaram prova alguma relativa à alegada violação do direito à honra e à dignidade porque esse tema se achava em discussão não no processo de que se trata mas nos tribunais chilenos e que, por conseguinte, não cabia à Comissão pronunciar-se a esse respeito.

 

65. A Convenção Americana reconhece e protege o direito à privacidade, à honra e à dignidade no artigo 11. Esse artigo reconhece a importância da honra e da dignidade individuais ao estabelecer a obrigação de respeitar esses direitos,como reconhece que esses direitos devem estar livres de interferências arbitrárias ou abusivas ou ataques abusivos e que toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ofensas.

 

66. Além disso, os artigos 1 e 2 da Convenção estabelecem a obrigação de assegurar os direitos protegidos pela Convenção e requerem que os Estados partes adotem "as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos [reconhecidos na Convenção] e liberdades". Por conseguinte, todos os Estados partes na Convenção têm a obrigação de assegurar que esses direitos sejam adequada e efetivamente protegidos por seus ordenamentos jurídicos internos.

 

67. De acordo com a Convenção, o Estado do Chile tem a obrigação positiva de proteger as pessoas que achem dentro de sua jurisdição contra as violações do direito à privacidade e, quando esse direito for violado, proporcionar soluções prontas, efetivas e adequadas a fim de reparar qualquer prejuízo decorrente de uma violação desse direito.

 

68. No caso de que se trata, alega-se que o conteúdo do livro Impunidad diplomática afetou a honra de algumas pessoas e que, sob pretexto de descrever as circunstâncias que levaram à partida do Chile do Embaixador argentino, fizeram-se certos ataques não correlatos contra indivíduos privados. Segundo o Governo, esses ataques foram qualificados de tal gravidade que só a total proibição do livro podia ser considerada solução efetiva e adequada para proteger o direito à privacidade e à honra das vítimas.

 

69. A Comissão considera que não lhe cabe examinar o conteúdo do livro de que se trata nem a conduta do Senhor Martorell porquanto carece de competência para pronunciar-se a esse respeito e porquanto o direito à honra está devidamente protegido na legislação chilena. Além disso, as pessoas que se considerem lesadas em sua honra e dignidade contam, segundo surge dos autos no presente caso, com recursos adequados nos tribunais de justiça chilenos para dirimir a questão.

 

70. Por esse motivo, a Comissão não pode aceitar o ponto de vista do Governo do Chile de que o direito à honra teria hierarquia superior à do direito à liberdade de expressão.

 

O artigo 29 estabelece o seguinte:

 

Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de:

 

a) permitir a qualquer dos Estados Partes, grupo ou pessoa que suprima o gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida que a nela prevista.

Por sua vez, o artigo 32, parágrafo 2, dispõe o seguinte:

 

2. Os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum, numa sociedade democrática.

71. A Comissão considera que a interpretação dos direitos constantes desses artigos não apresenta, como declara o Governo do Chile, um conflito de diferentes princípios entre os que se tenha de escolher.6/

 

72. Nesse mesmo sentido, as disposições do artigo 11 não podem ser interpretadas pelos órgãos do Estado como violação do artigo 13 da Convenção Americana, que proíbe a censura prévia. No texto da resposta à denúncia dos peticionários, o Governo do Chile declarou o seguinte:

 

Não se impediu a publicação de nenhuma opinião, pensamento ou idéia e somente se procurou proteger a honra das pessoas, como o autorizam — mais precisamente, o ordenam — a Convenção, o Pacto e a Constituição chilena, todos em perfeita harmonia nessa matéria.

73. A Comissão não está de acordo com esse argumento porque a forma de proteger a honra utilizada pelo Estado chileno no caso de que se trata é ilegítima. Aceitar o critério utilizado pelo Chile no caso do Senhor Martorell implica deixar ao livre arbítrio dos órgãos do Estado a faculdade de limitar, mediante censura prévia, o direito à liberdade de expressão que o artigo 13 da Convenção Americana consagra.

