CAPÍTULO V  DESENVOLVIMENTO DOS DIREITOS HUMANOS NA REGIÃO

PERU


I. ANTECEDENTES

 

O Peru conseguiu progressos significativos na diminuição de certas violações graves dos direitos humanos. Em seu Relatório de 1996, a Coordenadora Nacional de Direitos Humanos indica que registraram-se um total de 292 mortes por violência política em todo o ano.41/ Deste total, o grupo armado Sendero Luminoso foi responsável por 123 e o Movimento Revolucionário Tupac Amaru por três. Das 292 mortes, a Coordenadora Nacional atribui 131 a confrontos armados, e apenas 9 foram diretamente atribuíveis às forças de segurança. Segundo a informação fornecida pelo Governo do Peru, a captura dos líderes do Sendero Luminoso e do MRTA produziu uma diminuição importante nas denúncias de violação dos direitos humanos. A Fiscalía de la Nación registrou 297 denúncias em 1993, 105 em 1994, 54 em 1995 e apenas 15 em 1996.42/ Ainda que de acordo com a Convenção Americana, a Comissão tenha somente competência para ocupar-se de petições individuais por supostas violações aos direitos humanos protegidos pela Convenção que envolvam a responsabilidade do Estado repetidamente condenou o acionamento de grupos armados irregulares que empregam o terrorismo como prática.43/ Em 1996, a Comissão manifestou sua preocupação em relação com vários eventos que contaram com a participação de tais grupos no Peru. No dia 18 de dezembro de 1996, por exemplo, a Comissão condenou severamente a tomada de reféns e da residência do Embaixador do Japão no Peru.44/

 

A promulgação da Constituição de 1993 foi um passo positivo no sentido do restabelecimento da democracia e do Estado de Direito no Peru, algo que merece ser destacado. No entanto, ainda não alcançou-se todo o progresso desejado na restauração da separação de funções dos três ramos do poder público. Além disso, persistem ainda interferências indevidas do Executivo e dos militares no Poder Judiciário.

 

De acordo com o critério descrito no começo deste capítulo, inclui-se o Peru devido à contínua imposição do estado de emergência, apesar das declarações governamentais e da evidência no sentido de que as causam que prevaleceram em finais da década de 1980, e princípios da de 1990, diminuíram.

 

Atualmente, observam-se no Peru significativas diferenças em comparação com a situação existente há menos de uma década, quando o país caracterizava-se pela hiperinflação, a violência desenfreada gerada pelos grupos armados em guerra, a perda de mercados e consequentemente de divisas, o achatamento dos mercados financeiros internos, o domínio cada vez maior do narcotráfico, a desintegração dos mecanismos de prestação de serviços sociais (educação, saúde), e o fracasso da infra-estrutura (estradas, sistemas de abastecimento de água, comunicações, energia elétrica).

 

No dia 9 de abril de 1995, realizaram-se eleições gerais para a escolha do Presidente e membros do Congresso. O Presidente Fujimori foi reeleito para um período de cinco anos com 65% dos votos. O partido de governo também obteve 67 assentos no parlamento unicameral, e os 12 partidos de oposição obtiveram os 53 assentos restantes.

 

A maioria parlamentar que o Partido do Governo ostenta possibilitou a aprovação de Lei Número 26.479, a qual, inter alia, outorga anistia geral ao pessoa militar, policial ou civil que foi objeto de denúncia, investigação, acusação, julgamento ou condenação, ou que cumpria penas de prisão por violações dos direitos humanos cometidas entre maio de 1980 e o dia 15 de junho de 1995, passando ao largo dos procedimentos ordinários de formação e sanção das leis ao evitar o seu debate público. O projeto não havia sido anunciado ou debatido publicamente, e foi aprovado pouco depois de apresentado, nas primeiras horas do dia 14 de junho de 1995, e foi assinado pelo Presidente Fujimori no dia seguinte. Com o objetivo de impedir qualquer revisão judiciária da Lei da Anistia, o Congresso aprovou no dia 28 de junho de 1995 uma segunda lei de anistia, a Lei Número 26.492, que proíbe o Poder Judiciário de pronunciar-se sobre a legitimidade ou aplicabilidade da primeira lei de anistia.45/

