RELATÓRIO ANUAL 1996

RELATÓRIO Nº 34/96
CASOS 11.228, 11.229, 11.231 E 11.282
CHILE*
14 de outubro de 1996

 


I. ANTECEDENTES

 

1. Entre 1991 e 1993, a Comissão recebeu várias petições contra o Estado chileno nas quais se denunciava a promulgação do Decreto-Lei 2191, de 10 de março de 1978. Nessas petições, registradas sob os números e nomes 11.228, Irma Meneses Reyes, 11.229, Ricardo Lagos Salinas, 11.231, Juan Alsina Hurtos, e 11.282, Pedro José Vergara Inostroza, alegava-se que a referida lei de anistia de 1978, Decreto-Lei 2191, em virtude da qual se perdoavam vários delitos cometidos entre 1973 e 1978, e sua conseqüente aplicação pelos tribunais chilenos, constituía violação do direito internacional consuetudinário e convencional.

 

2. Os peticionários solicitavam, em todas elas, que a Comissão l) declarasse que o Decreto-Lei 2191 era incompatível com o artigo XVII da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e os artigos 1, 8 e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 2) recomendasse ao Estado chileno que adote as medidas necessárias para estabelecer o paradeiro das vítimas e punir os responsáveis pelos desaparecimentos e execuções extrajudiciais e 3) recomendasse ao Estado do Chile que conceda compensação aos familiares das vítimas pela violação de seu direito à justiça.

 

3. Uma vez que as alegações nessas quatro petições são, em essência, as mesmas e que a questão é basicamente um assunto de direito, pois não são os fatos que estão em disputa mas, sim, se o decreto é compatível com a Convenção, a Comissão decidiu considerá-las em conjunto.

 

II. AS DENÚNCIAS E A TRAMITAÇÃO PERANTE A COMISSÃO

 

4. Caso 11.228. Em 21 de dezembro de 1993, a Comissão recebeu uma denúncia contra o Estado chileno por violação do direito à justiça e pela situação de impunidade em que ficou o caso de Juan Aniceto Meneses Reyes, estudante da Universidade do Chile detido no dia 3 de agosto de 1974 por agentes da então Direção de Inteligência Nacional (DINA). Meneses Reyes foi visto depois de sua detenção num recinto secreto da rua Londres nº 38 e logo, outra vez, no Campo de Incomunicados de Quatro Álamos. Depois disso, desapareceu. Os peticionários informaram sobre as providências, recursos e trâmites judiciais efetuados na jurisdição interna do Chile da seguinte maneira: a investigação criminal tem início perante o 7º Juizado Criminal de Santiago em fins de 1979; por se acharem acusados agentes do Estado com privilégios militares, o expediente foi encaminhado ao juizado militar; em 24 de julho de 1981, o Juiz Militar decretou o encerramento do caso; essa resolução foi logo confirmada pela Corte Marcial em 30 de outubro de 1981; posteriormente, a pedido do Ministério Público Militar, o expediente foi desarquivado e, em 12 de dezembro de 1989, aplicou-se a ele a lei de anistia e encerrou-se o caso. Os familiares da vítima, reclamando por essa decisão, recorreram, em Queja, perante a Corte Suprema, que, em 3 de novembro de 1993, rejeitou o recurso e reafirmou o encerramento definitivo do caso.

 

5. Caso 11.229. Em 15 de novembro de 1993, a Comissão recebeu uma denúncia contra o Estado do Chile por violação do direito à justiça e pela situação de impunidade em que ficou o caso de Ricardo Lagos Salinas, contador, detido em 17 de junho de 1975 por agentes da ex-Direção de Inteligência Nacional (DINA), que o levaram ao quartel de Villa Grimaldi, na cidade de Santiago. Em seguida, foi visto vivo, juntamente com outros dirigentes do Partido Socialista, nas instalações do referido quartel e, mais tarde, desapareceu. Os peticionários informavam sobre as providências, recursos e trâmites efetuados na jurisdição interna do Chile da seguinte maneira: a investigação teve início com a apresentação de um recurso de habeas corpus interposto em 3 de setembro de 1975, que foi rejeitado por constar que não se achava detido por ordem de autoridade alguma; o processo de investigação criminal foi instaurado perante o 7º Juizado Criminal de Santiago; em dezembro de 1979 o expediente foi encaminhado à justiça militar; em 17 de junho de 1982 o juiz militar decretou a suspensão da causa, o que foi logo confirmado pela Corte Marcial em maio de 1983. Achando-se o caso arquivado, a pedido do Ministério Público Militar, que solicitara a aplicação da lei de anistia, o Decreto-Lei 2191, o Juiz Militar, em 30 de outubro de 1989, promulgou resolução de encerramento do caso. A resolução foi apelada, mas foi confirmada pela Corte Marcial em 5 de dezembro de 1990. Os peticionários recorreram dessa decisão perante a Corte Suprema, que rejeitou o recurso em 30 de junho de 1993, com o que ficou a decisão definitivamente confirmada.

 

6. Caso 11.231. Em 5 de novembro de 1993, a Comissão recebeu denúncia contra o Estado chileno por violação do direito à justiça e pela situação de impunidade em que ficara o caso do sacerdote espanhol Juan Alsina Hurtos, detido em 19 de setembro de 1973 no centro assistencial San Juan de Dios, em Santiago, por soldados do Exército, que o conduziram ao Instituto Nacional Barros Arana, onde se estabelecera um quartel militar. Foi visto nesse local pelo capelão militar, que inclusive o confessou. Posteriormente foi assassinado e seu corpo, crivado de balas, encontrado à margem do rio Mapocho nas proximidades de Bulnes, na cidade de Santiago. Os peticionários informam das providências, recursos e trâmites judiciais efetuados na jurisdição interna do Chile da seguintes maneira: o processo por seqüestro e homicídio teve início perante o 3º Juizado Criminal de Santiago, onde se conseguiu estabelecer a identidade dos autores do crime mas, mediante a aplicação da lei de anistia, Decreto-Lei 2191, se declarou extinta a responsabilidade criminal dos militares responsáveis. Essa resolução foi confirmada defitivamente pela Corte de Apelação de Santiago em 10 de maio de 1993.

 

7. Caso 11.282. Em 15 de março de 1994, a Comissão recebeu denúncia contra o Estado chileno por violação do direito à justiça e pela situação de impunidade em que ficou o caso de Pedro Vergara Inostroza, detido com outras pessoas em 27 de abril de 1974 na cidade de Santiago pela Tenencia de Carabineros de Conchalí e levado ao quartel dessa entidade. Posteriormente, pese a que houvesse várias pessoas que prestavam testemunho de sua prisão e traslado ao posto militar, o Senhor Vergara desapareceu. Os peticionários informam das providências, recursos e trâmites judiciais efetuados na jurisdição interna do Chile da seguinte maneira: o processo por seqüestro e homicídio teve início perante a justiça ordinária, foi transferido à jurisdição militar, que decidiu suspender temporariamente o caso. Em outubro de 1989, o Juiz Militar de Santiago desarquivou o processo e, mediante aplicação da lei de anistia, decretou o encerramento do caso. Recorreu-se da sentença do juiz perante a Corte Marcial, que em 16 de janeiro de 1991 confirmou a aplicação da lei de anistia. Interpôs-se queixa contra essa sentença perante a Corte Suprema, que em 28 de novembro de 1991 recusou o recurso reafirmando a suspensão definitiva do caso. Finalmente se interpôs recurso de reposição, que em 30 de setembro de 1993 foi declarado improcedente, eliminando-se a tentativa de esclarecimento dos fatos e punição dos responsáveis.

 

 III. A ADMISSIBILIDADE DESSES CASOS

 

8. Em conformidade com o disposto no artigo 44 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante chamada "Convenção") na qual o Chile é parte, a Comissão goza de competência para considerar tais casos por se tratar de reclamações que alegam violações de direitos que a Convenção assegura em seu artigo 25, relativo ao direito a efetiva proteção judicial, e em seus artigos 1.1, 2 e 43, referentes ao dever dos Estados de cumprir e fazer cumprir a Convenção, de adotar disposições de direito interno que efetivem as normas da Convenção e de informar a Comissão Interamericana de Direitos Humanos a esse respeito.

 

9. As denúncias satisfazem aos requisitos formais de admissibilidade estabelecidos nos artigos 46.1 da Convenção e no artigo 32 do Regulamento da Comissão.

 

10. Os peticionários esgotaram os recursos previstos na lei chilena, conforme se estabelece no expediente.

 

11. As reclamações não se encontram pendentes de outro procedimento de solução internacional nem repetem petição anterior já examinada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

 

IV. SOLUÇÃO AMISTOSA

 

12. O procedimento de solução amistosa previsto no artigo 48.1, f, da Convenção e no artigo 45 do Regulamento da Comissão foi proposto pela Comissão às partes, mas não se chegou a entendimento.

 

13. Não se havendo chegado a solução amistosa, a Comissão deve cumprir o disposto no artigo 50.1 da Convenção, apresentando suas conclusões e recomendações sobre o assunto submetido à sua consideração.

 

V. CUMPRIMENTO DOS TRÂMITES ESTABELECIDOS PELA CONVENÇÃO

 

14. Na tramitação dos referidos casos, a Comissão concedeu iguais oportunidades de defesa ao Governo do Chile e aos peticionários e ponderou, com absoluta objetividade, as provas e alegações apresentadas pelas partes, bem como se, em sua tramitação, foram observados, cumpridos e esgotados todos os meios judiciais e regulamentares estabelecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e no Regulamento da Comissão.

 

VI. ALEGAÇÕES APRESENTADAS PELO GOVERNO DO CHILE

 

15. O Governo democrático do Chile alega que não promulgou lei alguma de anistia incompatível com a Convenção, uma vez que o Decreto-Lei 1291 foi promulgado em 1978 sob o regime militar de facto.

 

16. O Governo solicita à Comissão que, nesses casos, leve em conta o contexto histórico em que ocorreram os fatos e a situação especial de retorno do país ao regime democrático, no qual o novo Governo teve de acolher as normas impostas pelo regime militar de facto, as quais não podiam ser modificadas senão em conformidade com a lei e a Constituição.

 

17. O Governo tentou derrogar o decreto-lei de anistia, mas o preceito constitucional dispõe que as iniciativas relacionadas com anistias só podem provir do Senado (artigo 62, parágrafo 2, da Constituição) onde não há maioria, em virtude do número de pessoas não eleitas pelo voto popular nesse órgão legislativo.

 

18. O Governo democrático exortou a Corte Suprema a declarar que a anistia vigente não pode constituir obstáculo a que se investigue e se punam os responsáveis.

 

19. A Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação, em cujo relatório se identificaram as vítimas de violação dos direitos fundamentais sob a ditadura militar, entre as quais as pessoas a que se referem as aludidas denúncias, reconheceu que os casos dessas pessoas constituíam graves violações de que participaram agentes do Estado e, ao não se determinar o paradeiro delas, atribuiu-lhes a condição de "detentos desaparecidos".

