HAITI

 

 

1.       A Comissão Interamericana de Direitos Humanos decidiu incluir neste capítulo considerações relacionadas com a República do Haiti, um Estado membro da  OEA cujas práticas em matéria de direitos humanos merecem especial atenção posto que a situação do país encontra-se contemplada pelo quinto critério do Relatório Anual da CIDH de 1997 conforme segue:

 

situações cojunturais ou estruturais, que estejam presentes em Estados que por diversas razões enfrentem situações que afetem seria e gravemente o gozo dos  direitos fundamentais, consagrados na  Convenção Americana ou na  Declaração Americana.  Este critério inclui, por exemplo: situações graves de violência que dificultam o funcionamento adequado do Estado de Direito; graves crises institucionais; processos de reforma institucional com graves incidências negativas para os direitos humanos; ou omissões graves na  adoção de disposições necessárias para fazer efetivos os direitos fundamentais.

 

2.       A Comissão elaborou esta seção do Capítulo IV de seu Relatório Anual de conformidade com o artigo 57(1)(h) de seu Regulamento e baseou sua análise na  informação obtida durante as visitas in loco descritas a seguir e na informação pública confiável.  Em 18 de dezembro de 2002, a CIDH encaminhou ao Estado um projeto da  seção sobre Haiti para o Capítulo IV de seu Relatório Anual 2002, de conformidade com o artigo previamente mencionado, e concedeu ao Estado um prazo de trinta dias para que este apresentara suas observações. O Estado não apresentou observações dentro deste prazo.

 

3.       A CIDH realizou em 2002 duas visitas in loco à República de Haiti a convite do Governo desse país. Durante a primera visita, de 28 a 31 de maio de 2002, a delegação esteve integrada pelo senhor Clare K. Roberts, Membro da  CIDH e Relator para Haiti, o senhor Santiago A. Cantón, Secretário Executivo da  Comissão, o senhor Eduardo Bertoni, Relator para a Liberdade de Expressão da  CIDH, a senhora Christina Cerna, Especialista Principal e a senhora Raquel Poitevien, Especialista de Direitos Humanos encarregada do Haiti. Durante a segunda visita, de 26 a 29 de agosto de 2002, a delegação esteve composta por Clare K. Roberts, Membro da  CIDH e Relator para o Haiti, Eduardo Bertoni, Relator Especial para a Liberdade de Expressão e Raquel Poitevien,  Especialista de Direitos Humanos encarregada do Haiti.

 

4.       A Comissão gostaria de manifestar sua gratidão ao Governo de Haiti por todas as atenções recebidas pela delegação para que esta pudesse levar a cabo estas visitas, e pelo convite de regressar periodicamente ao país para realizar o acompanhamento das recomendações. As visitas da  CIDH foram realizadas de conformidade com o mandato, Estatuto e Regulamento da  CIDH. A importância destas visitas é reafirmada na  resolução CP/RES. 806 (1303/02) de 15 de janeiro de 2002 do Conselho Permanente da  OEA. Esta resolução foi elaborada com a ativa colaboração do Estado de Haiti e adotada pela  Organização dos  Estados Americanos.  O propósito desta resolução é restabelecer um clima de confiança e segurança para resolver a crise política no Haiti através de vários mecanismos:  1) o estabelecimento de uma Missão Especial para o fortalecimento da  democracia, 2) o estabelecimento de uma Comissão Investigadora Independente dos eventos ocorridos em 17 de dezembro de 2001, e 3) a indenização às organizações e pessoas que sofreram danos e prejuízos como resultado direto dos  atos de violência mencionados no item 2.  A CIDH, na  área de sua competência, recebeu o mandato de avaliar e informar sobre a situação atual dos  direitos humanos e sobre os eventos ocorridos em 17 de dezembro de 2001. Essas atividades foram realizadas em estreita colaboração com outras entidades da  OEA e com o Secretário Geral da  OEA, respeitando a plena autonomía e independência das atividades da  CIDH.