 

II. O ESTADO DE EMERGÊNCIA

 

De acordo com o relatório anual que a Coordenadora apresentou para o ano de 1996, aproximadamente 42,1% da população peruana continuava vivendo sob o regime de emergência e 18,5% do território nacional estava sob estado de emergência.46/ Segundo um documento informativo "sobre as razões que obrigam ao Estado peruano manter algumas medidas de exceção no marco do processo de pacificação" fornecido à Comissão pelo Governo do Peru no dia 7 de março de 1997, 16,15% do território nacional encontrava-se em estado de emergência em fins de 1996. Durante o ano de 1995, 22,2% do território nacional encontrava-se em estado de emergência e 48,2% da população viviam em zonas submetidas a esse regime, em comparação com os 25,3% do território e os 44,2% da população em 1994.47/ Em virtude do estado de emergência, as autoridades civis cedem o controle de porções do território ao Comando Político Militar, composto pela polícia e as forças armadas. Decreta-se o estado de emergência no caso de alteração da paz ou da ordem internas, de uma catástrofe ou de circunstâncias graves que afetem a vida da Nação. Em tais circunstâncias, poderão restringir-se ou suspender-se os direitos relacionados com a liberdade e a segurança pessoais, a inviolabilidade do domicílio e as liberdades de reunião e movimento. O estado de emergência não poderá vigorar por mais de 60 dias e para qualquer prorrogação será necessário um novo decreto. Se o Presidente assim o decidir, as forças armadas assumem o controle direto da lei e da ordem (sublinhado acrescentado).48/ O Governo do Peru prorrogou o estado de emergência em diversos Departamentos do país ano após ano, apesar de que o próprio Governo declarou publicamente que as causas da emergência modificaram-se substancialmente.49/

 

A violência desencadeada por dois dos principais grupos armados que operam no Peru, a saber, "Sendero Luminoso", e o "Movimento Revolucionário Túpac Amarau" (MRTA), que surgiu em 1984, decresceu substancialmente depois de alcançar seu ápice entre 1988 e 1992. No entanto, uma séria situação foi criada em dezembro de 1996, quando o MRTA tomou de assalto a residência do embaixador do Japão no Peru, e reteve inicialmente como reféns centenas de cidadãos e dignitários. Em março de 1997, no momento de aprovar-se este Relatório Anual, o grupo ainda mantinha 72 pessoas na qualidade de reféns.

 

Apesar da diminuição da violência em geral, o estado de emergência e a legislação antiterrorista subsistiu e, virtualmente, foram institucionalizados. Esta legislação foi amplamente descrita e analisada pela Comissão no Relatório Anula da Comissão de 1993 e a ela remete-se em nome da brevidade.

 

A Comissão observa com preocupação a prorrogação, por mais um ano, da legislação que autoriza os tribunais sem rosto. Em outro exemplo de legislação sem maior debate e sem conhecimento público mencionado anteriormente, o Congresso peruano aprovou na madrugada do dia 10 de outubro de 1996, uma lei mediante a qual prorroga-se por um ano a vigência dos tribunais sem rosto para os processos de terrorismo, até o dia 4 de outubro de 1997.

 

O desconhecimento da identidade dos juízes e fiscais sem rosto impede que possa garantir-se a independência e imparcialidade dos tribunais. O anonimato dos magistrados priva o acusado das garantias básicas de justiça: o processado não sabe quem está lhe julgando nem sabe se essa pessoa é competente para fazê-lo. O processado vê-se, dessa forma, impossibilitado de obter um julgamento por um tribunal competente, independente e imparcial, tal como prevê o artigo 8 da Convenção Americana. Além disso, na tramitação dos processos por terrorismo não procede a recusa contra os magistrados intervenientes, nem contra os auxiliares de justiça. Dado que a recusa tem como objetivo garantir a imparcialidade da pessoa que dita as resoluções judiciais, ao impedir-se o seu exercício nega-se a garantia de um julgamento diante de um tribunal imparcial.