 

20. Mediante a Lei 19.123, promulgada pelo Governo democrático, concedeu-se aos familiares das vítimas o seguinte: pensão única vitalícia em montante não inferior à remuneração média de uma família no Chile; procedimento especial de declaração de morte admissível; atendimento especializado por parte do Estado em matéria de saúde, educação e habitação; cancelamento de dívidas educacionais, habitacionais, tributárias e outras com organismos estatais; e dispensa do serviço militar obrigatório para os filhos das vítimas.

 

21. O Governo democrático manifestou concordar com a qualificação dada pelos peticionários à natureza do Decreto-Lei 2191, de 19 de abril de 1978, que procurou eximir de responsabilidade os autores dos crimes mais graves cometidos na história do Chile.

 

22. O Governo pediu à Comissão Interamericana de Direitos Humanos que, em seu relatório final, declare que não são imputáveis ao Governo do Chile as violações dos direitos a que se refere a denúncia dos peticionários no caso de que se trata, nem tem o Governo do Chile responsabilidade alguma nessas violações.

 

VII. OBSERVAÇÕES DA COMISSÃO SOBRE AS ALEGAÇÕES DAS PARTES

 

A. Considerações preliminares

 

a) Qualidade das autoridades que promulgaram a lei de anistia

 

25. A chamada "lei de anistia" é um ato de poder do regime militar que destituiu o Governo constitucional do Doutor Salvador Allende. Trata-se, por conseguinte, de autoridades que carecem de qualquer título ou direito, pois não foram eleitas nem designadas de modo algum, mas se instalaram no poder pela força, depondo o Governo legítimo, em violação da Constituição.

 

26. O governo de fato carece de título jurídico porque, se um Estado tem uma Constituição, tudo o que não esteja de acordo com ela é contrário ao Direito. A instalação do governo de facto no Chile foi produto da força e não do consentimento popular.

 

27. A Comissão, nem mesmo com a finalidade de preservar a segurança pública, pode pôr em pé de igualdade a juridicidade de um governo de jure com a arbitrariedade e posição contrária ao Direito de um governo usurpador, cuja possibilidade de existir é, por definição, a origem da insegurança pública. Tais governos merecem permanente repúdio em defesa do Estado Constitucional de Direito, bem como do respeito à vida democrática e ao princípio da soberania do povo baseado na vigência dos direitos humanos.

 

28. No caso de que se trata, os beneficiários da anistia não foram terceiros, mas os próprios partícipes dos planos governamentais do regime militar. Uma coisa é defender a necessidade de legitimar os atos celebrados pela sociedade em conjunto [para não cair no caos] ou os de responsabilidade internacional, pois não se pode fugir às obrigações assumidas nesses campo, e outra, muito distinta, é dispensar igual tratamento aos que atuaram com o governo ilegítimo, em violação da Constituição e das leis chilenas.

 

29. A Comissão considera que seria absurdo pretender que o usurpador e seus asseclas pudessem invocar os princípios do Direito Constitucional, que eles violaram, para obter os benefícios da segurança que só é justificável e merecida para aqueles que se ajustam rigorosamente a essa ordem. Os atos do usurpador não podem ter validade nem são legítimos per se nem em benefício dos funcionários ilegais ou de facto. Se aos que colaboram com tais governos se assegura a impunidade de sua conduta, obtida sob regime usurpador e ilegítimo, não há diferença entre o legal e o ilegal, entre o constitucional e o inconstitucional e entre o democrático e o autoritário.

 

30. A ordem constitucional chilena deve, necessariamente, assegurar ao governo o cumprimento de seus fins fundamentais, desatando-o das limitações contrárias ao Direito e ilegítimas impostas pelo regime militar usurpador, pois não é juridicamente aceitável que este possa impedir ao governo constitucional que o sucede que consiga a consolidação do sistema democrático, nem que os atos do poder de facto gozem da plenitude dos atributos que só se pode reconhecer aos atos legítimos do poder de jure. O governo de jure reconhece sua legitimidade não nas normas emanadas do usurpador mas na vontade do povo que o elege, único titular da soberania.

 

b) O direito constitucional chileno

 

31. A posição definida no parágrafo anterior é coerente com o Direito Constitucional chileno. A Constituição do Chile de 1833 dispunha, em seu artigo 158, que "Toda resolução que o Presidente da República, o Senado ou a Câmara de Deputados, na presença ou a pedido de um exército, de um general à frente de uma força armada ou de alguma reunião popular que, seja com armas seja sem elas, desobedecesse às autoridades, é nula de direito e não pode produzir efeito algum". Por sua vez, a Constituição de 1925 declarava que "Nenhuma magistratura, nenhuma pessoa ou nenhuma reunião de pessoas, pode atribuir-se, nem mesmo sob pretexto de circunstâncias extraordinárias, outra autoridade ou outros direitos que os expressamente a elas conferidos por lei. Todo ato que contravenha este artigo é nulo". [Artigo 4]

 

32. Até a própria "Constituição" sancionada pelo decreto-lei do regime militar expressa e esse respeito que "Nenhuma magistratura, nenhuma pessoa ou nenhum grupo de pessoas pode atribuir-se, nem mesmo sob pretexto de circunstâncias extraordinárias, outra autoridade ou outros direitos que os expressamente a eles conferidos pela constituição ou pelas leis. Todo ato que contravenha este artigo é nulo e dará origem às responsabilidades e punições que a lei determine" [artigo 7, parágrafo segundo],33/ ao passo que o artigo 5 do mesmo documento estabelece que "o exercício da soberania reconhece como limitação o respeito aos direitos essenciais que emanam da natureza humana", postulando que nenhum setor do povo nem indivíduo pode atribuir-se seu exercício.

 

c) Direitos e liberdades fundamentais das pessoas e do Estado

 

33. Do mesmo modo, os direitos e liberdades fundamentais não cessam ante um governo de facto, pois são anteriores ao Estado e à Constituição que os reconhece e assegura, mas não os cria, motivo por que é errôneo afirmar que um regime de facto não tem limites em sua potestade anômala ou anticonstitucional. Daí que um governo acusado de sistematicamente violar os direitos fundamentais de seus cidadãos, ao escusar-se a si mesmo por meio de anistia, incorra em grave abuso de poder.

 

34. Nesse sentido, diz o Professor Christian Tomuschat, "Defender que, em determinados casos, se deve obediência a leis viciadas e seus implacáveis executores, equivaleria a fazer do Estado um fetiche não manchado nem pelos atos mais atrozes e odiosos" (ver Sobre la resistencia a las violaciones a los derechos humanos, UNESCO, 1984, p. 26).

 

d) O direito internacional dos direitos humanos

 

35. O direito internacional dos direitos humanos reafirma esse conceito à luz do que dispõem o artigo XX da Declaração e o artigo 23.1, a e b da Convenção, que não podem ser derrogados segundo o artigo 27.2 desta última.

 

Outros instrumentos interamericanos reafirmam o acima exposto, como a Carta da OEA que, em seu artigo 3, fundamenta o princípio da solidariedade dos Estados Americanos no denominador comum do "exercício efetivo da democracia representativa".

 

A Corte Interamericana de Direitos Humanos

 

36. A Corte Interamericana de Direitos Humanos define como "lei" a "norma jurídica de caráter geral, cingida ao bem comum, emanada dos órgãos legislativos constitucionalmente previstos e democraticamente eleitos e elaborada segundo o procedimento estabelecido pelas constituições dos Estados partes para a formulação de leis" (OC/6, parágrafo 38), definição essa baseada na análise dos princípios da "legalidade" e da "legitimidade" e do regime democrático dentro do qual é preciso entender o sistema interamericano de direitos humanos (OC/6, parágrafos 23 e 32), conforme explicita em seu OC/13, parágrafo 25. Para a Corte, "o princípio da legalidade, as instituições democráticas e o estado de direito são inseparáveis" (OC/8, parágrafo 24). A decidida adesão ao regime democrático foi assinalada pela Corte: "A democracia representativa é determinante em todo o sistema de que a Convenção é parte" (OC/13, parágrafo 34), o que completa seu parecer sobre "as justas exigências da democracia" que devem orientar a interpretação da Convenção, especialmente dos preceitos criticamente relacionados com a preservação e funcionamento das instituições democráticas (OC/5, parágrafos 44, 67 e 69). Tampouco se pode esquecer a doutrina da Corte que salienta a importância da legislatura escolhida na tutela dos direitos fundamentais (OC/8, parágrafos 22 e 23) e da outra no tocante ao controle da legitimidade dos atos do Poder Executivo por parte do Judiciário (OC/8, parágrafos 29 e 30; e OC/9, parágrafo 20).

 

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos

 

37. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos pronunciou-se sobre esse tema em múltiplas ocasiões. Por exemplo, disse que "o clima democrático é necessário ao estabelecimento de uma sociedade política em que podem florescer os valores humanos plenos" [Ver Diez Años de Actividades 1971-1981, página 331] quando alude ao poder predominante que se adjudica a órgãos não representativos da vontade popular [idem, página 270]. Também se pronunciou no relatório sobre o Panamá (1978), parágrafo 3; em seu Relatório Anual 1978-80, páginas 123/24, analisando um projeto de Constituição política para o Uruguai; em seu relatório sobre o Suriname quanto à participação popular mesmo na elaboração de textos constitucionais (1983), parágrafo 41, página 43; em seu parecer sobre o plebiscito no Chile, questionando sua validez por ter sido realizado durante a suspensão das liberdades políticas [Relatório de 1978-80, página 115]; e na decisão no caso "Ríos Montt versus Guatemala").

 

O sistema universal

 

38. Com referência ao sistema universal, cumpre mencionar a) a Carta das Nações Unidas e seu Preâmbulo ("Nós, os povos das Nações Unidas...") e em sua referência à "livre autodeterminação dos povos" e ao "desenvolvimento e estímulo do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais de todos...", b) a Declaração Universal, em seu artigo 29; c) o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; e d) a declaração da Comissão de Direitos Humanos no caso "Ngaluba versus Zaire", parágrafos 8.2 e 10, sobre a negação do direito de participar, em condições de igualdade, da direção dos assuntos políticos por motivo de sanções aplicadas a oito parlamentares.

 

Governo usurpador e democracia

 

39. Ante o exposto, a Comissão considera que a democracia representativa constitui o pressuposto essencial da organização política dos Estados americanos. Os governos de facto não são, por conseguinte, compatíveis com as exigências da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

 

B. Considerações gerais

 

40. A Comissão considera que, em tais casos, as petições suscitam questões de direito e pretendem determinar se o aludido Decreto-Lei e a maneira como foi aplicado pelos tribunais chilenos são compatíveis com a Convenção, uma vez que não se controverteu nenhum dos fatos alegados e não é necessário confirmar fato algum.