         

 A.      A visita in loco de maio de 2002

 

5.       Durante a primeira visita, a delegação reuniu-se com funcionários do Governo haitiano, bem como com representantes da  oposição e as organizações da  sociedade civil.  A delegação também reuniu-se com o Presidente da  República Jean Bertrand Aristide, o Primeiro Ministro Yvon Neptune, o Ministro de Relações Exteriores, o Ministro de Justiça e Segurança Pública, o Ministro do Interior, o chefe da  Polícia Nacional do Haiti, o Inspetor Geral da  Polícia Nacional e o Secretário de Estado para a Segurança Pública. A delegação também esteve com representantes de diferentes setores da sociedade civil, que pertencem a Plataforma de Organizações Haitianas de Direitos Humanos. Além disso, a delegação encontrou-se com representantes de diferentes partidos políticos da oposição agrupados sob a Convergência Democrática, bem como representantes das igrejas católica e protestante. A CIDH também reuniu-se com representantes da  Associação de Impensa Haitiana, a Associação de Jornalistas Haitianos e a Associação de Mulheres Jornalistas. Ademais, a CIDH esteve com representantes do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento no Haiti e representantes da  USAID. A delegação também agradece as opiniões do Grupo de Amigos de Haiti sobre a situação nesse país.

 

6.       Durante sua visita de maio de 2002, a Comissão tomou nota da  difícil situação da  sociedade haitiana evidenciada por vários fatores, incluindo a pobreza extrema na  qual  vive a maioria da  população, a elevada taxa de mortalidade materna e infantil, e o alto nível de analfabetismo e desnutrição. A Comissão entende que estas circunstâncias criam uma situação de crise social que pode impedir o gozo de alguns direitos, inclusive o de direitos socio-econômicos.  Além disso a CIDH considera que, neste contexto, o respeito aos  direitos humanos não somente engloba direitos civis e políticos, mas também direitos econômicos, sociais e culturais, os quais representam um importante desafio que não pode ser abordado sem uma ampla participação do governo, mediante a elaboração de um programa concreto de desenvolvimento do governo nacional e a colaboração da  sociedade civil e da comunidade internacional.

 

7.       Além de outros aspectos da situação dos direitos humanos no país, a Comissão abordou a questão particular do respeito ao estado de direito no Haiti, o qual considera de primordial importância para assegurar a plena observância dos  direitos humanos na  República do Haiti.  A Comissão prestou especial atenção a questões relacionadas com a independência do poder judicial, a impunidade, a segurança cidadã e a liberdade  de expressão.

 

i.        O estado de direito no Haiti

 

8.       A CIDH ressalta a importância do sistema democrático e do  estado de direito para a proteção dos  direitos humanos. Como assinala pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, numa sociedade democrática, os direitos e liberdades inerentes ao ser humano e as garantias aplicáveis estão interrelacionadas e complementam-se.[1]

 

          9.       A democracia baseia-se no  princípio de que a soberania política é um direito dos cidadãos e que, no exercício desta soberania, os cidadãos elegem seus representantes, nos quais recae o poder político, respeitando os direitos daqueles que tem pontos de vista minoritários. Os representantes recebem um mandato de seus eleitores, quem aspiram a uma vida decente, a liberdade e a democracia, objetivos que somente podem ser alcançados através de um  controle eficaz das instituições públicas e mediante a existência de um equilíbrio entre todas os ramos do governo. Embora os cidadãos elegam seus representantes, também participam no processo de adoção de decisões por meio de variadas formas de expressão e reunião pacífica. A observância eficaz dos  direitos humanos requer a existência de uma ordem jurídica e institucional em que as leis são mais  importantes que a vontade dos  governantes, e no qual exista um equilibrio entre todas os ramos do governo com o fim de preservar a expressão da  vontade popular.