 

Para manter sua identidade em segredo, a norma os autoriza a não assinar nem rubricar as resoluções judiciais que emitam. Unicamente utilizam códigos e senhas para identificar os magistrados. Por isso, a instituição dos juízes sem rosto descumpre outra das garantias indispensáveis em uma sociedade democrática: a necessária responsabilidade dos funcionários públicos quanto atuem contra à lei. Os acusados, ao desconhecer a identidade das pessoas que os julgam, encontram-se impedidos de exigir a correspondente responsabilidade civil destes funcionários. Com as limitações enunciadas, os princípios do processo devido penal vêem-se seriamente afetados.

 

A Comissão vê com preocupação, além disso, que os tribunais regularmente admitem dentro do processo declarações obtidas mediante procedimentos coercivos, e que algumas sentenças baseiam-se unicamente em confissões extraídas durante interrogatórios policiais, mediante o uso da tortura. O artigo 10 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, da qual o Peru é Estado Parte, estabelece que nenhuma declaração obtida mediante tortura poderá ser admitida como meio de prova num processo. Em virtude desta proibição internacional, a Comissão recomenda às autoridades judiciais peruanas a que rejeitem toda confissão obtida mediante tortura.

 

O Governo peruano manifestou publicamente que desmantelou efetivamente os grupos subversivos através da captura de importantes chefes em várias partes do país 50/ e que, em consequência, fez-se necessário suavizar as medidas em questão.51/

 

No dia 21 de abril de 1995, como parte do "abrandamento" dessas medidas, publicou-se a Lei Nº 26.447, em virtude da qual restabeleceram-se a idade de 18 anos como mínima para a atribuição de responsabilidade criminal em casos de terrorismo (até então havia sido de 15 anos) e o direito do acusado de contar com a assistência de um advogado de defesa desde o momento de sua prisão. Esta lei, além disso, eliminou os tribunais "sem rosto" a partir do dia 15 de outubro de 1995. Lamentavelmente, a abolição destes tribunais não cumpriu-se e sua gestão foi prorrogada por mais um ano. Em outubro de 1996, propôs-se novamente sua abolição, a qual foi rechaçada e novamente prorrogou-se a atuação destes tribunais por mais um ano.

 

Sem compartilhar de todo a apreciação otimista do governo, porque os fatos demonstram que, ainda que reduzida, a atividade terrorista continua, a Comissão opina que não deve somente aliviar-se a legislação mencionada neste comentário, mas proceder-se à sua total adequação aos padrões fixados pela Convenção Americana.

 

Em seu Relatório Anual de 1993, a Comissão assinalou que aos civis julgados nos tribunais militares, lhes foi negado o direito de serem ouvidos por um juiz independente e imparcial, direito que lhes é conferido pelo artigo 8.1 da Convenção. O dever principal das forças armadas consiste em combater os terroristas , lutando no plano militar contra os grupos armados irregulares, e esta é sua principal função na campanha contra a subversão. A Comissão considera que as forças armadas excedem sua função natural quando julgam os civis acusados de pertencer aos grupos subversivos, porque esta função corresponde à justiça penal ordinária.52/

 

