RELATÓRIO ANUAL 1996

RELATÓRIO Nº 46/96
CASO 11.206
Sobre Admissibilidade
HONDURAS
17 de outubro de 1996

 

 

 

I. ANTECEDENTES

 

1. A Comissão recebeu uma denúncia em 17 de junho de 1993, na qual se alega a presumida violação por parte do Estado de Honduras do direito à propriedade privada (artigo 21 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos) e do direito à proteção judicial (artigo 25 da mesma Convenção) em prejuízo do Senhor Juan Milla Bermúdez.

 

 II. PROCEDIMENTOS NA COMISSÃO

 

2. Recebida a denúncia em 22 de julho de 1993, a Comissão a processou cumprindo os requisitos regulamentares, comunicando-se com o peticionário e o Governo de Honduras; enviou-lhes comunicações e estudou e considerou todas as informações recebidas das partes.

 

3. A denúncia foi transmitida ao Governo em 28 de outubro de 1993, o qual enviou sua resposta à Comissão em 10 de fevereiro de 1994. Essa resposta foi enviada ao peticionário, que remeteu sua réplica em 1º de abril de 1994. A réplica foi enviada ao Governo em 27 de abril de 1994, sendo-lhe concedido o prazo de 45 dias para sua resposta e comentários finais. Não tendo a Comissão recebido dentro desse prazo a resposta do Governo, reiterou o pedido em 20 de junho de 1994, chamando a atenção para a possível aplicação do artigo 42 de seu Regulamento em caso de não recebê-la. A Comissão não recebeu do Governo de Honduras resposta à sua solicitação.

 

 III. FATOS ALEGADOS PELO PETICIONÁRIO

 

4. Em 13 de março de 1967, a empresa INDECO (Industria de la Construcción S.A.) comprou de dona María de la Paz Bermúdez de Milla Cisneros um terreno de 41.700 varas quadradas, desmembrado da fazenda "El Potosí", de propriedade daquela senhora, para a instalação de uma fábrica de blocos de concreto, tijolos de cimento e concreto pré-moldado. Em 11 de janeiro de 1972, a mesma empresa INDECO comprou uma segunda parcela de 91.754,43 varas quadradas desmembrada da mesma fazenda, de propriedade agora do Senhor Juan Milla Bermúdez, herdeiro da Senhora Bermúdez de Milla Cisneros. Esta segunda parcela, contígua à comprada originalmente, tinha a forma de um polígono irregular e compreendia em sua maior parte um trecho não-habitável de pedra e areia da margem do Rio Piedras, que atravessa a fazenda, e que serviria como canteiro de matéria-prima para a fábrica da empresa compradora.

 

5. O contrato de compra e venda indicava que a parcela tinha sido demarcada no terreno e medida por um topógrafo competente, incluindo os rumos e longitudes dos lados do polígono. No entanto, a quinta cláusula do contrato afirmava que "... se na prática, ao se fincar os marcos divisórios e proceder ao cercamento do terreno e fazer a remedição for encontrada variação... se resultar de pequena monta, o vendedor completará de seu próprio terreno o que falta modificando qualquer das linhas que formam o polígono...".

 

6. Conforme à disposição expressa, na semana seguinte à assinatura do contrato e tomada de posse, um engenheiro civil registrado no respectivo conselho da categoria, contratado pela empresa compradora, procedeu à colocação dos marcos divisórios, remedição e supervisão da construção do muro que delimitava a parcela recém-adquirida. Dessa forma, em 4 de janeiro de 1972 a parcela foi entregue pelo vendedor e recebida pelo comprador, consumando-se portanto o contrato de compra e venda.

 

7. Durante dois anos e oito meses, de 14 de janeiro de 1972 a 14 de setembro de 1974, a INDECO, em posse plena, legal e pacífica do terreno, explorou aquele trecho da margem do rio, extraindo de lá mais 120 mil metros cúbicos de areia.

