RELATÓRIO ANUAL 1996

RELATÓRIO Nº 36/96
CASO 10.843
CHILE*

I. A DENÚNCIA E O TRÂMITE DO CASO PERANTE A COMISSÃO

1. Em 27 de março de 1991, a Comissão recebeu denúncia contra o Estado do Chile por violação à justiça e pela situação de impunidade que reina em relação à detenção e ao desaparecimento das seguintes pessoas:

 

1. Garay Hermosilla, Héctor Marcial (8 de julho de 1974); 2. Buzio Lorca, Jaime (13 de julho de 1974); 3. Elgueta Pinto, Martín (15 de julho de 1974); 4. Alvarado Borgel, María Inés (15 de julho de 1974); 5. Chacón Olivares, Juan Resendo (15 de julho de 1974); 6. Guajardo Zamorano, Luis Julio (20 de julho de 1974); 7. Tormen Méndez, Sergio Daniel (20 de julho de 1974); 8. Andreoli Bravo, María Angélica (6 de agosto de 1974); 9. Dockendorff Navarrete, Muriel (6 de agosto de 1974); 10. Cabezas Quijada, Antonio Sergio (17 de agosto de 1974); 11. Barría Araneda, Arturo (28 de agosto de 1974); 12. Villalobos Díaz, Manuel Jesús (17 de setembro de 1974); 13. Rodríguez Araya, Juan Carlos (17 de novembro de 1974); 14. Castro Salvadores, Cecilia Gabriela (17 de novembro de 1974); 15. Reyes Navarrete, Sergio Alfonso (17 de novembro de 1974); 16. Pizarro Meniconi, Isidro Miguel Angel (19 de novembro de 1974); 17. Vera Almarza, Ida (19 de novembro de 1974); 18. Muller Silva, Jorge Hernán (29 de novembro de 1974); 20. Silva Saldívar, Gerardo Ernesto (10 de dezembro de 1974); 21. Urbina Chamorro, Gilberto Patricio (6 de janeiro de 1975); 22. Contreras Hernández, Claudio Enrique (7 de janeiro de 1975); 23. Flores Pérez, Julio Fidel (10 de janeiro de 1975); 24. Molina Mogollones, Juan René (29 de janeiro de 1975); 25. Bruce Catalán, Alan Roberto (13 de fevereiro de 1975); 26. Vásquez Sáenz, Jaime Enrique (13 de fevereiro de 1975); 27. Acuña Reyes, Roberto René (14 de fevereiro de 1975); 28. Perelman Ide, Juan Carlos (19 de fevereiro de 1975); 29. Lagos Salinas, Ricardo (24 de junho de 1975); 30. Peña Herreros, Michelle (28 de junho de 1975); 31. Rodríguez Díaz, Mireya Herminia (25 de junho de 1975); 32. Lorca Tobar, Carlos nrique (25 de junho de 1975); 33. Ferrús López, Santiago Abraham (11 de dezembro de 1975); 34. Quezada Solís, Mario Luis (12 de dezembro de 1975); 35. Ascencio Subiabre, José Ramón (29 de dezembro de 1975); 36. Boettiger Vera, Octavio (17 de janeiro de 1976); 37. Weibel Navarrete, José Arturo (29 de março de 1976); 38. Araya Zuleta, Bernardo (2 de abril de 1976); 39. Flores Barraza, María Olga (2 de abril de 1976); 40. Recabarren González, Luis Emilio (29 de abril de 1976); 41. Recabarren González, Manuel Guillermo (29 de abril de 1976); 42. Mena Alvarado, Nalvia Rosa (29 de abril de 1976); 43. Recabarren Rojas, Manuel Segundo (30 de abril de 1976); 44. Zamorano Donoso, Mario Jaime (4 de maio de 1976); 45. Muñoz Poutays, Onofre Jorge (4 de maio de 1976); 46. Donaire Cortéz, Uldarico (5 de maio de 1976); 47. Donato Avendaño, Jaime Patricio (5 de maio de 1976); 48. Escobar Cepeda, Elisa del Carmen (6 de maio de 1976); 49. Díaz Silva, Lenín Adán (9 de maio de 1976); 50. Concha Bascuñán, Marcelo Hernán (10 de maio de 1976); 51. Espinoza Fernández, Eliana (12 de maio de 1976); 52. Díaz López, Victor (12 de maio de 1976); 53. Cerda Cuevas, Oscar Domingo (19 de maio de 1976); 54. Rekas Urra, Elizabeth de las Mercedes (26 de maio de 1076); 55. Elizondo Ormaechea, Antonio (26 de maio de 1976); 56. Maino Canales, Juan Bosco (26 de maio de 1976); 57. Maturana González, Luis Emilio Gerardo (8 de junho de 1976); 58. Pardo Pedemonte, Sergio Raúl (16 de junho de 1976); 59. Hinojoza Araos, José Santos (26 de junho de 1976); 60. Martínez Quijón, Guillermo Albino (21 de julho de 1976); 61. Canteros Prado, Eduardo (23 de julho de 1976); 62. Canteros Torres, Clara Elena (23 de julho de 1976); 63. Gianelli Company, Juan Antonio (26 de julho de 1976); 64. Godoy Lagarrigue, Carlos Enrique (4 de agosto de 1976); 65. Insunza Bascuñán, Ivan Sergio (4 de agosto de 1976); 66. Vivanco Vega, Hugo Ernesto (4 de agosto de 1976); 67. Herrera Benítez, Alicia Mercedes (4 de agosto de 1976); 68. Ramos Garrido, Oscar Rolando (5 de agosto de 1976); 69. Ramos Vivanco, Oscar Arturo (5 de agosto de 1976); e 70. Vargas Leiva, Manuel de la Cruz (7 de agosto de 1976).

2. Em sua denúncia, os peticionários dão conta das gestões, recursos e trâmites judiciais efetuados na jurisdição interna do Chile, da seguinte maneira: em agosto de 1978, em representação de vários familiares das pessoas acima citadas, o Vicariato da Solidariedade do Arcebispado de Santiago patrocinou uma queixa-crime contra o General de Exército Manuel Contreras Sepúlveda, Chefe da Direção de Inteligência Nacional (DINA), pela detenção e o posterior desaparecimento destas pessoas entre 1974 e 1976. A queixa foi interposta ao Juizado Criminal competente, pelo delito de seqüestro agravado, tipificado pelo artigo 141 do Código Penal chileno. O juiz a cargo da investigação declarou-se imediatamente incompetente, alegando que os denunciados na queixa estavam submetidos ao foro militar. A parte querelante apelou dessa resolução perante a Corte de Apelações de Santiago, que confirmou a incompetência alegada.

 

3. A queixa foi remetida ao Segundo Juizado Militar de Santiago, tribunal que aceitou a competência, determinando a instrução dos autos conforme dispõe o Código de Justiça Militar. O tribunal militar decidiu reunir os 35 processos que se encontravam em trâmite em diversas Varas Penais de Santiago, referentes ao desaparecimento de algumas das pessoas mencionadas na queixa.

 

4. Na própria queixa e, a seguir, durante o processo perante o tribunal militar, solicitou-se a realização de diligências probatórias substantivas; contudo, todas elas foram denegadas liminarmente pelo tribunal militar, que manteve o processo paralisado em estado de sumário durante 11 anos, apesar da abundante prova que acompanhou o processo.

 

5. Em dezembro de 1989, o Segundo Tribunal Militar de Santiago, a pedido da Procuradoria Geral Militar — instituição criada pelo regime militar para representar em juízo os interesses do exército — decretou o arquivamento definitivo da causa, em aplicação do decreto-lei (D.L.) 2.191 de auto-anistia, de 19 de abril de 1978, aprovado pelo regime militar que detinha o poder, com o objetivo de perdoar os crimes cometidos por membros desse regime entre 1973 e 1978.

 

6. Com o propósito de impedir o arquivamento definitivo da investigação e determinar o paradeiro das vítimas e apurar a responsabilidade dos culpados, apresentou-se em janeiro de 1990 um recurso de inaplicabilidade, por inconstitucionalidade do D.L. de auto-anistia, que servira de fundamento para que o tribunal militar determinasse o arquivamento definitivo da causa. Tal como assinala a lei chilena, o recurso de inaplicabilidade foi impetrado à Suprema Corte.

 

7. Em 24 de agosto de 1990, o Plenário da Suprema Corte do Chile decidiu indeferir por unanimidade o mencionado recurso e, em conseqüência, confirmou a constitucionalidade do D.L. de auto-anistia de 1978. Em relação à possibilidade de investigar judicialmente os desaparecimentos ocorridos durante o período abrangido pelo D.L. de auto-anistia, a Corte assinalou que:

 

... a anistia constitui um ato do Poder Legislativo que suspende de maneira objetiva a declaração de criminalidade feita por outra lei, motivo pelo qual faz desaparecer a punibilidade do delito ao eliminar a pena e todos os seus efeitos nos fatos ilícitos que abrange, e impede e paralisa definitivamente ou para sempre o exercício de toda ação judicial que tenda a sancioná-los... Isso significa que, uma vez verificada a procedência da lei de anistia, devem os juízes proceder à sua declaração em conformidade com o disposto a respeito nos artigos 107 e 408, Nº 5, do Código de Processo Penal, sem que, em conseqüência, seja obrigatória a aplicação do disposto no artigo 413 desse mesmo Código, que exige, para decretar o arquivamento definitivo, que esteja esgotada a investigação com que se procurou comprovar o corpo de delito e determinar a pessoa do delinqüente.

8. Os agravados impetraram perante a mesma Suprema Corte um recurso final de esclarecimento da sentença e solicitaram a substituição da mesma. Em 28 de setembro de 1990, a Suprema Corte confirmou por unanimidade sua decisão de constitucionalidade do D.L. de auto-anistia, acrescentando também que:

 

verificada a procedência da lei de anistia ou perdão, os juízes devem esclarecê-la (sic), pondo fim à indagação ou o processo judicial, já que assim o dispõe o artigo 107 do Código de Processo Penal, preceito que, nesta situação, tem primazia sobre qualquer outro, dado que obriga o juiz, antes de dar prosseguimento à ação penal, se os antecedentes que lhe forneça o processo demonstrem estar extinta a responsabilidade processual do acusado, a se pronunciar sobre o assunto, negando-se a dar curso ao julgamento, o que fará, em conseqüência, arquivando definitivamente a causa.

9. A Suprema Corte, em ambos os acórdãos, assinala que o D.L. de auto-anistia não exclui o direito dos agravados de serem devidamente indenizadosna justiça civil, pelos prejuízos que os delitos tenham causado ao seu patrimônio. Se o D.L. de auto-anistia, tal como interpretado pela Corte, constitui uma norma que inclusive impede o juiz de ordenar uma investigação e, no caso de que esta tenha sido iniciada, obriga-o a suspendê-la imediatamente, o direito a indenização por danos resulta não apenas ilusório, como também juridicamente impossível, já que a jurisprudência unânime nos tribunas chilenos indica que as ações civis são procedentes uma vez comprovado o corpo de delito e determinada a pessoa do responsável contra o qual devem ser ajuizadas essas ações. Assim o prescreve expressamente o artigo 40 do Código de Processo Penal ao assinalar que a ação civil pode ser ajuizada contra o pessoalmente responsável e contra seus herdeiros, e o artigo 254, Nº 3, do Código de Processo Civil que prescreve imperativamente que a demanda civil deva conter o nome, o domicílio e a profissão ou ofício do indivíduo contra o qual é impetrada.

