RELATÓRIO Nº 14/02

ADMISSIBILIDADE

CASO 12.352

BRUCE CAMPBELL HARRIS LLOYD

GUATEMALA[1]

28 de fevereiro de 2002

 

 

I.          RESUMO

 

1.          Em 23 de setembro de 1999, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “a Comissão” ou a “CIDH”) recebeu uma petição apresentada pelo  senhor Bruce Campbell Harris Lloyd, o Diretor Regional da Casa Aliança, o Centro pela  Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Escritório do Arcebispado de Direitos Humanos na Guatemala (doravante denominados “os peticionários”). A denúncia indica que o Estado da Guatemala (doravante denominado “o Estado”)  violou os artigos 13 (Liberdade de Expressão) e 24 (obrigação de não discriminar), em conjunção com as obrigações genéricas contidas nos  artigos 1(1) (dever de respeitar e garantir os direitos) e 2 (obrigação de adequar a legislação interna) da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada “a Comissão”) em detrimento do senhor Bruce Harris Campbell.

 

2.          Segundo os peticionários, o direito à liberdade de expressão, artigo 13 da  Convenção, foi violado pelo  Estado da Guatemala quando a Corte Suprema de Justiça tomou sua decisão final de instaurar ação penal contra o senhor Harris por declarações públicas feitas nos meios de comunicação sobre o tema das irregularidades nas adoções internacionais, citando especificamente o nome de uma pessoa de um cartório supostamente envolvida nas adoções ilegais. Os peticionários alegam que o senhor Harris tinha direito a ser julgado por um tribunal de imprensa conforme o disposto pelo  artigo 35 da  Constituição guatemalense.

 

3.          O Estado da Guatemala argumenta que os recursos internos somente serão esgotados depois que a ação penal produza uma sentença definitiva.

 

4.          Após analisar os argumentos das partes à luz dos  requisitos de admissibilidade previstos na  Convenção, a Comissão decidiu declarar admissível a petição no que se refere as supostas violações aos artigos 8, 13 e 24 da  Convenção Americana.

 

II.          TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

5.          Em 18 de dezembro de 2000, a Comissão deu trâmite ao caso e enviou as partes pertinentes da  denúncia ao Estado outorgando-lhe um prazo de 90 dias para apresentar suas observações.

 

6.          Em 7 de março de 2001, o Estado solicitou uma prorrogação por noventa dias, com o propósito de poder recolher os datos que fossem necessários para poder responder o solicitado pela  Comissão.

 

7.          Em 8 de junho de 2001, o Estado apresentou sua resposta alegando que a petição deveria ser considerada inadmissível porque os recursos internos ainda não haviam sido esgotados até que se finalizasse a ação penal.

 

8.          Em 27 de agosto de 2001, os peticionários apresentaram suas observações à resposta do Estado sobre os fatos  e a admissibilidade da  petição.

 

III.          POSIÇÃO DA S PARTES

 

A.          Posição dos  peticionários

 

Sobre os fatos

 

9.          Em 1994, a Casa Aliança celebrou um convênio com a Procuradoria Geral da Guatemala com o fim de realizar investigações relacionadas com temas que afetam a infância e, especialmente, o tráfico ilegal de crianças. Em diversas oportunidades o senhor Harris informou e denunciou perante diversos meios de comunicação que, durante os últimos 3 anos, houve um grande aumento do número de adoções de crianças guatemalenses ao estrangeiro sem um controle judicial sobre o possível tráfico ilegal dos  mesmos.

 

10.          Em 11 de setembro de 1997, a Casa Aliança, por meio de seu representante Bruce Harris, realizou uma conferência de imprensa nas dependências da  Procuradoria da  Zona 13 da  cidade de Guatemala a respeito dos  resultados colhidos na  investigação. Nesta oportunidade manifestou sua preocupação pela existência de advogados envolvidos nos  processos de adoção internacional e, especificamente, assinalou a funcionária de um cartório a  Susana María Luarco Saracho de Umaña, por ter abusado do uso de seu poder como cônjuge do presidente da Corte Suprema de Justiça, com o fim de agilizar os processos de adoção.[2] Das investigações realizadas foi possível determinar que muitas das crianças tinham sido compradas ou roubadas e que em vários casos seus pais tinham sido manipulados ou forçados a dar as suas crianças em adoção.