 

8. Em 1974, como conseqüência da passagem pela região do furacão Fifí, que provocou inundações e destruição, a Municipalidade de San Pedro Sula teve que realizar obras de proteção no Rio Piedras, para o que expropriou várias porções de propriedades privadas que faziam divisa com o rio. O Governo de facto da época justificou o confisco com a emergência natural provocada pelo furacão. Entre as áreas confiscadas para a construção se incluía parte do terreno comprado pela INDECO ao Senhor Milla e outros terrenos ribeirinhos.

 

9. Esse confisco e a obra modificaram os limites dos terrenos, deixando descontínuas (não limítrofes) as propriedades de Milla e da INDECO. As obras de construção resultaram na expropriação parcial de terrenos de ambos os proprietários, sendo de 61.072,75 varas quadradas a área confiscada do terreno da INDECO.

 

10. Em 11 de setembro de 1976, a INDECO entrou com uma ação contra o peticionário, Senhor Milla, alegando que este tinha descumprido o contrato de compra e venda, pois não tinha entregue uma parte correspondente à que lhe fora expropriada pela Municipalidade, que representava 75% da segunda parcela comprada aos Milla. O vendedor contestou em 3 de fevereiro de 1977, sustentando que tinha cumprido o contratado, que o terreno que fora tomado pela Municipalidade não podia ser considerado um "faltante da venda" e que o direito da empresa, decorridos quatro anos e oito meses do cumprimento dos requisitos da transmissão do domínio e de posse pacífica e usufruto do bem, estava prescrito.

 

11. Em 25 de outubro de 1984, a INDECO procedeu à legalização por escritura pública da unificação cadastral dos dois lotes que tinha comprado da família Milla, recebidos em 1967 e 1972. Nesse mesmo dia, como pagamento de uma dívida transferiu o domínio de uma parcela de 71.817,84 varas desses lotes à empresa pública Corporación Nacional de Inversiones, parcela configurada em parte por uma porção do terreno comprado à Senhora Milla e por outra área de 61,072,75 varas quadradas que reclamava de Juan Milla por suposto "faltante de venda".

 

12. Em 12 de novembro de 1986, na ação da INDECO contra Milla por reposição de faltante de venda, o Primeiro Juiz de Letras do Civil de San Pedro Sula pronunciou sentença acolhendo as exceções de prescrição e cumprimento interpostas pelo Senhor Milla em 1977 e indeferindo a demanda da INDECO. A sentença absolveu o demandado Senhor Milla e impôs as custas ao demandante.

 

13. Em 18 de fevereiro de 1987, a Corte de Apelações de San Pedro Sula, perante a qual a INDECO tinha apresentado recurso de apelação, invalidou de ofício a sentença apelada.

 

14. Em 25 de novembro de 1987, um novo juiz nomeado ad-hoc declarou sem efeito as exceções apresentadas por Milla, deferiu a demanda iniciada pela INDECO contra Milla e o condenou a completar de seu próprio terreno, modificando qualquer das linhas, a área faltante da venda por 61.072,75 varas quadradas. Essa sentença foi confirmada em 3 de julho de 1988 em apelação pelo Corte de Apelações de San Pedro Sula.

 

15. Em 24 de agosto de 1988, o Senhor Milla entrou com recurso de cassação perante o Supremo Tribunal de Justiça por infração de lei contra a confirmação pela Corte de Apelações da sentença do juiz ad-hoc de primeira instância.

 

16. Em 12 de julho de 1989, a INDECO concedeu ao Banco de Ocidente uma hipoteca como parte de garantia para um empréstimo. O bem hipotecado foram as 61,636,79 varas que lhe restavam do lote consolidado comprado aos Milla, após a redução pela dação em pagamento à Corporación Nacional de Inversiones (ver parágrafo 11).