 

74. Ao regulamentar a proteção da honra e da dignidade a que faz referência o artigo 11 da Convenção Americana — e ao aplicar as disposições pertinentes do direito interno sobre a matéria — Os Estados partes têm a obrigação de respeitar o direito de liberdade de expressão. A censura prévia, qualquer que seja sua forma, é contrária ao regime que o artigo 13 da Convenção garante.

 

75. O possível conflito que possa ser suscitado na aplicação dos artigos 11 e 13 da Convenção, na opinião da Comissão, pode ser solucionado recorrendo-se aos termos do próprio artigo 13, o que leva a considerar o terceiro ponto em questão.

 

3. Responsabilidades ulteriores de quem viola o direito à honra

 

76. O procurador do Senhor Martorell, segundo consta do expediente, em sua defesa perante os tribunais chilenos afirmou que:

 

... se eventualmente se estabelecer, em juízo legalmente instaurado, a existência de abuso ou delito no exercício dessa garantia constitucional, deverá responder por isso oportunamente. O meio idôneo previsto em nossa legislação, com essa finalidade, é a apresentação de denúncia ou querela perante a justiça criminal.

77. A esse respeito, o Governo do Chile, no capítulo VII, último parágrafo, do texto da resposta, expressa o seguinte:

 

Se a Comissão julga que o Estado chileno, mediante a resolução de seus tribunais, violou a Convenção, pelo menos deveria exigir que o peticionário se apresente para assumir as responsabilidades que a Convenção dele exige e que ele tão ostentosamente anunciou em sua petição.

78. Em todo caso, acreditando-se, na audiência realizada no dia 2 de maio de 1996, que o Senhor Martorell foi condenado penal e civilmente e aceitou voltar ao Chile para inteirar-se da sentença, a questão suscitada pelo Governo chileno junto à Comissão, com referência às responsabilidades ulteriores do Senhor Martorell, perdeu vigência e, por conseguinte, a CIDFH julga que não lhe cabe pronunciar-se a esse respeito.7/

 

 

VI. TRAMITAÇÃO DO RELATÓRIO 20/95

 

79. No decorrer de seu 90º Período de Sessões, realizado em setembro de 1995, a Comissão aprovou o Relatório 20/95, relativo ao caso. O Relatório conclui que o Estado violou, neste caso, o artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

 

80. Em 6 de outubro de 1995, a Comissão enviou o Relatório ao Governo do Chile e solicitou a este que, num prazo de três meses a partir dessa data, "informe a Comissão sobre as medidas adotadas para solucionar a situação denunciada".

 

81. Mediante a nota Nº 003/96 de 5 de janeiro de 1996, o Governo do Chile solicitou uma prorrogação de trinta dias para responder ao Relatório.

 

82. Em sua resposta de 1º de fevereiro de 1996, sobre as medidas adotadas em relação ao Relatório 20/95, relativo ao caso Nº 11.230, o Governo do Chile manifesta, inter alia, que:

 

Adotará todas as medias que estejam ao seu alcance para dar cumprimento ao referido Relatório; que comunicará oficialmente ao Presidente da Corte Suprema o conteúdo da aludida resolução a fim de que no futuro o Poder Judiciário do Estado chileno esteja em condições de adotar suas resoluções sobre a matéria em consonância com a jurisprudência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos estabelecida pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Chile é Estado parte; que, ademais, o artigo 25 da Convenção estabelece o direito a recursos efetivo perante os tribunais ante violações de seus direitos fundamentais e a obrigação do Estado de garantir o cumprimento das resoluções daqueles tribunais; que um estudo da legislação nacional e da correspondência entre esta e a Convenção Americana levou à conclusão de que há plena concordância entre o artigo 29.12 da Constituição do Chile e o artigo 13 da Convenção Americana; e que, de acordo com o parágrafo 4 do artigo 13 da Convenção Americana, sobre os espetáculos públicos, que podem ser submetidos a censura prévia para a proteção moral dos jovens, a Constituição chilena estabelece, no artigo 19.12 que "A lei estabelecerá um sistema de censura para a exibição e publicidade da produção cinematográfica".