 

41. Embora o Governo democrático tenha negado a responsabilidade dos atos perpetrados pela ditadura militar, reconheceu sua obrigação de investigar as violações passadas de direitos humanos e estabeleceu uma Comissão da Verdade para a averiguação dos fatos e publicação de seus resultados. Como medida de reparação, o ex-Presidente Aylwin, em nome do Estado chileno, pediu desculpas aos familiares das vítimas. O ex-Presidente também protestou publicamente pela decisão da Corte Suprema que determinou fosse o Decreto-Lei de anistia aplicado de maneira a suspender todas as investigações dos fatos.34/ O Governo democrático, invocando sua impossibilidade de modificar ou anular o Decreto-Lei de anistia e sua obrigação de respeitar as decisões do Poder Judiciário, alegou que as medidas já adotadas são tão efetivas quanto suficientes para o cumprimento das obrigações do Chile previstas na Convenção e que elas tornaram desnecessárias outras ações.

 

42. Os peticionários, embora reconheçam os esforços do Governo, insistem em que foram insuficientes e inefetivos e que o Governo tem a obrigação permanente de investigar totalmente os fatos, estabelecer as responsabilidades e punir os responsáveis de violações passadas dos direitos humanos.

 

43. A Comissão observa que, conforme se demonstrou na seção anterior, a adoção do Decreto-Lei de auto-anistia estava em conflito com disposições constitucionais vigentes no Chile no momento em que foi promulgado. Entretanto, independentemente da legalidade ou constitucionalidade das leis no direito chileno, a Comissão tem competência para examinar os efeitos jurídicos de uma medida legislativa, judicial ou de qualquer outra natureza, quando esta seja incompatível com os direitos e garantias consagrados na Convenção Americana.35/

 

44. Em sua decisão relativa à responsabilidade internacional de expedição e aplicação de leis violatórias da Convenção (artigos 1 e 2 da Convenção), a Corte declarou que "Em conseqüência dessa qualificação, poderá a Comissão recomendar ao Estado a derrogação ou reforma da norma violatória e, para isso, é suficiente que essa norma tenha chegado, por algum meio, ao seu conhecimento..."36/

 

45. O artigo 2 da Convenção estabelece a obrigação dos Estados Partes de adotar "as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias" para tornar efetivos os direitos e liberdades consagrados no Pacto. Por conseguinte, a Comissão ou a Corte goza de faculdades para examinar — à luz da Convenção — inclusive leis internas que se alegue suprimam ou violem direitos e liberdades nela consagrados.37/

 

46. No exame dessa matéria, é importante considerar a natureza e gravidade dos delitos alegados, que o decreto de anistia modificou. O governo militar que esteve à frente do país de 11 de setembro de 1973 até 11 de março de 1990, executou uma política sistemática de repressão que resultou em milhares de vítimas de "desaparecimento", execução sumária ou extrajudicial e tortura. A Comissão, ao referir-se às práticas desse governo militar, observou que:

"... esse governo [havia] empregado praticamente todos os meios conhecidos para a eliminação física dos dissidentes, entre outros os seguintes: desaparecimento, execução sumária de indivíduos e de grupos, execução decretada em processo sem garantias legais e tortura".38/

47. Alguns desses delitos são considerados de tal gravidade que justificaram a adoção, em vários instrumentos internacionais, de medidas específicas para evitar sua impunidade, inclusive a jurisdição universal e a imprescritibilidade dos delitos.39/

 

48. Quanto à prática de "desaparecimentos", a Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos declarou "... que o desaparecimento forçado de pessoas na América á uma afronta à consciência do Hemisfério e constitui crime de lesa-humanidade".40/ Em sua decisão de 1988 no caso "Velásquez Rodríguez", a Corte Interamericana observou que a doutrina e a prática internacionais muitas vezes qualificaram os desaparecimentos como delito contra a humanidade.41/ A Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas reafirma, em seu preâmbulo, que "a prática sistemática de desaparecimentos forçados constitui delito de lesa-humanidade".42/ A necessidade social do esclarecimento e investigação desses delitos não pode ser equiparada à de um mero delito comum.43/

 

a) A questão do decreto-lei de auto-anistia

 

49. O problema das anistias foi considerado pela Comissão em diversas oportunidades, em virtude de reclamações contra Estados Partes na Convenção Americana que, na procura de mecanismos de pacificação e reconciliação nacional, recorreram a anistias deixando em desamparo um setor em que se encontram muitas vítimas inocentes da violência, as quais se vêm privadas do direito à justiça em suas justas reclamações contra aqueles que cometeram excessos e atos de barbárie contra elas.44/

 

50. A Comissão várias vezes manifestou que a aplicação das anistias torna ineficazes e sem valor as obrigações internacionais dos Estados Partes na Convenção, impostas por seu artigo 1.1; por conseguinte, constituem uma violação desse artigo e eliminam a medida mais eficaz para assegurar tais direitos, que é o julgamento e a punição dos responsáveis.45/

 

51. A questão não se refere, como os peticionários perfeitamente esclarecem, a violações dos direitos humanos decorrentes da detenção ilegal e desaparecimento das pessoas indicadas em suas denúncias, ato praticado por agentes do Estado do Chile durante o regime militar, mas fundamentalmente de dois problemas: a) a não-derrogação — e conseqüente manutenção em vigor — da lei da anistia, Decreto-Lei 2191, promulgada pelo governo militar para si mesmo; mas cuja vigência e aplicação foi mantida durante o governo democrático, inclusive depois de o Chile ratificar a Convenção Americana e assumir o compromisso de cumpri-la e b) falta de julgamento, identificação dos responsáveis e punição dos autores de tais atos, que tem início durante o governo militar e prossegue durante o governo democrático e constitucional.

 

52. O Governo democrático do Chile reconheceu a estreita relação que há nesses casos entre anistia e impunidade e, por esse motivo, expediu a Lei Nº 19.123, que indeniza os familiares das vítimas de violações de direitos humanos e considera como uma unidade o ato violatório dos direitos das vítimas, desde o momento de sua detenção até a denegação da justiça.

 

53. Os atos denunciados contra o Governo democrático determinam, por um lado, o não-cumprimento das obrigações assumidas pelo Estado chileno de ajustar as normas de seu direito interno aos preceitos da Convenção Americana, o que viola seus artigos 1.1 e 2 e, por outro, sua aplicação, que gera denegação do direito à justiça em agravo das pessoas desaparecidas consignadas nas denúncias, o que viola os artigos 8 e 25 em conexão com o 1.1.

 

54. A Comissão levou em conta que o Governo democrático se dirigiu à Corte Suprema em março de 1991, instando-a, especialmente nos casos de pessoas desaparecidas, a fazer justiça e a considerar que a auto-anistia em vigor não devia e não podia ser obstáculo a que, judicialmente, se investigassem e determinassem as correspondentes responsabilidades, e vetou uma lei que poderia haver contribuído para a anistia.

 

55. Merece especial reconhecimento a criação da Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação, como o merece o trabalho que esta realizou de reunir antecedentes sobre violações dos direitos humanos e sobre os detentos desaparecidos, cujo relatório identificou as vítimas, entre elas as pessoas incluídas nas denúncias, procurou estabelecer seu paradeiro e medidas de reparação e reivindicação para cada uma delas; reconheceu que os casos dessas pessoas constituíam graves violações dos direitos fundamentais, de que participaram agentes do Estado; e reconheceu às vítimas, ao não ser determinado seu paradeiro, a condição de "detentos desaparecidos".

 

56. Também merece o mesmo reconhecimento a Lei Nº 19.123, iniciativa do Governo democrático, que concede aos familiares das vítimas: a) pensão única vitalícia em montante não inferior à remuneração média de uma família no Chile; b) procedimento especial para a declaração de morte presumida; c) atendimento especializado, por parte do Estado, em matéria de saúde, educação e habitação; d) condonação de dívidas educacionais, habitacionais, tributárias e outras com organismos estatais; e e) isenção do serviço militar obrigatório para os filhos das vítimas.

 

57. Entretanto, tais medidas não são suficientes para assegurar o respeito aos direitos humanos dos peticionários, conforme dispõem os artigos 1.1 e 2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, enquanto o direito que lhes assiste não for atendido.

 

b) A denegação de justiça

 

58. A violação do direito à justiça e a conseqüente impunidade gerada no caso de que se trata constituem uma concatenação de fatos que tiveram início, segundo ficou estabelecido, quando o governo militar expediu, a seu favor e a favor dos agentes do Estado que cometeram violações dos direitos humanos, uma sucessão de normas destinadas a formar complexo quadro jurídico de impunidade, que formalmente se inicia em 1978, quando o governo militar sancionou o Decreto-Lei Nº 2191 de auto-anistia.

 

59. O Governo democrático também adere à condenação do Decreto-Lei de anistia expressando que "Não pode o Governo constitucional senão concordar com os peticionários quanto à natureza do Decreto-Lei 2191, de 19 de abril de 1978, que procurou a isenção de responsabilidade dos mais graves crimes cometidos na nossa história".

 

60. Por conseguinte, o Estado chileno, pelo órgão de seu Poder Legislativo, é responsável pela não-adequação ou não-derrogação do Decreto-Lei de fato Nº 2191, de 17 de abril de 1978, que é violatório da obrigação assumida pelo referido Estado de adequar suas normas aos preceitos da Convenção, com o que foram violados seus artigos 1.1 e 2.

 

c) A respeito das garantias judiciais (artigo 8)

 

61. Denuncia-se que as conseqüências jurídicas da auto-anistia são incompatíveis com a Convenção, pois transgridem o direito da vítima a julgamento justo, consagrado em seu artigo 8.

 

62. O artigo protege o direito do acusado a um processo justo "na substanciação de qualquer acusação penal formulada contra ele...". Embora o Estado tenha a obrigação de proporcionar recursos efetivos (artigo 25), que devem ser "substanciados em conformidade com as normas do devido processo judicial" (artigo 8.1),46/ é importante salientar que, em muitos sistemas de Direito Penal da América Latina, a vítima tem o direito de fazer acusações numa ação penal. Em sistemas como o chileno, que o permite, a vítima de um delito tem o direito fundamental de acudir aos tribunais.47/ Esse direito é essencial para impulsionar o processo penal e levá-lo avante. A lei de anistia claramente afetou o direito das vítimas, vigente na lei chilena, de iniciar uma ação penal perante os tribunais contra os responsáveis de violações dos direitos humanos.

 

63. E mesmo que assim não fosse, em se tratando, como nesses casos de delito de ação pública, ou seja, praticável de ofício, o Estado tem a obrigação jurídica, indelegável e irrenunciável, de investigá-lo, motivo por que, em todo caso, o Estado chileno tem o monopólio da ação punitiva e a obrigação de assegurar às vítimas e suas famílias o direito à justiça. Essa obrigação deve ser assumida pelo Estado como um dever jurídico próprio e não como gestão de interesses particulares ou que dependa da iniciativa destes ou da apresentação de provas por parte dos mesmos.48/

 

64. Os peticionários também alegam que o Decreto-Lei de Anistia impediu aos familiares das vítimas a possibilidade de obter reparação nos tribunais civis. O artigo 8 da Convenção Americana estabelece que:

 

Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei ... para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

65. No Chile, a possibilidade de iniciar uma ação civil não está necessariamente vinculada ao resultado do processo criminal. Apesar disso, a demanda civil deve ser interposta contra determinada pessoa para que se possa estabelecer a responsabilidade dos fatos alegados e determinar o pagamento das indenizações. A não-investigação por parte do Estado tornou virtualmente impossível estabelecer a responsabilidade perante os tribunais civis. Apesar de a Corte Suprema ter salientado o fato de que os processos civis e penais são independentes,49/ o modo de aplicação da anistia pelos tribunais claramente afetou o direito de obter reparação nos tribunais civis, ante a impossibilidade de individualizar ou identificar os responsáveis.