 

17. Em 2 de agosto de 1989, a Corte Suprema de Justiça, contrariando a recomendação do Fiscal do Tribunal, declarou improcedente, "por carecer de clareza e precisão", o recurso de cassação por infração de lei interposto pelo Senhor Milla.

 

18. Em outubro de 1989, o Primeiro Juizado de Letras da Vara Cível de San Pedro Sula decidiu em julgamento de execução de sentença e como "restituição pelo faltante da venda", transferir à INDECO, com base em um "parecer de peritos", uma parcela igual à área reclamada por essa empresa, tirando-a do setor mais valioso da propriedade do Senhor Milla, que não fazia limite com a área reclamada e não fora objeto da venda da margem de areia de janeiro de 1972. O Senhor Milla opôs em 4 de outubro de 1989 exceção de impossibilidade absoluta para a execução atual da obra devida e incidente de nulidade absoluta das atuações perante aquele juiz. O juiz negou as exceções, e a apelação respectiva foi declarada írrita.

 

19. Em 6 de fevereiro de 1991, o Senhor Milla interpôs recurso de amparo perante a Corte Suprema de Justiça e solicitou suspensão do ato reclamado. Em 13 de fevereiro de 1991, o Tribunal admitiu o recurso, mas "sem suspensão do ato reclamado", o que permitiu ao Juiz de Letras consumar a transmissão do domínio da parcela, com o que ordenou a reposição do suposto faltante de venda.

 

20. Em 10 de março de 1993, a Corte Suprema de Justiça negou o recurso de amparo, considerando que "a execução está sendo realizada seguindo literalmente as diretrizes da sentença definitiva e que, conseqüentemente, não estão sendo negadas as garantias constitucionais invocadas...".

 

A RESPOSTA DO GOVERNO DE 20 DE JANEIRO DE 1994 E SUA POSIÇÃO

 

21. Em sua resposta, que consiste de um relatório preparado pela Secretaria do Tribunal Supremo de Justiça referente à tramitação e conteúdo do recurso de amparo, o Governo sustenta que durante a tramitação das ações judiciais, que enumera, foram cumpridas todas as garantias legais e os procedimentos regulamentares.

 

22. Sustenta que se conclui da enumeração de ações que foram observadas as garantias judiciais que as leis adjetivas permitem, que o Senhor Milla desfrutou dos remédios concedidos pela Constituição hondurenha e das garantias judiciais estabelecidas pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

 

23. Defende que, como aparece da citada enumeração, não se configura que no processo judicial em questão do Engenheiro Milla Bermúdez: a) ele tenha sofrido privação ou restrição substancial da defesa em julgamento; b) a solução tenha sido pronunciada pelo Tribunal sem estar este legalmente constituído; c) a solução tenha carecido de fundamento jurídico; d) a solução tenha sido dada contra ou sem levar em conta o que a Lei dispõe expressamente com relação ao caso ou mediante a aplicação de uma lei inexistente; e) se tenha prescindido de provas fidedignas e decisivas levadas regularmente ao processo ou se tenha feito remissão a provas que dele não constavam; e f) tenham sido omitidas as considerações de questões oportunamente propostas pelas partes e conducentes à decisão do julgamento, ou tenham sido consideradas as que não eram matéria do processo.

 

RÉPLICA DO PETICIONÁRIO

 

24. Em sua réplica, o peticionário sustenta que a resposta do Governo no relatório da Corte Suprema de Justiça sobre enviado à Comissão é parcial e demonstra "a deplorável maneira como foi conduzida a tramitação d[o] recurso [de amparo], pois, entre outros, a sentença definitiva demorou dois anos e três meses quando a lei afirma que deve produzir-se dentro de seis dias contados a partir da formalização do recurso".

