CAPÍTULO V  DESENVOLVIMENTO DOS DIREITOS HUMANOS NA REGIÃO

GUATEMALA

 

1. No dia 29 de dezembro de 1996, o povo da República da Guatemala (adiante, o Estado ou Guatemala) realizou a assinatura do Acordo Final de Paz entre o Governo e a Unidade Revolucionária da Guatemala (URNG), que pôs fim a 36 anos de conflito armado. O custo do conflito, desde o ponto de vista do sofrimento humano, é difícil de descrever ou quantificar. Aproximadamente 150.000 pessoas perderam a vida, muitas foram feridas ou ficaram incapacitadas, e milhares foram deslocadas ou buscaram refúgio no estrangeiro. A assinatura do acordo definitivo foi um momento histórico para a Guatemala e a região.

 

2. A CIDH acompanhou detidamente os desenvolvimentos na Guatemala durante muitos anos, e informou regularmente sobre violações maciças e sistemáticas dos direitos humanos durante o período do conflito armado. Reconhecendo que a assinatura dos acordos de paz apresenta novas oportunidades para a Guatemala, o que iniciou um processo de transformação, a Comissão apresenta este relatório sob seu critério de informar sobre países que encontram-se em uma situação de transição.

 

 

I. O CONTEXTO POLÍTICO E OS ACONTECIMENTOS DE 1996

 

3. O Presidente Alvaro Arzú (Partido do Avanço Nacional, PAN), tomou posse no seu cargo no dia 14 de janeiro de 1996, tendo vencido uma eleição que os observadores, entre eles a Missão de Observadores da OEA, consideraram livre e justa, em geral.1/ Na campanha eleitoral, participaram 24 partidos. Uma coalizão de organizações locais e organizações do setor civil, a Frente Democrática para uma Nova Guatemala (FDNG), alguns de cujos membros haviam anteriormente promovido a abstenção no processo político, participaram ativamente na campanha eleitoral de 1996, e seis de seus candidatos foram eleitos deputados.

 

4. AS eleições desenvolveram-se, em grande parte, de acordo com as normas aplicáveis; no entanto, houve incidentes isolados de violência que podem ter estado relacionados com o processo eleitoral ou motivados pelo mesmo. Em fins de 1995, vários candidatos a cargos oficiais foram assassinados, entre eles um candidato ao Congresso em Moyuta, Jutiapa, um candidato à prefeitura em La Democracia, Huehuetenango, e um candidato à prefeitura em San Lucas Tolimán, Sololá, assim como dois ativistas que faziam campanha em San Jerónimo, Baja Verapaz, e o líder principal de um partido político em El Petén. Outros incidentes sobre os quais tem-se informação incluem a tentativa de seqüestro de um candidato à prefeitura de Momostenango, Totonicapán, e um assalto à residência do prefeito de Chiquimula.

 

5. Aproximadamente 47% dos eleitores registrados participaram na primeira rodada de eleições e 37% na segunda. O registro de eleitores foi baixo, assim como a participação daqueles eleitores que se registraram. Alguns eleitores que viviam em regiões remotas não tiveram acesso às mesas eleitorais, já que não tinham forma de viajar até às mesmas. Estes eleitores também tiveram dificuldades para registrar-se, porque a lei guatemalteca limita a localização dos escritórios de registro de eleitores às capitais municipais. Além disso, o processo de registro é desnecessariamente complicado.2/

 

6. Poucas semanas depois de sua tomada de posse, o Presidente Arzú decidiu suspender todas as ações contra os insurgentes e a URNG indicou que deixaria de atacar objetivos governamentais. No dia 6 de maio de 1996, o Governo e a URNG assinaram um acordo sobre a situação sócio-econômica e agrária, no qual o Governo compromete-se a adotar medidas para melhorar a situação dos setores mais pobres e marginalizados da sociedade nacional. O acordo inclui dispositivos concernentes ao desenvolvimento social, à educação, à saúde, à habitação, aos direitos dos trabalhadores, aos direitos da mulher, à propriedade e distribuição de terras, às políticas fiscais e ao desenvolvimento rural.

 

7. Antes da assinatura do acordo final, o Governo e a URNG assinaram acordos sobre o papel do Exército, o cessar-fogo definitivo, as reformas constitucionais e o sistema eleitoral, a reincorporação da URNG, e sobre a implementação e verificação dos acordos de paz. De conformidade com a resolução do dia 20 de janeiro de 1997 do Conselho de Segurança, observadores militares internacionais assistirão a Guatemala sob os auspícios das Nações Unidas com relação ao cumprimento de certos acordos. Enviou-se 155 observadores militares a vários lugares da Guatemala, durante três meses, para a verificação do acordo de cessar-fogo definitivo, da separação de forças e o desarmamento e desmobilização dos combatentes da URNG.

 

8. Conforme o seu contínuo papel de vigiar o cumprimento de certos acordos, em 1996, o MINUGUA continuou verificando a situação dos direitos humanos na Guatemala e informando sobre a mesma. O MINUGUA desempenhou um papel de grande importância desde seu estabelecimento em novembro de 1994, conforme a assinatura do acordo global sobre direitos humanos entre o Governo e a URNG. Atribui-se em parte ao seu trabalho de verificação do cumprimento com esse acordo e dos dispositivos pertinentes do acordo sobre identidade e direitos dos povos indígenas, o fato da abertura de um novo espaço político na Guatemala e sua presença ao largo do país; as investigações que realiza e a informação que presta sobre as violações dos direitos humanos alentaram e apoiaram os avanços conseguidos em matéria em direitos humanos na Guatemala.

 

A dissolução das PAC e reformas nas forças de segurança

 

9. Seguindo a iniciativa do então-Presidente Ramiro de León de Carpio, de separar do serviço aproximadamente 25 000 Comissários militares em setembro de 1995, exatamente um ano depois, em setembro de 1996, o Presidente Arzú tomou uma decisão de fundamental importância: dissolver as Patrulhas de Autodefesa Civil, chamadas mais tarde de Comitês Voluntários de Defesa Civil (PAC ou CVDC), que segundo calcula-se, chegavam a mais de 500.000 no ponto alto de suas atividades.

 

10. Tal e como a Comissão e uma gama de organizações nacionais e internacionais informaram, os comissários militares e as PAC, organizados e dirigidos pelas forças armadas, cometeram várias violações graves dos direitos humanos. O Ouvidor (Ombudsman) de Direitos Humanos investigou e informou constantemente sobre as violações dos direitos humanos cometidas pelas PAC e, em duas ocasiões, emitiu resoluções que solicitavam que o Congresso Nacional as dissolvesse.3/

 

11. Apesar de que, supostamente, exigia-se que estas unidades fossem compostas de voluntários, na realidade muitos membros foram forçados a participar nas patrulhas. Aqueles que recusavam-se, e aqueles membros da comunidade que opunham-se a tais patrulhas, corriam perigo de ser ameaçados, agredidos e, em vários casos, assassinados. Ainda que se soubesse que certos membros das PAC e comissários militares cometiam sérias violações, os mesmos sempre atuaram com impunidade. Durante 1996, a Comissão abriu o caso 11.667, no qual acusa-se a antigos membros das PAC de haver perseguido a Diego Velázquez Soc e a Matías Velásquez, e lhes haver assassinado no dia 24 de maio de 1996. A CIDH continua tramitando um número substancial de casos relacionados com supostas violações dos direitos humanos cometidas pelos membros das PAC.