 

10. Levando em conta o exposto, e especialmente o fato de que a Suprema Corte denegou o acesso de 70 chilenos à justiça, em violação ao estabelecido na Convenção Americana, atualmente vigente no Chile, e tendo em vista que é perfeitamente previsível que a atual Suprema Corte mantenha o seu critério sobre as limitações estabelecidas pelo D.L. de auto-anistia de 1978, as instituições denunciantes solicitam à Comissão que declare que o Estado do Chile violou o artigo 25, em combinação com o artigo 1.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e, atendendo ao disposto nos artigos 1.2 e 43 do mesmo instrumento, também declare que o D.L. 2.191 que ditou é incompatível com as obrigações do Chile em função da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

 

11. A Comissão transmitiu as partes pertinentes da denúncia ao Governo do Chile em 1º de abril de 1991, solicitando que este enviasse informação sobre os fatos denunciados ou outra informação pertinente, dentro do prazo de 90 dias.

 

Em 8 de julho de 1991, a Comissão recebeu nota do Governo em que este solicitava uma prorrogação de 30 dias para o envio da sua resposta, que foi concedida pela Comissão mediante nota de 11 de julho de 1991.

 

Em 12 de agosto de 1991, a Comissão recebeu um novo pedido de prorrogação de 30 dias para a resposta à denúncia, que foi concedida pela Comissão em 16 de agosto de 1991.

 

A Comissão recebeu a resposta do Governo em 11 de setembro de 1991. Na mesma, o Governo alega que os recursos da jurisdição interna não haviam sido esgotados, Também assinala que a petição fora apresentada depois de vencido o prazo de seis meses prescrito no artigo 46, b da Convenção e nos artigos 35, b e 38.1 do Regulamento da Comissão.

 

Em 15 de novembro de 1994, a Comissão enviou ao Governo e aos peticionários uma comunicação mediante a qual se colocou à disposição de ambas as partes para chegar a uma solução amigável sobre o assunto.

 

Em 29 de dezembro de 1994, os peticionários enviaram suas observações sobre a informação apresentada sobre o Estado do Chile em relação ao caso, que foram transmitidas ao Governo em 11 de janeiro de 1995.

 

A Comissão realizou audiência sobre o caso em 1º de fevereiro de 1995, com a participação dos representantes dos peticionários e do Governo do Chile.

 

No dia 11 do mesmo mês, concedeu-se uma prorrogação de 60 dias ao Governo do Chile para que formulasse comentários adicionais sobre o caso.

 

Em 25 de agosto de 1995, a Comissão recebeu a resposta do Governo.

 

Em 10 de outubro de 1995, remeteu-se ao Governo o Relatório Nº 19/95, sobre admissibilidade, adotado pela Comissão no seu 90º Período Ordinário de Sessões.

 

II. ADMISSIBILIDADE DO PRESENTE CASO

12. Em conformidade com o disposto no artigo 44 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada "Convenção"), da qual o Chile é Estado Parte, a Comissão é competente para considerar este caso por se tratarem de reclamações que alegam violações de direitos garantidos pela Convenção Americana no seu artigo 25, referente ao direito a uma efetiva proteção judicial, e nos artigos 1.1, 2 e 43, sobre o dever dos Estados de cumprir e fazer cumprir a Convenção, de adotar disposições de direito interno para tornar efetivas as normas da Convenção e de informar sobre o assunto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

 

13. A reclamação reúne os requisitos formais de admissibilidade contidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e no Regulamento da Comissão, tal como estabelecido no Relatório 19/95, sobre admissibilidade, adotado pela Comissão no seu 90º Período Ordinário de Sessões, realizado em setembro de 1995.

 

14. A presente reclamação não está pendente de outro processo de âmbito internacional e não repete petição anterior já examinada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

 

III. SOLUÇÃO AMIGÁVEL

15. Durante a audiência realizada em 1º de fevereiro de 1995, a Comissão recordou aos representantes dos peticionários e do Governo do Chile que, em conformidade com o disposto no artigo 48, f, da Convenção, deveria colocar-se, de ofício, à disposição das partes a fim de chegar a uma solução amigável sobre o assunto, fundamentada no respeito aos direitos reconhecidos na Convenção.

 

16. Mediante comunicação de 8 de fevereiro de 1995, ratificada em 8 de setembro do mesmo ano, os representantes das vítimas declararam inaceitável uma solução amigável sob qualquer condição, solicitando a continuação do procedimento previsto na Convenção Americana.

 

Por não ter sido alcançada uma solução amigável, deve a Comissão dar cumprimento ao disposto no artigo 50.1 da Convenção, emitindo suas conclusões e recomendações sobre o assunto submetido à sua consideração.

 

IV. CUMPRIMENTO DOS TRÂMITES ESTABELECIDOS PELA CONVENçÃO

17. Durante a tramitação do presente caso, a Comissão concedeu igualdade de oportunidades de defesa tanto ao Governo do Chile como aos peticionários e ponderou, com absoluta objetividade, as provas e alegações submetidas pelas partes.

 

Na tramitação do presente caso, foram observados, cumpridos e esgotados todos os trâmites legais e regulamentares estabelecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e no Regulamento da Comissão.

 

V. ALEGAÇÕES DO GOVERNO DO CHILE

18. O Governo democrático do Chile alega que não emitiu nenhuma lei de anistia incompatível com a Convenção Americana, já que o D.L. 2191 foi expedido em 1978, sob o regime militar de facto.

 

19. O Governo solicita que a Comissão leve em conta o contexto histórico em que ocorreram os fatos e a situação especial de retorno do país ao regime democrático, dentro da qual o novo Governo teve que acolher as regras impostas pelo regime militar de facto, que não podia modificar a não ser em conformidade com a lei e com a Constituição.

 

20. O Governo procurou derrogar o D.L. de auto-anistia, mas o preceito constitucional dispõe que as iniciativas referentes a anistias só podem ter sua origem no Senado [artigo 62, inciso segundo da Constituição], onde carece de maioria devido ao número de pessoas não-designadas por votação popular nesse corpo legislativo.

 

21. O Governo democrático exortou a Suprema Corte a declarar que a anistia vigente não pode ser obstáculo para a investigação e sanção dos responsáveis.

 

22. A Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação, em cujo relatório foram individualizadas as vítimas de violação dos direitos fundamentais na ditadura militar, entre elas os casos das 70 pessoas incluídas nesta denúncia, reconheceu que os casos destas pessoas constituíam violações graves, das quais participaram agentes do Estado e que, ao não se determinar o seu paradeiro, inseriam-se na condição de "detidos desaparecidos".

 

23. Mediante a Lei 19.123, emitida pelo Governo democrático, concedeu-se aos familiares das vítimas: pensão única vitalícia em montante não inferior à retribuição média de uma família no Chile; um procedimento especial para a declaração de presunção de morte; atenção especializada do Estado em matéria de saúde, educação e habitação; perdão de dívidas educacionais, habitacionais, tributárias e de outra natureza com organismos estatais; e isenção do serviço militar obrigatório para os filhos das vítimas.

 

24. O Governo democrático manifestou sua conformidade com a qualificação feita pelos peticionários a respeito da natureza do decreto- lei Nº 2.191, de 19 de abril de 1978, que procurou a exoneração de responsabilidade dos crimes mais graves cometidos na história do Chile.

 

25. O Governo solicitou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos que declare, no seu relatório final, que as violações dos direitos a que se refere a denúncia dos peticionários no presente caso não são imputáveis ao Governo do Chile e que este não arca com qualquer responsabilidade a respeito.

 

VI. OBSERVAÇÕES DA COMISSÃO ÀS ALEGAÇÕES DAS PARTES

 

A. Considerações preliminares

 

a) Qualificação das autoridades que ditaram a anistia

26. A chamada "lei de anistia" é um ato de poder emanado do regime militar que derrubou o governo constitucional do Doutor Salvador Allende. Tratam-se, portanto, de autoridades que carecem de todo título ou direito, pois não foram objeto de qualquer eleição ou designação, instalando-se, isso sim, no poder pela força, após deporem o governo legal, em violação à Constituição.

 

27. Um governo de fato carece de título jurídico porque, se um Estado adotou uma Constituição, tudo o que não esteja de acordo com#mo instrumento, também declare que o D.L. 2.191 que ditou é incompatível com as obrigações do Chile em função da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

 

28. A Comissão, nem mesmo com o propósito de preservar a segurança jurídica, pode colocar no mesmo pé de igualdade a jurisdicidade de um governo de jure e a arbitrariedade e a contrariedade a um direito de um governo usurpador, cuja possibilidade de existir é, por definição a origem da insegurança jurídica. Tais governos merecem o permanente repúdio em defesa do Estado Constitucional de Direito, e do respeito à vida democrática e ao princípio da soberania do povo baseado na plena vigência dos direitos humanos.

 

29. No caso presente, os beneficiários da anistia não foram terceiros alheios, e sim, os mesmos participantes dos planos governamentais do regime militar. Uma coisa é sustentar a necessidade e legitimizar os atos realizados pela sociedade em seu conjunto [para não cair no caos] ou os de responsabilidade internacional, porque não se pode selecionar as obrigações assumidas nesses campos, e outra muito diferente é estender igual tratamento aos que atuaram com o governo ilegítimo, em violação à Constituição e às leis chilenas.

 

30. A Comissão considera que seria absurdo pretender que o usurpador e seus seguidores pudessem invocar os princípios do Direito Constitucional que eles violaram, para obter os benefícios da segurança que só é justificável e merecida para aqueles que se ajustam rigorosamente a essa ordem. A atuação do usurpador não pode ter validade e não é legítima tanto per se como em benefício dos funcionários ilegais ou de facto porque, se aqueles que colaboram com esses governos têm assegurada a impunidade de sua conduta, obtida sob regime usurpador e ilegítimo, não haveria diferença entre o legal e o ilegal, entre o constitucional e o inconstitucional, e entre o democrático e o autoritário.

 

31. A ordem constitucional chilena deve assegurar necessariamente ao Governo o cumprimento dos seus fins fundamentais, desvinculando-o das limitações contrárias ao Direito e ilegítimas impostas pelo regime militar usurpador, pois não é juridicamente aceitável que este possa limitar a consolidação do sistema democrático no Governo constitucional que lhe segue, e nem pode fazer com que os atos do poder de facto gozem da plenitude dos atributos somente reconhecíveis, por si sós, em relação aos atos legítimos do poder de jure. O governo de jure reconhece sua legitimidade na vontade do povo que o elege, único titular da soberania, e não nas normas emanadas do usurpador.