 

VII. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

 

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

CONSIDERANDO:

 

83. Que o Estado chileno, mediante resolução da Corte Suprema de Justiça de 15 e junho de 1993, que proibiu a entrada, distribuição e circulação do livro Impunidad diplomática, da autoria de Francisco Martorell, violou o artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos;

 

84. Que a nota de resposta do Governo do Chile ao Relatório 20/95 não apresenta novos elementos que permitam desvirtuar os fatos denunciados ou que acreditem que foram adotadas medidas adequadas para solucionar a situação denunciada; e

 

85. Que, na tramitação do caso, foram observados, cumpridos e esgotados todos os trâmites legais e regulamentares estabelecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e no Regulamento da Comissão,

 

RESOLVE:

 

86. Recomendar ao Estado chileno que levante a censura que, em violação do artigo 13 da Convenção Americana, pesa com respeito ao livro Impunidad diplomática.

 

87. Recomendar também ao Estado chileno que adote as disposições necessárias para que o Senhor Francisco Martorell possa fazer entrar, distribuir e circular no Chile o livro mencionado no parágrafo anterior.

 

88. Publicar este relatório como parte do Relatório Anual da Assembléia Geral da OEA em virtude do disposto no artigo 51.3 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e no artigo 48 do Regulamento da Comissão.

 

 

VOTO FUNDAMENTADO DO COMISSIONADO

DOUTOR ALVARO TIRADO MEJÍA

 

Apresento aqui as razões do meu voto dissidente em relação à decisão tomada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos na sessão de 3 de maio de 1996 em relação ao caso 11.230, sobre o Chile.

 

Considero que no momento de tomar tal determinação a Comissão não estava facultada a fazê-lo, pelo seguinte:

 

a) No 90º Período de Sessões, em 14 de setembro de 1995, a Comissão aprovou o relatório, de acordo com o artigo 50 da Convenção Americana, e seu envio ao Governo do Chile.

b) No 91º Período de Sessões, realizado em Washington em 1º de março de 1996, a Comissão aprovou o relatório final e sua publicação no Relatório Anual de 1996. Assim se procedeu por intermédio da Secretaria-Geral e o Relatório do caso 11.230 foi incluído no Relatório Anual às páginas 79 a 95.

c) Em 19 de março de 1996 a Comissão, mediante nota da Secretaria, informou ao Ministro das Relações Exteriores do Chile, Senhor José Miguel Insulza, que "A Comissão deu sua aprovação final ao referido Relatório e ordenou sua publicação". Também enviou a ele cópia da providência.

d) No dia 28 de março de 1996, a Secretaria da Comissão notificou os procuradores do peticionário, Senhores José Miguel Vivanco, Juan Méndez e Viviana Dristicevic, a Human Rights Watch/Americas e à CEJIL que a Comissão "... aprovou o relatório final Nº 11/96 sobre o caso acima citado, correspondente ao Senhor Francisco Martorell", e anexou cópia do relatório.

e) No dia 29 de março de 1996, os procuradores do peticionário enviaram comunicação à Secretaria da Comissão, acusando o recebimento do relatório e solicitando que se dispusesse a suspensão da publicação por considerar que havia "graves erros na exposição dos fatos", os quais foram relacionados em comunicação por escrito enviada à Comissão em 27 de março como "informação recente".

f) No dia 1º de abril de 1996, a Comissão, em reunião realizada por telefone, decidiu adiar a publicação do relatório. No transcurso da discussão, manifestei minha reserva quanto à competência da Comissão para modificar o que já fora decidido e notificado, e quanto à conveniência de fazê-lo.

g) Na sessão de 3 de maio de 1996, a Comissão aprovou um relatório sobre o caso, com novo texto, diferente do aprovado em 1º de março do mesmo ano.

Conforme declarei perante a Comissão, e agora o reitero nesta comunicação aclaratória por escrito, meu voto dissidente se deve a que considero que a Comissão não tinha competência para modificar uma providência discutida e aprovada por unanimidade, cuja publicação fora ordenada, e havia sido expedida notificação às partes. Esse proceder não encontra amparo na Convenção Americana, é contrário à segurança jurídica que o sistema requer e de que as partes necessitam como garantia, e poderia converter-se num mau precedente.