 

25. Também sustenta que se deveria ter suspendido a execução da sentença reclamada, pois está entre as "...que nenhuma autoridade pode executar legalmente" (artigo 26, Capítulo IV, Lei de Amparo). Reitera que a sentença original era coisa julgada, e que a decisão do juiz executor, em relação à qual se pediu amparo, mudou seus termos, porque, em, vez de repor um faltante "modificando qualquer das linhas do polígono original vendido", decidiu tomar outro terreno do mesmo proprietário não envolvido na transação. Sustenta igualmente que sequer deveria ter tido reposição, já que a coisa vendida tinha sido transferida em sua totalidade, demarcada e legalizada como completa pelo comprador no Registro de Imóveis, o qual dela usufruíra por vários anos.

 

26. Defende que a decisão da Corte Suprema de Justiça ignora a sentença original do Juiz de Letras que lhe dava a razão; por conseguinte, não é certo "que segue literalmente as diretrizes da sentença definitiva", que se omitiram questões de fato e a consideração de provas oferecidas.

 

Observa que a nova Corte Suprema de Justiça que tomou posse com a chegada do novo governo em 24 de janeiro de 1994 é formada por juristas de reconhecida honorabilidade e competência, mas que ela não pode intervir por terem se esgotado os recursos legais internos antes de sua constituição. É isso que o leva a recorrer ao sistema interamericano de direitos humanos.

 

27. O Estado de Honduras não respondeu ao pedido de resposta e comentários finais sobre o caso, pedido que foi reiterado pela Comissão, como se indicou no parágrafo 3.

 

AUDIÊNCIA FRENTE À COMISSÃO

 

28. Em 11 de outubro de 1996, durante o 93º Período Ordinário de Sessões da Comissão, realizou-se uma audiência com a presença das partes, na qual o peticionário apresentou novamente seu caso e indicou que sua queixa se referia à tramitação da execução de sentença realizado pelo Primeiro Juiz de Letras no Civil de San Pedro Sula, que decidiu, como "restituição pelo faltante da venda", transferir à INDECO, com base em um parecer de peritos, uma parcela igual à área reclamada por essa empresa, tirando-a do setor mais valioso da propriedade do Senhor Milla, que não fazia limite com a área reclamada e não fora objeto da venda da margem de areia efetuada em janeiro de 1972; e à decisão do Supremo Tribunal de Justiça que denegou seu recurso de amparo contra a atuação do juiz executante.

 

PONTOS A SEREM RESOLVIDOS PELA COMISSÃO

 

I. Admissibilidade

 

Aspectos formais

 

29. A denúncia foi apresentada antes de decorridos seis meses da decisão final da Corte Suprema de Justiça que denega o recurso de amparo, em março de 1993. Esse fato e a enumeração de processos e recursos judiciais acionados pelo peticionário permitem comprovar que a denúncia chegou ao fim e que se esgotaram os recursos internos disponíveis para a solução da situação posta a consideração da Comissão.

 

30. De acordo com as informações em poder da Comissão e com as alegações do peticionário não contraditas pelo Governo, o caso em análise não se encontra na dependência nem foi objeto de decisão de outra instância internacional.

 

Competência da Comissão: a "fórmula da quarta instância"

 

31. A proteção internacional que os órgãos de supervisão da Convenção concedem tem caráter subsidiário. O Preâmbulo da Convenção é claro a este respeito quando se refere ao caráter de mecanismo de reforço ou complementar que tem a proteção prevista pelo direito interno dos Estados americanos.

 

32. A regra do esgotamento prévio dos recursos internos baseia-se no princípio de que um Estado demandado deve estar em condições de oferecer uma reparação por si mesmo e dentro do contexto de seu sistema jurídico interno. O efeito dessa norma é atribuir à competência da Comissão um caráter essencialmente subsidiário.3/

 

33. O caráter dessa função constitui também a base da denominada "fórmula da quarta instância" aplicada pela Comissão, que é congruente com a prática do sistema europeu de direitos humanos.4/ A premissa básica dessa fórmula é que a Comissão não pode revisar as sentenças pronunciadas pelos tribunais nacionais que atuem na esfera de sua competência e aplicando as devidas garantias judiciais, a menos que considere a possibilidade de se ter cometido uma violação da Convenção.