 

12. AS medidas adotadas pelo Executivo para dissolver e desarmas as PAC têm um grande significado e a Comissão aprecia seu valor, tendo em conta suas recomendações constantes nesse sentido.4/ O MINUGUA assinalou a este respeito que o número de denúncias de violações atribuídas aos integrantes dos PAC "diminuiu de forma muito importante".5/ Não obstante, como o Procurador dos Direitos Humanos advertiu em repetidas ocasiões, é fundamental verificar sua dissolução e desarmamento. Informações preliminares indicam que algumas das PAC que já dissolveram-se ainda não iniciaram o processo de desarmamento, e que, em algumas comunidades, estão sendo formados grupos sucessores semelhantes. Durante o primeiro semestre de 1996, o MINUGUA informou que:

 

Foi constatado também o surgimento de diversas organizações civis que efetuam rondas de vigilância, estabelecem toques de recolher e detêm pessoas, as que estão presentes, por exemplo, em Comitancillo, San Marcos; nas aldeias de Alta Verapaz; em Samayac e em San Lorenzo, Suchitepéquez e em Santiago Atitlán e San Lucas Tolimán, Sololá. A verificação realizada evidencia a pouca importância de sua denominação e objetivos formais, uma vez que comprovou-se que trata-se de grupos armados que atribuem-se deveres próprios da instituição policial, e cujas atividades, com a tolerância, influência ou controle de agentes do Estado, vulneram os direitos das pessoas.6/

A Comissão também está preocupada pelo número de armas de fogo em circulação, a permanência de guardas ou grupos particulares de segurança armados e a falta de mecanismos para vigiá-los ou controlá-los.

 

13. Durante 1996, o Governo Arzú adotou medidas importantes e promissoras para começar a depurar as forças armadas e a polícia de membros corrompidos. Vários generais e coronéis do Exército foram colocados para fora do serviço ativo. De maneira semelhante, um número importante de policiais foi despedido em conexão com supostas atividades de corrupção e violações dos direitos humanos.7/ Durante a primeira metade de 1996, o MINUGUA informou que 113 membros da Polícia Nacional e 25 Guardas de Fazenda haviam sido colocados para fora do serviço e que mais de 100 policiais envolvidos em diversos delitos e faltas haviam sido enviados aos tribunais.8/

 

14. De sua parte, o Congresso da Guatemala procedeu a reformar o Código Militar, tornado-o inaplicável aos membros das forças armadas implicados em delitos comuns. A Comissão dá valor a esta importante medida destinada a reduzir o poder dos tribunais militares, e de assegurar que os delitos perpetrados pelo pessoal militar que correspondam ao Código Penal estarão sujeitos à jurisdição dos tribunais ordinários, o que é conseqüente com suas recomendações a respeito. A jurisprudência da CIDH confirma que as violações dos direitos humanos, em particular, correspondem devidamente ao Código Penal e estão sujeitos à jurisdição dos tribunais ordinários. Esta reforma representa, portanto, um avanço necessário e importante. Informou-se que em 1996 vários casos nos quais estavam envolvidos oficiais militares foram transferidos para os tribunais civis.

 

15. No entanto, os relatórios indicam que as forças armadas continuam desempenhando um papel importante nas atividades contra o crime, que correspondem devidamente à polícia.9/ A Comissão manifestou constantemente sua preocupação pelo uso dos membros das forças militares para combater o crime, o que significa o destacamento de tropas que foram treinadas para o combate em situações que basicamente exigem pessoal treinado para fazer cumprir a lei. Além disso, a polícia é treinada para atuar em regime de reciprocidade com os civis, e ajudá-los na medida do possível, enquanto as forças armadas são treinadas para lutar contra um inimigo designado. Além disso, o uso de pessoal militar, que serve sob a autoridade do Executivo, para levar a cabo atividades relacionadas com a investigação de delitos, suscita preocupação com relação à necessidade vital da independência em matéria de investigações judiciais. Em seu sexto relatório, o MINUGUA assinalou que, em alguns casos, a participação do pessoal militar na investigação de casos penais relacionais com seus companheiros tinham o efeito de criar obstáculos ao processo.10/

 

16. O acordo do Governo 90-96, de 7 de março de 1996, estabelecia certo nível de separação no desenvolvimento de planos de segurança pública, mas continua a duplicação das funções civis e militares. Como o MINUGUA manifestou, "para uma luta eficaz contra a impunidade, é fundamental a profissionalização da Polícia Nacional e... que supõe a separação das funções policial e militar".11/ Dado o clima de insegurança pessoal e a falta de confiança na polícia por parte do público, deve-se dar prioridade à profissionalização e ao fortalecimento da capacidade das forças de segurança civis para fazer cumprir a lei. Os relatórios destacam a falta de disciplina dentro dessas forças, e a necessidade de desenvolver-se sistemas de treinamento e vigilância mais sólidos. A CIDH insiste na importância de desenvolver-se as estruturas institucionais, os modelos para o treinamento, os recursos e a supervisão necessários, para conseguir que a força de polícia possa desempenhar suas funções independentemente dos militares.

 

 

II. O CONTEXTO SÓCIO-ECONÔMICO

 

17. A Comissão observa que avançou-se um pouco com relação à situação sócio-econômica desde seu relatório de 1993, Quarto Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos na Guatemala. Segundo estatísticas do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o índice de desenvolvimento humano na Guatemala aumentou, e atualmente faz parte da lista de países com um desenvolvimento humano médio.12/ No entanto, estas mesmas estatísticas indicam que muitos guatemaltecos continuam carentes até mesmo das necessidades mais básicas para viver.

 

18. Calcula-se que aproximadamente 80% da população viva na pobreza, e 59% em condições de pobreza extrema. Os dados compilados pelo PNUD de 1985 a 1995 indicam que apenas 34% da população tinham acesso aos serviços de saúde, 62% tinham acesso a água potável e 60% a serviços sanitários. As estatísticas mais recentes indicam que 54,6% dos guatemaltecos adultos são alfabetizados.13/ Quando comparam-se as populações urbanas e rurais, observa-se que as populações rurais estão em uma situação de grande desvantagem em relação ao acesso aos serviços mencionados.

 

19. Em seu relatório de 1996, o Ouvidor (Ombudsman) de Direitos Humanos informou sobre um aumento no número de denúncias recebidas que diziam respeito a violações de direitos econômicos, sociais e culturais. O Governo da Guatemala reconheceu a necessidade de levar a cabo uma reforma e de tomar medidas urgentes no que diz respeito à vida social, econômica e cultural do país. O acordo sobre aspectos sócio-econômicos e a situação agrária estabelece certos objetivos que pretendem ser alcançados neste sentido, e o Governo indicou que as reformas do sistema fiscal serão um aspecto importante da mudança.