 

10.     A Carta Democrática Interamericana estipula que “são elementos essenciais da  democracia representativa, entre outros, o respeito aos direitos humanos e as liberdades fundamentais; o acesso ao poder e seu exercício com sujeição ao estado de direito; a celebração de eleições periódicas, livres, justas e baseadas no  sufrágio universal e secreto como expressão da soberania do povo; o regime plural de partidos e organizações políticas; e a separação e independência dos poderes públicos”. Ademais, “são componentes fundamentais do exercício da  democracia a transparência das atividades governamentais, a probidade administrativa, a responsabilidade dos  governos na  gestão pública, o respeito pelos direitos sociais e a liberdade  de expressão e de imprensa”.[2]

 

11.     Representantes de organizações nacionais e internacionais informaram a Comissão sobre os esforços  que estão sendo realizados para iniciar um diálogo entre o governo e os representantes da  oposição. A falta de diálogo entre os diferentes setores da  sociedade teve sem dúvida alguma um efeito negativo na  protecção dos  direitos humanos.  Segundo a experiência da  Comissão, é primordial a plena observância dos direitos humanos principalmente por meio do diálogo, em que participam todos os setores da  sociedade.  A Comissão vem incentivando este diálogo, a fim de este permita a participação dos  setores da  sociedade haitiana na  formulação de uma política global em matéria de direitos humanos.  No  contexto atual no Haiti, somente será possível avançar na proteção eficaz dos direitos humanos se forem incluidos os interesses setoriais.

 

ii.       Os eventos de dezembro de 2001

 

12.     Com respeito aos eventos ocorridos em 17 de dezembro de 2001, a Comissão reitera sua dura condenação aos atos de violência em que muitas pessoas faleceram e outras resultaron feridas, e que provocaram danos substanciais à propriedade de vários cidadãos.  Embora a CIDH não tenha competência para determinar a responsabilidade penal individual das pessoas que participaram desses eventos, a Comissão insiste em que o Estado cumpra com sua obrigação internacional de investigar e julgar, de acordo com as garantias do devido processo, aqueles responsáveis pelos atos de dezembro de 2001 e assegurar que esses delitos não fiquem impunes.  A Comissão destaca a urgente necessidade de realizar uma investigação a fundo, imparcial e objetiva dos delitos cometidos e determinar as responsabilidades e penas respectivas. Em particular, a CIDH  mencionou que era necessário realizar uma investigação com respeito à responsabilidade daqueles que supostamente ordenaram, incentivaram ou toleraram a presença de pessoas armadas e grupos civis armados.  A Comissão manifesta sua preocupação sobre a informação que recebeu, segundo a qual algumas das pessoas identificadas como aquelas que cometeram violações dos  direitos humanos em dezembro de 2001 não estão sendo obejto de uma investigação adequada.

 

13.     Nesse sentido, a Comissão menciona as iniciativas do Governo de Haiti em coordenação com a comunidade internacional (em particular a OEA) destinadas a restabelecer o clima de confiança e segurança, mediante a investigação dos  sucessos de 17 de dezembro de 2001 por uma Comissão Investigadora Independente.  A CIDH acolhe com prazer estas iniciativas e manifesta suas esperanças de que conduzam à identificação e punição de aqueles responsáveis pelas violações graves de direitos humanos e ajudem a reforçar o estado de direito no Haiti.

 

iii.      Administração da  justiça

 

14.     O poder judicial tem a tarefa fundamental de aplicar a lei e assegurar seu cumprimento e é, sem dúvida alguma, o órgão fundamental para a proteção dos  direitos humanos.  No  sistema interamericano de direitos humanos, o funcionamento adequado do poder judicial é essencial para prevenir o abuso de poder pelas instituições do Estado e, portanto, para a proteção dos  direitos humanos.  Para que o poder judicial possa funcionar eficazmente como um órgão de supervisão, garantia e proteção dos  direitos humanos, deve não somente existir formalmente, mas também ser independente e imparcial.  A existência de um poder judicial independente é essencial para o gozo eficaz dos direitos humanos e a democracia, e constitui um direito que todos os Estados membros da  OEA, incluindo Haiti, estão obrigados a respeitar e garantir para o benefício de todas as pessoas sob sua jurisdição.

 

15.     Depois de sua visita in loco de agosto de 2000, a Comissão manifestou graves preocupações com respeito às deficiências do sistema de justiça haitiano, devido a falta de independência da esfera do executivo e a impunidade que prevalece com respeito a uma grande quantidade de delitos.  Durante sua visita de maio de 2002, a CIDH lamentou que não se haviam conquistado melhorias substanciais na  administração da  justiça.