 

34. A Comissão é competente para declarar admissível uma petição e se pronunciar sobre seu fundamento quando ela se refere a uma sentença judicial nacional ditada à margem do processo devido ou que aparentemente viola qualquer outro direito garantido pela Convenção. Quando, em vez disso, sua decisão se limitar a afirmar que a sentença foi equivocada ou injusta em si mesma, a petição deverá ser negada conforme à fórmula acima exposta. A função da Comissão consiste em garantir a observância das obrigações assumidas pelos Estados partes da Convenção, mas não pode fazer as vezes de um tribunal de alçada para examinar supostos erros de direito interno ou de fato, que possam ter sido cometidos pelos tribunais nacionais atuando dentro dos limites de sua competência. Esse exame só seria procedente se esses erros supusessem uma possível violação de qualquer dos direitos consagrados na Convenção.

 

35. A "fórmula da quarta instância" foi elaborada pela Comissão no caso de Clifton Wright, cidadão jamaicano, que aduziu um erro judicial que levou a uma sentença de morte contra ele. O sistema nacional não previa uma tramitação de impugnação de determinadas sentenças por erros judiciais, o que deixou ao Senhor Wright desprovido de recursos. Neste caso, a Comissão estabeleceu que não podia atuar como "una quarta instância quase-judicial", com faculdades para revisar as sentenças dos tribunais dos Estados membros da OEA. Não obstante, a Comissão declarou fundados os fatos aduzidos pelo peticionário e determinou que o mesmo não podia ter cometido o crime. Em conseqüência, a Comissão chegou à conclusão de que o Governo de Jamaica tinha violado o direito do peticionário à proteção judicial, o que constitui uma violação a seus direitos fundamentais, porque o procedimento judicial interno não permitia corrigir o erro judicial.

 

36. A Comissão emitiu a resolução 29/88, de 14 de setembro de 1988, no caso Wright. Nela foram expostas as seguintes considerações, que são pertinentes para o caso de autos:

 

5. ... A Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem a função de dar tramitação às petições que lhe sejam apresentadas conforme os Artigos 44 a 51 da Convenção Americana, desde que se refiram a Estados que sejam parte da Convenção.

6. ... O papel da Comissão consiste em investigar se os atos de um Governo violaram um direito do peticionário protegido pela Convenção.5/

37. Outro precedente foi estabelecido pelo Relatório Nº 74/90, de 4 de abril de 1990. O denunciante, Senhor López-Aurelli, era um trabalhador argentino que foi privado ilegalmente de sua liberdade, acusado de delitos praticados por motivos políticos em novembro de 1975. O peticionário sustentou que o julgamento se realizou sem as mínimas garantias legais e que os juízes do processo não foram imparciais nem independentes da ditadura militar que governou a Argentina de 1976 a 1983.

 

38. Nesse caso, a Comissão se declarou incompetente para determinar se os tribunais nacionais tinham aplicado corretamente o direito interno.6/ Não obstante, concluiu que o Poder Judicial argentino não tinha revisado os procedimentos após a ascensão do governo democrático que ratificou a Convenção. A Comissão chegou à conclusão de que a denegação do devido processo constitui uma violação dos direitos de López-Aurelli, de acordo com os artigos 8.1 e 25.1 da Convenção.

 

39. Estas sentenças oferecem exemplos do alcance da competência da Comissão com respeito à revisão das sentenças definitivas nacionais. Os casos Wright e López-Aurelli constituem exceções à fórmula "da quarta instância" e ilustram os requisitos que a petição deve atender para que a Comissão possa considerar seus fundamentos e pronunciar-se sobre a matéria.