 

b) O direito constitucional chileno

32. A posição expressa no parágrafo anterior é coerente com o Direito Constitucional chileno. A Constituição do Chile de 1833 dispunha, em seu artigo 158, que "Toda resolução que seja acordada pelo Presidente da República, o Senado ou a Câmara de Deputados, por presença ou requisição de um exército, de um general à frente de uma força armada, ou de alguma reunião do povo que, seja com armas ou sem elas, desobedecer as autoridades, é nula de direito e não pode produzir nenhum efeito". Por sua vez, a Constituição de 1925 declarava: "Nenhuma magistratura, nenhuma pessoa e nenhuma reunião de pessoas podem atribuir-se, nem mesmo a pretexto de circunstâncias extraordinárias, outra autoridade ou outros direitos que não os que lhes tenham sido expressamente conferidos pelas leis. Todo ato em contravenção a este artigo é nulo" [artigo 4].

 

Inclusive a própria "constituição" sancionada por decreto-lei do regime militar se expressa a respeito: "Nenhuma magistratura, nenhuma pessoa e nenhum grupo de pessoas podem atribuir-se, nem a pretexto de circunstâncias extraordinárias, outra autoridade ou outros direitos que não os que lhes tenham sido expressamente conferidos em virtude da constituição ou das leis. Todo ato em contravenção a este artigo é nulo e originará as responsabilidades e sanções assinaladas em lei" [artigo 7, parágrafo segundo].1/ Por sua vez, o artigo 5 do mesmo documento estabelece que "o exercício da soberania reconhece como limitação o respeito aos direitos essenciais que emanam da natureza humana", postulando que nenhum setor do povo e nenhum indivíduo pode atribuir-se o seu exercício.

 

c) Os direitos e liberdades fundamentais das pessoas e o Estado

33. Igualmente, os direitos e liberdades fundamentais não cessam em face de um governo de facto porque são anteriores ao Estado e à Constituição que os reconhece e garante, mas que não os cria. Por esse motivo, é errôneo afirmar que um regime de facto não tem limites em seu poder anômalo ou anticonstitucional. Segue-se que um governo que é acusado de violar sistematicamente os direitos fundamentais de seus governados, ao exculpar-se a si próprio mediante uma anistia, incorre em grave abuso de poder.

 

34. Nesse sentido, observa o professor Christian Tomuschat: "Sustentar que, em determinados casos, se deve obediência a leis viciadas e a seus implacáveis executores, equivaleria a fazer do Estado um fetiche de caráter divino não maculado nem pelos atos mais atrozes e odiosos" (ver "Sobre a resistência às violações aos direitos humanos", UNESCO, 1984, página 26).

 

d) O direito internacional dos direitos humanos

35. O direito internacional dos direitos humanos reafirma o conceito, à luz do que estabelecem os artigos XX da Declaração Americana e 23.1 a e b da Convenção, que não podem ser derrogados, tal como prescreve o artigo 27.2 desta última.

 

Outros instrumentos interamericanos reafirmam esse princípio, como é o caso do artigo 3 da Carta da OEA, que adota como base para o princípio de solidariedade dos Estados americanos o denominador comum do "exercício efetivo da democracia representativa".

 

A Corte Interamericana de Direitos Humanos

36. A Corte Interamericana de Direitos Humanos define como "lei" a "norma jurídica de caráter geral, dedicada ao bem comum, emanada dos órgãos legislativos constitucionalmente previstos e democraticamente eleitos e elaborada de acordo com o procedimento estabelecido pelas constituições dos Estados Partes para a formação das leis" (o grifo é nosso) (OC/6. parágrafo 38); definição à qual chegou com base na análise dos princípios de "legalidade" e de "legitimidade" e do regime democrático em que se haverá de entender o sistema interamericano de direitos humanos (OC/6, parágrafos 23 e 32), conforme deixa explícito em seu OC/13, parágrafo 25. Para a Corte, "o princípio de legalidade, as instituições democráticas e o estado de direito são inseparáveis" (OC/8, parágrafo 24). A adesão decidida ao regime democrático tem sido assinalada pela Corte: "A democracia representativa é determinante em todo o sistema de que a Convenção faz parte" (OC/13, parágrafo 34), o que completa seus critérios sobre "as justas exigências da democracia" que devem orientar a interpretação da Convenção, particularmente dos preceitos que guardem relação essencial com a preservação e o funcionamento das instituições democráticas (OC/5, parágrafos 44, 67 e 69). Também não se deve esquecer a doutrina da Corte que destaca a importância da legislatura eleita na tutela dos direitos fundamentais (OC/8, parágrafos 22 e 23) bem como a doutrina referente ao controle da legitimidade dos atos do Poder Executivo pelo Judiciário (OC/8, parágrafos 29 e 30; OC/9, parágrafo 20).

 

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos

 

37. A CIDH tem-se pronunciado sobre este tema em numerosas ocasiões. Afirmou, por exemplo, que "o quadro democrático é elemento necessário para o estabelecimento de uma sociedade política em que possa ocorrer a plenitude dos valores humanos" [ver "Dez Anos de Atividades, 1971-1981", página 331], ao aludir ao poder predominante que se adjudica a órgãos não-representativos da vontade popular [id. página 270], no relatório sobre o Panamá (1978), página 114, parágrafo 3. Relatório Anual 1978-80, página 123-124, analisando um projeto de constituição política para o Uruguai; no seu relatório sobre o Suriname, no que se refere à participação popular mesmo na elaboração dos textos constitucionais (1983), página 43, parágrafo 41; o sustentado em relação ao plebiscito no Chile, questionando sua validade por haver ocorrido durante a suspensão das liberdades públicas [Relatório 1978/80, página 115]; a decisão no caso Ríos Montt x Guatemala.

 

O sistema universal

 

38. Em relação ao sistema universal caberia mencionar: a) a Carta das Nações Unidas e seu Preâmbulo ("Nós, os povos das Nações Unidas..."), em sua referência à "livre autodeterminação dos povos" e ao "desenvolvimento e estímulo do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais de todos..."; b) a Declaração Universal, artigo 29; c) o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; e d) o que declarou a Comissão de Direitos Humanos no caso "Ngaluba x Zaire", parágrafos 8.2 e 10, sobre a negativa do direito de participação, em condições de igualdade, na direção dos assuntos públicos à raiz de sanções aplicadas a oito parlamentares.

 

Governo usurpador e democracia

 

39. Tendo em vista o exposto, a Comissão considera que a democracia representativa constitui o pressuposto essencial da organização política e jurídica dos Estados americanos e, por conseguinte, que tanto as ações de um governo usurpador ou de facto, ou como este, por si próprio, são incompatíveis com as exigências da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

 

B. Considerações gerais

40. A Comissão considera que, no presente caso, a petição encerra uma questão de direito e procura determinar se o aludido decreto-lei e a forma como foi aplicado pelos tribunais chilenos é compatível com a Convenção, na medida em que não foi contestado nenhum dos fatos alegados e de que não é necessário confirmar fato nenhum.

 

41. Embora o Governo democrático tenha negado sua responsabilidade pelas ações perpretadas pela ditadura militar, reconheceu sua obrigação de investigar passadas violações de direitos humanos e estabeleceu a Comissão da Verdade para averiguar os fatos e publicar seus resultados. Como medida de reparação, o ex-Presidente Aylwin, em nome do Estado do Chile, pediu perdão aos familiares das vítimas. Além disso, o ex-Presidente protestou publicamente pela decisão da Suprema Corte, que determinou que o decreto-lei de anistia deveria ser aplicado de maneira a suspender todas as investigações dos fatos.2/ O Governo democrático, invocando a impossibilidade de modificar ou anular o decreto-lei de anistia e sua obrigação de respeitar as decisões do Poder Judiciário, alegou que as medidas que já adotou são tanto efetivas como suficientes para dar cumprimento às obrigações do Chile nos termos da Convenção e que tais medidas tornaram desnecessárias outras ações.

 

42. Os peticionários, embora reconheçam os esforços do Governo, sustentam que estes foram insuficientes e ineficientes e que cabe ao Governo a permanente obrigação de investigar inteiramente os fatos, estabelecer as responsabilidades e castigar os responsáveis por passadas violações aos direitos humanos.

 

43. A Comissão observa que, tal como demonstrado no título anterior, a adoção do decreto-lei de auto-anistia era conflitante com disposições constitucionais vigentes no Chile no momento em que este foi ditado. Não obstante, independentemente da legalidade ou constitucionalidade das leis no direito chileno, a Comissão é competente para examinar os efeitos jurídicos de uma medida legislativa, judicial ou de qualquer outra índole, quando esta seja incompatível com os direitos e garantias consagrados na Convenção Americana.3/

 

44. Em sua decisão referente à responsabilidade internacional pela expedição e aplicação de leis violatórias da Convenção (artigos 1 e 2 da Convenção), a Corte declarou: "Em conseqüência desta qualificação, poderá a Comissão recomendar ao Estado a derrogação ou reforma da norma violatória, para cujo fim é suficiente que tal norma tenha chegado, por qualquer meio ao seu conhecimento..."4/

 

45. O artigo 2 da Convenção estabelece a obrigação dos Estados Partes de adotar "as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias" para tornar efetivos os direitos e liberdades consagrados no Pacto. Portanto, a Comissão ou a Corte estão facultadas a examinar — à luz da Convenção — inclusive leis internas que, segundo se alegue, suprimam ou violem direitos e liberdades consagrados na mesma.5/

 

46. No exame desta matéria é importante considerar a natureza e a gravidade dos delitos que, segundo se alega, o decreto de anistia afetou. O governo militar que esteve à frente do país de 11 de setembro de 1973 a 11 de março de 1990 levou a cabo uma política sistemática de repressão que resultou em milhares de vítimas de "desaparecimentos", execuções sumárias ou extra-judiciais e torturas. A Comissão, ao se referir às práticas desse governo militar, indicou que:

 

... esse Governo [havia] empregado praticamente todos os meios conhecidos para a eliminação física dos dissidentes, entre os quais: desaparecimentos, execuções sumárias de indivíduos e de grupos, execuções decretadas em processos sem garantias legais e torturas.6/

47. Considera-se que alguns desses delitos revestem tamanha gravidade que justificaram a adoção, em vários instrumentos internacionais, de medidas específicas para evitar sua impunidade, incluindo a jurisdição universal e a imprescritibilidade dos delitos.7/

 

48. Quanto à prática de desaparecimentos, a Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos declarou que "... o desaparecimento forçado de pessoas na América é uma afronta à consciência do Hemisfério e constitui um crime de lesa-humanidade".8/ Em sua decisão de 1988 no "Caso Velásquez Rodríguez", a Corte Interamericana observou que a doutrina e a prática internacionais muitas vezes qualificaram os desaparecimentos como delito contra a humanidade. 9/ A Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas reafirma em seu Preâmbulo que "a prática sistemática de desaparecimentos forçados constitui um delito de lesa-humanidade".10/ A necessidade social do esclarecimento e investigação desses delitos não pode ser equiparada à de um simples delito comum.11/

 

a) A questão do decreto-lei de auto-anistia

49. O problema das anistias foi considerado pela Comissão em diversas oportunidades, por reclamações contra Estados Partes na Convenção Americana que, em busca de um mecanismo de pacificação e reconciliação nacional, decidiram anistiar, deixando em desamparo um setor em que muitas vezes existem vítimas inocentes da violência, que se vêem privadas do direito à justiça em suas justas reclamações contra os autores de excessos e atos de barbárie de que foram vítimas.12/

 

50. A Comissão assinalou reiteradamente que a aplicação das anistias torna ineficazes e sem valor as obrigações internacionais dos Estados Partes impostas pelo artigo 1.1 da Convenção; em consequência, constituem uma violação desse artigo e eliminam a medida mais efetiva para dar vigência a tais direitos, qual seja, o processo e o castigo dos responsáveis.13 /

 

51. Tal como os peticionários deixam perfeitamente esclarecido, não se trata de uma questão de violações aos direitos humanos decorrentes da detenção ilegal e do desaparecimento das 70 pessoas identificadas na denúncia, praticadas por agentes do Estado do Chile durante o passado regime militar, e sim, fundamentalmente de dois problemas: A) a não revogação — e a conseqüente manutenção da vigência do decreto-lei 2.191 de anistia, ditado em proveito próprio pelo governo militar, mas cuja vigência e aplicação continuaram durante o Governo democrático, inclusive depois que o Chile ratificou a Convenção Americana e assumiu o compromisso de cumpri-la; e B) falta de julgamento, identificação dos responsáveis e sanção dos autores desses atos, desde o governo militar até este Governo democrático e constitucional.