 

16.     Além disso, o sistema judicial haitiano continua com problemas crônicos, tais como a escassez de pessoal, verbas e recursos logísticos, o que faz com que haja demoras nos  processos judiciais e violações sistemáticas das garantias ao devido processo legal. A Comissão também foi informada de que não existe um aparato judicial no nível de Communes.

 

17.     A Comissão mencionou em várias ocasiões a necessidade de combater a impunidade.  A CIDH especificou que a situação atual de impunidade por violações dos  direitos humanos contribui em grande medida para a perpetuação da  violência.  Neste sentido, a investigação, julgamento e punição dos acusados são fundamentais para a eliminação da  violência.  A Comissão assinalou com preocupação que muitos casos relacionados com violações dos  direitos humanos não foram levados aos tribunais, e que as investigações progrediram lentamente ou estão paralizadas.

 

18.     A Comissão recebeu informação específica sobre casos de homicídio que estão em um estado de absoluta impunidade, pois as investigações não progrediram apesar de terem sido iniciadas há vários anos. Este casos incluem, entre outros, o jornalista Jean Dominique.  A CIDH observa, porém, que em alguns casos as investigações judiciais produziram resultados, como nos  casos Raboteau e Carrefour Feuilles, os quais demonstraram que é possível  estabelecer os fatos e julgar as pessoas responsáveis pelas violações dos  direitos humanos. Não obstante, estes dois exemplos atestam que não se avançou o suficiente na  eliminação da  impunidade, dado que a grande maioria destes casos continuam sem resolução. Ademais, a CIDH recebeu informação segundo a qual a situação geral de impunidade que existe num  grande número de casos leva à sociedade haitiana a perder a confiança em seu sistema de justiça.

 

19.     A administração apropriada da  justiça também está garantida, em grande parte, pela  independência do poder judicial, em particular por sua independência da esfera do executivo. A Comissão observa que há no Haiti graves problemas na administração da  justiça.  Varios fatores atestam a subordinação do poder judicial à esfera do executivo. Isto inclui o fato de que o Presidente tem autoridade para destituir os juízes, e que os commissaires de gouvernement e seus suplentes são representantes do ramo executivo perante os tribunais. Ademais, os juizes de paz são assistentes dos  commissaires de gouvernement (ou parquets), e estão sob sua jurisdição.  A Comissão foi informada de que a falta de independêcia do poder judicial está também atribuida ao fato de que depende em grande parte do executivo para seu financiamento. A Comissão foi informada de que embora os juízes de instrução tem autoridade para levar a cabo suas próprias investigações, não recebem  recursos suficientes para fazê-lo e que, por conseguinte, dependem dos  agentes de polícia para as investigações e que a Polícia Nacional, cujas obrigações incluem a  investigação de delitos, está sob a supervisão do  executivo. Por último, parece que o executivo tem o poder de selecionar, nomear e destituir as autoridades judiciais, o que provoca interferências e representa um grave obstáculo para a independência do poder judicial.

 

20.     A Comissão assinala que o Estado do Haiti deverá, de conformidade com suas obrigações estabelecidas na  Convenção Americana, acelerar o processo para corrigir a grave situação na  que se encontra o sistema judicial haitiano, o qual se caracteriza pela  falta de independência, a persistência da  impunidade e as limitações orçamentárias e logísticas.

 

iv.      Segurança cidadã

 

21.     Na  área de segurança cidadã, a Comissão manifesta sua preocupação pelo  lento progresso que observou desde sua última visita. Nessa ocasião, a CIDH foi informada das melhorias concernentes à Polícia Nacional, em particular, os planos relacionados à capacitação dos  agentes de polícia, e os mecanismos de  supervisão. A Comissão indica, porém, que os 5.600 membros do copo policial, cujo dever é garantir a segurança de oito milhões de pessoas, são evidentemente insuficientes. As autoridades competentes reconheceram que a polícia concentra-se em áreas urbanas e que as zonas rurais não contam com a presença da  polícia. Este vazio criou um clima favorável para o abuso e os casos de linchamento público. A CIDH recebeu denúncias relativas a atos perpetrados por agentes da  Polícia Nacional do Haiti, incluindo atos de abuso de poder, atos que atingiram o tratamento degradante, atos de tortura e execuções extrajudiciais.