A Comissão entende que, apesar da redução da violência política no Peru, continua existindo uma séria ameaça, como a que teve lugar em diferentes momentos em distintos países do hemisfério. A Comissão considera, no entanto, que o pleno respeito aos direitos humanos é totalmente compatível com uma política eficaz contra o terrorismo. A Convenção descreve o regime aplicável em situações extremas, bem como as medidas que devem ser utilizadas dentro do marco do direito internacional dos direitos humanos. Os métodos e mecanismos utilizados pelo Estado do Peru vão mais adiante do autorizado neste marco. Na luta contra o terrorismo, o Estado peruano demonstrou tolerância por parte de suas autoridades para o uso da tortura durante as investigações policiais. Além disso, o sistema dos tribunais sem rosto negou às pessoas acusadas de terrorismo ou de traição à pátria o direito de serem julgadas por um tribunal independente e imparcial; dessa mesma forma, lhes foi negado o direito de defenderem-se a o direito ao processo devido, e transformou o processo judicial num procedimento sumário para condenar pessoas que o sistema presume culpáveis de antemão. Esta política de tolerância com relação às violações dos direitos humanos é reiterada na Lei de Anistia Nº 26.479, que impede a investigação, perseguição e castigo dos agentes estatais responsáveis pelos crimes contra a humanidade.

 

O Governo do Peru manifestou à Comissão que o gabinete da Fiscalía Especial de Derechos Humanos del Ministério Publico colocou em vigência o Registro Nacional de Detidos, com o objetivo de prevenir as prisões arbitrárias, o desaparecimento forçado de pessoas, a tortura e as execuções extrajudiciais.53/ O Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados e Involuntários, em seu relatório correspondente a 1996, nota que, ainda que o número de desaparecimentos no Peru tenha diminuído, ainda produzem-se alguns casos, e o Registro Nacional de Detidos foi ineficaz para prevenir tais desaparecimentos.54/ O registro dispõe de um programa computadorizado para verificar as prisões efetuadas pelas forças de segurança e, ainda que tenha sido concebido originalmente com a finalidade de registrar as pessoas detidas sob a imputação de terrorismo, é um sistema público de registro dos dados de todos os detidos.

 

III. AS LEIS ANTITERRORISTAS

 

A Comissão observa com preocupação que certos dispositivos contidos na legislação antiterrorista foram incorporados como normas constitucionais. Dessa forma, adquiriram caráter permanente certas restrições aos direitos fundamentais. Entre estas normas, encontram-se: o artigo 140 da Constituição Política do Peru,55/ que permite estender a pena de morte aos delitos de traição à pátria e terrorismo, aos quais não eram aplicados anteriormente; o artigo 173 do mesmo instrumento, que transfere a jurisdição dos tribunais penais ordinários sobre os casos de traição à pátria, aos tribunais militares e, finalmente, os artigos 2.24, f e g, que permitem a detenção policial por 15 dias sob condições de incomunicabilidade. Estas reformas são incompatíveis com as obrigações livremente assumidas pelo Estado peruano, como são as contidas na Convenção Americana.

 

IV. AS LEIS DE ANISTIA

 

A. A primeira lei de anistia: Lei Nº 26.479

 

Em abril de 1992, o General Rodolfo Robles Espinoza denunciou publicamente a existência de um "Esquadrão da Morte" organizado pelo Serviço de Inteligência Nacional (SIN) do Peru, denominado Grupo "Colina", encarregado de capturar e executar pessoas que figuravam em uma lista pré-estabelecida de supostos terroristas.

 

De acordo com a declaração feita, os membros do Grupo Colina haviam sido responsáveis pela detenção ilegal e posterior execução extrajudicial de um professor e nove estudantes da Universidade de La Cantuta, fato ocorrido no dia 17 de julho de 1992 (o caso "de la Cantuta"), bem como da matança de "Barrios Altos", ocorrida em novembro de 1991. O General Robles revelou os nomes dos militares que integravam este "esquadrão da morte", e indicou que o Comandante Geral do Exército, General Nicolás de Bari Hermoza Ríos e o assessor Presidencial, Vladimiro Montecinos, encontravam-se envolvidos como acobertadores e autores intelectuais destes fatos.

 

O depoimento prestado permitiu às autoridades judiciais peruanas processar e condenar importantes membros das Forças Armadas do Peru no caso de "La Cantuta", e a identificação e enquadramento dos supostos responsáveis por outro massacre ocorrido em "Barrios Altos". As investigações judiciais no caso de "Barrios Altos" avançavam no sentido do enquadramento de altos comandantes militares, entre eles o Major Santiago Martín Rivas e o General de Divisão Julio Salazar Monroe, Chefe do Serviço de Inteligência Nacional, e também os suboficiais Nelson Carbajal García, Juan José Sosa Saavedra e Hugo Corral Goycochea, condenados pelos fatos de "La Cantuta".