 

Por considerar inválida a nova providência, não entro em considerações sobre as mudanças nelas introduzidas, sobre os fatos e sobre as considerações que se deixou de consignar, nem quanto a se os fatos enunciados como novos foram ou não comprovados.

 

Do mesmo modo que manifestei no decorrer das deliberações e ao consignar meu voto dissidente, este não implica que me afaste da posição que assumi com todos os demais membros da Comissão ao aprovar o Relatório em 1º de março de 1996, no sentido de que o Estado chileno, pela decisão do Poder Judiciário, violou o artigo 13 da Convenção Americana, ao proibir a entrada, distribuição e circulação de um livro.

 

 

COMUNICAÇÃO DO GOVERNO DO CHILE

 

 

Em 24 de março de 1997, o Presidente da Comissão recebeu a comunicação do Vice-Ministro das Relações Exteriores do Chile, Senhor Mariano Fernández Amunategui, cujo texto se transcreve a seguir:

 

Refiro-me aos Relatórios de 1º de março de 1996 (OEA/Ser./L/V/II.91 Doc.24) e de 3 de maio de 1996 (OEA/Ser.L/V/II.91 Doc.24 rev. 1), ambos sob o número 11/96, que foram aprovados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em seus 91º Período Ordinário de Sessões e 92º Período Extraordinário de Sessões, respectivamente, em relação ao caso 11.230, cujo peticionário é o Senhor Francisco Martorell e que tanto um como o outro foram notificados ao Governo do Chile como o relatório final e definitivo da Comissão nesse caso.

Em virtude do primeiro relatório mencionado, a Comissão unanimemente — com exceção do Comissionado Senhor Claudio Grossman, que por motivos regulamentares teve de abster-se de participar e de votar — chegou à conclusão de que o Estado chileno, pela decisão de sua Corte Suprema de proibir a entrada, distribuição e circulação do livro Impunidad diplomática, da autoria do Senhor Francisco Martorell, violara o artigo 13 da aludida Convenção.

Entretanto, nesse primeiro relatório, a mesma Comissão afirmou que o peticionário, Senhor Martorell, havia eludido as responsabilidades ulteriores decorrentes da publicação de seu livro, assinalando que não se achava em condições de adotar a seu favor medidas que tendessem a protegê-lo do direito conculcado, uma vez que não podia "avaliar a conduta do Senhor Martorell", e logo acrescentou que:

... Toda a estrutura e mesmo a ideologia subjacente da Convenção — cuja tutela foi confiada à Comissão — assenta-se na suposição de que todos os direitos nela estabelecidos podem ser exercidos sem o menosprezo de outros. Na situação aqui analisada, conforme já se expressou, a contrapartida do direito que assiste ao Senhor Martorell de fazer publicar, circular e distribuir seu livro no Chile, sem censura prévia, consiste em que possa responder, perante a justiça chilena, pelos abusos cometidos contra a reputação de outras pessoas. Se essa responsabilidade que o artigo 13 da Convenção prescreve pudesse ser eludida por aquele que reclamasse o exercício de um direito, todo o equilíbrio organizado pela Convenção se alteraria ...

Até a expedição do Relatório 11/96, de 1º de março de 1996, as normas processuais previstas na Convenção, particularmente nos artigos 50 e 51, haviam sido rigorosamente cumpridas, motivo por que o Governo do Chile ainda continua a considerar esse relatório como o único válido e a respeito do qual se encontra juridicamente vinculado.

A Comissão, porém, em reunião extraordinária, realizada em 3 de maio de 1996, aprovou — não unanimemente, uma vez que houve um voto dissidente, do Comissionado Senhor Alvaro Tirado Mejía — um novo relatório, de conteúdo diferente do aprovado em 1º de março. Omitiu-se nesse relatório qualquer referência à responsabilidade ulterior que cabia ao Senhor Martorell e que constitui — também convém ter em mente — uma exigência do artigo 13 do Pacto de San José.