 

52. O Governo democrático do Chile reconheceu a estreita relação que existe, neste caso, entre anistia e impunidade e, por isso, emitiu a Lei Nº 19.123, que indeniza os familiares das vítimas de violações aos direitos humanos e considera como unidade o ato violatório dos direitos das vítimas, desde o momento da sua detenção até a denegação de justiça.

 

53. Os fatos denunciados contra o Governo democrático consistem, de um lado, na falta de cumprimento das obrigações assumidas pelo Estado do Chile, de adequar as normas do seu direito interno aos preceitos da Convenção Americana, o que viola seus artigos 1.2 e 2 e, do outro, sua aplicação, que gera denegação do direito à justiça em agravo às 70 pessoas desaparecidas e citadas na denúncia, o que viola os artigos 8 e 25, em conexão com o artigo 1.1.

 

54. A Comissão levou em conta que o Governo democrático dirigiu-se à Suprema Corte em março de 1991, exortando-a, especialmente nos casos de pessoas desaparecidas, a fazer justiça e considerar que a auto-anistia vigente não devia e não podia representar obstáculo para a investigação judicial e a determinação das responsabilidades correspondentes e que, além disso, vetou uma lei que poderia ter contribuído com a anistia.

 

55. O Governo do Chile não só está de acordo com os peticionários quanto à violação do direito em que incorre o decreto-lei 2.191, como também considera que, além dos artigos por estes citados como pertinentes para apoiar sua petição, a Comissão também deveria levar em conta o que estabelece o artigo 8, inciso 1, que garante o direito de toda pessoa a ser ouvida perante um tribunal competente, independente e imparcial, para a determinação dos seus direitos.

 

56. Merecem reconhecimento especial a criação da Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação e, também, a tarefa que esta desenvolveu reunindo antecedentes sobre violações aos direitos humanos e os detidos desaparecidos, cujo relatório individualizou as vítimas — e entre elas, os casos das 70 pessoas citadas na denúncia — e procurou estabelecer seu paradeiro e medidas de reparação e reivindicação e para cada uma delas; reconheceu que os casos dessas pessoas constituíam graves violações aos direitos fundamentais, das quais participaram agentes do Estado; e reconheceu, por estarem em lugar incerto e não sabido, sua condição de "detidos desaparecidos".

 

57. Também merece idêntico reconhecimento a Lei Nº 19.123, iniciativa do Governo democrático, que concede aos familiares das vítimas: a) pensão única vitalícia em montante não inferior à retribuição média de uma família do Chile; b) procedimento especial para a declaração de presunção de morte; c) atenção especializada do Estado em matéria de saúde, educação e habitação; d) perdão de dívidas educacionais, habitacionais, tributárias e de outra natureza com organismos estatais; e e) isenção do serviço militar obrigatório para os filhos das vítimas.

 

58. Contudo, essas medidas não são suficientes para garantir o respeito dos direitos humanos dos peticionários, tal como prescrevem os artigos 1.1 e 2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, enquanto o direito à justiça, que lhes cabe, não for satisfeito.

 

b) A denegação de justiça

59. A violação do direito à justiça e a conseqüente impunidade gerada no presente caso constituem uma concatenação de fatos que se iniciam, segundo ficou estabelecido, quando o governo militar expediu em benefício próprio e no dos agentes do Estado que cometeram violações aos direitos humanos uma sucessão de normas destinadas a formar uma complexa rede jurídica de impunidade, que tem seu início formal em 1978, ano em que o governo militar sancionou o decreto-lei Nº 2.191, de auto-anistia.

 

60. O Governo democrático também se soma à condenação do decreto-lei de anistia expressando perante esta Comissão que: "Não pode o Governo constitucional senão concordar com os peticionários quanto ao caráter do decreto-lei Nº 2.191, de 19 de abril de 1978, que visou a exoneração de responsabilidade dos crimes mais graves cometidos em nossa história".

 

61. Em conseqüência, o Estado chileno, por intermédio do seu Poder Legislativo, é responsável pela não-adequação ou não-revogação do decreto-lei de facto Nº 2.191, de 19 de abril de 1978, o que resulta em violação das obrigações assumidas por esse Estado, de adequar suas normas aos preceitos da Convenção, violando seus artigos 1.1 e 2.

 

c) A violação do direito a garantias judiciais (artigo 8)

 

62. Denuncia-se que as conseqüências jurídicas da auto-anistia são incompatíveis com a Convenção, já que transgridem o direito da vítima a julgamento justo consagrado em seu artigo 8.

 

63. O artigo protege o direito da pessoa a processo justo "na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela...". Cabe ao Estado a obrigação de oferecer recursos efetivos (artigo 25), que devem ser "consubstanciados em conformidade com as regras do devido processo legal" (artigo 8.1).14/ É importante assinalar que, em muitos sistemas de direito penal da América Latina, a vítima tem o direito de formular acusações numa ação penal. Em sistemas como o chileno, que o permite, a vítima de um delito tem o direito fundamental de acudir aos tribunais.15/ Tal direito é essencial para ativar o processo penal e levá-lo adiante. O decreto de anistia afetou claramente o direito das vítimas, vigente na lei chilena, de iniciar uma ação penal perante os tribunais contra os responsáveis por violações aos direitos humanos.

 

64. Mesmo que não fosse assim, tratando-se, como neste caso, de crimes de ação pública, ou seja, processáveis de ofício, o Estado tem a obrigação legal, indelegável e irrenunciável, de investigá-los. Por essa razão, em todo caso, o Estado chileno é titular da ação punitiva e da obrigação de promover e levar avante as diferentes etapas processuais, em cumprimento à sua obrigação de garantir o direito à justiça da vítima e de seus familiares. Esta responsabilidade deve ser assumida pelo Estado como dever jurídico próprio e não como uma gestão de interesses particulares ou dependente da iniciativa dos interessados ou do oferecimento de provas pelos mesmos.16/

 

65. Os peticionários também alegam que o decreto-lei de auto-anistia impediu os familiares das vítimas de obter reparação nos tribunais civis. O artigo 8 estabelece que:

 

Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determine seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza...

66. No Chile, a possibilidade de iniciar uma ação civil não está necessariamente vinculada ao resultado do processo penal. Apesar disso, a demanda civil deve ser interposta contra determinada pessoa, para que se possa estabelecer a responsabilidade pelos fatos alegados e determinar o pagamento das indenizações. A falta de investigação pelo Estado tornou virtualmente impossível estabelecer a responsabilidade perante os tribunais civis. Não obstante haver a Suprema Corte ressaltado o fato de que os procedimentos civis e penais são independentes,17/ a maneira como foi a anistia aplicada pelos tribunais afetou claramente o direito de obter reparação nos tribunais civis, dada a impossibilidade de individualizar ou identificar os responsáveis.

 

67. O decreto-lei de facto 2.191, tal como aplicado e interpretado pelos tribunais do Estado chileno, impediu os peticionários de exercer seu direito a processo justo para a determinação dos seus direitos civis, consagrado no artigo 8.1 da Convenção.

 

d) A violação ao direito de proteção judicial (artigo 25)

 

68. Denuncia-se que as vítimas e suas famílias foram privadas do seu direito a efetivo recurso em relação aos direitos violados, consagrados no artigo 25 da Convenção.

 

69. A Corte Interamericana de Direitos Humanos afirmou que os Estados têm a obrigação legal de oferecer recursos internos. Sobre o assunto, a Corte assinalou que:

 

Segundo (a Convenção), os Estados Partes obrigam-se a oferecer recursos judiciais efetivos às vítimas de violação dos direitos humanos (artigo 25), recursos que devem ser consubstanciados em conformidade com as regras do devido processo legal (artigo 8.1), tudo isso no âmbito da obrigação geral que cabe aos mesmos Estados de garantir os livre e pleno exercício dos direitos reconhecidos pela Convenção a toda pessoa que se encontre sob sua jurisdição (artigo 1).18/

70. A seguir, a Corte estabeleceu: "que sejam adequados significa que a função desses direitos, dentro do sistema de direito interno, seja idônea para proteger a situação jurídica infringida".19/

 

... A inexistência de um recurso efetivo contra as violações aos direitos reconhecidos pela Convenção constitui uma transgressão da mesma pelo Estado Parte em que tal situação ocorra. Nesse sentido, cumpre salientar que, para que tal recurso exista, não basta que esteja previsto pela Constituição ou pela lei ou que seja formalmente admissível, requerendo-se, isso sim, que seja idôneo para estabelecer se ocorreu violação aos direitos humanos e oferecer o necessário para remediá-la.20/

71. A auto-anistia foi um procedimento geral mediante o qual o Estado renunciou à punição de certos delitos graves. Além disso, o decreto, da maneira como foi aplicado pelos tribunais chilenos, não apenas impediu a possibilidade de sancionar os autores de violações de direitos humanos, como também assegurou que nenhuma acusação fosse formulada e que não se conhecessem os nomes dos seus responsáveis (beneficiários) de forma que, legalmente, estes foram considerados como se não houvessem perpretado qualquer ato ilegal. O decreto-lei de anistia deu lugar a uma ineficácia jurídica dos delitos e deixou as vítimas e suas famílias à margem de qualquer recurso judicial capaz de identificar os responsáveis pelas violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura militar e de lhes impor os castigos correspondentes.

 

72. Ao promulgar e fazer cumprir o decreto-lei 2.191, de facto, o Estado chileno deixou de garantir os direitos à proteção judicial estipulados no artigo 25 da Convenção.