 

Surpreendentemente, na madrugada do dia 16 de junho de 1995, o Congresso peruano promulgou a Lei de Anistia Nº 26.479, que "concede anistia aos militares, policiais e civis que se encontrem denunciados, investigados e indiciados por ocasião ou como consequência da luta contra o terrorismo desde maio de 1980."

 

Na aplicação desta lei, foram colocados em liberdade os poucos funcionários públicos encarregados de fazer cumprir a lei que haviam sido condenados por torturas, desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais. A Comissão considera que, precisamente, a investigação série e imparcial é o meio mais eficaz para estabelecer a inocência de pessoas que possam ter sido injustamente acusadas.

 

No caso da matança de "Barrios Altos", a Juíza Antonia Sacquicuray decidiu continuar o processo judicial, por considerar inaplicável a lei de anistia, por ser contrária à Constituição.

 

B. A segunda lei de anistia: Lei Nº 26.492

 

A decisão da Juíza Sacquicuray provocou a promulgação de uma nova lei, a Lei Nº 26.492, na qual proíbe os juízes da "interpretação jurídica" do alcance da Anistia.

 

Para a Comissão, uma lei que proíbe os juízes de interpretarem a lei constitui um ato de invasão nas legítimas faculdades próprias do Poder Judiciário. Corresponde ao Poder Judiciário exercer o controle sobre as atuações arbitrárias ou inconstitucionais de outros poderes do Estado. Quando um poder do Estado, neste caso o Legislativo, impede uma das legítimas atividades do Poder Judiciário (como é o de interpretar a lei), está violando a independência judiciária, e obrigando-o, ilegitimamente, a acatar leis inconstitucionais.

 

O Estado do Peru tem a obrigação de assegurar a seus habitantes o livre exercício de seus direitos fundamentais, e o de permitir que os mecanismos internos para proteger tais direitos funcionem de forma adequada, em cumprimento do artigo 25 da Convenção Americana.

 

C. Âmbito de aplicação

 

A Lei de Anistia beneficiou a todo membro das Forças Armadas e policiais que possa ser investigado, acusado ou condenado por violações de direitos humanos. O artigo 1º é amplo e ambíguo, e outorga anistia a toda pessoa que encontre-se processada ou tenha sido condenada. Segundo este artigo, o benefício compreende a todo funcionário militar, policial ou civil, estando ele denunciado, investigado, processado, indiciado ou condenado, no foro comum ou foro privativo, por delitos comuns ou militares ou por qualquer fato derivado ou originado por ocasião ou como consequência da luta contra o terrorismo, e que pudessem ter sido cometidos em forma individual ou em grupo, desde maio de 1980 até o dia 14 de junho de 1995.

 

O artigo 3 da lei determinou a imediata liberdade de todo aquele que estivera privado de sua liberdade, ou seja, que estivera sofrendo confinamento, detenção, prisão ou pena privativa de liberdade.

 

A lei interpretativa da lei de anistia não apenas não outorga um recurso efetivo, mas vai mais longe, e nega toda possibilidade de interpor-se recurso ou exceção alguma por violações dos direitos humanos, ao assinalar que a lei é aplicável inclusive sobre aqueles que não tenham sido denunciados.

 

Alguns dos crimes aos quais foi aplicada a anistia incluem atos de torturas, desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais, e foram considerados como uma afronta à consciência do hemisfério e constituem crimes de lesa-humanidade.56/

 

 V. O DEFENSOR DE POVO E A COMISSÃO AD HOC

 

O Escritório do Defensor do Povo foi instituído no marco da Constituição de 1993. Os artigos 161 e 162 da Constituição estipulam que este órgão é autônomo. É responsável por salvaguardar os direitos constitucionais e fundamentais do indivíduo e da comunidade, e de supervisionar a forma pela qual o Estado cumpre seus deveres e a provisão dos serviços públicos. O Defensor do Povo pode tomar a iniciativa em matéria de legislação e promover medidas para melhorar seu desempenho. A CIDH dá valor à criação deste importante escritório e considera que ele tem um grande potencial de contribuir para a melhora da situação dos direitos humanos no Peru.