 

66. O Decreto-Lei de facto 2191, conforme foi aplicado pelos tribunais do Estado chileno, impediu que os peticionários exercessem seu direito a processo justo para a determinação de seus direitos civis, consagrado no artigo 8.1 da Convenção.

 

d) À respeito da proteção judicial (artigo 25)

 

67. Denuncia-se que se privaram as vítimas e suas famílias de seu direito a recurso efetivo em relação aos direitos violados, consagrados no artigo 25 da Convenção.

 

68. A Corte Interamericana de Direitos Humanos afirmou que os Estados têm a obrigação jurídica de proporcionar recursos internos. Sobre esse assunto, a Corte assinalou o seguinte:

 

Segundo (a Convenção), os Estados partes obrigam-se a proporcionar recursos judiciais efetivos às vítimas de violação dos direitos humanos (artigo 25), recursos que devem ser substanciados em conformidade com as normas do devido processo judicial (artigo 8.1), tudo isso de acordo com a obrigação geral dos próprios Estados de assegurar a toda pessoa que se encontre sob sua jurisdição o livre e pleno exercício dos direitos reconhecidos pela Convenção (artigo 1).50/

69. A Corte logo estabeleceu que "que sejam adequados significa que a função desses direitos, no sistema de direito interno, seja idônea para proteger a situação jurídica infringida".51/

 

... A enexistência de um recurso efetivo contra as violações dos direitos reconhecidos pela Convenção constitui transgressão da mesma pelo Estado Parte no qual tal situação ocorra. Nesse sentido, cumpre salientar que, para que esse recurso exista, não basta que esteja previsto na Constituição ou na lei, ou que seja formalmente admissível, mas é necessário que seja realmente idôneo para estabelecer que se incorreu em violação dos direitos humanos e proporcionar o necessário para remediá-la.52/

70. A auto-anistia foi um procedimento geral mediante o qual o Estado deixou de punir certos delitos graves. Além disso, o decreto, do modo por que foi aplicado pelos tribunais chilenos, impediu não somente a possibilidade de punir os autores de violações de direitos humanos, mas também assegurou que acusação alguma fosse feita e que não se conhecessem os nomes de seus responsáveis (beneficiários), de maneira que, do ponto de vista jurídico, estes foram considerados como se não houvessem cometido ato ilegal algum. A lei de anistia deu ensejo a ineficácia jurídica dos delitos e deixou as vítimas e suas famílias sem recurso judicial algum mediante o qual se pudesse identificar os responsáveis das violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura militar e impor-lhes os merecidos castigos.

 

71. Ao promulgar e fazer cumprir o Decreto-Lei de facto 2191, o Estado chileno deixou de garantir os direitos estipulados no artigo 25.

 

e) A obrigação de investigar

 

72. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sua interpretação do artigo 1.1 da Convenção, estabelece que "A segunda obrigação dos Estados Partes é assegurar o livre e pleno exercício dos direitos reconhecidos na Convenção a toda pessoa sob sua jurisdição... Em decorrência dessa obrigação, os Estados devem prevenir, investigar e punir toda violação dos direitos reconhecidos pela Convenção...".53/ A Corte continua a analisar esse conceito em vários parágrafos:

 

É decisivo elucidar se determinada violação dos direitos humanos reconhecidos pela Convenção tiveram o apoio ou a tolerância do poder público ou se este atuou de maneira que a transgressão tenha sido cometida por não ter sido prevenida ou impunemente.54/ "O Estado goza do poder jurídico de prevenir, razoavelmente, as violações dos direitos humanos, de investigar seriamente, com os meios ao seu alcance, as violações que tenham sido cometidas no âmbito de sua jurisdição, a fim de identificar os responsáveis, impor-lhes as sanções cabíveis e assegurar à vítima adequada reparação".55/ "Se o aparato do Estado atua de modo que tal violação fique impune e não se estabeleça a vítima, na medida do possível, na plenitude de seus direitos, pode-se afirmar que não cumpriu o dever de garantir seu livre e pleno exercício às pessoas sob sua jurisdição".56/ Quanto à obrigação de investigar, a Corte assinala que a investigação "... deve ter um sentido e ser assumida pelo Estado como um dever jurídico próprio e não como uma simples gestão de interesses particulares, que dependa da iniciativa processual da vítima ou de seus familiares ou da apresentação privada de elementos probatórios, sem que a autoridade pública procure efetivamente a verdade".57/

73. A Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação, estabelecida pelo Governo democrático para investigar violações dos direitos humanos ocorridas no passado, ocupou-se de boa parte do número total de casos e outorgou reparações às vítimas ou a seus familiares. Entretanto, a investigação a que procedeu a referida Comissão sobre casos de violação do direito à vida e as vítimas de outras violações, sobretudo de torturas, se acharam desprovidas de recurso jurídico e de qualquer outro tipo de compensação.

 

74. Além disso, essa Comissão não era um órgão judicial e seu trabalho se limitava a estabelecer a identidade das vítimas de violações do direito à vida. Pela natureza de seu mandato, essa Comissão não estava habilitada para publicar os nomes daqueles que cometeram os delitos nem para impor qualquer tipo de punição. Por esse motivo, em que pese sua importância no estabelecimento dos fatos e outorga de compensação, não se pode considerar a Comissão da Verdade como um substituto adequado de um processo judicial.

 

75. Essa mesma Comissão da Verdade, em seu relatório, concluiu que:

 

Do ponto de vista estritamente preventivo, esta Comissão julga que um dos elementos indispensáveis para obter a reconciliação nacional e, desse modo, evitar a repetição dos fatos ocorridos seria o exercício pleno, por parte do Estado, de suas faculdades punitivas. A proteção total dos direitos humanos só é concebível num estado de direito real. E o estado de direito supõe a sujeição de todos os cidadãos à lei e aos tribunais de justiça, o que envolve a aplicação de punições previstas na legislação penal, igual para todos, aos transgressores das normas que asseguram o respeito aos direitos humanos.58/

76. O reconhecimento de responsabilidade pelo Governo, a investigação parcial dos fatos e o pagamento posterior de compensações não são, por si mesmos, suficientes para o cumprimento das obrigações previstas na Convenção. De acordo com o disposto em seu artigo 1.1, o Estado tem a obrigação de investigar as violações cometidas no âmbito de sua jurisdição a fim de identificar os responsáveis, de impor-lhes as devidas punições e de assegurar à vítima adequada reparação.59/

 

77. Ao sancionar o Decreto-Lei de facto 2191 sobre auto-anistia, o Estado chileno deixou de cumprir plenamente a obrigação estipulada no artigo 1.1 e violou, em prejuízo dos recorrentes, os direitos que a Convenção Americana reconhece.

 

f) A responsabilidade internacional do Estado

 

78. Neste caso, não se questiona a responsabilidade do Governo do Chile nem a dos demais órgãos que exercem o poder público, mas a responsabilidade internacional do Estado chileno.

 

79. No desenvolvimento do caso, ficou acreditada, e o Governo não o negou em momento algum, a atuação ativa e passiva de agentes do Estado chileno na autoria e participação dos fatos denunciados pelos peticionários.

 

80. O Governo concorda com que o Decreto-Lei 2191 é contrário ao Direito; reconhece a estreita relação que há entre anistia e impunidade; e admite a sucessiva incidência desses fatos violatórios do direito à justiça como uma unidade do ato violatório dos direitos das vítimas, desde sua detenção até a denegação de justiça, manifestando que o Decreto-Lei de anistia "integra numa só unidade uma política de violações sistemáticas em massa dos direitos humanos que, nos casos de desaparecimento forçado, se inicia com o seqüestro da vítima, prossegue com sua ocultação, em seguida com sua morte, continua com a negação do direito e termina com a anistia dos agentes públicos".60/

 

81. O Governo do Chile considera que, como órgão do Poder Executivo, não lhe são imputáveis as violações que os peticionários denunciam nem tem responsabilidade alguma nessas violações porque, quanto à auto-anistia, o Governo democrático não decretou lei de anistia alguma e, quanto à derrogação dessa lei, porque não lhe é possível pelos motivos que expõe; que essa mesma limitação existe quanto à adequação das normas internas às da Convenção Americana sobre Direitos Humanos; que, quanto à aplicação da auto-anistia, não pode atuar senão de acordo com a lei e a Constituição, que fixam os limites de sua competência, suas responsabilidades e sua capacidade.

 

82. A circunstância de que o Decreto-Lei 2191 tenha sido promulgado pelo regime militar não pode levar à conclusão de que é impossível separar o referido decreto e seus efeitos jurídicos da prática geral das violações dos direitos humanos dessa época. Embora o decreto tenha sido sancionado durante o regime militar, continua ele a ser aplicado todas as vezes que se apresenta perante os tribunais chilenos uma denúncia contra um suposto violador de direitos humanos. O que foi denunciado como imcompatível com a Convenção são as contínuas conseqüências jurídicas do Decreto-Lei de auto-anistia.61/

 

83. Embora os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário sejam, internamente, distintos e independentes, os três Poderes do Estado formam uma só unidade indivisível do Estado do Chile que, na esfera internacional, não admite tratamentos separados e, por esse motivo, o Chile assume a responsabilidade internacional pelos atos de seus órgãos do poder público que transgridem os compromissos internacionais decorrentes dos tratados internacionais.62/

 

84. O Estado chileno não pode justificar, sob o prisma do Direito Internacional, o não-cumprimento da Convenção, alegando que a auto-anistia foi decretada pelo governo anterior ou que a abstenção ou omissão do Poder Legislativo de derrogar o referido Decreto-Lei, ou que os atos do Poder Judiciário que confirmam sua aplicação, nada têm a ver com a posição e responsabilidade do Governo democrático, uma vez que a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados estabelece em seu artigo 27 que um Estado parte não poderá invocar as disposições de direito interno como justificativa para o não-cumprimento de um tratado.