 

 

III. O DIREITO À PROTEÇÃO JUDICIAL E PROCESSO DEVIDO

 

20. O sistema judiciário da Guatemala continua sendo, em grande parte, incapaz de administrar a justiça de uma forma oportuna e eficaz. O problema afeta a todas as esferas do sistema judiciário, mas é particularmente grave no contexto da justiça penal, onde o atraso sem justificativa das investigações ou diligências essenciais que devem ser determinadas pelos juízes e dos processos judiciais prejudicam os direitos da vítima e do acusado. Isto é verdade quanto aos casos relacionados com violações de direitos humanos, da mesma forma que com aqueles casos relativos a delitos comuns.

 

21. A comunidade internacional foi informada em numerosas oportunidades no passado a respeito dos problemas relacionados com a administração de justiça e o impacto negativo e de grande alcance sobre a situação dos direitos humanos na Guatemala. Desta forma, o MINUGUA informou durante o primeiro semestre de 1996 que:

 

Na situação de impunidade na qual vive o país, a maioria dos delitos graves e violações dos direitos humanos ficam sem punição ... não por ser impossível esclarecer os fatos e identificar os autores ... mas por causa da ineficácia dos organismos nacionais competentes para investigar, julgar e punir, assim como pela influência que exercem sobre eles determinados grupos, principalmente os vinculados ao Estado.14/

O Governo Arzú empreendeu algumas iniciativas importantes para fazer frente à impunidade, entre elas a demissão do serviço de membros corruptos das forças armadas e da polícia. Além destas valiosas iniciativas, precisa-se uma maior coordenação e coesão, as quais são necessárias para lutar-se com eficácia contra a impunidade.

 

22. Atribui-se a uma série de causas as deficiências do sistema de justiça penal, entre elas, a falta de coordenação entre as instituições competentes, insuficientes recursos humanos e materiais, atos de ameaça e intimidação contra os juízes e fiscais, e a corrupção dentro do sistema. Apesar de que o atual Código de Processo Penal, vigente desde meados de 1994, preveja uma série de avanços notáveis nos processos de justiça penal, os problemas relacionados com a sua implementação continuam impedindo sua devida aplicação. Visto que a independência e a imparcialidade são requisito fundamentais para o exercício do poder judiciário, a CIDH está particularmente preocupada com os relatórios que recebeu sobre o uso de ameaças e perseguição contra juízes e fiscais. O MINUGUA informou que dois investigadores da Oficina del Fiscal General foram assassinados em maio de 1996 enquanto trabalhavam num caso, e que o Fiscal havia recebido ameaças de morte.15/ A Comissão considera que a aprovação pelo Congresso, em meados de 1996, da lei que protege as pessoas vinculadas à administração de justiça, é um passo importante no sentido do que deve ser um esforço de grande amplitude para encontrar-se uma solução para esta situação.

 

23. A falta de confiança popular na capacidade do sistema judiciário de cumprir com seu mandato é manifestada em atividades ilícitas de diversos tipos, entre elas os linchamentos,16/ atos de "limpeza social"17/ e o uso da força e da violência por parte dos guardas de segurança privados ou de grupos de defesa.18/ Não dispõe-se de estatísticas exatas a respeito dos linchamentos. O Grupo de Apoio Mútuo deu conta de 71 linchamentos em 1996.19/ Em vários casos, como o do assassinato do artista Oziel Calderón e outros, as informações surgidas na imprensa esclarecem que as vítimas foram linchadas por causa de um erro de identidade. De qualquer forma, estes atos de vigilância representam uma rejeição flagrante dos princípios mais elementares do processo devido. Estes tipos de atividades ilícitas constituem uma grave ameaça para a ordem democrática do Estado, já que dilapidam o império da lei. A Comissão está especialmente preocupada pelo fato de que muitos destes atos foram levados a cabo sem reação, ou com reação muito pequena, por parte do Estado. A Comissão enfatiza que tais atividades extralegais não podem ser toleradas e que a solução apropriada, dentro do atual processo de transição, é a de fortalecer a capacidade da polícia para lutar contra o crime.

 

Com relação à administração de justiça e o direito à liberdade, a CIDH recebeu várias informações coincidentes no sentido de que a detenção preventiva e as medidas substitutivas aplicam-se de forma arbitrária. Segundo o Escritório do Arcebispado para os Direitos Humanos e o MINUGUA, os acusados com poucos recursos são submetidos regularmente à prisão preventiva, sem maiores considerações a respeito da gravidade do delito cometido, a possibilidade de não-comparecimento, nem a necessidade de proteger a investigação de interferências; por outro lado, a outros acusados de crimes como homicídio e seqüestro, são concedidas as medidas substitutivas. Entre os exemplos notórios de casos em que foram outorgadas estas medidas e os acusados não compareceram estão os do ex-comissário militar Raúl Martínez, o qual, acredita-se, seqüestrou o equipamento de uma missão da ONU, entre outros delitos, e o de Víctor Román Cutzal, implicado nos assassinatos dos sacerdotes presbiterianos Serech e Saquic. As ordens de prisão emitidas subseqüentemente nestes casos ainda não foram cumpridas.

 

25. A Comissão vê com grande preocupação que, segundo informações recebidas, nos centros de detenção geralmente não se separa os menores dos adultos, como exige o artigo 7 da Convenção Americana. Amiúde não existem instalações para menores em zonas remotas, e, por conseguinte, os mesmos são colocados em reclusão junto com adultos em instalações impróprias.

 

Violações prévias dos direitos humanos e a necessidade de mecanismos para combater a impunidade

26. Em fevereiro de 1997, a Comissão para o Esclarecimento Histórico da Verdade foi instituída com a nomeação do professor alemão e ex-Especialista Especial das Nações Unidas em Direitos Humanos, Christian Tomuschat, para dirigir a Comissão, cujos membros são a educadora Otilia Inés Lux García de Cotí e o jurista Alfredo Balsells. A Comissão dispõe, em princípio, de seis meses para levar a cabo sua investigação, ainda que este período possa ser estendido, caso seja necessário. Seu mandato é o de "esclarecer com toda a objetividade, equidade e imparcialidade" as violações dos direitos humanos e os fatos de violência que o povo guatemalteco sofreu, "vinculados ao enfrentamento armado" e "esclarecer plenamente e em detalhe" as violações em questão, mas sem individualizar a responsabilidade e sem nenhum propósito ou efeito judicial. A CIDH deseja êxito à Comissão da Verdade no cumprimento de tão importante mandato, como é o de investigar e esclarecer as violações passadas. A provisão de recursos humanos e materiais apropriados será um fator importante no que diz respeito à capacidade de tal Comissão cumprir sua tarefa.