 

O Defensor do Povo foi nomeado pelo Congresso em março de 1996 e, considerando a gravidade do problema das pessoas julgadas e condenadas por terrorismo e traição à pátria, começou a estudar o problema e os diferentes projetos de lei apresentados ao Congresso, a fim de propor uma fórmula que pudesse obter apoio unânime. No dia 1º de agosto de 1996, o Presidente Fujimori fez seu o projeto de lei proposto pelo Defensor do Povo, e o remeteu ao Congresso. O projeto previa a criação de uma Comissão Ad Hoc, com a tarefa de avaliar casos e recomendar indultos ao Presidente. O projeto obteve o apoio unânime da Comissão de Direitos Humanos e Pacificação, e do plenário do Congresso, tendo sido aprovado por unanimidade no dia 15 de agosto de 1996. 57/

 

A Lei Nº 26.655 criou a Comissão Ad Hoc, cuja missão — como foi dito — é de avaliar casos e recomendar indultos ao Presidente, quando possa presumir razoavelmente que a pessoa acusada ou condenada por terrorismo ou por traição à pátria na realidade não tem conexão alguma com organizações ou atividades terroristas.

 

No dia 11 de setembro de 1996, a Secretaria Técnica notificou a opinião pública sobre os procedimentos para apresentação de solicitações à Comissão. No dia 7 de dezembro de 1996, a Comissão acordou em recomendar o indulto presidencial em 110 casos, e dos mesmos, o Presidente indultou a 104 pessoas e concedeu o direito de graça a 6.58/

 

Com base nos fatos ocorridos na residência do embaixador do Japão no Peru, a Comissão Ad Hoc interrompeu suas reuniões pelo espaço de três semanas, ao cabo das quais as reprogramou com intervalos mais prolongados. No entanto, a Secretaria Técnica continuou recebendo solicitações e continuou seu trabalho de avaliação e classificação de casos, com o apoio das autoridades judiciais e penitenciárias.

 

A Secretaria Técnica enviou várias missões para fora de Lima para que presos condenados por terrorismo fossem entrevistados nas prisões do norte e do sul do país. A Secretaria também visitou as prisões de Castro e Chorrillos, em Lima, com o objetivo de entrevistar aqueles que submeteram seus casos à revisão.

 

A Comissão Ad Hoc e a Secretaria Técnica também prestaram atenção às condições imperantes nas prisões de segurança máxima, e à legislação antiterrorista, especialmente no que tange aos juízes sem rosto e aos tribunais militares.

 

De um total de 3.876 pessoas encarceradas no Peru por delitos terroristas ou por traição à pátria, 1.774 apresentaram solicitação de revisão de seus casos à Comissão Ad Hoc. 59/ Até esta data, tal Comissão somente revisou a quarta parte desse total. Pode prever-se que o mandato da Comissão será estendido até fins de 1997, para que possa completar sua missão.

 

Das 110 pessoas que foram indultadas, 15 cumpriram menos de um ano de prisão, 11 passaram de um a dois anos, 14 cumpriram de dois a três anos, 36 passaram de três a quatro anos, 24 passaram de quatro a cinco anos e 10 passaram cinco anos ou mais.

 

VI. TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

 

O Tribunal Constitucional foi incorporado no ordenamento jurídico peruano na Constituição de 1979, ainda que sob a denominação de Tribunal de Garantias Constitucionais. Depois da ruptura da ordem constitucional ocorrida no dia 5 de abril de 1992, esta instituição foi fechada e os expedientes em tramitação perante essa instância permaneceram paralisados.