 

40. A jurisprudência da Comissão Européia de Direitos Humanos é congruente com essa fórmula, como se depreendeu da decisão de admissibilidade ditada no caso de Alvaro Baragiola contra a Suíça:

 

A Comissão recorda que, em primeira instância, cabe às autoridades nacionais, e em especial aos tribunais, interpretar e aplicar o direito interno.

A Comissão recorda que o decisivo não é o temor subjetivo da pessoa interessada com relação à imparcialidade que deve ter o tribunal que se ocupa do julgamento, por compreensível que seja, mas o fato de que nas circunstâncias se possa sustentar que seus temores se justificam objetivamente.7/

41. A Comissão Européia sustentou um ponto de vista semelhante quando recusou petições baseadas na aplicação supostamente incorreta do direito interno ou em avaliações errôneas de fatos ou provas. Em repetidos casos, afirmou que era incompetente para revisar decisões dos tribunais internos, a menos que se tratasse de uma violação da Convenção Européia.8/

 

42. De grande pertinência para a petição de autos é o precedente estabelecido no caso de Gudmundur Gudmundsson. O Senhor Gudmundsson, cidadão islandês, entrou com uma petição perante a Comissão Européia sustentando que um imposto especial sobre a propriedade estabelecido por lei violava seu direito à propriedade e à proteção da lei. Nesse caso, a Comissão Européia concluiu que o texto da lei questionada era compatível com as "ingerências permissíveis" mencionadas no artigo 1 do Protocolo da Convenção Européia e que a suposta discriminação consistia simplesmente em um tratamento diferenciado relativo às sociedades cooperativas e às companhias conjuntas. Finalmente, concluiu que a petição era manifestamente infundada e voltou a mencionar a "fórmula da quarta instância" da seguinte maneira:

 

... porquanto, conseqüentemente, os erros de direito ou de fato, inclusive os referentes à questão da constitucionalidade das leis sancionadas por um parlamento nacional, cometidos pelos tribunais nacionais só interessarão à Comissão, no exame que ela realizar da admissibilidade da petição, na medida em que aparentemente supuserem uma possível violação de qualquer dos direitos e liberdades estabelecidos pelo texto expresso da Convenção.

... o exame do caso tal como foi colocado, inclusive uma análise efetuada de ofício, não revela nenhuma aparente violação dos direitos e liberdades enunciados na Convenção.9/

43. Nas sociedades democráticas, em que os tribunais funcionam no âmbito de um sistema de organização dos poderes públicos estabelecido pela Constituição e pela legislação interna, cabe aos tribunais competentes considerar os assuntos que lhe forem submetidos. Quando for evidente que existiu violação de um dos direitos protegidos pela Convenção, a Comissão terá competência para tomar conhecimento do caso.

 

44. A Comissão está plenamente facultada a se pronunciar com relação a supostas irregularidades dos procedimentos judiciais internos que dêem lugar a manifestas violações do devido processo ou de qualquer dos direitos protegidos pela Convenção.

 

45. A Comissão tem presente que o peticionário se queixa exclusivamente da ação do Poder Judicial na execução da sentença. Se, por exemplo, o peticionário tivesse apresentado provas de que esse período processual e os recursos relativos ao mesmo não foram imparciais devido ao fato de os juízes serem corruptos ou manifestarem preconceitos raciais, religiosos ou políticos, a Comissão seria competente para examinar o caso conforme os artigos 8, 21 e 25 da Convenção.

 

46. No que diz respeito a determinadas questões de procedimento pertinentes neste caso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou:

 

A Convenção determina quais os requisitos que uma petição ou comunicação deve reunir para ser admitida pela Comissão (artigo 46); igualmente determina os casos de inadmissibilidade (artigo 47), que pode ser declarada mesmo depois de iniciada a tramitação (artigo 48.1, c). Quanto à forma como a Comissão deve declarar a inadmissibilidade, a Corte já observou que ela exige um ato expresso, o que não é necessário para a admissão.10/

47. A prática da Comissão, coerente com as normas estabelecidas no Parecer Consultivo OC-13/93, tem consistido na realização de uma análise preliminar das petições que lhe são apresentadas para estabelecer se foram atendidos os requisitos formais e substanciais da Convenção e do Regulamento.