 

 

e) O não-cumprimento da obrigação de investigar

 

73. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sua interpretação do artigo 1.1 da Convenção, estabelece que "A segunda obrigação dos Estados Partes consiste em garantir o livre e pleno exercício dos direitos reconhecidos na Convenção a toda pessoa sujeita à sua jurisdição... Em conseqüência desta obrigação, devem os Estados prevenir, investigar e sancionar toda violação dos direitos reconhecidos pela Convenção...".21/ A Corte continua, então, a analisar esse conceito em vários parágrafos:

 

"O decisivo é esclarecer se determinada violação aos direitos humanos reconhecidos pela Convenção ocorreu com o apoio ou a tolerância do poder público ou se sua atuação deu margem ao cumprimento da transgressão em defeito de toda prevenção ou impunemente".22/ "Cabe ao Estado o dever jurídico de prevenir, razoavelmente, as violações dos direitos humanos, investigar seriamente, com os meios ao seu alcance, as violações que tenham sido cometidas no âmbito da sua jurisdição a fim de identificar os responsáveis, impor as sanções pertinentes e assegurar à vítima com a adequada reparação".23/ "Se o aparelho do Estado atua de modo tal que a violação permaneça impune e não se restabeleça, na medida do possível, a plenitude dos direitos da vítima, é possível afirmar que o dever de garantir seu livre e pleno exercício às pessoas sujeitas à sua jurisdição não foi cumprido".24/ Quanto à obrigação de investigar, a Corte assinala que a investigação "... deve ter um sentido e ser assumida pelo Estado como um dever jurídico próprio e não como simples gestão de interesses particulares, que dependa da iniciativa processual da vítima ou dos seus familiares ou da apresentação privada de elementos probatórios, sem que a autoridade pública busque efetivamente a verdade".25/

74. A Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação estabelecida pelo Governo democrático para investigar violações aos direitos humanos ocorridas no passado, ocupou-se de uma boa parte do total de casos e destinou reparações às vítimas ou seus familiares. Não obstante, a investigação que essa Comissão realizou a respeito de casos de violação do direito à vida e de vítimas de outras violações, principalmente de torturas, estas viram-se desprovidas de recurso legal e de qualquer outro tipo de compensação.

 

75. Além disso, essa Comissão não era um órgão judicial e sua atividade estava limitada ao estabelecimento da identidade das vítimas de violações ao direito à vida. Devido à natureza do seu mandato, a Comissão não estava habilitada a publicar os nomes dos autores dos delitos e a impor qualquer tipo de sanção. Por essa razão, em que pese a sua importância para o estabelecimento dos fatos e a oferta de compensação, não se pode considerar que a Comissão da Verdade substitua adequadamente um processo judicial.

 

76. Em seu relatório, a mesma Comissão da Verdade concluiu que:

 

Do ponto de vista estritamente preventivo, esta Comissão estima que um elemento indispensável para obter a reconciliação nacional e assim evitar a repetição dos fatos acontecidos seria o exercício completo, pelo Estado, de suas faculdades punitivas. Uma cabal proteção dos direitos humanos só é concebível no Estado de direito. E um Estado de direito supõe a submissão de todos os cidadãos à lei e aos tribunais de justiça, o que envolve a aplicação de sanções previstas na legislação penal, igual para todos, aos transgressores das normas que protegem o respeito aos direitos humanos.26/

77. O reconhecimento de responsabilidade efetuado pelo Governo, a investigação parcial dos fatos e o posterior pagamento de compensações não são, por si sós, suficientes para dar cumpridas as obrigações previstas na Convenção. Nos termos do seu artigo 1.1, cabe ao Estado a obrigação de investigar as violações que tenham sido cometidas no âmbito de sua jurisdição, a fim de identificar os responsáveis, e impor sanções pertinentes e assegurar a adequada reparação da vítima.27/

 

78. Ao sancionar o decreto-lei 2.191, de facto, sobre auto-anistia, o Estado do Chile deixou de cumprir plenamente a obrigação estipulada no artigo 1.1 da Convenção e violou, em prejuízo dos reclamantes, os direitos humanos que a Convenção Americana reconhece.

 

 

f) A responsabilidade internacional do Estado

 

79. O que está sendo questionado neste caso não é a responsabilidade do Governo do Chile e a dos demais órgãos que exercem o poder público, e sim a responsabilidade internacional do Estado chileno.

 

80. No desenvolvimento do presente caso ficou constatada, e o Governo não negou este fato em nenhum momento, a atuação ativa e passiva de agentes do Estado chileno na autoria e participação dos fatos denunciados pelos peticionários.

 

81. O Governo concorda que o decreto-lei 2.191 é contrário ao Direito; reconhece a estreita relação entre anistia e impunidade; admite a prática sucessiva destes atos de violação do direito à justiça como unidade do ato violatório dos direitos das vítimas, desde sua detenção até a delegação de justiça, manifestando que o decreto-lei de anistia "integra numa só unidade uma política de violações maciças e sistemáticas dos direitos humanos que, nos casos dos desaparecimentos forçados, começa com o seqüestro da vítima, continua com o seu ocultamento e a seguir com sua morte, prossegue com a negação do fato e conclui com a anistia dos agentes públicos"28./

 

82. O Governo do Chile considera que, como órgão do Poder Executivo, nenhuma das violações denunciadas pelos peticionários lhe é imputável, nem lhe cabe responsabilidade alguma porque, no tocante à auto-anistia, o Governo democrático não decretou nenhuma lei de anistia; e no tocante à revogação dessa lei, por não lhe ser possível dada as razões expostas; que esta mesma limitação existe quanto à adequação das normas internas às da Convenção Americana sobre Direitos Humanos; que, no tocante à aplicação da auto-anistia, não pode atuar senão dentro da lei e da Constituição, que definem o quadro de sua competência, responsabilidade e capacidade.

 

83. A circunstância de o decreto-lei 2.191 ter sido imposto pelo regime militar não pode levar à conclusão de que seja impossível separar esse decreto e seus efeitos legais da prática geral das violações dos direitos humanos ocorridas nessa época. Embora o decreto-lei tenha sido sancionado durante o regime militar, continua a ser aplicado sempre que se formula aos tribunais chilenos uma denúncia contra o suposto perpetrador de uma violação de direitos humanos. O que foi denunciado como incompatível com a Convenção são as contínuas conseqüências jurídicas do decreto-lei de auto-anistia 29./

 

84. Embora os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário sejam distintos e independentes internamente, os três poderes do Estado compõem uma só unidade indivisível do Estado do Chile que, no plano internacional, não admite tratamento em separado, razão pela qual o Chile assume a responsabilidade internacional pelos atos de seus órgãos do poder público que transgridem os compromissos internacionais decorrentes dos tratados internacionais.30/

 

85. O Estado chileno não pode justificar, da perspectiva do Direito Internacional, o não-cumprimento da Convenção alegando que a auto-anistia foi decretada pelo governo anterior ou que a abstenção e omissão do Poder Legislativo de revogar o citado decreto-lei ou que os atos do Poder Judiciário que confirmam a sua aplicação nada têm a ver com a posição e a responsabilidade do Governo democrático, já que a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados estabelece, no seu artigo 27, que um Estado Parte não poderá invocar as disposições de um direito interno como justificação do não-cumprimento de um tratado.

 

86. A Corte Interamericana de Direitos Humanos sustentou que: "É um princípio de direito internacional que o Estado responde pelos atos dos seus agentes, praticados ao amparo do seu caráter oficial, e pelas omissões dos mesmos, mesmo que atuem fora dos limites de sua competência ou em violação ao direito interno".31/

 

87. A responsabilidade pelas violações ocasionadas pelo decreto-lei 2.191, de facto, promulgado pelo regime militar que deteve o poder de forma antijurídica e arbitrária, não revogado pelo Poder Legislativo atual e aplicado pelo órgão jurisdicional recai sobre o Estado do Chile, com prescindência do regime que a sancionou ou do Poder do Estado que a aplicou ou possibilitou sua aplicação. Não pode haver qualquer dúvida a respeito da responsabilidade internacional do Estado chileno pelos fatos que, embora tenham ocorrido durante o governo militar, ainda não puderam ser investigados e sancionados. De acordo com o princípio da continuidade do Estado, a responsabilidade internacional existe independentemente das mudanças de governo. Nesse sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos assinalou que: "Segundo o princípio do direito internacional da identidade ou continuidade do Estado, a responsabilidade subsiste independentemente das mudanças de governo com o passar do tempo e, concretamente, entre o momento em que ocorre o fato ilícito que gera a responsabilidade e o momento em que esta é declarada. O anterior também é válido no campo dos direitos humanos, ainda que a atitude do novo governo, do ponto de vista ético ou político, seja muito mais respeitosa desses direitos do que a do governo na época em que ocorreram as violações".32/

 

88. Confirmam o incumprimento, pelo Estado do Chile, do disposto nos artigos 1 e 2 da Convenção os seguintes fatos: que o decreto-lei 2.191 emitido pela ditadura militar que se instalou no Chile entre 1973 e 1990 não foi revogado pelo atual Poder Legislativo, e se mantém vigente; que a citada legislação interna do Chile não foi adequada às normas da Convenção; e que a mesma é aplicável para os processos judiciais em trâmite, conforme declarou o seu atual Poder Judiciário.

 

89. A não-revogação do decreto-lei de facto após a ratificação da Convenção, a falta de adaptação das normas internas para tornar a Convenção efetiva no Chile, assim como sua aplicação ao caso concreto em estudo, atribuídos aos Poderes Legislativo e Judiciário, segundo suas respectivas competências, fazem com que o Estado chileno incorra em infração da Convenção.

 

90. Embora a auto-anistia tenha sido promulgada antes do início do Governo democrático e da ratificação da Convenção, a responsabilidade que se imputa ao Estado do Chile por esta questão decorre do fato de sua legislação interna não ter sido ajustada aos termos da Convenção e que, ao ser declarada [de forma arbitrária] constitucional pelo Poder Judiciário, seus efeitos se mantiveram Plidariedade dos Estados americanos repousa no denominador comum do "exercício efetivo da democracia representativa" (Carta da OEA, artigo 3) e porque "Nenhum problema experimentado pelos Estados membros justifica o rompimento do regime democrático representativo" (Declaração de Manágua, AG/OEA, Nicarágua, 1993).

 

 

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* O Decano Claudio Grossman, de nacionalidade chile, não participou do debate nem da votação deste caso, de acordo com o artigo 19 do Regulamento da Comissão.

1. Constituição Política da República do Chile, sancionada mediante o Decreto-Lei Nº 3.464, de 11 de agosto de 1980.

2. Nas palavras do Presidente Aylwin: "A justiça também exige que se esclareça o paradeiro dos desaparecidos e que se determinem as responsabilidades individuais. Quanto ao primeiro, a verdade estabelecida no relatório (da Comissão da Verdade e Reconciliação) é incompleta, já que, na maioria dos casos de detidos-desaparecidos e executados sem entrega dos seus restos aos familiares, a Comissão não teve meios para encontrar seu paradeiro".

3. Corte Interamericana de Direitos Humanos, OC/13, de 16 de julho de 1993, em que declarou "A Comissão é competente, nos termos das atribuições que lhe são conferida pelos artigos 41 e 42 da Convenção, e para qualificar qualquer norma de um direito interno de um Estado Parte como violatória das obrigações que este assumiu ao ratificá-la" (Parte resolutiva I).