 

27. O alcance total das violações a estudar-se não está claro, mas foi dada conta, amplamente, de que o conflito causou a morte de mais de 150.000 pessoas, a destruição de 440 povoados, o deslocamento interno de 1.000.000 de pessoas e 45.000 refugiados. Durante 1996, levaram-se a cabo várias exumações para a obtenção de provas físicas dos delitos, os quais ainda não foram oficialmente explicados, investigados, processados ou punidos. A Equipe de Antropologia Forense da Guatemala realizou exumações em Agua Fria, Chicaman, Quiché; Josefinas, La Libertad, Petén; Pinares, Cahabon, Alta Verapaz; Pan de Sánchez, Rabinal, Baja Verapaz; Saguachil, Chisec, Alta Verapaz; El Chal, Dolores, Petén; San Diego, La Libertad, Petén; Chorraxaj, Joyabaj, Quiché; Las Flores, Dolores, Petén; e La Amistad, Dolores, Petén.

 

28. A divulgação oficial da verdade sobre as violações passadas dos direitos humanos pode desempenhar um papel fundamental no processo de recuperação e reconciliação, e no assentamento das bases para o devido processamento e castigo dentro do sistema judiciário. O relatório da Comissão da Verdade na Guatemala ajudará a consolidar o processo de reconciliação que teve início em fins do ano de 1996. A revelação de tais atrocidades, perpetradas durante o conflito armado, dentro de um relatório oficialmente aprovado, dará ao povo da Guatemala a possibilidade de refletir sobre as mesmas, preparar respostas coerentes e adotar medidas para garantir a paz no futuro.

 

29. Neste sentido, deve mencionar-se a "Lei de Reconciliação Nacional", aprovada pelo Congresso no dia 18 de dezembro de 1996, depois da assinatura do acordo de anistia entre o Governo e a URNG no dia 12 de dezembro de 1996.20/ A lei foi aprovada depois de um intenso debate no seio da sociedade guatemalteca. Criou-se uma coalizão que compreendia os setores sociais e as organizações não-governamentais sob o lema da "Aliança contra a impunidade", para opor-se ao acordo e à adoção de tal lei.

 

30. De acordo com a lei, a extinção de responsabilidade penal pode aplicar-se a: delitos políticos contra a segurança do Estado, a ordem institucional e à administração pública (artigo 2); delitos comuns "direta, objetiva, intencional e casualmente" vinculados aos delitos políticos (artigo 3); e os delitos comuns perpetrados com o objetivo de prevenir, impedir, perseguir ou reprimir delitos políticos e delitos comuns afins (artigo 5). Não obstante, o artigo 8 estipula que a anistia não deverá ser aplicada aos seguintes delitos: genocídio, tortura, desaparecimento forçado e aqueles delitos que sejam imprescritíveis, ou que não admitam a extinção da responsabilidade penal, de conformidade com a legislação interna ou os tratados internacionais ratificados pela Guatemala.

 

31. Informou-se à CIDH que a Comissão Presidencial Coordenadora da Política do Executivo em Matéria de Direitos Humanos (COPREDEH) e o MINUGUA tomaram algumas medidas para informar os juízes sobre a relação entre os dispositivos desta lei e as obrigações da Guatemala nos tratados internacionais. Os membros das Aliança contra a Impunidade apresentam um recurso de inconstitucionalidade para impugnar tal lei, o qual continuava aguardando uma decisão final ainda em fins de fevereiro de 1997. Informou-se à CIDH que a partir de fins de fevereiro de 1997, as solicitações de anistia apresentadas em conformidade com a lei foram negadas nos casos que foram iniciados em relação aos assassinatos de Myrna Mack e Jorge Carpio Nicolle.21/ Neste aspecto, a Comissão articulou, em vários casos específicos, os critérios relacionados com a interrelação com respeito à impunidade e as leis que dispõem sobre anistia e medidas comparáveis.22/

 

IV. O DIREITO À VIDA E À INTEGRIDADE FÍSICA

 

32. O tipo de violações dos direitos humanos na Guatemala mudou favoravelmente desde que o conflito armado foi encerrado. Tal como o MINUGUA assinala em seu Sexto Relatório: "É alentador que no período não se haja comprovado nenhum desaparecimento forçado de pessoas e a notável diminuição das denúncias admitidas por esta grave violação dos direitos humanos. Isto consolida a percepção de que esta condenável prática criminosa não se realiza hoje na Guatemala".23/ Da mesma forma, a Comissão notou uma diminuição no número de petições recebidas, relativas ao direito à vida e à integridade física. Sem prejuízo destas manifestações positivas relativas ao direito à vida, a Comissão deve assinalar que continuam existindo denúncias nesta matéria. Assim, por exemplo, o Escritório do Procurador de Direitos Humanos informou que durante 1996 tramitou 173 casos relacionados com execuções extrajudiciais, 47 casos relativos a desaparecimentos forçados, 15 casos associados a violações da integridade pessoal e 12 casos de tortura. Durante os primeiro dez meses do ano, o Escritório de Direitos Humanos do Arcebispado da Guatemala informou que havia tramitado 112 casos de execuções extrajudiciais e seis casos de tortura.

 

33. Com relação ao direito à vida, durante a primeira metade de 1996 o MINUGUA verificou 13 dos 69 casos de execuções extrajudiciais denunciados; 42 das 54 tentativas de execução extrajudicial; e 91 das 267 denúncias de ameaças de morte que foram apresentadas à mesma. Estas denúncias cobrem também situações anteriores a 1996. Quanto ao respeito à integridade física da pessoa durante este mesmo período, verificaram-se 2 dos 8 casos de tortura; 9 das 10 denúncias de trato cruel, desumano ou degradante; 27 das 73 denúncias de maus tratos; 103 dos 116 casos de uso excessivo da força; e 1.010 das 1.060 ameaças de outro tipo contra as pessoas. Muitas destas denúncias, que referem-se em boa parte a situações anteriores ao governo atual, ainda estão sendo verificadas 24./ A Missão das Nações Unidas observou que a ausência de uma investigação adequada naqueles casos relacionados com violações cometidas por agentes do Estado ou por grupos ou indivíduos relacionados aos mesmos, faz com que a verificação seja difícil. Durante o último semestre de 1996, o MINUGUA verificou 76 casos de execuções extrajudiciais; 214 de ameaças de morte; 13 violações do direito a não ser submetido à tortura; 23 casos de emprego excessivo de força, e 206 casos de outros tipos de ameaças contra as pessoas.25/

 

34. O MINUGUA informou que o uso inadequado de armas de fogo, por parte dos membros das forças de segurança, havia provocado mortes e refletia a evidente falta de respeito ao direito à vida, e à inadequada preparação e treinamento dos agentes.26/

 

35. A Comissão está especialmente preocupada pela incidência continuada de ameaças e atos de violência contra indivíduos que trabalham na promoção dos direitos humanos, líderes sindicais e comunitários, membros dos círculos universitários e testemunhas oculares de casos relacionados com a violação dos direitos humanos, assim como a falta persistente de suficientes investigações, medidas de proteção e enquadramento dos responsáveis.