 

48. A Corte Interamericana de Direitos Humanos estabeleceu que o fato de a Comissão declarar inadmissível uma petição ou comunicação impede que ela se pronuncie sobre o fundo da questão.11/ A Corte estabeleceu também que essa "impossibilidade processual"

 

... de modo algum enfraquece o exercício das outras atribuições que lhe confere in extenso o artigo 41. Em todo caso, o exercício dessas últimas, como as contempladas nas alíneas b, c e g da citada norma, deverá realizar-se mediante ações e procedimentos separados do regime a que está submetido o conhecimento das petições ou denúncias individuais que se consubstanciam no cumprimento dos artigos 44 a 51 da Convenção...12/

49. A Corte estabeleceu, no mesmo parecer consultivo, que um Estado acusado de violar a Convenção pode exercer seu direito de defesa perante a Comissão aduzindo a aplicabilidade de qualquer das disposições dos artigos 46 e 47. Se a Comissão considerar que o argumento é fundado, poderá ordenar a interrupção do procedimento e encerrar o expediente.13/

 

50. No caso de autos, o Governo sustentou em sua resposta à solicitação de informações formulada pela Comissão que, "na seqüência do julgamento, o Estado de Honduras observou todas as garantias judiciais que nossas leis adjetivas franqueiam às partes intervenientes no processo. Os remédios que nossa Constituição estabelece também têm sido usados pelo Engenheiro Juan Milla Bermúdez, além de não ter havido violação do artigo 8 das Garantias Judiciais da Convenção Americana sobre Direitos Humanos por parte do Governo de Honduras". O Governo assinala também que, no julgamento de mérito e na seqüela do julgamento, observou-se o direito ao devido processo consagrado no artigo 25 da Convenção.

 

51. Cabe observar que a Comissão Européia tem seguido a prática de declarar as petições "inadmissíveis por serem manifestamente infundadas somente quando a análise do expediente não revela uma violação prima facie" das normas européias sobre direitos humanos.14/

 

52. Essa prática foi explicada da seguinte maneira:

 

... Não obstante, quando a Comissão declara que uma petição é manifestamente infundada, na realidade se pronuncia sobre o fundo do assunto, baseando-se em um exame prima facie dos fatos aduzidos e do fundamento de direito expresso. Por outro lado, quem elaborou a Convenção procurou, de fato, conferir à Comissão a função de filtro do grande número de petições previsto. A competência da Comissão de eliminar as petições manifestamente infundadas, para impedir que continuem tramitando, pareceria coerente com este objetivo de economia processual.15/

53. No que diz respeito ao presente caso, as violações alegadas foram analisadas à luz dos artigos da Convenção invocados pelo peticionário, de outras normas internacionais sobre direitos humanos, além da prática observada e estabelecida pela Comissão, pela Corte Interamericana e pelos órgãos do sistema europeu de direitos humanos. A denúncia foi examinada também à luz dos artigos 8 e 25 da Convenção, a fim de se estabelecer a possibilidade de uma violação do processo devido.

 

54. Em definitiva, a análise da presente petição por parte da Comissão e a ulterior decisão sobre o fundo do caso exigiriam que ela atuasse como uma quarta instância quase-judicial, ou tribunal de alçada de direito interno, com relação à sentença definitiva pronunciada pelas autoridades judiciais hondurenhas. Nos termos da Convenção, a Comissão carece de competência para tomar conhecimento de um procedimento dessa natureza e decidir sobre ele, como ficou expresso ao longo do presente relatório.

 

IV. CONCLUSÃO

 

55. A Comissão conclui que este caso reúne os requisitos de admissibilidade formal previstos pelo artigo 46 da Convenção.