 

A Constituição de 1993 restabeleceu o Tribunal Constitucional em seus artigos 201 a 204. Sua função principal é a de servir de órgão de controle da Constituição. É autônomo e independente. Compõe-se de sete membros eleitos por cinco anos. Os membros do Tribunal Constitucional são eleitos pelo Congresso com o voto favorável de dois-terços do número legal de seus membros. O Tribunal Constitucional é uma instância de controle da constitucionalidade dos poderes Legislativo e Executivo, assim como também uma instância de revisão das decisões em matérias de direitos humanos (amparo e habeas corpus).

 

O início das funções do Tribunal Constitucional é um fato que a Comissão deseja destacar, pelo papel que esta instituição pode desempenhar no fortalecimento da democracia e dos direitos humanos. A Comissão, no entanto, vê com preocupação que a legislação que regulamentou o funcionamento do Tribunal Constitucional veio a debilitar suas faculdades e sua competência par declarar a inconstitucionalidade das leis. De acordo com a lei, seis dos sete membros do Tribunal devem votar a favor para poder alcançar uma decisão de inconstitucionalidade. Dessa forma, anula-se praticamente a atribuição de controle outorgada.

 

Na decisão com relação à criação do Conselho de Coordenação Judicial, (Lei Nº 26.623), ainda quando alguns dos mais controvertidos preceitos da lei foram declarados inconstitucionais, 5 dos 7 membros votaram a favor de declarar a inconstitucionalidade de todas as disposições transitórias, de forma que não se obteve a maioria necessária, frustrando-se com isso a anulação de artigos claramente inconstitucionais. É de destacar que a Lei Nº 26.623 cria um "supra poder", colocando acima dos máximos organismos do Poder Judiciário a órgãos como a Comissão Executiva do Poder Judiciário, que permitem uma clara intromissão do Poder Executivo na administração e reforma do Poder Judiciário. Algumas decisões também refletem a impossibilidade material de poder-se levar a cabo um controle constitucional, com um sistema que estabelece a quase unanimidade para poder decidir a inconstitucionalidade de uma lei.

 

VII. DESCUMPRIMENTO, POR PARTE DO ESTADO PERUANO, DE DECISÕES DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, na sentença ditada no dia 19 de janeiro do ano de 1995, declarou, inter alia, que "o Peru violou, em prejuízo de Víctor Neira Alegria, Edgar Zenteno Escobar e William Zenteno Escobar, o direito à vida reconhecido pelo artigo 4.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em conexão com o artigo 1.1 da mesma" [parágrafo dispositivo 1].

 

Mediante a mesma sentença, a Corte decidiu "que o Peru está obrigado a pagar aos familiares das vítimas, por ocasião deste processo, uma justa indenização compensatória e a lhes reembolsar os gastos nos quais possam haver incorrido durante suas gestões perante as autoridades nacionais" e "que a forma e quantia da indenização e o reembolso dos gastos serão ficados pelo Peru e a Comissão, de comum acordo, dentro de um prazo de seis meses, contados a partir da notificação desta sentença" [parágrafos dispositivos 3 e 4, respectivamente].

 

Em virtude do que foi decidido pela Corte, a Comissão, com data de 14 de fevereiro de 1995, dirigiu-se ao Ilustre Governo do Peru com o efeito de proceder a fixar, de comum acordo com os representantes da CIDH, a quantia de indenização e dos gastos a que faz referência a sentença da Honorável Corte.

 

Devido à falta de resposta do Estado peruano, não foi possível levar a cabo negociação alguma, o que redundou num prejuízo adicional muito sério para os familiares das vítimas.

 

Por tal motivo, com data de 21 de julho de 1995, a Comissão dirigiu-se à Corte a fim de lhe solicitar que, de conformidade com o previsto no artigo 47 do Regulamento, assim como no parágrafo dispositivo 5 da sentença de 19 de janeiro de 1995, seja iniciado o procedimento para que a própria Corte determine o montante da indenização e dos gastos que o Estado peruano deverá pagar aos familiares das vítimas.