4. Corte Interamericana de Direitos Humanos, "Responsabilidade internacional pela expedição e aplicação de leis violatórias à Convenção" (artigos 1 e 2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), Parecer Consultivo OC/14, de 9 de dezembro de 1994, parágrafo 39.

5. Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relatório Anual 1992-93, Relatório 29/92, parágrafo 32.

6. Inter-American Yearbook on Human Rights/Anuário Interamericano de Direitos Humanos, 1985, Martinus Nijhoff Pub., 1987, página 1063.

7. A Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura e a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas estabelecem jurisdição universal para os delitos em questão (Artigo 11 e artigos V e VI respectivamente). A Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas também estabelece, no seu artigo VII, a inaplicabilidade das prescrições ou, sendo impossível, a aplicação de limitações correspondentes aos delitos mais graves.

8. Resolução AG/RES. 666 (XIII-O/83).

9. Caso Velásquez Rodríguez, sentença de 29 de julho de 1988, série C, Nº 4, parágrafo 153.

10. Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas, resolução adotada na sétima sessão plenária, em 9 de junho de 1994. OEA/Ser.P AG/doc.3114/94 rev.

11. Ver: AG/RES. 443 (IX-O/79); 742 (XIV-O/84); 950 (XVIII-O/88); 1022 (XIX-O/89); 1044 (XX-O/90) e CIDH, relatórios anuais, 1978; 1980/81; 1981-82; 1985-86; 1986-87 e especiais, tal como o da Argentina (1980), Chile (1985) e Guatemala (1985), todos aprovados pela Assembléia Geral.

12. Ver o Relatório Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 1985-1986, página 204.

13. Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relatórios 28/92 (Argentina) e 29/92 (Uruguai).

14. Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso Velásquez Rodríguez, Exceções Preliminares, sentença de 26 de junho de 1987, parágrafo 91.

15. Código de Processo Penal do Chile, Título II, "Da Ação Penal e da Ação Civil no Processo Penal", artigos 10/41.

16. Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso Velásquez Rodríguez, sentença de 29 de julho de 1988, parágrafo 177.

17. Suprema Corte do Chile, decisão sobre recurso de inaplicabilidade do decreto-lei 2.191, 24 de agosto de 1990, parágrafo 15. Mesma Corte, decisão sobre recurso de esclarecimento de 28 de setembro de 1990, parágrafo 4.

18. Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso Velásquez Rodríguez, Exceções Preliminares, parágrafo 91.

19. Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso Velásquez Rodríguez, sentença de 29 de julho de 1988, parágrafo 64.

20. Corte Interamericana de Direitos Humanos, OC-9/87, parágrafo 24.

21. Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso Velásquez Rodríguez, sentença de 29 de julho de 1988, parágrafo 166.

22. Idem, parágrafo 173.

23. Idem, parágrafo 174.

24. Idem, parágrafo 176.

25. Idem, parágrafo 177.

26. Relatório Rettig, fevereiro de 1991, Tomo 2, página 868.

27. Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso Velásquez Rodríguez, sentença de 29 de julho de 1988, parágrafo 174.

28. Governo do Chile, nota de 20 de maio de 1994, parágrafo 17, página 5.

29. Ver também: Corte Interamericana de Direitos Humanos, relatórios 28/92 e 29/92.

30. Brownlie: Principles of Public International Law, Clarendon Press, Oxford, 1990, 4ª Edição, páginas 446-452. Benadava: Derecho Internacional Público, Ed. Jurídica de Chile, 1976, página 151.

31. Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso Velásquez Rodríguez, sentença de 29 de julho de 1988, parágrafo 170.

32. Idem, parágrafo 184.

 

 

VOTO CONCORRENTE DO COMISSIONADO

DOUTOR OSCAR LUJÁN FAPPIANO

 

 Endosso plenamente o relatório da Comissão. Desejo simplesmente fazer os seguintes acréscimos às "considerações preliminares" constantes do capítulo VII, Seção A do mesmo:

 

À GUISA DE INTRÓITO

 

1. É conveniente salientar que a incumbência da Comissão, na análise da questão levada ao seu conhecimento consiste em determinar o sentido das normas da Convenção Americana segundo os métodos de interpretação proporcionados pela ciência jurídica e que, nessa tarefa, não a predispõe nem conotações ideológicas que não professa nem inclinações afetivas de adesão ou repúdio a um governo, pessoa ou grupo de pessoas, que não possui.

 

AUTORIDADES QUE EXPEDIRAM A ANISTIA. QUALIDADE

 

2. Entendido o acima exposto, cumpre estabelecer, ab initio, que a chamada "lei" de anistia constitui um ato de poder emanado das autoridades surgidas do golpe militar que destituiu o governo constitucional do Doutor Salvador Allende e que, por conseguinte, carecem de qualquer título ou direito pois não foram eleitas nem designadas de maneira alguma mas se instalaram no poder pela força depondo o Governo legal, em violação da constituição. Motivo por que, em estrita ortodoxia jurídica, se trata de um "governo usurpador".

 

3. Com efeito, embora comumente conhecidos sob a denominação genérica de governos de facto, há duas espécies de governos não-legais: os de facto e os usurpadores. O primeiro é aquele que, embora não tenha sido designado de acordo com as normas da constituição e as leis vigentes, atua "sob título aparente" porque sua autoridade advém de uma designação ou eleição ordinária. O segundo, porém, carece de qualquer título, pois não foi nem eleito nem designado de maneira alguma e se instala no poder pela força.1

 

4. Um governo de fato não é de direito, porque está fora do direito ou contra ele, porque carece de título jurídico e porque, se um Estado tem uma constituição, tudo o que a excede é ilegal. Não está na letra nem no espírito constitucional o derrocamento do governo que institui. A instalação de um governo de fato é produto antes da força que do consentimento, o que não escandaliza de modo algum aqueles que pensam que a força é a fonte de todo direito e que o "estado de direito" e o "império da lei" são simples "esquemas" que caem demolidos ante o "realismo" das ditaduras que assolaram nosso Hemisfério.2

 

5. Entretanto, àqueles que isso afirmam é preciso responder com as palavras de Bluntschli: "Assim como não reconhecem mais direitos que os do triunfo momentâneo, assim também não admitem outro erro que o da derrota. Toda rebelião merece a seus olhos castigo se fracassa em seus intentos, mas é realmente legal se alcança a vitória. Toda usurpação é para eles condenada se morre na contenda, mas é por eles reconhecida se chega a bom termo. O fenômeno mutável também é, a seus olhos, a única norma, mesmo com respeito ao direito. Deixam-se levar pela corrente da opinião e mudam de cor e sentimento por qualquer comoção que tenham. Querem fazer crer que defendem o estado de coisas existente, mas na verdade o vão destruindo. Se vangloriam de sempre seguir a viva transformação das coisas e, no entanto, rendem homenagem tão somente ao que o presente tem à vista. Não apreciam elemento algum ético-intelectual do direito".3

 

GOVERNOS ILEGAIS, INVALIDADE DE SEUS ATOS

 

6. Os atos do usurpador não têm valor jurídico algum, seja qual for sua natureza. Nem sequer se pode falar de "legalidade objetiva", uma vez que a observância das formas e da "legalidade de fundo" são insuficientes quando falta a legalidade de um funcionário, pois sempre se requer que o órgão tenha origem constitucional. Tampouco se pode falar de leis ou "decretos-leis" e, muito menos, considerar esses atos de "legislação delegada", pois o Congresso nada delegou nem pode delegar em regimes de facto.4

 

7. Nem mesmo com o louvável propósito de preservar a segurança jurídica, pode-se pôr em pé de igualdade a legalidade constitucional de um governo de jure com a ilegalidade autoritária e inconstitucional de um governo usurpador, cuja possibilidade de existir é, por antonomásia, a mãe da insegurança jurídica; porque o resultado de sua consagração é abrir um aval não-desejado ao apoio cúmplice de tais governos, que merecem o permanente repúdio em defesa do estado de direito, da ordem constitucional, do respeito à vida democrática e do princípio da soberania do povo baseado na vigência plena dos direitos humanos. Porque, se aqueles que colaboram com tais governos têm assegurada a impunidade de suas condutas obtida à sombra do regime usurpador e ilegítimo, não haverá diferença entre o bom e o mau, o legal e o ilegal, entre o constitucional e o inconstitucional, entre o justo e o injusto, entre o democrático e o autoritário e não haveria razão para se negar a aceitar a cumplicidade com tais regimes ilegítimos. Que segurança jurídica poderia haver se é à custa de pôr em pé de igualdade axiológica a ordem de jure — que importa consagrar a segurança sobre a base essencial do direito constitucional — e a ordem de facto ou do usurpador que veio interrompê-la ou violá-la?

 

8. Não se pode dar patente de legítimo àquele que nasceu como fruto espúrio da ruptura da legalidade.

 

9. Não pode ser apagado o limite nítido que separa uma ordem constitucional daqueles que não aceitam conviver sob seu sistema de liberdades, de direitos e garantias, que foi a conquista de tantas lutas e sofrimentos dos homens e mulheres de nosso Hemisfério por viver sob a tolerância pacífica e o respeito mútuo de nossa dignidade humana.

 

10. Daí que o primordial a ser realçado seja a inviolabilidade do regime jurídico concebido como estado de direito. Ante os atos e supostas leis de um governo imposto unicamente pela força, o primeiro que se deve exaltar e reconhecer, sem hesitação, é sua patente invalidade, sua absoluta nulidade. Nem os mais mínimos laivos de legitimidade se pode sequer sugerir com respeito a eles, uma vez que são o inaceitável resultado da fraude contra a lei fundamental, pilar da segurança jurídica.

 

11. Com maior razão neste caso, em que os beneficiários da anistia não são terceiros e sim partícipes dos planos do usurpador. Porque uma coisa é defender a necessidade de legitimar os atos da sociedade em conjunto ou os de responsabilidade internacional, uma vez que não se pode eludir as obrigações assumidas nesses campos sem cair no caos, e outra muito distinta é dispensar igual tratamento àqueles que significaram cumplicidade com o governo ilegítimo. É simplesmente absurdo pretender que o usurpador e seus sequazes possam invocar os princípios do direito constitucional, que eles mesmos violaram, para obter os benefícios da segurança somente justificável e merecida para aqueles que se ajustam rigorosamente a essa ordem. A cumplicidade e a má-fé nunca se protegem, nem mesmo nos atos ordinários. O delito não pode criar direitos.

 

12. Trata-se de postular a correta inteligência da Constituição, que parte da necessidade de invalidar tudo o que a lese ou contradiga. Trata-se de aplicar o peso da lei quando esta recobrou a plenitude de sua vigência. Trata-se, em suma, de impor o regime democrático, desde que recuperou seu vigor, que jamais deveria haver perdido e cuja permanência deve a Comissão promover e defender, pois a solidariedade dos Estados americanos se assenta no denominador comum do "exercício efetivo da democracia representativa" (Carta da OEA, artigo 3) e porque "nenhum problema que experimentem os Estados membros justifica o rompimento do regime democrático representativo" (Declaração de Manágua. Assembléia Geral da OEA, Nicarágua, 1993).