Em suma, sem que disposição alguma da Convenção justifique a elaboração de novo relatório, a CIDH aprovou um texto que vem a ser substancialmente diferente do que notificara ao Governo do Chile como definitivo. É evidente que, à luz das normas pertinentes da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a Comissão carece de competência para desse modo proceder.

Ademais, a decisão antes exposta, introduziu na tramitação das comunicações individuais perante a CIDH uma elemento de incerteza e um preocupante fator de insegurança jurídica.

O voto dissidente do Comissionado Tirado, que manifestou sua discordância com a atuação da Comissão, em virtude de que esta "... não tinha competência para modificar uma providência discutida e aprovada por unanimidade ..." e porque esse proceder, ademais "... não encontra amparo na Convenção Americana, é contrário à segurança jurídica que o sistema requer e de que as partes necessitam como garantia, e poderia converter-se num mal precedente ...", resume adequadamente as apreensões do Governo do Chile.

Atendida a necessidade de aclarar e definir a validade do procedimento aplicado pela CIDH no caso de que se trata, o Governo do Chile decidiu insistir em obter o parecer jurídico da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o assunto, consultando-a especificamente sobre se a Comissão está facultada, uma vez que em relação a um Estado adotou os dois relatórios previstos nos artigos 50 e 51 da Convenção e que com respeito ao último desses relatórios notificou o Estado correspondente de que se tratava de um relatório definitivo, a modificar substancialmente os dois anteriores e emitir um terceiro.

Embora o pedido de parecer consultivo tenha recaído sobre um tema jurídico da maior importância prática, isso não impediu alguns comentários que tendem a desfigurar o alcance e o propósito da iniciativa tomada por meu Governo. Assim, observou-se que o referido parecer consultivo tinha por objetivo desvirtuar a resolução no "caso Martorell", ou que se pretendia impugnar uma recomendação da Comissão pela via indireta do pedido de parecer consultivo, destinado a questionar atribuições processuais ou jurisdicionais da Comissão.

Comentários como esses não captaram a real vontade que moveu o Governo a recorrer à Corte Interamericana, ou seja, dilucidar uma eventual diferença que poderia haver entre o Governo do Chile e a Comissão quanto a qual dos dois mencionados relatórios prevalece.

Entretanto, um exame mais minucioso do assunto levou à convicção de meu Governo de que não haveria tal diferença. Com efeito, quanto ao fundo, o Governo do Chile não teve divergência alguma com a Comissão, uma vez que, como dissemos em reiteradas ocasiões, há no Chile ampla liberdade de expressão e opinião, que está consagrada em nossa Carta Magna nos mesmos termos que na Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Esses critérios quanto à extensão da liberdade de expressão e opinião também foram recolhidos pela Assembléia Geral da OEA que, mediante a resolução AG/RES. 1331 (XXV-O/95), aprovada também pelo voto do Chile — e de todos os Estados membros da Organização — dispôs em seu parágrafo dispositivo 15 o seguinte:

... Reiterar a plena vigência que tem em toda sociedade democrática a liberdade de expressão, que deve estar sujeita não a censura prévia, mas a responsabilidades posteriores que decorram dos abusos de tal liberdade, em conformidade com as leis internas que os Estados membros hajam legitimamente estabelecido para garantir o respeito aos direitos ou à reputação dos demais, ou para proteger a segurança nacional, a ordem pública, a saúde ou a moral públicas.

Quanto aos aspectos processuais do caso, conforme se observou anteriormente, para o Governo do Chile, o relatório de 1º de março de 1996 é o único que pode ter vigência, motivo por que continuará a ajustar sua conduta aos termos do referido relatório. Como mencionei em minha carta de 1º de fevereiro de 1996, dirigida à Comissão em relação ao caso, o Governo do Chile, além de reiterar a relevância que reconhece ao sistema interamericano de direitos humanos, tomará todas as medidas a seu alcance para dar cumprimento ao mencionado relatório.