 

85. A Corte Interamericana insistiu em que "É um princípio de direito internacional que o Estado responda pelos atos praticados por seus agentes ao amparo de sua condição oficial e pelas omissões destes, mesmo que atuem fora dos limites de sua competência ou em violação do direito interno".63/

 

86. A responsabilidade pelas violações causadas pelo Decreto-Lei 2191, promulgado pelo regime militar que deteve o poder de forma antijurídica e arbitrária, não derrogado pelo atual Poder Legislativo e aplicado pelo órgão jurisdicional, recai sobre o Estado do Chile, com prescindência do regime que o sancionou ou do Poder do Estado que o aplicou ou tornou possível sua aplicação. Não pode haver dúvida alguma quanto à responsabilidade internacional do Estado chileno pelos fatos que, embora tenham ocorrido durante o governo militar, ainda não puderam ser investigados e os responsáveis punidos. Em conformidade com o princípio da continuidade do Estado, existe a responsabilidade internacional independentemente das mudanças de governo. Nesse sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos assinalou que "Segundo o princípio do direito internacional da identidade ou continuidade do Estado, a responsabilidade subsiste independentemente das mudanças de governo no correr do tempo e, especificamente, entre o momento em que ocorre o fato ilícito que gera a responsabilidade e o momento em que ela é declarada. O acima exposto também é válido no campo dos direitos humanos, mesmo que, do ponto de vista ético ou político, a atitude do novo governo seja muito mais respeitosa desses direitos do que a do governo no momento em que as violações ocorreram"64 /

 

87. Confirmam o não-cumprimento por parte do Estado chileno do disposto nos artigos 1 e 2 da Convenção os seguintes fatos: que o Decreto-Lei 2191 expedido pela ditadura militar instalada no Chile entre 1973 e 1990 não foi derrogado pelo atual Poder Legislativo, mas se manteve em vigor; que a legislação interna do Chile não foi ajustada às normas da Convenção; e que o decreto se aplica aos processos judiciais em tramitação, segundo declaração de seu atual Poder Judiciário.

 

88. A não-derrogação do Decreto-Lei de facto após a ratificação da Convenção, a não-adaptação das normas internas a fim de torná-la efetiva no Chile, bem como sua aplicação ao caso específico de que se trata, atribuídos aos Poderes Legislativo e Judiciário, segundo suas respectivas competências, fazem o Estado chileno incorrer em infração da Convenção.

 

89. Embora a auto-anistia tenha sido promulgada anteriormente à posse do Governo democrático e à ratificação da Convenção, a responsabilidade que se imputa ao Estado chileno por essa questão decorre do fato de que sua legislação interna não foi ajustada aos termos da Convenção e que, ao ser declarada [de maneira arbitrária] constitucional pelo Poder Judicial, se mantiveram seus efeitos no tempo, ao ser por isso convalidada a aplicação de tal ato de poder violatório dos direitos humanos.

 

90. É importante observar que um representante do regime surgido do golpe militar que derrubou o Presidente Allende manifestou perante a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas que o Pacto de Direitos Civis e Políticos achava-se em vigor no Chile desde 1976.65/

 

91. Por sua vez, de acordo com o artigo 5.2 da Constituição Política do Chile, a conciliação da norma internacional com a nacional é obrigatória para os tribunais chilenos.66/

 

92. Os Estados Partes da Convenção assumem, como Estados, a responsabilidade e a obrigação de respeitar, fazer respeitar e garantir, para as pessoas sujeitas a sua jurisdição, todos os direitos e liberdades reconhecidos na mesma e a mudar ou adaptar sua legislação, a fim de efetivar o gozo e o exercício desses direitos e liberdades. Não tendo o Estado chileno cumprido esse compromisso, infringiu os artigos 1º e 2 da Convenção.

 

VII. TRÂMITE FINAL DO CASO EM PAUTA

 

93. Durante o 92º Período Extraordinário de Sessões, realizado entre 29 de abril e 3 de maio de 1996, a Comissão aprovou o Relatório 23/96, o qual foi enviado ao Governo do Chile para que formulasse, no prazo de 60 dias contados a partir da data da remessa, as observações que julgasse pertinentes.

 

 VIII. RESPOSTA DO GOVERNO DO CHILE

 

94. Em 30 de setembro de 1996, o Governo do Chile enviou resposta à Comissão, na qual manifesta o seguinte:

 

95. O Governo do Chile reitera a relevância que reconhece ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos, tanto no plano universal como no plano regional, constituindo um dos objetivos de sua política exterior contribuir para seu fortalecimento e eficácia em prol da defesa da pessoa. Produto desse reconhecimento é que o Estado chileno — após a recuperação de nossa democracia — aderiu a importantes instrumentos internacionais sobre a matéria, tais como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969, e o Protocolo Facultativo do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966.

96. Nesse sentido, é de especial relevância para nosso país o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, particularmente o trabalho que realiza a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Em coerência com isso, promoveu e apoiou as diversas iniciativas destinadas a fortalecer o referido sistema, especificamente seus órgãos fundamentais, ou seja, a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

97. No relatório da Comissão Interamericana não se questiona a atitude assumida pelos Governos democráticos quanto a que não foram eles que promulgaram o Decreto-Lei 2191 de 1978 sobre anistia, nem propiciaram novas normas jurídicas destinadas a impedir a investigação dos fatos, ou sua sansão por parte dos tribunais de justiça.

98. É do conhecimento da Comissão Interamericana que o Governo democrático do Chile não endossa o critério adotado pela Corte Suprema de Justiça em relação à interpretação e alcance que se atribui ao Decreto-Lei 2191 de anistia, mas deve, por imperativos constitucionais e internacionais, assegurar a independência do Poder Judiciário e garantir a eficácia jurídica de suas resoluções.

99. O Governo do Chile se regozija pela valoração positiva que a Comissão Interamericana fez dos esforços envidados para conseguir o estabelecimento da verdade, a aplicação da justiça e a reparação nos casos das mais graves violações dos direitos humanos, mediante o importante trabalhos realizado pela Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação e, em seguida, pela Corporação Nacional de Reparação e Reconciliação.

100. É importante reiterar que os Governos democráticos que se seguiram ao regime militar endossam plenamente as críticas ao decreto-lei sobre anistia de 1978 e que jamais promulgaram normas jurídicas que impedissem a investigação das graves violações dos direitos humanos perpetradas no passado. Pelo contrário, promoveu iniciativas jurídicas destinadas ao estabelecimento da verdade do que ocorreu com as pessoas executadas ou que agentes do Estado fizeram desaparecer, com o objetivo de obter a justiça e reparação que fossem possíveis.

101. Em relação às medidas de adequação legislativa, que o Governo democrático executou, a Comissão Interamericana não pode desconhecer as dificuldades que nessa matéria encontra o Poder Executivo, em conseqüência das características peculiares do processo de transição do regime autocrático para um regime democrático no Chile. Como é do conhecimento de todos, o Senado, a câmara alta do Congresso chileno, não é constituído totalmente por membros eleitos democraticamente, mas tem considerável número de senadores designados pelo regime militar anterior. Esse fato produz indiscutível efeito político que distorce a vontade popular e impede que se prossiga a reformulação das instituições democráticas, que abrange a modificação ou derrogação do decreto-lei de anistia de 1978.

102. Cumpre assinalar que, segundo o princípio do respeito ao estado de direito e, por conseguinte, da independência dos Poderes do Estado, o Governo adotou certas iniciativas destinadas a adequar o ordenamento jurídico interno penal, em consonância com os tratados internacionais ratificados pelo Chile e que se acham em vigor.

 

IX. CONCLUSÕES

 

103. Com base nas considerações formuladas neste relatório, a Comissão chega às seguintes conclusões:

 

104. Que o ato de poder mediante o qual o regime militar instalado no Chile expediu em 1978 o chamado Decreto-Lei 2191 de auto-anistia é incompatível com as disposições da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratificada por esse Estado em 21 de agosto de 1990.

 

105. Que a sentença da Corte Suprema do Chile, proferida em 28 de agosto de 1990, e sua confirmação em 28 de setembro do mesmo ano, declarando constitucional e de aplicação obrigatória pelo Poder Judiciário o citado Decreto-Lei 2191, quando já havia entrado em vigor para o Chile a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, viola o disposto nos artigos 1.1 e 2 da mesma.

 

106. Que as decisões judiciais de arquivamento definitivo pronunciadas nas causas criminais abertas pela detenção e desaparecimento de Irma Meneses Reyes (caso 11.228), Ricardo Lagos Salinas (caso 11.229), Juan Alsina Hurtos (caso 11.231) e Pedro José Vergara Inostroza (caso 11.282), em cujos nomes se iniciaram os casos, não só agravam a situação de impunidade mas, em definitivo, violam o direito à justiça que assiste aos familiares das vítimas, de identificar seus autores e de que se estabeleçam suas responsabilidades e correspondentes punições, bem como de obter reparação judicial por parte destes.

 

107. Que, em relação às pessoas em cujos nomes se registraram tais casos, o Estado do Chile deixou de cumprir sua obrigação de reconhecer e garantir os direitos a que se referem os artigos 8 e 25 em conexão com os artigos 1.1 e 2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, na qual o Chile é Estado parte.

 

108. Que o Estado chileno não cumpriu as normas constantes do artigo 2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, uma vez que não adaptou sua legislação sobre anistia às disposições da referida Convenção. Não obstante isso, a Comissão valora positivamente as iniciativas do Governo no sentido de que os órgãos competentes adotem, de acordo com seus procedimentos constitucionais e jurídicos vigentes, as medias legislativas ou de outra natureza necessárias para tornar efetivo o direito das mencionadas pessoas de obter justiça.

 

 X. RECOMENDAÇÕES

 

109. Ante o exposto, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de acordo com a análise dos fatos e das normas internacionais invocadas,

 

ACORDA:

 

110. Recomendar ao Estado chileno que ajuste sua legislação interna às disposições da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de modo que as violações de direitos humanos do governo militar de facto possam ser investigadas, a fim de que se individualizem os culpados, se estabeleçam suas responsabilidades e sejam efetivamente punidos, assegurando às vítimas e a seus familiares o direito à justiça que lhes assiste.

 

111. Recomendar ao Estado chileno que possibilite aos familiares das vítimas a que se refere este caso que sejam efetivamente ressarcidos com justiça pelos danos sofridos.

 

112. Publicar este relatório como parte do Relatório Anual da Assembléia Geral da OEA, em cumprimento aos artigos 48 do Regulamento da Comissão e 51.3 da Convenção, uma vez que o Governo do Chile não adotou as medidas para solucionar a situação denunciada dentro dos prazos concedidos.

 

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* O Comissionado Decano Claudio Grossman, de nacionalidade chilena, não participou do debate nem da votação deste caso, de acordo com o artigo 19 do Regulamento da Comissão.

33. Constituição Política da República do Chile, sancionada mediante o Decreto-Lei Nº 3.464, de 11 de agosto de 1980.

34. O Presidente Aylwin observou que "A justiça exige também que se esclareça o paradeiro dos desaparecidos e que se determinem as responsabilidades individuais. Quanto ao primeiro, a verdade estabelecida no relatório (da Comissão da Verdade e Reconciliação) é incompleta, uma vez que, na maioria dos casos de detentos-desaparecidos e de executados sem restos mortais entregues a seus familiares, a Comissão não teve meios de encontrar seu paradeiro".

35. A Corte Interamericana de Direitos Humanos (OC/13 de 16 de julho de 1993) declarou que "A Comissão é competente, nos termos das atribuições que lhe conferem os artigos 41 e 42 da Convenção para qualificar qualquer norma de direito interno de um Estado Parte como violatória das obrigações que este assumiu ao ratificá-la" (parte resolutiva I).

36. Corte Interamericana de Direitos Humanos, Responsabilidade internacional da expedição e aplicação de leis violatórias da Convenção (artigos 1 e 2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), Parecer Consultivo OC/14, de 9 de dezembro de 1994, parágrafo 39.

37. Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relatório Anual 1992-93, Relatório 29/92, parágrafo 32.