 

13. Em face do que foi declarado no trâmite do presente caso, no sentido de uma impossibilidade de revogar a auto-anistia sancionada, cabe responder que a ordem constitucional recuperada deve assegurar necessariamente ao governo o cumprimento dos seus fins fundamentais, desvinculando-os das limitações inconcebíveis impostas pelo usurpador. Tudo, em troca, estremeceria se não fosse assim, Isto se harmoniza, por exemplo, com doutrina pacífica da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, já assentada no caso "Horn x Lockhardt", de 1873: "Admitimos que os atos cometidos durante a guerra por esses Estados (Confederados) como entidades individuais e pelos diferentes departamentos do seu governo: o executivo, o legislativo e o judiciário, devem ser considerados em geral como válidos e obrigatórios, desde que não afetem ou tendam a afetar a supremacia da autoridade nacional e dos justos direitos garantidos pela Constituição aos cidadãos". Na mesma linha de pensamento, a Suprema Corte da Argentina sustentou que negar ao governo da Constituição a anulação da vigência dos seus efeitos implicaria, por certo, "em limitá-lo nocivamente na obtenção da consolidação do sistema democrático e, além disso, significaria outorgar — aos atos do poder de fato — a plenitude dos atributos só razoavelmente atribuíveis, por si próprios, aos atos legítimos do poder de jure".5

 

14. Mesmo os mais destacados defensores da continuidade jurídica do Estado, só admitem a validade dos atos do governo de fato em relação a terceiros, pois diferenciam claramente o funcionário com "investidura plausível" ou com "cor de título" do "usurpador". Tal como assinala Antokoletz, "o modelo anglo-americano só declara válidos os atos dos funcionários de facto naquilo que afetem o público; ou seja, em benefício do público. Não os declara legítimos por si próprios ou em benefício do funcionário ilegal. A responsabilidade deste último por desempenhar indevidamente funções públicas não desaparece".6

 

O DIREITO CONSTITUCIONAL AMERICANO

 

15. O direito constitucional dos Estados da região concorda com essa doutrina. Antokoletz ensina que aqueles que consideram ilegítimo o poder não emanado da Constituição declaram nulos todos os seus atos. As constituições de Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Peru, El Salvador, Venezuela e Chile estabelecem expressamente essa nulidade.7

 

16. Se efetuássemos um resumo das constituições dos Estados Membros da Organização, veríamos confirmadas essa asseveração. A tese da nulidade dos atos do usurpador está consagrada nas seguintes: Bolívia (1967), artigo 3; Costa Rica (1949), artigo 10 (anterior, artigo 17); Chile (1980), artigos 5 e 7; Dominicana (1966), artigo 99; Guatemala (1985), artigo 152; Honduras (1982), artigos 2 e 3; Paraguai (1992), artigo 138; Peru (1993), artigos 45 e 46; Venezuela (1961), artigos 119 e 120. Com as reformas introduzidas em seu texto, em 1994, a Constituição argentina incorporou disposição semelhante, tornando explícita a antes chamada "cláusula não-escrita" como resultado lógico do que preceituam seus artigos 22 e 33. Com efeito, o seu atual artigo 36, parágrafo primeiro, dispõe que: "Esta Constituição manterá seu império mesmo quando a sua observância seja interrompida por atos de força contra a ordem constitucional e o sistema democrático. Estes atos serão insanavelmente nulos". Em preceitos posteriores, sanciona seus autores como responsáveis e com a pena dos traidores infames da pátria.

 

17. Com base no citado preceito da Constituição anterior, o Congresso argentino pode revogar validamente a chamada "auto-anistia" ditada pelo regime militar (lei 23.040), bem como sancionar a Lei 23.062 que, em sua parte pertinente, estabeleceu o seguinte: "Em defesa da ordem constitucional republicana, com base no princípio da soberania popular, fica estabelecido que carecem de validez jurídica as normas e os atos administrativos emanados das autoridades de facto surgidas por um ato de rebelião... mesmo quando queiram fundamentar-se em pretensos poderes revolucionários...".

 

18. Em seu artigo 158, a Constituição do Chile, de 1833, declara: "Toda resolução acordada pelo Presidente da República, o Senado ou a Câmara de Deputados, devido à presença ou requisição de um exército, de um general à frente de uma força armada ou de alguma reunião do povo que, seja com armas ou sem elas, desobedecer as autoridades, é nula de direito e não pode produzir efeito nenhum".8 Por sua vez, a Constituição de 18 de novembro de 1925 também declara: "Nenhuma magistratura, nenhuma pessoa ou reunião de pessoas podem atribuir-se, nem mesmo a pretexto de circunstâncias extraordinárias, outra autoridade ou outros direitos que não os que lhes hajam sido expressamente conferidos pelas leis. Todo ato em contravenção a este artigo é nulo". E até a própria "constituição" política sancionada mediante o decreto-lei 3.464, de 11 de agosto de 1980, repete quase textualmente o artigo de sua predecessora (artigo 7).

 

19. Por conseguinte, para o direito constitucional americano, o conceito de povo é uno, porque o governo de facto é repugnante para a Constituição e, portanto, a deposição das autoridades constitucionais não cria direitos para o caudilho sedicioso ou rebelde. Com maior razão, não se poderá invocar a presunção de legitimidade porque já não se trata de apenas um funcionário de facto, e sim, de todo um regime extra ou anticonstitucional, porque um regime total de facto não é nem democrático nem republicano.

 

20. Muitos séculos atrás, os romanos inscreveram num arco a frase "Senatus populusque romanus" para expressar uma conjunção harmônica de governantes e governados.

 

21. Dentro do mesmo raciocínio sustentado pela Comissão no seu Relatório Nº 30/93, cabe argumentar também que, no presente caso, a nulidade dos atos do usurpador é uma cláusula constitucional consuetudinária de firme tradição no Hemisfério.9

 

22. Também cumpre trazer à colação a jurisprudência de alguns tribunais da Região. A Suprema Corte da Argentina não vacilou em declarar a ilegalidade do direito anormalmente criado pelos governos de facto e de não lhe outorgar a plenitude dos atributos que só são razoavelmente atribuíveis per se aos atos legítimos do poder de jure. Em suas próprias palavras: "Não se pode discutir a ilegitimidade de um ato ditado à sombra de um poder legislativo de facto que não é instituído pela nossa Carta Fundamental".10

 

23. Mas, acima de tudo, deve-se destacar a transcendental sentença da Corte Constitucional da Guatemala, emitida por motivo dos fatos protagonizados pelo ex-Presidente Serrano.11

 

O DEBATE PARLAMENTAR COMO GARANTIA

 

24. Além disso, o direito constitucional estabelece um procedimento iniludível para a formação e sanção das leis, o que representa, em essência, uma garantia; por essa razão, são nulos, de nulidade absoluta e insanável, os atos de poder impropriamente chamados de "leis" de um governo de facto elaborados no silêncio de uma sala, às vezes pelos próprios destinatários ou beneficiários, como nas melhores épocas das monarquias absolutas.

 

25. Falta, nesses atos de poder, a sempre saudável discussão pública. Essa discussão não apenas é uma homenagem à democracia, como também o cumprimento de preceitos constitucionais que tratam da formação e sanção das leis e que são autênticas garantias dos direitos e liberdades fundamentais, o que agora é reafirmado em virtude do disposto no artigo 23.1 da Convenção.

 

26. Por outro lado, a omissão do debate público ocasiona grave dano ao povo por acostumá-lo a não confiar no direito e por debilitar o sentido da legalidade, a "fibra legal", na expressão do filósofo Vanni.12

 

OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O ESTADO

 

27. Os direitos e liberdades fundamentais não cessam diante de um governo de facto por serem anteriores ao Estado e à Constituição, que apenas os reconhece e garante, mas que não os cria. Por isso, é errôneo afirmar que um regime de facto não sofre limites na sua potestade anômala ou anticonstitucional, ou seja, que pode proceder em de legibus solutus ou então, como naquela fórmula, quod principii placuit, legis habet vigorem. Segue-se que uma anistia ditada por um governo acusado de grave e sistemática violação dos direitos humanos, ou seja, que se exime de culpa a si mesmo, faça parte dessa prática e, portanto, constitua abuso de poder.

 

28. Nesse sentido, observa Tomuschat: "Quando o poder perpetua o genocídio, desaparecem as próprias aparências de legitimidade. sustentar que, em determinados casos, deve-se obediência a leis viciadas e a seus implacáveis executores, equivaleria a fazer do Estado um fetiche de natureza divina, não maculado nem pelos atos mais atrozes e odiosos".13

 

O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

 

29. Essa qualidade se confirma à luz das previsões do artigo 3 da Carta da OEA, dos artigos XX e XXVIII da Declaração Americana, do Preâmbulo da Convenção e dos seus artigos 23.1, a e b — irrevogável, nos termos dos seus artigos 27.2 — 29 e 32.

 

30. Para que os direitos humanos se convertam em realidade legal, o primeiro requisito é contar com um Estado de direito que, na verdade, engloba outros dois: a) para que um Estado seja livre, as pessoas que o integram devem ser capazes de decidir livremente seu destino (princípio da autodeterminação) e b) o povo deve definir livremente, por meio de leis gerais e impessoais, o sistema legal que estabeleça os direitos humanos (império da lei).14

 

A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

 

31. A tessitura que estamos sustentando encontra apoio nos pronunciamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que define como "lei" a "norma jurídica de caráter geral, atinente ao bem comum, emanada dos órgãos legislativos constitucionalmente previstos e democraticamente eleitos, e elaborada segundo o procedimento estabelecido pelas constituições dos Estados Partes para a formação das leis" (OC/6, parágrafo 38); definição à que chegou com base na análise dos princípios de legalidade e legitimidade e no regime democrático em que é preciso entender o sistema interamericano de direitos humanos (OC/6, parágrafos 23 e 32), conforme explica no seu parecer consultivo OC/13, parágrafo 25. Para a Corte, "o princípio de legalidade, as instituições democráticas e o estado de direito são inseparáveis" (OC/8, parágrafo 24). A decidida adesão ao regime democrático foi assinalada pela Corte nos seguintes termos: "A democracia representativa é fator determinante em todo sistema do qual a Convenção faz parte" (OC/13, parágrafo 34), o que completa seus critérios sobre "as justas exigências da democracia" que devem orientar a interpretação da Convenção, "particularmente dos preceitos que guardem relação essencial com a preservação e o funcionamento das instituições democráticas" (OC/5, parágrafos 44, 67 e 69). Também não se deve esquecer a sua doutrina que destaca a importância da legislatura eleita na tutela dos direitos fundamentais (OC/8, parágrafos 22 e 23) e a outra doutrina referente ao controle da legitimidade dos atos do Poder Executivo pelo Poder Judiciário (OC/8, parágrafos 29 e 30 e OC?9, parágrafo 20).