 

22.     A CIDH está ciente das declarações do Presidente Aristide com respeito à política de “zero tolerância” para as atividades delitivas.  A Comissão especifica que, embora não desejasse formular recomendações sobre o tipo de política penal que os governos adotam, recorda, atuando no  marco de sua competência, que o respeto aos  direitos individuais de todas as pessoas é essencial quando se aplica qualquer política penal.

 

23.     A Comissão recebeu informação de diferentes fontes sobre atos de violência perpetrados pela  polícia., sobretudo sobre casos de execuções extrajudiciais. Estes atos de violência supostamente cometidos por agentes da  polícia nacional devem-se ao fato de que estes agentes interpretaram mal a política de “zero tolerância”, pensando que qualquer  meio  justificaria a eliminação de atividades delitivas.

 

24.     A este respeito, o Presidente Aristide disse à Comissão que estava totalmente convencido da necessidade de que esta política de zero tolerância fosse aplicada de conformidade estrita com a lei e com as normas internacionais geralmente reconhecidas que tratam sobre o respeito dos  direitos dos  indivíduos. A Comissão recebeu com agrado esta declaração do Presidente e manifestou suas esperanças de que este esclarecimento sobre o cumprimento estrito das leis e os princípios internacionais geralmente reconhecidos seja transmitido a todos os membros da  Polícia Nacional do Haiti.

 

v.       Organizações populares

 

25.     Vários setores da  população manifestaram à Comissão sua preocupação sobre as atividades das denominadas “organizações populares”, as quais as autoridades descreveram como grupos organizados dentro de uma comunidade determinada para abordar os problemas dessa comunidade. Entretanto, de acordo com a informação recebida pela  CIDH, algumas destas organizações estão armadas e intimidam a oposição, conforme as instruções que recebem das autoridades. Há alegações de que algumas destas organizações participaram em incidentes graves que ocorreram em dezembro de 2001.

 

26.     Os direitos à participação no  governo, a reunião e a liberdade de expressão são reconhecidos pela  Convenção Americana. Por conseguinte, as “organizações populares”, que atuam como grupos de cidadãos livres ou organizações de base que apoiam a agenda política do Presidente, podem em certas circunstâncias ser os canais apropriados para o exercício destes direitos. A Comissão assinala que a manifestação de certas opiniões políticas partidárias não podem ter mais importância que outras, nem tampouco podem justificar atos de violência ou restrições nos  direitos de outros grupos ou indivíduos que tem opiniões políticas diferentes, incluindo o direito que tem de expressar estas opiniões.

 

27.     A responsabilidade internacional de um Estado emerge quando grupos de civis violam os direitos humanos e o fazem com o apoio ou a aquiescência do governo. A Comissão solicita ao Governo que investigue seriamente os atos de violência atribuidos a algumas “organizações populares”, e que adote, como uma questão urgente, todas as medidas necessárias para prevenir que estes atos voltem a ocorrer.

 

28.     A CIDH também indica que é fundamental que o uso da  força seja autoridade exclusiva das forças públicas de segurança.  É essencial investigar a existencia destes supostos grupos armados e desarmã-los por completo o antes possível. A Comissão valoriza o recente anúncio do Presidente Aristide com respeito à implementação de um programa de desarme em nível nacional. A Comissão declara que supervisionará de perto o progresso deste programa, o qual considera de vital importância para assegurar um maior respeito aos  direitos humanos.

 

vii.     Liberdade  de expressão

 

29.     O respeito pela  liberdade  de expressão é uma das principais preocupações da  CIDH no hemisfério, conforme demonstra sua decisão de criar uma Relatoria Especial para a Liberdade  de Expressão, a qual contou com o apoio dos Chefes de Estado e de Governo na  Segunda Cúpula das Américas celebrada no Chile em abril de 1998. A CIDH prestou particular atenção à situação da  liberdade  de expressão no Haiti em seus relatórios anuais e no  relatório do Relator que trata sobre a visita realizada a este país em fevereiro de 2002.  A CIDH também tem em consideração a informação recebida durante a visita de maio de 2002, cujas observações contidas nos  relatórios da  CIDH e seu Relator Especial para a Liberdade  de Expressão são bastante relevantes.