38. Inter-American Yearbook on Human Rights/Anuario Interamericano de Derechos Humanos, 1985, Martinus Nijhoff Pub., 1987, página 1063.

39. Tanto a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura como a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas estabelecem jurisdição universal para os delitos de que se trata (artigo 11 e artigos V e VI, respectivamente). A Convenção sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas também estabelece, no artigo VII, a não-aplicação de prescrições ou, se for impossível, a aplicação de limitações correspondentes aos delitos mais graves.

40. Resolução AG/RES. 666 (XII-O/83).

41. Caso Velásquez Rodríguez, sentença de 29 de julho de 1988, série C, Nº 4, parágrafo 153.

42. Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas, resolução aprovada na sétima sessão plenária, 9 de junho de 1994. OEA/Ser.P, AG/doc.3114/94 rev.

43. Ver AG/RES. 443 (IX-O/79); AG/RES. 742 (XIV-O/84); AG/RES. 950 (XVIII-O/88); AG/RES. 1022 (XIX-O/89); AG/RES. 1044 (XX-O/90); relatórios anuais da CIDH de 1978, 1980-81, 1981-82, 1985-86, 1986-87; e relatórios especiais, tais como o da Argentina (1980), Chile (1985) e Guatemala (1985).

44. Ver Relatório Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos 1985—1986, página. 204.

45. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatórios 28/92 (Argentina) e 29/92 (Uruguai).

46. Corte Interamericana de Direito Humanos. Caso Velásquez Rodríguez, Exceções preliminares; sentença de 26 de junho de 1987, parágrafo 91.

47. Código de Processo Penal do Chile. Título II, Da ação penal e da ação civil no processo penal, artigos 10 a 41.

48. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Velásquez Rodríguez, sentença de 29 de julho de 1988, parágrafo 79.

49. Corte Suprema do Chile. Decisão sobre recurso de inaplicabilidade do Decreto-Lei 2191, de 24 de agosto de 1990, parágrafo 15, e Decisão sobre recurso de aclaração, de 28 de setembro de 1990, parágrafo 4.

50. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Velásquez Rodríguez, Exceções preliminares, parágrafo 91.

51. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Velásquez Rodríguez, sentença de 29 de julho de 1988, parágrafo 64.

52. Corte Interamericana de Direitos Humanos. OC-9/87, parágrafo 24.

53. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Velásquez Rodríguez, sentença de 29 de julho de 1988, parágrafo 166.

54. Idem, parágrafo 173.

55. Idem, parágrafo 174.

56. Idem, parágrafo 176.

57. Idem, parágrafo 177.

58. Relatório Rettig. Fevereiro de 1991, Tomo 2, página 868.

59. Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velásquez Rodríguez, sentença de 29 de julho de 1988, parágrafo 174.

60. Governo do Chile. Nota de 20 de maio de 1994, página 5, parágrafo 17.

61. Ver também Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relatório 28/92 e 29/92.

62. Brownlie, Principles of Public International Law. Clarendon Press, Oxford, 1990, 4ª edição, páginas 446-452. Benadava, Derecho Internacional Público. Ed. Jurídica do Chile, 1976, página 151.

63. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Velásquez Rodríguez, sentença de 29 de julho de 1999, parágrafo 170.

64. Idem, parágrafo 184.

65. Ver Comité, 4º Período de Sesiones. Exámenes de los informes presentados por los Estados Partes... Informes iniciales ... Chile. CCPR/C/1 Add. 25, página 48, 27 de abril de 1976.

66. Ver Detzner, Tribunales chilenos y Derecho Internacional de los Derechos Humanos. Comisión Chilena de Derechos Humanos/Academía de Humanismo Cristiano. Santiago, 1988, Capítulo IV, página 182.

 

 

 

VOTO CONCORRENTE DO COMISSIONADO

DOUTOR OSCAR LUJÁN FAPPIANO

 

 Endosso plenamente o relatório da Comissão. Desejo simplesmente fazer os seguintes acréscimos às "considerações preliminares" constantes do capítulo VII, Seção A do mesmo:

 

À GUISA DE INTRÓITO

 

1. É conveniente salientar que a incumbência da Comissão, na análise da questão levada ao seu conhecimento consiste em determinar o sentido das normas da Convenção Americana segundo os métodos de interpretação proporcionados pela ciência jurídica e que, nessa tarefa, não a predispõe nem conotações ideológicas que não professa nem inclinações afetivas de adesão ou repúdio a um governo, pessoa ou grupo de pessoas, que não possui.

 

AUTORIDADES QUE EXPEDIRAM A ANISTIA. QUALIDADE

 

2. Entendido o acima exposto, cumpre estabelecer, ab initio, que a chamada "lei" de anistia constitui um ato de poder emanado das autoridades surgidas do golpe militar que destituiu o governo constitucional do Doutor Salvador Allende e que, por conseguinte, carecem de qualquer título ou direito pois não foram eleitas nem designadas de maneira alguma mas se instalaram no poder pela força depondo o Governo legal, em violação da constituição. Motivo por que, em estrita ortodoxia jurídica, se trata de um "governo usurpador".

 

3. Com efeito, embora comumente conhecidos sob a denominação genérica de governos de facto, há duas espécies de governos não-legais: os de facto e os usurpadores. O primeiro é aquele que, embora não tenha sido designado de acordo com as normas da constituição e as leis vigentes, atua "sob título aparente" porque sua autoridade advém de uma designação ou eleição ordinária. O segundo, porém, carece de qualquer título, pois não foi nem eleito nem designado de maneira alguma e se instala no poder pela força.1

 

4. Um governo de fato não é de direito, porque está fora do direito ou contra ele, porque carece de título jurídico e porque, se um Estado tem uma constituição, tudo o que a excede é ilegal. Não está na letra nem no espírito constitucional o derrocamento do governo que institui. A instalação de um governo de fato é produto antes da força que do consentimento, o que não escandaliza de modo algum aqueles que pensam que a força é a fonte de todo direito e que o "estado de direito" e o "império da lei" são simples "esquemas" que caem demolidos ante o "realismo" das ditaduras que assolaram nosso Hemisfério.2

 

5. Entretanto, àqueles que isso afirmam é preciso responder com as palavras de Bluntschli: "Assim como não reconhecem mais direitos que os do triunfo momentâneo, assim também não admitem outro erro que o da derrota. Toda rebelião merece a seus olhos castigo se fracassa em seus intentos, mas é realmente legal se alcança a vitória. Toda usurpação é para eles condenada se morre na contenda, mas é por eles reconhecida se chega a bom termo. O fenômeno mutável também é, a seus olhos, a única norma, mesmo com respeito ao direito. Deixam-se levar pela corrente da opinião e mudam de cor e sentimento por qualquer comoção que tenham. Querem fazer crer que defendem o estado de coisas existente, mas na verdade o vão destruindo. Se vangloriam de sempre seguir a viva transformação das coisas e, no entanto, rendem homenagem tão somente ao que o presente tem à vista. Não apreciam elemento algum ético-intelectual do direito".3

 

GOVERNOS ILEGAIS, INVALIDADE DE SEUS ATOS

 

6. Os atos do usurpador não têm valor jurídico algum, seja qual for sua natureza. Nem sequer se pode falar de "legalidade objetiva", uma vez que a observância das formas e da "legalidade de fundo" são insuficientes quando falta a legalidade de um funcionário, pois sempre se requer que o órgão tenha origem constitucional. Tampouco se pode falar de leis ou "decretos-leis" e, muito menos, considerar esses atos de "legislação delegada", pois o Congresso nada delegou nem pode delegar em regimes de facto.4

 

7. Nem mesmo com o louvável propósito de preservar a segurança jurídica, pode-se pôr em pé de igualdade a legalidade constitucional de um governo de jure com a ilegalidade autoritária e inconstitucional de um governo usurpador, cuja possibilidade de existir é, por antonomásia, a mãe da insegurança jurídica; porque o resultado de sua consagração é abrir um aval não-desejado ao apoio cúmplice de tais governos, que merecem o permanente repúdio em defesa do estado de direito, da ordem constitucional, do respeito à vida democrática e do princípio da soberania do povo baseado na vigência plena dos direitos humanos. Porque, se aqueles que colaboram com tais governos têm assegurada a impunidade de suas condutas obtida à sombra do regime usurpador e ilegítimo, não haverá diferença entre o bom e o mau, o legal e o ilegal, entre o constitucional e o inconstitucional, entre o justo e o injusto, entre o democrático e o autoritário e não haveria razão para se negar a aceitar a cumplicidade com tais regimes ilegítimos. Que segurança jurídica poderia haver se é à custa de pôr em pé de igualdade axiológica a ordem de jure — que importa consagrar a segurança sobre a base essencial do direito constitucional — e a ordem de facto ou do usurpador que veio interrompê-la ou violá-la?

 

8. Não se pode dar patente de legítimo àquele que nasceu como fruto espúrio da ruptura da legalidade.

 

9. Não pode ser apagado o limite nítido que separa uma ordem constitucional daqueles que não aceitam conviver sob seu sistema de liberdades, de direitos e garantias, que foi a conquista de tantas lutas e sofrimentos dos homens e mulheres de nosso Hemisfério por viver sob a tolerância pacífica e o respeito mútuo de nossa dignidade humana.

 

10. Daí que o primordial a ser realçado seja a inviolabilidade do regime jurídico concebido como estado de direito. Ante os atos e supostas leis de um governo imposto unicamente pela força, o primeiro que se deve exaltar e reconhecer, sem hesitação, é sua patente invalidade, sua absoluta nulidade. Nem os mais mínimos laivos de legitimidade se pode sequer sugerir com respeito a eles, uma vez que são o inaceitável resultado da fraude contra a lei fundamental, pilar da segurança jurídica.

 

11. Com maior razão neste caso, em que os beneficiários da anistia não são terceiros e sim partícipes dos planos do usurpador. Porque uma coisa é defender a necessidade de legitimar os atos da sociedade em conjunto ou os de responsabilidade internacional, uma vez que não se pode eludir as obrigações assumidas nesses campos sem cair no caos, e outra muito distinta é dispensar igual tratamento àqueles que significaram cumplicidade com o governo ilegítimo. É simplesmente absurdo pretender que o usurpador e seus sequazes possam invocar os princípios do direito constitucional, que eles mesmos violaram, para obter os benefícios da segurança somente justificável e merecida para aqueles que se ajustam rigorosamente a essa ordem. A cumplicidade e a má-fé nunca se protegem, nem mesmo nos atos ordinários. O delito não pode criar direitos.

 

12. Trata-se de postular a correta inteligência da Constituição, que parte da necessidade de invalidar tudo o que a lese ou contradiga. Trata-se de aplicar o peso da lei quando esta recobrou a plenitude de sua vigência. Trata-se, em suma, de impor o regime democrático, desde que recuperou seu vigor, que jamais deveria haver perdido e cuja permanência deve a Comissão promover e defender, pois a solidariedade dos Estados americanos se assenta no denominador comum do "exercício efetivo da democracia representativa" (Carta da OEA, artigo 3) e porque "nenhum problema que experimentem os Estados membros justifica o rompimento do regime democrático representativo" (Declaração de Manágua. Assembléia Geral da OEA, Nicarágua, 1993).