 

36. Em março de 196, de conformidade com o artigo 63.2 da Convenção Americana, a Comissão solicitou que a Corte Interamericana de Direitos Humanos adotasse medidas provisórias para proteger a vida e a integridade física do padre Daniel Vogt (caso 11.497), o qual havia recebido várias ameaças em conexão com seu trabalho comunitário em El Estor. No mês seguinte, a CIDH solicitou medidas provisórias para proteger as testemunhas no caso do assassinato dos sacerdotes presbiterianos Pascual Serech e Manuel Saquic em 1994 e 1995 (caso 11.570), os quais haviam recebido ameaças em conexão com o processamento deste caso. A Comissão solicitou que fossem renovadas as medidas provisórias adotadas inicialmente em 1994 e 1995 nos casos de Juan Chanay Pablo ("Colotenango", caso 11.212) e Jorge Carpio Nicolle (caso 11.333). A Corte autorizou tais solicitações por meio das resoluções de 10 de setembro de 1996, e determinou ao Governo e à CIDH que prestassem informações periodicamente sobre a situação de cada caso.

 

37. A Comissão, de conformidade com o artigo 29 de seu Regulamento, dirigiu-se ao Governo em várias oportunidades para solicitar a adoção de medidas cautelares em favor de 28 indivíduos especificamente identificados (cuja lista encontra-se no Relatório Anual, na seção sobre as atividades da Comissão), entre elas algumas a favor de vários sindicalistas que supostamente haviam recebido ameaças e que haviam sido objeto de atos de violência em conexão com suas atividades; Rosalina Tuyuc, Nineth Montenegro, Amílcar Méndez e Manuela Alvarado, membros da Frente Democrática Nova Guatemala, que haviam recebido ameaças de morte; trabalhadores no escritório jurídico da IXCHEL, que defende os direitos humanos no Petén; as testemunhas no caso do assassinato de Martín Pelicó Coxic e outras seis pessoas (caso 11.658) em San Pedro Jocopilas, os quais haviam sido objeto de ameaças e agressões, relacionadas com o processamento deste caso.

 

 

A pena de morte e o artigo 4 da Convenção Americana

 

38. Antes de entrar em vigor a Convenção Americana com relação à Guatemala, o artigo 201 de seu Código Penal havia estabelecido a pena de morte para os culpados de seqüestros que tiveram como resultado a morte da vítima. Mediante os decretos legislativos 38-94, 14-95 e 81-96, o Congresso emendou o artigo 201 para impor a pena de morte aos seqüestradores mesmo que o ato não fosse seguido de morte da vítima. O MINUGUA, o Procurador de Direitos Humanos e o Escritório de Direitos Humanos do Arcebispado da Guatemala uniram-se a outros grupos para advertir que esta reforma contradizia a Constituição e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Um advogado do Escritório de Direitos Humanos do Arcebispado da Guatemala apresentou um recursos de inconstitucionalidade contra o decreto 14-95. Em sua sentença do dia 26 de março de 1996, na qual rechaçava esse recurso, a Corte Constitucional decidiu que a Constituição não proibia expressamente a extensão da pensa de morta na forma estabelecida e que, ainda que a Constituição da Guatemala disponha que os tratados internacionais de direitos humanos prevalecem sobre a legislação interna, a Convenção Americana não constituía um parâmetro de análise constitucional.

 

39. No dia 30 de janeiro de 1997, a Nona Sala do Tribunal de Apelações comutou três sentenças de morte, em um caso determinado, por sentenças não comutáveis de 50 anos, tomando como fundamento que a Guatemala é parte na Convenção Americana; que de acordo com a Constituição, os tratados internacionais têm precedência sobre a lei interna, e que o artigo 4 da Convenção Americana estabelece que a pena de morte não pode cobrir delitos para os quais não era aplicável no momento da ratificação. A Nona Sala decidiu que o tribunal de primeira instância havia interpretado e aplicado erroneamente o artigo 201 do Código Penal, tal como foram emendado pelo decreto 14-95, e que portanto violou-se o artigo 4.2 da Convenção Americana. A Comissão considera valiosa esta última decisão, posto que outorga a devida consideração às obrigações internacionais que o Estado deve ter em conta, como parte na Convenção Americana, ao interpretar e aplicar sua legislação interna.

 

40. Sem entrar nos detalhes da reforma em questão, a CIDH recorda que o texto do artigo 4, seção 1, da Convenção Americana dispõe que o direito à vida será respeitado. A seção 2 estipula que:

 

Nos países que não tenham abolido a pena de morte, a mesma somente poderá ser imposta com relação aos delitos mais graves, no cumprimento de sentença executória de tribunal competente e de conformidade com uma lei que estabeleça tal pena, ditada com anterioridade à comissão do delito. Tampouco estender-se-á sua aplicação a delitos aos quais ela não seja aplicada atualmente.

O artigo 4, seção 3 estipula que "[nã]o estabelecer-se-á a pena de morte nos Estados que a tenham abolido". Cada Estado Parte na Convenção Americana empreendeu, conforme o artigo 2, medidas para assegurar que todos os direitos e liberdades reconhecidos na Convenção estejam protegidos pelos dispositivos legislativos internos ou de outro caráter. Por conseguinte, no momento da ratificação, cada Estado Parte compromete-se a manter sua legislação interna de conformidade com suas obrigações estabelecidas na Convenção.

 

41. A Comissão enfatiza neste sentido a clara interpretação do artigo 4 articulada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em sua Opinião Consultiva OC-3/83, concernente às "Restrições à Pena de Morte". De conformidade com o princípio de irreversibilidade dos direitos, quanto ao artigo 4.2, a Corte determinou que não podia haver nenhuma dúvida de que este dispositivo proíbe a extensão da pena de morte a "delitos para os quais não estava prevista anteriormente". "Impede-se, assim, qualquer expansão na lista de crimes castigados com essa pena". (Acrescentou-se a ênfase). O artigo 4.2 constitui, nas palavras da Corte, uma "proibição absoluta" de tal extensão.27/ Também faz-se referência à Opinião Consultiva OC-14/94, que trata de questões relacionadas com a responsabilidade do Estado, e reafirma a mencionada interpretação do artigo 4.2.

 

42. Independentemente das questões relacionadas com a ampliação da pena capital em virtude do artigo 4, a Comissão observa que no dia 10 de setembro de 1996 dirigiu-se ao Estado da Guatemala para solicitar a ele que tomasse as medidas necessárias para suspender a execução, cuja data já estava fixada, de Roberto Girón e Pedro Castillo Mendoza, condenados à morte pelo estupro e assassinato de uma menina. Fez-se esta solicitação com o objetivo de permitir que a Comissão analisasse uma petição do dia 14 de agosto de 1996, segundo a qual o julgamento destas duas pessoas não havia respeitado determinados requisitos do processo devido. Especificamente, os peticionários alegaram que os acusados não contaram com defesa jurídica efetuada por advogados. Em sua resposta do dia 12 de setembro de 1996, o Governo indicou que não seria dado curso à solicitação porque a legislação interna da Guatemala não contemplava medidas para suspender a execução de uma sentença de pena capital. As solicitação de medidas especial são formuladas de conformidade com a competência que a Comissão tem para atender às petições que lhe são apresentadas, tal como o estipula o artigo 41 da Convenção, e para solicitar medidas cautelares, quando seja necessário, para evitar que pessoas sejam lesadas de forma irreparável, de conformidade com o artigo 29 de seu Regulamento. Considerando o dever de todo membro do sistema interamericano dos direitos humanos de dar vigência a suas normas, a Comissão calcula que a resposta do Estado nesta matéria desconheceu esse dever, e que a rejeição à sua solicitação obstruiu o desempenho de suas funções.