 

30.     A Comissão manifesta sua preocupação pela falta de progresso nas investigações sobre os assassinatos dos jornalistas Jean Dominique e Brignol Lindor. A impunidade que envolve estes casos de homicídio contribui significativamente para a perpetuação de atos de violência contra outros jornalistas. Ademais, a informação recebida indica que, embora seja possível criticar as autoridades no Haiti, em alguns casos, as críticas conduzem a  ameaças que põe os jornalistas em situações de risco e que, a sua vez, tem um efeito de intimidar o seu trabalho. Segundo a informação recebida, estas situações levaram jornalistas a exercer sua própria autocensura ou a abandonar a profissão. Cabe destacar que a liberdade  de expressão não está garantida simplesmente pela  ausência de atos de censura prévia. As ameaças dirigidas aos comunicadores sociais também constituem uma restrição indireta da  liberdade  de expressão e é o dever do Estado proporcionar a proteção necessária a estes comunicadores, de maneira que possam desempenhar suas funções e continuar informando o público.

 

31.     A CIDH recebeu informação sobre a existência de leis que tipificam como delito as declarações ofensivas dirigidas a autoridades públicas. A CIDH ressalta a incompatibilidade destas disposições com o artigo 13 da  Convenção Americana, dado que estas leis, conhecidas geralmente como leis de “desacato”, concedem uma medida maior de proteção às autoridades públicas que atuam em caráter oficial que aquela disponível para o resto da  sociedade.  A CIDH entende que estas medidas jurídicas que restringem a  liberdade  de expressão poderiam penalizar abusos, ou serem utilizadas como um meio para silenciar as idéias e opiniões pouco populares, e poderia, portanto, reprimir o debate popular que é essencial para o funcionamento eficaz da  democracia.  A Comissão espera que estas leis sejam revisadas pelo  Estado haitiano, a fim de que se adaptem ao artigo 13 da Convenção Americana, tomando em consideração os critérios contidos na  Declaração Interamericana de Princípios para a Liberdade  de Expressão.

 

          B.       A visita in loco de agosto de 2002

 

32.     Durante sua segunda visita in loco ao Haiti realizada entre  26 e 29 de agosto de 2002, a delegação da Comissão reuniu-se com o Primeiro Ministro Yvon Neptune, o Ombudsman Necker Dessables, o Ministro de Relações Exteriores Joseph Philippe Antonio, o Ministro de Assuntos Sociais, Saúde Pública e População  Henry Claude Voltaire, o Chefe de Pessoal do Ministro de Justiça e Segurança Pública Caius Alphonse, os Magistrados Bernard Saint Vil e Fritzner Duclair, e o Chefe da  Polícia Nacional do Haiti Jean Nesly Lucien.  A delegação também esteve com representantes de vários setores da  sociedade civil organizados em associações, federações e confederações, e com representantes de organizações não governamentais de direitos humanos.  A Comissão intercambiou pontos de vista com representantes de várias organizações intergovernamentais que trabalham no Haiti. Também reuniu-se com representantes das igrejas protestante, luterana e outras.

 

33.     O propósito da  visita era observar o nível de cumprimento das recomendações realizadas no final da  visita de maio de 2002, e obter informação adicional.  Também foi colhida informação para a elaboração de um relatório sobre a situação geral dos direitos humanos no Haiti.

 

34.     Ao terminar a visita, a Comissão afirmou que não havia observado nenhum  progresso com respeito aos problemas mencionados ao final da  visita de maio de 2002. A Comissão afirmou sua profunda preocupação pela fragilidade do estado de direito no Haiti, pela  falta de independência do poder judicial, o problema da  impunidade, o sentimento geral de insegurança entre a população, a existência de grupos armados que atuam com total impunidade e as ameaças contra alguns jornalistas. A CIDH também expressou sua preocupação pela  informação que recebeu sobre o ataque de 2 de agosto de 2002 na  prisão  de Gonaïve, no qual fugiram aproximadamente 159 reclusos. A Comissão manifestou suas  expectativas de que o Governo realize as investigações necessárias para esclarecer as circunstâncias relacionadas com esse incidente.