 

13. Frente às manifestações vertidas na tramitação deste caso, no sentido de estar impossibilitado de ab-rogar a auto-anistia sancionada, cumpre responder que a ordem constitucional recuperada deve necessariamente assegurar ao governo o cumprimento de seus fins fundamentais desatando-o das limitações inconcebíveis que lhe impôs o usurpador. Do contrário, tudo se abalaria. Isso é coerente, por exemplo, com doutrina pacífica da Corte Suprema dos Estados Unidos da América, já estabelecida no caso Hom versus Lockhardt, de 1873: "Admitimos que os atos praticados durante a guerra por esses Estados (Confederados) como entidades individuais e pelos diferentes departamentos de seu governo — executivo, legislativo e judiciário — devem ser, em geral, considerados como válidos e obrigatórios, quando não afetem ou tendam a afetar a supremacia da autoridade nacional e dos justos direitos assegurados pela Constituição dos cidadãos". Com esse mesmo raciocínio, a Corte Suprema da Argentina manifestou que negar ao Governo constitucional que anule a vigência de seus efeitos sem dúvida implicaria "impedi-lo nocivamente de conseguir a consolidação do sistema democrático e, ademais, significaria outorgar aos atos do poder de facto a plenitude dos atributos só razoavelmente atribuíveis, per se, aos atos legítimos do poder de jure".5

 

14. Embora os mais conspícuos defensores da continuidade jurídica do Estado, admitam a validade da atuação do governo de fato somente a respeito de terceiros, pois diferenciam meridianamente o funcionário com "investidura plausível" ou com "aparência de título" do "usurpador". Segundo assinala Antokoletz, "o modelo anglo-americano só declara válidos os atos dos funcionários de facto quando afetem o público. Não os declara legítimos per se nem em benefício do funcionário ilegal. A responsabilidade deste por desempenhar indevidamente funções públicas não desaparece".6

 

O DIREITO CONSTITUCIONAL AMERICANO

 

15. O direito constitucional dos Estados da Região concorda com essa doutrina. Antokoletz ensina que os que consideram ilegítimo o poder não emanado da constituição declaram nulos todos os seus atos. As constituições de Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Peru, El Salvador, Venezuela, Chile, estabelecem expressamente essa nulidade.7

 

Uma resenha que efetuáramos das constituições dos Estados membros da Organização confirma essa asseveração. A tese da nulidade dos atos do usurpador é consagrada pelas constituições dos seguintes países: Bolívia (1967), artigo 3; Costa Rica (1949), artigo 10 (artigo 17 anterior); Chile (1980), artigos 5 e 7; República Dominicana (1966), artigo 99; Guatemala (1985), artigo 152; Honduras (1982), artigos 2 e 3; Paraguai (1992), artigo 138; Peru (1993), artigos 45 e 46; Venezuela (1961), artigos 119 e 120. Em virtude das emendas ao seu texto efetuadas em 1994, a Constituição argentina incorporou disposição semelhante tornando explícita a que anteriormente se denominava "a cláusula não escrita" como resultante lógica do disposto nos artigos 22 e 33. Com efeito, seu atual artigo 36, primeiro parágrafo, dispõe o seguinte: "Esta Constituição manterá seu império mesmo quando se interromper sua observância por atos de força contra a ordem constitucional e o sistema democrático. Esse atos serão irremediavelmente nulos". Em disposições posteriores pune seus autores com a responsabilidade e pena dos infames traidores da pátria.

 

17. Com base nesse preceito da Constituição anterior, o Congresso argentino pôde validamente derrogar a chamada "auto-anistia" promulgada pelo regime militar (Lei 23040), bem como sancionar a Lei 23062 que, no que interessa a este caso, estabeleceu o seguinte: "Em defesa da ordem constitucional republicana baseada no princípio da soberania popular, estabelece-se que carecem de validade jurídica as normas e atos administrativos emanados das autoridades de facto surgidas de um ato de rebelião ... mesmo quando queiram fundar-se em pretensos poderes revolucionários ...".

 

18. A Constituição do Chile, de 1833, declara em seu artigo 158 o seguinte: "Toda resolução acordada pelo Presidente da República, pelo Senado ou pela Câmara de Deputados, em presença ou por requisição de um exército, de um general à frente de uma força armada ou de alguma reunião popular que, seja com armas, seja sem elas, desobedecer as autoridades, é nula de direito e não pode produzir efeito algum".8 Por sua vez, a de 18 de novembro de 1925 também declara o seguinte: "Nenhuma magistratura, nenhuma pessoa ou reunião de pessoas pode atribuir-se, nem mesmo sob pretexto de circunstância extraordinária, outra autoridade ou outros direitos que os expressamente conferidos pelas leis. Todo ato em contravenção a este artigo é nulo". E até a própria "constituição" política sancionada pelo Decreto-Lei Nº 3464, de 11 de agosto de 1980, repete o artigo de sua antecessora quase ao pé da letra (artigo 7).

 

19. Por conseguinte, para o direito constitucional americano, o conceito de povo é uno, motivo por que à Constituição repugna o governo de facto e, por conseguinte, a deposição das autoridades constitucionais não cria direitos a favor do caudilho sedicioso ou rebelde. Com maior razão não se poderá invocar a presunção de legitimidade, pois já não se trata de um só funcionário de facto mas de todo um regime extraconstitucional ou anticonstitucional, porque um regime total de facto não é democrático nem republicano.

 

20. Faz muitos séculos, os romanos inscreveram num arco: Senatus Populusque Romanus para expressar uma conjunção harmônica de governantes e governados.

 

21. Seguindo o critério defendido pela Comissão em seu relatório Nº 30/93, cumpre defender também neste caso que a nulidade dos atos do usurpador é uma cláusula constitucional consuetudinária de firme tradição no Hemisfério.9

 

22. Também cabe colacionar a jurisprudência de alguns tribunais da Região. A Corte Suprema argentina não vacilou em declarar a ilegalidade do direito criado anormalmente pelos governos de facto e não outorgar-lhe a plenitude dos atributos só razoavelmente atribuíveis, per se, aos atos legítimos do poder de jure. "Não se pode discutir a ilegitimidade de um ato promulgado à sombra de um poder legislativo de facto que não seja o instituído pela nossa Carta fundamental", são suas próprias palavras.10

 

23. Entretanto, cumpre sobretudo destacar a transcendente sentença da Corte Constitucional da Guatemala, proferida por motivo dos acontecimentos protagonizados pelo ex-Presidente Serrano.11

 

O DEBATE PARLAMENTAR COMO GARANTIA

 

24. O direito constitucional estabelece, ademais, um procedimento inelutável para a formação e sanção das leis, que é, em essência, uma garantia; motivo por que são nulos de nulidade absoluta e insanável os atos de poder, erroneamente denominados "leis", de um governo de facto, elaborados no silêncio de um gabinete, às vezes pelos próprios destinatários ou beneficiários, como nas melhores épocas das monarquias absolutas.

 

25. A tão saudável discussão pública falta nesses atos de poder. Essa discussão não só é uma homenagem à democracia mas também o cumprimento de preceitos constitucionais que tratam da formação e sanção das leis e que são autênticas garantias dos direitos e liberdades fundamentais, o que se vê agora reafirmado em virtude do disposto no artigo 23.1 da Convenção.

 

26. A omissão do debate público, por outro lado, causa grave dano ao povo porque o acostuma a não confiar no direito, ao debilitar o sentido da legalidade, da "fibra legal" como a chamava o filósofo Vanni.12

 

OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O ESTADO

 

27. Os direitos e liberdade fundamentais não cessam ante um governo de facto, porque são anteriores ao Estado e à constituição, que só os reconhece e garante, mas não os cria. Por esse motivo é errôneo afirmar que um regime de facto não tem limites em sua potestade anômala ou anticonstitucional, ou seja, que pode proceder de legibus solutus, ou como naquela fórmula quod principii placuit, legis habet vigorem. Daí que uma anistia promulgada por um governo que é acusado de grave e sistemática violação dos direitos humanos, o que equivale a dizer que se escusa a si mesmo, integre essa prática e, por conseguinte, constitua um abuso de poder.

 

28. Nesse sentido, diz Tomuschat: "Quando o poder perpetua o genocídio desaparecem as aparências mesmas da legitimidade. Defender que em determinados casos se deve obediência a leis viciadas e a seus implacáveis executores equivaleria a fazer do Estado um fetiche de natureza divina não manchado nem pelos atos mais atrozes e odiosos".13

 

O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

 

29. Essa qualidade se confirma à luz das disposições do artigo 3 da Carta da OEA, dos artigos XX e XXVIII da Declaração Americana, do preâmbulo da Convenção e seus artigos 23.1, a e b — inderrogável segundo seu artigo 27.1 a 29 e 32.

 

30. Para que os direitos humanos se convertam numa realidade jurídica, o primeiro requisito é contar com um estado de direito, que de fato englobe outros dois: a) para que um Estado seja livre, as pessoas que o compõem devem ter a capacidade de decidir livremente seu destino (princípio da auto-determinação) e b) o povo deve definir livremente, por meio de leis gerais e não pessoais, o sistema jurídico que estabeleça os direitos humanos (império da lei).14

 

A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

 

31. A tessitura defendida encontra apoio nos pronunciamentos da Corte Interamericana de Direitos Humanos quando define como "lei" a "norma jurídica de natureza geral, cingida ao bem comum, emanada dos órgãos legislativos constitucionalmente previstos e democraticamente eleitos e elaborada segundo o processo estabelecido pelas constituições dos Estados partes para a formulação das leis" (OC/6, parágrafo 38); definição à qual chegou com base na análise dos princípios da legalidade e da legitimidade e do regime democrático dentro do qual é preciso entender o sistema interamericano de direitos humanos (OC/6, parágrafos 23 e 32), segundo explicita em seu OC/13, parágrafo 25. Para a Corte, "o princípio da legalidade, as instituições democráticas e o estado de direito são inseparáveis" (OC/8, parágrafo 24). A decidida adesão ao regime democrático foi assinalada pela Corte nos seguintes termos: "A democracia representativa é determinante em todo o sistema de que a Convenção é parte (OC/13, parágrafo 34), o que completa seus critérios quanto às 'justas exigências da democracia' que devem orientar a interpretação da Convenção, particularmente dos conceitos criticamente relacionados com a preservação e funcionamento das instituições democráticas" (OC/5, parágrafos 44, 67 e 69). Tampouco se deve esquecer sua doutrina que salienta a importância da legislatura escolhida na tutela dos direitos fundamentais (OC/8 parágrafos 22 e 23) e a outra referente ao controle da legitimidade dos atos do Poder Executivo por parte do Poder Judiciário (OC/8, parágrafos 29 e 30, e OC/9, parágrafo 20).