 

 

V. LIBERDADE DE EXPRESSÃO

 

43. Os relatórios de que a CIDH dispõe indicam que a liberdade de expressão é geralmente exercida através dos diversos meios de comunicação. A imprensa local reflete uma ampla gama de informações e opiniões, entre elas a opinião política. Os meios de comunicação desempenharam um papel importante no processo de abertura para o diálogo político.

 

44. A Sociedade Interamericana de Imprensa assinalou, no entanto, uma série de ameaças contra jornalistas em conexão com seu trabalho. Ainda que nem a identidade dos atores nem a motivação por trás de tais atos tenha sido esclarecida, a Sociedade Interamericana de Imprensa informou que, entre outros incidentes violentos, houve a explosão de uma bomba na frente da casa do Diretor da Rádio Victoria; houve a descoberta de uma granada de fragmentação na garagem do La Prensa; e três jornalistas foram assassinados. A Sociedade de Imprensa manifestou seu interesse em que estes incidentes sejam investigados devidamente, e solicitou especialmente que se esclareça o assassinato de Jorge Carpio Nicolle, no ano de 1993. Da mesma forma, a Comissão recebeu informações de que continuam as ocorrências de intimidação e violência contra representantes dos meios de informação. O MINUGUA informou, com relação a esta matéria, sobre o seqüestro e tortura de Vinicio Pacheco, da Radio Sonora, em fevereiro de 1996.28/

 

45. A livre expressão é um direito fundamental em uma sociedade democrática, está expressamente consagrado na Convenção Americana e deve ser garantido de acordo com essa categoria. Este direito não pode ser exercido como devido num clima em que sejam toleradas ameaças e a violência contra os jornalistas. A CIDH reitera que no caso de delitos cometidos tanto por atores públicos como privados, é responsabilidade do Estado assegurar que os mesmos sejam investigados, julgados e punidos da forma devida.

 

VI. A SITUAÇÃO RELACIONADA COM OS DIREITOS TRABALHISTAS E DE TERRAS

46. A Comissão continua vigiando a situação dos direitos trabalhistas e as condições de trabalho na Guatemala. De conformidade com a ratificação do Convênio 87 da Organização Internacional do Trabalho por parte da Guatemala, o Estado adotou um novo Regulamento para o Reconhecimento da Personalidade Jurídica e a Aprovação de Estatutos e Inscrição de Organizações Sindicais para agilizar tais trâmites perante o Ministério do Trabalho e Previdência Social.

 

47. Quanto às condições de trabalho, no dia 2 de janeiro de 1996 o salário mínimo aumentou para 17,60 quetzales por uma jornada de 8 horas (US$2,93). Ainda que a lei estabeleça este salário, nem sempre a determinação é cumprida e além disso ele não é suficiente para satisfazer as necessidades mínimas. As normas de saúde e segurança são consideradas inadequadas, e, de qualquer forma, tampouco são cumpridas como é devido. O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas indicou que estava:

 

profundamente perturbado pela inobservância clara e manifesta da legislação trabalhista, pelas alarmantes informações a respeito da impunidade dos empregadores e pelo descumprimento das normas sobre salários mínimos, condições e trabalho e sindicalização, sobretudo porque afetam a pessoas empregadas em um grande número dos setores agrícolas.29/

O Comitê mencionou que certos acordos determinam a adoção de medidas para melhorar a vigilância e o cumprimento das normas trabalhistas, mas mostrou sua preocupação no que concerne à implementação de tais medidas.

 

48. Com relação à situação agrária, o Comitê declarou que "a questão da propriedade e distribuição da terra é decisiva para resolver injustiças econômicas, sociais e culturais de uma parte considerável da população".30/ A ocupação de granjas continua gerando tensão em certos departamentos da Guatemala. Os grupos que mais frequentemente levam a cabo estas ocupações são as comunidades indígenas, as quais tentam retomar terras tomadas pelos proprietários velhacos, e os empregados das propriedades, que tentam protestar contra as condições de trabalho e os baixos salários. O Governo informou que as expulsões somente são levadas a cabo pacificamente, e de acordo com uma ordem judicial. A CIDH recebeu relatórios de expulsões realizadas pelos proprietários das terras mediante o uso da violência. A CIDH investigará estas situações nos casos que lhe sejam apresentados, para estabelecer sua veracidade.

 

49. Em seu relatório sobre o segundo semestre de 1996, o MINUGUA manifestou sua contínua preocupação pelo emprego de violência nestas expulsões. Cita um exemplo, de setembro de 1996, ocorrido em Los Ocós, San Marcos, por ocasião da expulsão de camponeses que ocupavam uma propriedade, e praticado pela Polícia Nacional, que deixou um saldo de um morto e dezenas de feridos. Passando a um aspecto mais alentador, o MINUGUA também informou que em novembro e em dezembro de 1996, respectivamente, havia tido a oportunidade de colaborar com o Governo na solução pacífica da ocupação de uma instalação petrolífera por parte dos operários e do bloqueio de uma estrada por parte de produtores locais, mediante o diálogo e as negociações.31/

 

50. Quanto à distribuição das terras e a situação agrária, o clima de tensão continua tendo um impacto sobre a situação dos retornados. Por esta e outras razões, o ritmo de retornos diminuiu durante 1996. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados informou que 2.599 refugiados regressaram durante a primeira metade de 1996, apenas um pouco mais de 25% do número de refugiados que haviam regressado durante o mesmo período no ano anterior. Segundo relatórios, em todo o ano de 1996 regressaram pouco mais de 4.000 refugiados.

 

 

VI. OS DIREITOS DA CRIANÇA

 

51. Devido às necessidades especiais e à vulnerabilidade das crianças, o artigo 19 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos especifica que toda criança "tem direito às medidas de proteção que sua condição de menor de idade exigem, por parte de sua família, da sociedade e do Estado". Em um país como a Guatemala, onde aproximadamente 46% da população é menor de 15 anos de idade, a situação da criança e seus direitos devem estar muito presentes nos interesses e ações do Governo. Em outubro de 1996, o Estado da Guatemala adotou um novo Código da Criança e da Juventude, que no entanto ainda não entrou em vigor.