 

          35.     A Comissão assinala que a falta de diálogo entre o governo, a oposição e os outros setores da  sociedade vem entorpecendo gravemente a solução dos  problemas mencionados anteriormente e reflete a falta de elementos necessários para o estabelecimento do estado de direito, de acordo com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e a Carta Democrática Interamericana. A CIDH também indica que emvora tenha solicitado com urgência o início de um diálogo que permitisse a todos os setores da  sociedade haitiana participar na  formulação de uma política global em matéria de direitos humanos, não se observou nenhum avanço neste sentido. A Comissão reafirma a necessidade de iniciar tal diálogo.

 

36.     A Comissão está ciente das difíceis condições socio-econômicas do Haiti, as quais estão caracterizadas pela pobreza extrema na  que vive a maioria da  população, os altos níveis de analfabetismo e mortalidade materna e infantil, bem como de desnutrição. Esta situação, em termos gerais, impede o gozo de certos direitos, incluidno os direitos socio-econômicos. O respeito eficaz dos  direitos humanos requer não somente a proteção dos  direitos civis e políticos, mas también dos  direitos econômicos, sociais e culturais. Este grande desafio não pode ser abordado sem uma maior participação do Governo, mediante a elaboração de um plano concreto de desenvolvimento, e requer a cooperação dos  diferentes setores da  sociedade civil e da  comunidade internacional.

 

37.     A CIDH também recebeu informação que indica que recentemente houve uma escalada da  violência em Cité Soleil. Há relatórios alarmantes de menores violadas, assassinatos e a posse ilícita de armas por parte de civis. A Comissão considerou que a campanha nacional do Estado para o desarmamento teve muito pouco êxito. A Comissão ressalta que um Estado tem o dever de adotar as medidas apropriadas contra a insurgência  de grupos armados ilícitos, incluindo medidas para seu desarmamento, e deve exercer um maior controle sobre a posse e uso de armas de fogo. O uso da  força deve recair exclusivamente nas instituições com um mandato estabelecido constitucionalmente. As autoridades responsáveis devem aplicar a diligência debida na  investigação, julgamento e punição dos  membros de grupos armados ilícitos.

 

38.     Tendo em vista a importância que a Comissão concede à liberdade  de expressão, o Relator Especial para a Liberdade de Expressão, senhor Eduardo Bertoni, participou da  visita de agosto de 2002 para colher dados e informação a respeito do exercício desse direito que serão utilizados no relatório a ser publicado no seu devido tempo.

 

39.     Não obstante, o Relator recebeu informação sobre assalto, ameaças e assassinatos de jornalistas, que restringem o exercício da  liberdade  de expressão no Haiti, e manifestou sua preocupação a respeito. O Relator também recebeu informação sobre a situação das investigações que estão sendo realizadas para determinar a identidade  daqueles responsáveis pelo assassinato dos  jornalistas Jean Dominique e  Brignol Lindor.

 

          C.      Considerações finais

 

40.     Desde a visita realizada em agosto de 2002, a Comissão vem recebendo informação sobre a situação geral dos direitos humanos no Haiti, incluindo aquela apresentada pela  Comissão Nacional de Direitos Humanos durante a audiência celebrada em sua sede de Washington DC em 15 de outubro de 2002. Ademais, a Comissão está ciente dos discursos realizados perante o Conselho Permanente da  OEA pelo  Secretário Geral Adjunto, Embaixador Luigi R. Enaudi, em 6 e  20 de novembro de 2002, e pelo  Embaixador Raymond Valcin, Representante Permanente do Haiti junto a OEA em 5 de novembro de 2002. A CIDH também tomou em consideração os comentários realizados pelo Chefe da  Missão Especial da  OEA no Haiti, senhor David Lee, durante a conferência de imprensa de 3 de outubro de 2002, bem como o Relatório Preliminar apresentado pelo  Ministério de Justiça  e Segurança Pública do Haiti de acordo com a Resolução CP/RES. 822 (1331/02) (OEA/Ser.G, CP/doc.3649/02, 26 de setembro de 2002).