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA

 

32. A Comissão também está abrindo significativo caminho sobre o tema ao longo da sua atuação, ou seja: a) quando tem sustentado que o quadro democrático é elemento necessário para o estabelecimento de uma sociedade política em que possa ocorrer a plenitude dos valores humanos ("Dez anos...", página 331); b) quando alude ao poder predominante adjudicado a órgãos não-representativos da vontade popular (id. página 270, Relatório sobre o Panamá, 1978, página 114, parágrafo 3. Relatório Anual 1978/80, páginas 123/124, analisando um projeto de constituição política para o Uruguai); c) quando expõe seu critério sobre a participação popular inclusive na elaboração de textos constitucionais ( Relatório sobre o Suriname, 1983, página 43, parágrafo 41); d) quando questiona a validade do plebiscito no Chile, por haver este ocorrido durante a suspensão das liberdades públicas (Relatório 1978/80, página 115; e e) em seu Relatório 30/93, no caso Ríos Montt x Guatemala.

 

O SISTEMA UNIVERSAL

 

33. Em relação ao sistema universal, cabe recordar: a) a Carta das Nações Unidas e o seu Preâmbulo (Nós, os povos...), em sua referência à "livre autodeterminação dos povos" e ao "desenvolvimento e estímulo do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais de todos..."; b) a Declaração Universal, artigo 29; c) o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; e d) a decisão da Comissão de Direitos Humanos no caso "Ngaluba x Zaire", parágrafos 8.2 e 10, sobre a negativa do direito de participação em condições de igualdade na direção dos assuntos públicos à raiz de sanções aplicadas a oito parlamentares.15

 

GOVERNO USURPADOR E DEMOCRACIA

 

34. Tendo em vista o exposto, pode-se concluir quer democracia e direitos são termos inseparáveis de uma só e única equação que se tem constituído no postulado filosófico da organização político-institucional dos Estados da América e, por conseguinte, tanto as ações de um governo usurpador como de facto, quando em proveito próprio, são incompatíveis com a letra e o espírito da Convenção Americana.

 

O CHILE E OS TRATADOS INTERNACIONAIS

 

35. Já apresentamos uma resenha das constituições chilenas e sobre a solução que davam aos "governos" usurpadores. Viu-se que, inclusive, a própria "constituição" sancionada pelo regime militar declara a nulidade dos atos do usurpador. Vejamos agora este outro aspecto, sugerido pelo título acima.

 

36. O artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados mereceu reconhecimento especial do Chile na respectiva Conferência. Com efeito, seu representante, o Senhor Barros, declarou: "Não há nada a opor a que um Estado possa invocar sua Constituição para se negar a subscrever um tratado, mas quando um Estado se obriga mediante um tratado, não é justificável que procure depois, contornar o seu cumprimento, invocando sua Constituição e, muito menos, a sua legislação nacional ordinária".16

 

37. Por sua vez, o regime surgido da ação militar que derrubou o Presidente Allende sustentou, perante a Comissão de Direitos Humanos, que o Pacto de Direitos Civis e Políticos estava vigente no Chile desde 1976.17

 

38. Além disso, de acordo com o que prevê o artigo 5.2 da Constituição Política do Chile, a conciliação entre a norma internacional e a nacional é obrigatória para os tribunais.18

 

À GUISA DE FINAL

 

39. A Comissão não pode deixar de pelo menos acompanhar os esforços envidados pelo constituinte americano e os desenvolvidos tanto no plano regional como universal para reduzir para sempre a um anátema a quebra da ordem constitucional e do regime democrático, afirmando que, no Hemisfério, o acesso aos cargos públicos só é obtido por meio do sufrágio direto ou indireto, e não pela via dos golpes de estado; que as constituições não são, como alguns preferem, um sistema de normas de tamanhas debilidades e defeitos, que cai ao primeiro assédio. A Comissão afirma a incolumidade do princípio da legalidade, das instituições democráticas, do estado de direito e da soberania do povo, fundamentada na plena vigência dos direitos humanos, pois esse é o motivo de sua criação.

 

40. O exame da história política dos nossos povos traz à memória a frase sentenciosa de Ramella: "O exposto constitui um panorama sombrio. O aniquilamento das instituições pelos governos de facto tem desarticulado a ordem constitucional, ao gerar um clima de desrespeito às autoridades legítimas e ao introduzir o ceticismo na juventude em relação à vida política".19

 

41. Existe entre o povo certo ceticismo em relação ao direito e ao sentido constitucional.

 

42. Parafraseando Bielsa, pode-se afirmar que, em tempos como estes, em que a história se faz com tamanha rapidez e imprevisibilidade, é necessário aproveitar a experiência pouco afortunada dos povos da América. A América tem algo melhor do que tem testemunhado. São muitos — a imensa maioria — os que se têm mantido fiéis à Constituição, às leis e à honra civil e desejam ardentemente que o regime democrático se consolide. Há cidadãos de conduta solidamente definida, que reprovam não apenas os transgressores, como também as formas degeneradas de governo ou desgoverno, que não almejam a luxúria do mando, que não crêem que a função pública consista em ocupar posições à margem das normas.20

 

43. O compromisso da Comissão é com esses cidadãos, com as jovens gerações de americanos a que aludia Ramella, e só será cabalmente cumprido se a Comissão der um exemplo de afirmação democrática que supere a sua descrença e contribua para que continuem a crer, com fé renovada, no império da lei e no estado de direito.

 

44. Para tanto, deve-se encarar a elucidação desta questão com o olhar dirigido para o plano superior dos princípios, porque o jurista, o homem de direito, não pode deixar de aderir a uma doutrina pelas derivações que possa ter. Em sua XXI Conferência Interamericana, os advogados da América fizeram um vivo chamamento ao proclamarem: "... Devido às numerosas deformações que tais princípios sofrem em conseqüência da instauração de diversas manifestações autocráticas de governo... nasce o imperativo de proclamar com clareza e mediante conceitos categóricos a preferência dos advogados da América pela sobrevivência de uma forma de governo que responda às pautas de uma democracia constitucional e pluralista...".21

 

45. Por sua vez, em sua XXII Conferência, declararam: "... Ao se conceber a democracia representativa como o sistema que melhor respeita os direitos dos povos, é medida imperativa, diante de qualquer mudança de regime de governo ou em face do estabelecimento de governos irregulares relativamente à constituição pré-existente, manter incólume o princípio da titularidade popular da soberania de que o poder público seja exercido... respeitando os valores inerentes à dignidade humana".22

 

46. Embora as ações sociais nem sempre possam ser evitadas, a única atitude honesta, quando ocorrem irremediavelmente, é não sair do sólido terreno do império da lei, único estilo de vida numa sociedade democrática.

 

47. O ex-membro da Comissão Jurídica Interamericana, Jorge R. Vanossi, escreveu: "Neste longo trajeto percorrido, o preço pago tem sido muito alto: a subestimativa da legalidade, a aceitação de uma ordem de gestação normativa autocrática mais ou menos freqüente ou mais ou menos permanente, a confusão do anômalo e transitório com o normal e permanente, a quebra, enfim, de uma certa rigidez constitucional. A "equiparação quase insensível entre o produto legislativo de jure e o produto legislativo de facto conduz inexoravelmente à identificação de todo "governo" pelo simples dado da efetividade (de fato ou obtida com coerção) de suas normas, com desprezo dos procedimentos e dos órgãos, cuja regularidade passa a ser irrelevante à consciência jurídica majoritária. Devemos "cantar a palinódia" neste tema... mas todos os homens de direito estão posicionados para examinar cuidadosamente seus esquemas de acatamento resignado às doutrinas convalidantes e de oferecer a alternativa analítica e reflexiva de uma reformulação que evite o aumento impossível de conter de mais uma manifestação — talvez das mais desesperadoras — desse fenômeno que Ripert denominou "o declínio do direito".23

 

48. E essa alternativa, que Vanossi reclama dramaticamente para sair do "monólogo e mausoléu" em que inevitavelmente desemboca toda ditadura — segundo a insuperável expressão de Octavio Paz — foi aberta por um esclarecido homem deste solo: "Que aqui, solenemente, decidamos que estes mortos não morreram em vão; que esta nação, sob a proteção de Deus, nascerá de novo para a liberdade e que o governo do povo, pelo povo e para o povo não desaparecerá da face da terra".24

 


 

1. Constantineau: "Tratado de la doctrina de facto". Ed. Depalma. Bs.As., 1945. To. I, págs. 31 e seguintes. Antokoletz: "Tratado de derecho constitucional y administrativo". Bs. As., 1933. To. I, página 60.

 

2. Confr.: Biels: "Régimen de facto y ley de acefalía". Ed. Depalma. Bs.As., 1963, págs.26/30.

 

3. Antokiletz: op. e loc. citados.

 

4. V. Bielsa: "Régimen...", cit. páginas 17, 23, 24, n.5, 35 e seguintes. Id.: "Estudios de derecho público". Ed. Depalma. Bs.As. 1952. To. III., páginas 431-478.

 

5. "Gamberale de Manzuer c/ U.N.R.", sentença de 6 de abril de 1989.

 

6. Antokoletz: op. citada, páginas 72/73.

 

7. Antokoletz: op. e loc. citados na nota anterior.

 

8. Precedente adotado por J. B. Alberdi na redação do seu anteprojeto de constituição para a Província de Mendoza (Argentina).

 

9. Caso 10.804, "Ríos Montt x Guatemala", CIDH Relatório Anual 1993, página 296, parágrafo 29.

 

10. "Gamberale de Manzur x U.N.R.", sentença de 6 de abril de 1989. Note-se que o pronunciamento é anterior à reforma constitucional de 1994.

 

11. Ver "La Corte y el Sistema Interamericano de Derechos Humanos". Rafael Nieto Navia Editor. San José, Costa Rica, 1994, páginas 199 e seguintes.

 

12. Bielsa: "Régimen...", citado, págs. 36, 38, 41, 42, 46 e 68.

 

13. Tomuschat: "Sobre la resistencia a las violaciones a los derechos humanos", UNESCO, 1984, página 26.

 

14. Vasak: "Los derechos humanos como realidad legal", em: "Las dimensiones internacionales de los derechos humanos". UNESCO. Barcelona. 1984. To. I, página 27.

 

15. Para um desenvolvimento amplo e analítico mais recente desde tópico, ver Cançado Trindade: "Democracia e Direitos Humanos...", na obra coletiva: "La Corte y el Sistema Interamericano de Derechos Humanos", citada.

 

16. Ver Diaz Albónico: "La Convención de Viena...", em "Estudios". 1982. Sociedad Chilena de Derecho Internacional, páginas 147-174.

 

17. Ver Comissão, 4º período de sessões, Exames dos relatórios apresentados pelos Estados Partes... Relatórios iniciais... Chile. CCPR/C/1Add.25, 48 páginas, 27 de abril de 1976.

 

18. Ver Detzner: "Tribunales chilenos y derecho internacional de derechos humanos". Comisión Chilena de Derechos Humanos/Academia de Humanismo Cristiano. Santiago, 1988. Cap. IV. página 182.

 

19. Ramella: "Derecho Constitucional". Depalma. Bs. As. 1986, 2ª. ed., página 700.

 

20. Bielsa: "Régimen...", cit., páginas 66/67.

 

21. San Juan, Porto Rico, 1979.

 

22. Quito, Equador, 1981.

 

23. Vanossi: "El estado de derecho en el constitucionalismo social". EUDEBA. Bs.As. 1987, páginas 468/469.

 

24. Lincoln: Discurso de Gettysburg.