 

52. O Governo informou que a taxa de mortalidade infantil, que havia sido de 50 para cada 1.000 em 1990, diminuiu para 40 por cada 1.000 em 1993, e que a taxa de mortalidade infantil para crianças menores de cinco anos de idade havia diminuído de 105 para 69 por cada 1.000 durante o mesmo período.32/ Estas taxas, no entanto, continuam sendo mais elevadas dentro de determinados grupos sócio-econômicos.33/ Conforme os acordos de paz, o Governo comprometeu-se a aumentar em 50% os gastos públicos que são destinados às áreas da educação, da nutrição e da saúde, de 1996 até o ano 2000. O aumento do gasto público nestas áreas será especialmente importante para as crianças, as quais continuam sofrendo, em grande número, com os efeitos da pobreza, desnutrição e a falta de acesso à educação e aos cuidados básicos de saúde. Os relatórios do Governo indicam que o sistema escolar acolheu a 68,2% das crianças em idade escolar primária (7-12), mas apenas 20% daquelas crianças entre os 13 e 15 anos, e 10,9% daquelas crianças entre os 15 e os 18 anos.34/

 

53. A Comissão está particularmente preocupada com a situação das crianças, as quais, por motivos de necessidade econômica, têm que trabalhar no lugar de ir à escola. Um estudo da UNICEF indicava que quase 1.000.000 de crianças guatemaltecas estavam trabalhando em vez de irem à escola.35/ Além disso, informou-se à CIDH que muitas destas crianças trabalham em condições precárias, que há muito poucos sistemas para vigiar o cumprimento das normas, ou para fazer com que elas sejam cumpridas, e que, neste sentido, não se cumprem as obrigações da Guatemala de acordo com a Convenção sobre os Direitos da Criança.

 

54. O Governo reconheceu que a situação das crianças de rua na Guatemala é considerada trágica, pelo fato de serem vítimas de atos de violência que "até há pouco, permaneciam completamente impunes".36/ O Escritório do Procurador de Direitos Humanos conta com um programa especial, a Defensoría de los Derechos de la Niñez, que se dedica a proteger os direitos da criança, e a COPREDEH, o Ministério Público e a Casa Alianza participam em um comitê permanente para vigiar a situação dos meninos de rua. A Comissão assinala que em dezembro de 1996, um guarda de segurança particular foi condenado à prisão pelo assassinato de um menino de rua, Oscar René Marroquín, e dois policiais foram condenados como cúmplices por haverem ajudado a ocultar o corpo. A Comissão considera que estas condenações são uma resposta importante, e manifesta a esperança de que toda essa classe de violações encontre a reação exigida em termos de investigação, julgamento e punição, de maneira que estes delitos não permaneçam impunes.

 

55. Não obstante, a Comissão continua recebendo relatórios, que examinará nos casos que lhe sejam apresentados, sobre atos de violência contra os meninos de rua, entre eles agressões e delitos sexuais, detenção ilegal e arbitrária e, em vários casos, homicídios. A Casa Alianza continua documentando tais casos, que segundo tal instituição inclui ocorrências de abuso por parte de agentes do Estado.37/ Neste sentido, o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas manifestou em 1996 que:

 

lamenta a situação dos meninos de rua na Guatemala, os quais estão sujeitos a graves violações de seus direitos humanos ... particularmente seu direito à vida e seu direito a não ser submetido a torturas e maus tratos. A Comissão observa com preocupação a intensidade do abuso contra os meninos de rua por parte de pessoas com autoridade, entre elas, a polícia particular e pública.38/

Por sua parte, no dia 30 de janeiro de 1997, a CIDH submeteu o caso de Anstraum Villagrán e Outros (11.583), conhecido como o caso dos "Bosques de San Nicolás", à Corte Interamericana de Direitos Humanos, no qual a Comissão declarou responsável o Estado pelas violações do direito à vida e do direito a não ser submetido a torturas, os quais foram praticados por agentes do Estado contra vários meninos de rua guatemaltecos no ano de 1990.

 

 

VIII. O DIREITO À IGUALDADE DE PROTEÇÃO E A UMA VIDA LIVRE DE DISCRIMINAÇÃO

 

Igualdade e os Direitos dos Povos Indígenas

 

56. A participação dos povos indígenas na vida nacional, os quais constituem mais da metade da população, melhorou em vários aspectos importantes. Na esfera política, a Comissão observou a representação que eles obtiveram como resultado das eleições realizadas em fins de 1995, e em janeiro de 1996, através das quais os candidatos indígenas foram eleitos prefeitos em 100 municipalidades, entre elas, as capitais dos departamentos de Sololá e Quetzaltenango, e seis deputados indígenas foram eleitos para o Congresso Nacional.

 

57. A nível estatal, foram tomadas várias medidas importantes. Em 1995, o Governo começou a adotar as medidas necessárias para estabelecer o delito por motivos de ódio racial ou étnico, o qual não havia sido codificado anteriormente. Em 1996, a Guatemala ratificou o Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho. Dentro do marco das negociações de paz, o Governo e a URNG assinaram um acordo sobre a identidade e os direitos dos povos indígenas.

 

58. Deve levar-se em conta, além disso, que a Guatemala conta com um programa de educação bilíngüe que foi concebido para proporcionar estudos no idioma local nas áreas majoritariamente indígenas, e introduzindo o espanhol numa fase posterior. A metodologia utilizada para o aprendizado da língua recebeu, recentemente, um prêmio da UNESCO.

 

59. Sem prejuízo de tais avanços, a situação dos povos indígenas com relação a seu acesso à justiça continua preocupando a CIDH. A falta de respeito que persiste pela diversidade cultural é a causa de exemplos de discriminação de facto e de jure. Por exemplo, os tribunais geralmente funcionam em castelhano, ainda que muitos dos habitantes da Guatemala falem idiomas indígenas, e raras vezes podem oferecer a tradução ou interpretação necessárias para garantir o processo devido. Por outro lado, frequentemente torna-se muito difícil para as populações indígenas, das zonas distantes, ter acesso à justiça por causa da escassez de instalações. O MINUGUA esteve trabalhando como Estado com o objetivo de fortalecer a capacidade do poder judiciário no sentido de acomodar o pluralismo lingüístico do país, e estabelecer um centro para a administração de justiça em Nebaj, que ofereça os serviços de julgamento, defesa e polícia, os quais não existem, atualmente.