Ante o exposto, não parece conveniente nem necessário que o Governo do Chile persista em debater com essa Comissão esse assunto, que deu origem a interpretações equívocas ou inconvenientes, especialmente quando é propósito decidido de meu Governo continuar a ter as mais frutíferas relações de cooperação com a Comissão, que permitam, mediante o diálogo tanto bilateral como o estabelecido por meio dos mecanismos multilaterais atualmente elaborados com vistas a fortalecer o sistema interamericano de direitos humanos, superar situações como as ocorridas neste caso e evitar que possam repetir-se no futuro.

É pelas considerações acima expostas que o Governo do Chile comunica à Comissão que Vossa Excelência preside sua decisão de retirar o pedido de parecer consultivo incoado perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos e, por conseguinte, solicita que esta nota seja publicada juntamente com o relatório sobre o caso 11.230.


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1. O Comissionado Decano Claudio Grossman, de nacionalidade chilena, não participou do debate nem da votação deste caso, de acordo com o artigo 19 de Regulamento da Comissão.

2. Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso Cayara, Objeções preliminares, sentença de 3 de fevereiro de 1993, parágrafo 42.

3. Corte Interamericana de Direitos Humanos, Parecer Consultivo OC-5/85, de 13 de novembro de 1985, Série A, Número 5, parágrafo 30; Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigos 13 e 29.

4. Ibid., parágrafo 33.

5. Ibid., parágrafo 70.

6. Num caso semelhante, a Corte Européia considerou que "não se achava ante a escolha entre dois princípios conflitivos, mas ante um princípio de liberdade de expressão que está sujeito a algumas exceções que devem ser interpretadas em sentido estrito". Corte Européia de Direitos Humanos, Caso Sanday Times, sentença de 26 de abril de 1979, Série A, Número 30, parágrafo 65.

7. Cumpre assinalar que o critério da Comissão quanto a tema deve ser interpretado à luz do exposto pela mesma em seu Relatório sobre a situação dos direitos humanos na Argentina, onde estabeleceu:

Por outro lado, não compete à Comissão substituir o Estado na investigação e punição dos atos de violação cometidos por particulares. Entretanto, sim, corresponde a ela proteger as pessoas cujos direitos foram prejudicados pelos agentes ou órgãos do Estado. O motivo que, em definitivo, justifica a existência dos órgãos internacionais de proteção dos direitos humanos, como no caso da CIDH, obedece a essa necessidade de encontrar uma instância à qual se possa recorrer quando os direitos humanos forem violados por tais agentes ou órgãos estatais. [Ver Relatório sobre a situação dos direitos humanos na Argentina (OAS/Ser.L/VII.49), doc. 19, de 11 de abril de 1980, página 29].

Nesse mesmo sentido se pronunciou a Comissão na audiência pública sobre exceções preliminares realizada em 16 de julho de 1987 no caso "Fairen Garbi e Solis Corrales" na Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Juiz ad hoc Rigoberto Espinal Irías perguntou à Comissão se poderia haver, com referência a esse caso, "alguma relação ou vínculo possível entre a violação de direitos humanos e a chamada teoria das mãos limpas (clean hands) reconhecida no Direito Internacional". Ao responder à pergunta do juiz ad hoc, a Comissão declarou o seguinte:

A resposta é obviamente não. A Comissão protege seres humanos com inteira prescindência de sua ideologia, seu comportamento. Há direitos que são fundamentais de toda pessoa. O direito à vida é o mais importante deles. Qualquer que seja a ideologia, qualquer que seja a conduta, se uma pessoa não tem clean hands evidentemente o que cabe ao Estado é instaurar um processo ordinário contra ela. Entretanto, não cabe, de modo algum, que um país possa executá-lo, e por método tão perverso, qual seja seu desaparecimento. De modo algum, isso poderia ser aceito. Não há cidadãos de primeira e de segunda no que se refere à proteção diplomática. A Comissão jamais perguntou pela ideologia, ou por que, nunca ... e nunca o fará. [Resposta do Doutor Edmundo Vargas Carreño, Secretário Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Série D, Memorias, Argumentos Orales y Documentos, página 182].