 

Por Sentença do dia 19 de setembro de 1996, a Corte fixou "em 154.040,74 o total das indenizações devidas aos familiares das [três] vítimas a que refere [o] caso".

 

Em vez de cumprir com a sentença da Corte, o Estado peruano, depois de vencido o prazo de 90 dias estabelecido pelo artigo 67 da Convenção Americana para pedir um esclarecimento da sentença, solicitou, no dia 6 de janeiro de 1997, "A interpretação da Sentença de Reparações" ditada pela Corte no dia 19 de setembro de 1996 e notificada no dia 20 do mesmo mês e ano.

 

A Corte rechaçou, por ser extemporânea, a solicitação de interpretação. Até a data de aprovação deste relatório, o Estado peruano ainda não deu cumprimento à sentença da Corte, o que continua causando um sério problema aos familiares das vítimas.

 

 VIII. RECOMENDAÇÕES

 

1. A Comissão recomenda que o conjunto da legislação antiterrorista e as normas concordantes com as mesmas sejam adequadas à Convenção Americana. Nesta matéria, deve dar-se o pleno cumprimento do artigo 27 da Convenção Americana, que regula as situações de emergência no que relaciona-se ao respeito absoluto aos direitos cujo exercício não é passível de suspensão, e às garantias indispensáveis para a proteção de tais direitos.

 

a) A Comissão recomenda que os tribunais "sem rosto" sejam substituídos por tribunais penais ordinários, que ofereçam ao acusado as garantias mínimas outorgadas pelo processo devido e o direito à defesa.

 

b) A Comissão recomenda que o Estado peruano adote as medidas legislativas ou de outro caráter para erradicar a pratica da tortura, e a prática de aceitar provas obtidas sob tortura.

 

2. A Comissão recomenda que modifiquem-se os artigos 140, 173, e 2 parágrafo 24, alíneas g e f da Constituição, para adequá-los ao estabelecido, inter alia, nos artigos 4, 7 e 8 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

 

3. A Comissão recomenda o término do isolamento em celas para as pessoas declaradas culpáveis de terrorismo e de traição à pátria, assim como a revisão das condições nos centros penais em geral, para este grupos de reclusos.

 

4. A Comissão recomenda que o Estado do Peru defina os delitos que deseja tipificar como terrorismo, detalhando com precisão as condutas que possam configurá-lo, a fim de não estender, por analogia, as incriminações legais, e dar ao acusado a possibilidade de exercer o direito de defesa previsto no artigo 8 da Convenção Americana. A definição de um tipo de delito que se baseie em mera suspeita, ou associação, reverte o peso da prova, viola a presunção fundamental de inocência do acusado e deve ser eliminada.

 

5. A Comissão considera que houve avanços positivos importantes na proteção dos direitos humanos no Peru, não apenas pela redução considerável no tipo e número de violações, mas pela criação do cargo de Defensor do Povo e do Registro Nacional de Detidos. Quando à Comissão Ad Hoc, a CIDH reconhece o propósito real que o Governo tem de revisar as condenações daqueles que foram injustamente sentenciados por delitos de terrorismo e de traição à pátria, assim como a libertação, até esta data, de 110 pessoas indultadas em virtude deste procedimento. A Comissão recomenda que elimine-se de seus antecedentes pessoais e policiais toda referência a essas sentenças.

 

6. A Comissão recomenda ao Estado do Peru que torne sem efeito a lei de Anistia (Nº 26.479) e de interpretação judicial (Nº 26.492), por serem incompatíveis com a Convenção Americana, e que proceda a investigar, julgar e punir os agentes estatais acusados de violações dos direitos humanos, em especial as violações que impliquem crimes internacionais.

 

7. A Comissão recomenda que as autoridades peruanas adotem medidas para evitar as represálias contra os defensores dos direitos humanos, e para proteger às testemunhas e aos advogados que assessoram as vítimas, com o objetivo de garantir seu direito à justiça e a uma proteção judicial efetiva.


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