 

60. O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas demonstrou sua preocupação: "A discriminação racial extremamente extensa, a pobreza extrema e a exclusão social em relação com a população indígena influem negativamente sobre o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais por esta população".39/ Quanto ao acesso das crianças indígenas à educação, o Especialista especial das Nações Unidas sobre a Guatemala indicou que apenas 30 de cada 100 crianças indígenas freqüentam a escola primária (comparadas com 73 em cada 100 crianças não-indígenas) e que apenas 6 de cada 100 crianças indígenas freqüentam a escola secundária (comparadas com 32 em cada 100 crianças não-indígenas).40/

 

 

Igualdade e os Direitos da Mulher

 

61. Após a ratificação por parte da Guatemala da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em 1995, o Congresso aprovou em fins de 1996 a "Lei para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Intrafamiliar". A lei estabelece uma série de medidas para proteger as vítimas da violência ocorrida nas mãos de familiares, o que inclui os cônjuges, ex-cônjuges e o pai de algum filho da vítima, bem como a violência entre pessoas que compartilhem ou tenham compartilhado de um mesmo domicílio. Pessoas particularmente vulneráveis, tais como as mulheres, as crianças, os anciãos e pessoas incapacitadas receberão proteção especial com base nas circunstâncias do caso. A lei tem aplicação para qualquer ato ou omissão que, direta ou indiretamente, casar dano ou sofrimento físico, sexual, patrimonial ou psicológico, tanto no âmbito público como o privado, e rege independentemente dos dispositivos do Código Penal. As denúncias podem ser levadas perante a instituição estatal pertinente, que por sua vez deve registrá-la e remetê-la ao tribunal de família, ou ao tribunal penal correspondente, dentro das 24 horas seguintes. Segundo o amplo conjunto de medidas protetoras que foram estabelecidas, pode-se determinar ao suposto agressor ou agressora que abandone o domicílio compartilhado; pode-se determinar que ele ou ela abstenha-se de possuir armas, e as mesmas podem ser confiscadas; pode-se ainda suspender os direitos de custódia ou visitação, e pode-se determinar outras medidas que impeçam que o agressor ou agressora perturbe a vida da vítima. A Polícia Nacional tem a obrigação de intervir nestes casos, de oficio, ou quando solicitada pela vítima ou por uma terceira pessoa. A Comissão dá valor à promulgação desta significativa lei, que reconhece os deveres contraídos pelo Estado ao aderir à Convenção de Belém do Pará, e que constitui um avanço fundamental na luta contra esta violência devastadora, e espera com interesse as informações sobre a ação que seja tomada para por em execução todos os seus dispositivos.

 

62. A Comissão assinala, além disso, que, em princípios de 1996, a Corte de Constitucionalidade declarou inconstitucionais os artigos 232 a 235 do Código Penal (relacionados com o adultério e o concubinato) tomando como fundamento seu efeito discriminatório da mulher. As argumentações perante a Corte, ao avaliar os dispositivos impugnados, fizeram referência à Convenção Americana e à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Esta decisão tem um grande significado dentro do contexto do esforço realizado por várias ramificações do Estado para ajustar as leis guatemaltecas às obrigações nacionais e internacionais do país.

 

63. A Comissão continua observando com interesse os esforços para modificar outros dispositivos legais, particularmente as seções do Código Penal guatemalteco relacionadas com a função e representação dos esposos dentro da unidade conjugal, de modo que se alcance a plena capacidade da mulher par exercer os seus direitos e liberdades em pé de igualdade.

 

 

IX. CONCLUSÕES

 

64. Durante 1996, observaram-se mudanças extraordinárias na situação dos direitos humanos na Guatemala. Alcançou-se o objetivo principal de colocar-se um fim ao conflito armado. Os diferentes setores da sociedade guatemalteca abriram um novo espaço político, e dessa maneira geraram oportunidades de diálogo e colaboração para abordar a difícil execução dos acordos negociados entre o Governo e a URNG. É importante assinalar que o objetivo de que toda pessoa possa desfrutar, cabal e eqüitativamente, de seus direitos e liberdades, teve prioridade durante o processo da negociação. Os esforços do Estado e da sociedade guatemalteca para por fim ao conflito armado e dar começo à paz satisfazem uma condição prévia necessária para o progresso dos direitos humanos e proporcionam a base para o trabalho em prol da reforma. A Comissão reconhece e dá valor aos avanços que foram conseguidos. De particular importância neste sentido é o início das transformações da estrutura repressiva anterior, como exemplificado pela dissolução das PAC. Da mesma forma, a ação do Governo dirigida a obter o cumprimento dos direitos humanos, em particular o respeito ao direito à vida por parte de seus agentes.

 

65. Sem prejuízo destes desenvolvimentos, a Comissão continua seriamente preocupada pelo fato de não ter-se alcançado ainda, na Guatemala, uma situação que permita o gozo pleno dos direitos humanos. O longo conflito que a Guatemala sofreu deixou seqüelas sérias nas áreas culturais e institucionais, o que exige um esforço concertado e permanente para sua superação: 1) a atividade policial não está plenamente controlada; 2) o poder judiciário não garante atualmente que haja justiça em todos os casos; 3) há incerteza com respeito à aplicação da Lei de Reconciliação; 4) apesar do texto expresso da Convenção Americana, há uma extensão da pena de morte através dos decretos legislativos 38-94, 14-95 e 81-96; e, 5) houve ocorrências de justiça pelas próprias mãos (linchamentos) em contravenção aos princípios básicos do império da lei. A Comissão continuará observando com muito interesse o progresso que será feito com relação à situação dos direitos humanos na Guatemala.

 

 

X. RECOMENDAÇÕES

 

66. A CIDH exorta as partes nas negociações de paz a perseverarem em sua dedicação à consolidação da paz, a darem cumprimento pleno aos acordos de paz, e a avançarem com a implementação das reformas necessárias.

 

67. A Comissão recomenda que seja dada atenção prioritária às reformas do sistema judiciário, inclusive a provisão de mais recursos, treinamento e coordenação melhorada, e a reestruturação e fortalecimento necessários para desenvolver sua capacidade de investigar e reagir, oportuna e cabalmente, às violações dos direitos humanos e os delitos comuns.

 

68. A CIDH recomenda que alguma ocorrência de ameaça ou intimidação de juízes, fiscais e investigadores seja rapidamente confrontada, inclusive com medidas eficazes de proteção quando seja o caso, e com a investigação e a aplicação da justiça aos responsáveis.

 

69. A Comissão recomenda que as autoridades pertinentes investiguem, julguem e castiguem com firmeza os linchamentos, tentativas de realização de linchamentos e os chamados atos de "limpeza social", que são inaceitáveis dentro do sistema interamericano de direitos humanos.

 

70. Recomenda que sejam concluídas as medidas que deveriam ser tomadas dentro do marco legal para alcançar-se a igualdade plena da mulher.

 

71. A Comissão recomenda que dedique-se maior atenção à proliferação de armas e de forças e grupos de segurança particulares, com o fim de alcançar a vigência das devidas medidas legislativas, administrativas e judiciais destinadas a controlar o número de armas de fogo e seu uso, bem como a vigilância e fiscalização das atividades dos agentes de segurança particulares.

 

72. A Comissão recomenda que o Estado amplie, de conformidade com o acordo sobre a identidade e direitos dos povos indígenas, seus esforços destinados a remediar os casos de discriminação de facto e de jure de modo que seja alcançada sua participação plena na vida e desenvolvimento nacionais.

 

73. A Comissão exorta o Estado a outorgar maior prioridade à proteção da criança, à satisfação de suas necessidades básicas de nutrição, cuidados básicos de saúde e educação adequados, e para assegurar que as crianças que precisem de trabalhar não o façam sob condições que representem prioridade sobre sua educação e que proíbam o trabalho noturno e outras formas de emprego que põem em perigo a sua saúde, segurança ou desenvolvimento.


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