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA

 

32. Também a Comissão vem abrindo caminhos nesse tema em sua atuação, a saber: a) quando disse que o clima democrático é necessário ao estabelecimento de uma sociedade política em que floresçam plenamente os valores humanos (Diez años ..., página 331); b) quando alude ao poder predominante que se adjudica a órgãos não-representativos da vontade popular (Idem, página 270) (Relatório sobre o Panamá, 1978, página 114, parágrafo 3. Relatório Anual 1978-80, páginas 123 e 124, que analisa um projeto de constituição política para o Uruguai; c) quando dá seu parecer sobre a participação popular mesmo na elaboração de textos constitucionais (Relatório sobre o Suriname, 1983, página 43, parágrafo 41); quando questiona a validade do plebiscito no Chile, por ter sido realizado enquanto se achavam suspensas as liberdades públicas (Relatório de 1978-80, página 15); e e) no caso Ríos Montt versus Guatemala, em seu Relatório 30/93.

 

O SISTEMA UNIVERSAL

 

33. Quanto ao sistema universal cumpre lembrar o seguinte: a) a Carta das Nações Unidas e seu Preâmbulo (Nós os povos das Nações Unidas ...), na referência à "livre autodeterminação dos povos" e ao "desenvolvimento e estímulo ao respeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais de todos ..."; b) a Declaração Universal, em seu artigo 29; c) o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; e d) a decisão da Comissão de Direitos Humanos no caso "Ngaluba versus Zaire", parágrafos 8.2 e 10, sobre a negação do direito de participar, em condições de igualdade, da direção dos assuntos públicos em virtude de punições aplicadas a oito parlamentares.15

 

GOVERNO USURPADOR E DEMOCRACIA

 

34. Ante o exposto, pode-se concluir que democracia e direitos são termos inseparáveis e uma mesma e única equação que se constituiu no postulado filosófico da organização político-institucional dos Estados da América e, por conseguinte, tanto a atuação de um governo usurpador ou de facto, quanto estes por si mesmos, são incompatíveis com a letra e o espírito da Convenção Americana.

 

O CHILE E OS TRATADOS INTERNACIONAIS

 

35. Já se fez uma resenha das constituições chilenas, em relação à solução que davam aos "governos" usurpadores. Viu-se, inclusive, que a própria "Constituição" sancionada pelo regime militar declara a nulidade dos atos do usurpador. Vejamos agora esse outro aspecto a que se refere o título deste parágrafo.

 

36. O artigo 27 da Constituição de Viena sobre direito dos tratados foi especialmente reconhecido pelo Chile na respectiva conferência. Com efeito, o representante do Chile, Senhor Barros, manifestou o seguinte: "Não há nada a opor a que um Estado invoque sua constituição para negar-se a assinar um tratado mas, quando um Estado se obriga mediante um tratado, não é justificável que depois procure eludir seu cumprimento invocando sua constituição e nem mesmo sua legislação nacional ordinária".16

 

37. E que, por sua vez, o regime surgido do golpe militar que destituiu o Presidente Allende, declarou perante a Comissão de Direitos Humanos que o Pacto de Direitos Civis e Políticos vigorava no Chile desde 1976.17

 

38. Bem como que, de acordo com o disposto no artigo 5.2 da Constituição Política do Chile, a conciliação entre a norma internacional e a nacional é obrigatória para os tribunais.18

 

CONCLUSÃO

 

39. A Comissão não pode senão acompanhar os esforços do constituinte americano e os envidados tanto no plano regional quanto no universal para anatematizar para sempre a quebra da ordem constitucional e do regime democrático afirmando que no Hemisfério só se tem acesso aos cargos públicos por meio do sufrágio direto ou indireto e não por meio de golpes de estado; que as constituições não são, como preferem alguns, um sistema de normas tão inconsistentes e defeituosas que cai ao primeiro distúrbio. A Comissão afirma a incolumidade do princípio da legalidade, das instituições democráticas, do estado de direito e da soberania do povo fundada na plena vigência dos direitos humanos, pois esse é o motivo de sua criação.

 

40. O repasse da história política de nossos povos traz à memória a frase silenciosa de Ramella: "O exposto constitui um panorama sombrio. O aniquilamento das instituições pelos governos de facto tem desarticulado a ordem constitucional, ao criar um clima de falta de respeito às autoridades legítimas e instilar na juventude o ceticismo com respeito à vida política".19

 

41. Há no povo certo ceticismo quando ao direito e ao sentido constitucional.

 

42. Parafraseando Bielsa, pode-se dizer que, em momentos como estes, em que se faz história tão rápida e inesperadamente, é preciso aproveitar a pouco afortunada experiência dos povos da América. A América tem algo melhor que o que vem presenciando. São muitos — a imensa maioria — os que se mantiveram fiéis à Constituição, às leis e à honra civil e desejam ardentemente a consolidação do regime democrático. Há cidadãos de conduta fundadamente definida que não só reprovam os transgressores como também as formas degeneradas de governo ou desgoverno, que não querem a luxúria do mando, que não creem que a função pública consista em ocupar posições fora das normas.20

 

43. Com esses cidadãos, com as jovens gerações de americanos a que aludia Ramella, é que se compromete a Comissão, que só cumprirá plenamente seu compromisso dando um exemplo de afirmação democrática que vença sua descrença e contribua para que continuem a crer, com renovada fé, no império da lei e no estado de direito.

 

Para isso, é preciso encarar a elucidação dessa questão com os olhos voltados para o plano superior dos princípios, porque o jurista, o homem de direito, não pode deixar de aderir a uma doutrina pelas derivações que possa ter. Isso é um vivo apelo dos advogados da América que, em sua XXI Conferência Interamericana proclamaram: "Ante as numerosas deformações que esses princípios padecem em conseqüência da instauração de diversas manifestações autocráticas de governo, nasce o imperativo de proclamar com clareza e mediante conceitos categóricos a preferência dos advogados da América pela sobrevivência de uma forma de governo que responde às pautas de uma democracia constitucional e pluralista..."21

 

45. Por sua vez, na XXII Conferência, declararam: "... Ao conceber a democracia representativa como um sistema que melhor respeita os direitos dos povos, impõe-se que, ante qualquer mudança de regime de governo, ou frente ao estabelecimento de governos irregulares com relação à constituição pré-existente, é imperativo manter incólume o princípio da titularidade popular da soberania, bem como que o poder público seja exercido ... respeitando-se os valores inerentes à dignidade humana".22

 

46. Trata-se de que, embora os fatos sociais nem sempre possam ser evitados, quando irremediavelmente ocorrem, a única coisa honesta é não sair do sólido terreno do império da lei, único estilo de vida numa sociedade democrática.

 

47. O ex-membro da Comissão Jurídica Interamericana, Jorge R. Vanossi, escreve o seguinte: "Nesse longo trajeto percorrido, o preço pago foi muito alto: a subestimação da legalidade, a aceitação de uma ordem de gestação normativa autocrática mais ou menos freqüente ou mais ou menos permanente, a confusão do anômalo e transitório com o normal e permanente, a quebra, enfim, de certa rigidez constitucional". A equiparação quase insensível do produto legislativo de jure com o produto legislativo de facto conduz inexoravelmente à identificação de todo 'governo' pelo simples dado da efetividade (fática ou coercitivamente obtida) de suas normas, com menosprezo dos procedimentos e dos órgãos, cuja regularidade passa a ser irrelevante para a consciência jurídica maioritária. Devemos "fazer mea culpa" nesse tema ... mas todos os homens de direito estão intimados a examinar cuidadosamente seus esquemas de acatamento resignado das doutrinas convalidantes e de oferecer a alternativa analítica e reflexiva de uma reformulação que evite o aumento irreprimível de uma manifestação má — talvez das mais exasperantes — desse fenômeno que Ripert denominou "o declínio do direito".23

 

48. E essa alternativa que Vanossi reclama dramaticamente para sair "do monólogo e do mausoléu", onde indefectivelmente desemboca toda ditadura — segundo a insuperável expressão de Octavio Paz — foi aberta por um homem esclarecido deste solo: "Que aqui, solenemente, decidamos que estes mortos não morreram em vão; que esta nação, sob a proteção de Deus, nascerá de novo para a liberdade e que o governo do povo, pelo povo e para o povo não desaparecerá da face da terra".24

 

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1. Constantineau, Tratado de la doctrina de facto. Ed. Depalma, Buenos Aires, 1945. Tomo I, páginas 31 e seguintes. Antokoletz, Tratado de derecho constitucional y administrativo, Buenos Aires, 1933. Tomo I, página 60.

2. Bielsa, Regimen de facto y ley de acefalía. Ed. Depalma, Buenos Aires, 1963, páginas 26-30.

3. Antokoletz, op. e loc. citados.

4. Bielsa, op. cit, páginas 17, 23, 24 (n.5), 35 e seguintes. Idem, Estudios de derecho público. Ed. Depalma, Buenos Aires, 1952. Tomo III, páginas 431-478.

5. Gamberale de Manzur versus U.N.R., sentença de 6 de abril de 1989.

6. Antokiletz, op. cit., páginas 72 e 73.

7. Antokoletz, op. e loc. cit.

8. Precedente adotado por J.B.Alberdi para redigir seu anteprojeto de constituição para a Província de Mendoza (Argentina).

9. Caso 10.804, "Rios Montt versus Guatemala". Relatório Anual da CIDH, 1993, página 296, parágrafo 29.

10. "Gamberale de Manzur versus U.N.R", sentença de 6 de abril de 1989. Observe-se que o pronunciamento é anterior à reforma constitucional de 1994.

11. Ver La Corte y el Sistema Interamericano de Derechos Humanos. Rafael Nieto Navia Editor. San José, Costa Rica, 1994, páginas 199 e seguintes.

12. Bielsa, op. cit. páginas 36, 38, 41, 42, 46 e 68.

13. Tomuschat, Sobre la resistencia a las violaciones a los derechos humanos, UNESCO, 1984, página 26.

14. Vasak, Los derechos humanos como realidad legal. Em Las dimensiones internacionales de los derechos humanos. UNESCO. Barcelona, 1984, Tomo I, página 27.

15. Para desenvolvimento mais recente, amplo e analítico do tema, ver Cançado Trindade, Democracia y Derechos Humanos ..., em La Corte y el Sistema Interamericano de Derechos Humanos.

16. Diaz Albónico, La Convención de Viena ..., em Estudos, 1982, Sociedad Chilena de Derecho Internacional, páginas 147-174.

17. Ver Comité, 4º período de sesiones. Exámenes de los informes presentados por los Estados partes ... Informes iniciales ... Chile. CCPR/C/1 Add. 25, página 48, 27 de abril de 1976.

18. Detzner, Tribunales chilenos y derecho internacional de los derechos humanos. Comisión Chilena de Derechos Humanos/Academía de Humanismo Cristiano. Santiago, 198, capítulo IV, página 182.

19. Ramela, Derecho Constitucional. Depalma, Buenos Aires, 1986, 2a. edição, página 700.

20. Bielsa, op. cit., páginas 66 e 67.

21. San Juan, Porto Rico, 1979.

22. Quito, Equador, 1981.

23. Vanossi, El estado de derecho en el constitucionalismo social. EUDEBA, Buenos Aires, 1987, páginas 468 e 469.

24. Lincoln, Discurso de Gettysburg.