 

41.     A Comissão indica que, conquanto o Governo do Haiti tenha adotado algumas medidas com respeito as questões mencionadas anteriormente, se avançou muito pouco para superar essas dificuldades. Em particular, a CIDH observa que no que concerne a administração de justiça há ainda alguns casos emblemáticos de violações dos  direitos humanos que ficaram  impunes. O Estado tomou algumas iniciativas para investigar e levar aos tribunais os responsáveis pela violação de direitos humanos, mas muitos outros casos continuam sem resolução, em especial aqueles referentes aos eventos de dezembro de 2001. Neste sentido, a CIDH toma em consideração a publicação em 1º de julho de 2002 do Relatório da  Comissão Investigadora dos  eventos de  17 de dezembro de 2001 no Haiti. Com respeito à questão da  segurança cidadã, a Comissão valoriza os esforços do Governo para capacitar os futuros membros das forças de segurança, mas indica que continua recebendo relatórios de abusos policiais no  país. De forma similar, a CIDH parabeniza os esforços do Governo para desarmar a sua população, mas deve manifestar sua preocupação pelo êxito limitado de tais esforços, a posse e o uso ilícitos generalizados de armas de fogo e as repetidas ações violentas de certos grupos armados e organizações populares. Com relação à liberdade  de expressão, a Comissão lamenta indicar que continua recebendo  relatórios de ameaças contra a imprensa. Por último, a CIDH assinala com pesar que no final de novembro houve vários distúrbios e atos de violência baseados em motivos políticos no Haiti, o que demonstra a situação política tensa e delicada do país. Nesse sentido, a Comissão observa que, salvo algumas exceções, a maioria dos  candidatos para o Conselho Eleitoral Provisório  (CEP) ainda deve ser nomeada para que se  possa celebrar eleições no  futuro.

 

42.      A Comissão reitera que a principal fonte de legitimidade democrática é aquela outorgada pela  vontade popular, expressada em elições livres, periódicas e universais. Não obstante, as eleições em si não são suficientes para assegurar uma democracia plenamente eficaz. Como estipulado na Carta Democrática Interamericana, são elementos essenciais da  democracia representativa, entre outros, o respeito aos direitos humanos e as liberdades fundamentais; o acesso ao poder e seu exercício com  sujeição ao estado de direito; a celebração de eleições periódicas, livres, justas e baseadas no  sufrágio universal e secreto como expressão da soberania do povo; o regime pluralista de partidos e organizações políticas; e a separação e independência dos poderes públicos. Ademais, são componentes fundamentais do exercício  da  democracia a transparência das atividades governamentais, a probidade administrativa, a responsabilidade dos  governos na  gestão pública, o respeito pelos direitos sociais e a liberdade  de expressão e de imprensa. A subordinação constitucional de todas as instituições do Estado à autoridade civil legalmente constituida e o  respeito ao estado de direito de todas as entidades e setores da  sociedade são igualmente essenciais para a democracia. Nesse contexto, o estado de direito requer o funcionamento de um poder judicial independente e imparcial como um garantia da  proteção dos  direitos humanos, como um veículo para que as vítimas possam obter justiça, e como um órgão de supervisão das atividades dos outros ramos do governo.

 

43.     A CIDH declara que continuará supervisionando de perto a situação dos  direitos humanos no Haiti.[3] As visitas de maio e agosto de 2002 foram oportunidades importantes nesse  sentido e contribuiram para intensificar o diálogo que a Comissão, de conformidade com seu mandato, mantém com as autoridades e a sociedade haitianas.  A CIDH reafirma sua disponibilidade de trabalhar com o governo e com a sociedade haitiana em geral no  fortalecimento, a defesa e a proteção dos  direitos humanos, num ambiente de democracia e instituições legítimas.

 


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[1] Corte Interamericana de Direitos Humanos, Opinião Consultiva OC-8/87, O habeas corpus sob suspensão de garantias, 30 de janeiro de 1987, pars 24 e 26.

[2] Carta Democrática Interamericana, Artigos 3 e 4.

[3] A Comissão está elaborando um relatório substantivo que será finalizado depois da  terceira visita in loco da  Comissão, a qual está prevista para início de 2003.