 

56. Não obstante, a análise efetuada neste relatório com relação às informações e às provas disponíveis no expediente também leva a Comissão a concluir que a petição não revela nenhuma violação evidente do direito de propriedade (artigo 21) nem do direito de igualdade perante a lei (artigo 24), invocados pelo peticionário. O mesmo pode-se dizer com relação aos direitos, às garantias judiciais (artigo 8) e à proteção judicial (artigo 25).

 

57. Diante das considerações de fato e de direito que antecedem, a Comissão decide que o caso presente é inadmissível conforme o artigo 47, b, da Convenção e, em conseqüência, acorda publicar imediatamente este relatório e incluí-lo no Relatório Anual a ser submetido à Assembléia Geral da OEA.

 

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3 . Resolução Nº 15/89, Caso 10.208 (República Dominicana), 14 de abril de 1989. Relatório Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos 1988-89, página 122, parágrafo 5.

4 . Frede Castberg, The European Convention on Human Rights, A.W. Sijthoff-Leiden-Oceana Publications Inc., Dobss Ferry, N.Y. 1974, página 63-4.

5 . Caso 9260 (Jamaica), Relatório Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos 1987-88, página 166.

6 . Relatório Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos 1990-91, página 79, parágrafo 20.

7 . Petição Nº 17625/90, Anuário da Convenção Européia de Direitos Humanos 1992, página 103, parágrafos 1 e 105-106, respectivamente.

8 . ... porquanto, como conseqüência, (a Comissão) não pode levar em conta, ao examinar a admissibilidade de uma Petição, supostos erros de fato ou de direito cometidos por tribunais nacionais desses Estados, salvo na medida em que esses erros pareçam ter ocasionado violação dos direitos e das liberdades especificamente enunciados na Convenção...

Petição Nº 458/59, Sentenças de 29 de março de 1960, Anuário da Convenção Européia de Direitos Humanos, vol. 3, 1960, página 236.

Portanto, a Comissão conclui que a corte regional baseou sua sentença na avaliação das provas que tinha em mãos e que a partir delas elaborou suas conclusões. O fato de essas conclusões terem suposto um erro de fato ou de direito é questão que a Comissão não pode determinar, por carecer de competência para se ocupar de petições em que se aduz que os tribunais nacionais cometeram erros de fato ou de direito, salvo quando considere que esses erros possam ter ocasionado a violação de qualquer dos direitos e das liberdades estabelecidos na Convenção...

Petição Nº 23953/94, setembro de 1995, Decisões e Relatórios, Comissão Européia de Direitos Humanos, 82-A, página 254.

Na medida em que os peticionários aduzem erros de fato e de direito cometidos pela Corte de Apelações de Bruxelas, a Comissão recorda que, consoante o artigo 19 da Convenção, sua única função consiste em assegurar a observância das obrigações assumidas pela partes da Convenção. Em especial, não é competente para tomar conhecimento de uma petição em que se aduzem erros de direito ou de fato cometidos por tribunais nacionais...

Petição Nº 10785/84, julho de 1986, Comissão Européia de Direitos Humanos, D. R., 48, parágrafo 150.

9 . Petição Nº 511/59, Sentença de 20 de dezembro de 1960. Anuário da Convenção Européia de Direitos Humanos 1960, página 426.

10 . Parecer Consultivo OC-19/93, de 16 de julho de 1993. Determinados atributos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (artigos 41, 42, 46, 47, 50 e 51 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Solicitada pelo Governo da República Argentina e da República Oriental do Uruguai, parágrafo 40.

11 . Idem, parágrafo 42.

12 . Idem, parágrafo 41.

13 . Idem, parágrafo 41

14 . Caso De Becker, Petição Nº 214/56, Sentença de 9 de junho de 1958. Anuário da Convenção Européia de Direitos Humanos 1958-59, página 254.

15 . P. Van Dijk e G.J. van Hoof, Theory and Practice of the European Convention on Human Rights, página 104.