 

11.          Em 24 de setembro de 1997, a senhora de Umaña apresentou uma denúncia criminal contra o senhor Harris por injúria, calúnia e difamação por suas declarações na  conferência de imprensa. Em 22 de abril de 1999, a mesma interpôs três queixas adicionais por delito de injúria, calúnias e difamação contra o senhor Harris por declarações relacionadas com os mesmos fatos das investigações na  revista El Processo, El Periódico, e um correio eletrônico que enviou por uma rede de alerta.

 

12.          O senhor Harris interpôs uma série de recursos para declarar improcedentes os processos penais contra sua pessoa, mas todos foram infrutíferos. Com efeito, uma vez iniciada a  investigação penal, em 1º de outubro de 1997 Bruce Harris interpôs uma exceção de incompetência do Quarto Tribunal, aduzindo que as manifestações que eram objeto da  demanda foram feitas no exercício do direito ao livre pensamento e solicitou que o processo fosse conhecido pelo  tribunal de imprensa, estabelecido pela  Lei de Manifestação do Pensamento, em virtude do artigo 35 da  Constituição.

 

13.          Cabe assinalar que dada a designação do Quinto Tribunal de Sentença Penal de Narcotráfico e Delito Contra o Ambiente como tribunal competente para conhecer o caso depois que o Quarto Tribunal pediu sua renúncia, em 25 de março de 1998, Bruce Harris interpôs novamente uma exceção de incompetência, em razão da  matéria.

 

14.          Em 31 de março de 1998, o Quinto Tribunal rejeitou a exceção de incompetência  com base no argumento de que Bruce Harris é uma pessoa particular que utilizou  os meios de informação social para manifestar suas declarações, e como não é  membro dos  meios de imprensa, não pode invocar a ilegalidade de sua sujeição ao procedimento comum. Os peticionários indicam que este tribunal concluiu que como pessoa particular, Bruce Harris não pode invocar a proteção da Lei de Manifestação de Pensamento. Em  28 de julho de 1998, o Quinto Tribunal declarou improcedente o recurso de revisão  interposto por Bruce Harris contra a decisão anterior.

 

15.          Na  informação apresentada pelos peticionários consta que em 19 de maio de 1998,  Bruce Harris interpôs um recurso de amparo perante a Décima Sala da Corte de Apelação contra o Quinto Tribunal por tramitar uma ação penal de natureza privada, não obstante, constitucionalmente os fatos de que é acusado não são constitutivos de delito. Em 19 de maio de 1998 a Décima Sala aceitou o recurso.  Em 22 de maio de 1998 o Quinto Tribunal apresentou seu relatório à Décima Sala, expondo que fundamentou sua decisão no fato de que Bruce Harris usou os meios de comunicações na condição de particular,   e que porque não era membro da  imprensa, sua atuação não estava amparada pelo  artigo 35 da  Constituição nem pela  Lei de Manifestação de Pensamento.

 

16.          Em 10 de julho de 1998, a Décima Sala da Corte de Apelações denegou o  recurso de amparo, aduzindo que Bruce Harris não é membro da  imprensa sujeito à jurisdição especial emanada da  Lei de Manifestação de Pensamento. Esta instância judicial considerou que Bruce Harris falhou na sua obrigação de provar que as expressões injuriosas referiam-se a atos celebrados no marco das funções como funcionária pública, emanadas de seu cargo de tabeliã pública.

 

17.          Os peticionários indicam que em 31 de julho de 1998 Bruce Harris apelou da  decisão da  Décima Sala junto à  Corte de Constitucionalidade, a qual confirmou a sentença apelada na decisão de 19 de janeiro de 1999. A Corte de Constitucionalidade decidiu que no  caso a competência correspondia aos juízes de ordem penal, já que Bruce Harris não tinha demostrado que a funcionária do cartório, a senhora Umaña, tivesse atuado na sua qualidade de figura pública.

 

18.          Não obstante o anterior, os peticionários alegam que em 26 de março de 1999 o Vigésimo Tribunal, ao qual havia sido trasladado o expediente, emitiu uma decisão interlocutória  convocando o tribunal do júri (Tribunal de Imprensa) de conformidade com o artigo 46 da  Lei de Manifestação de Pensamento. Conforme à denúncia, este Tribunal concluiu que a Lei de Livre Manifestação de Pensamento não é aplicável somente a jornalistas mas a todas as pessoas, porque trata-se de um direito constitucional; logo, os delitos cometidos ao exceder-se nas opiniões devem ser conhecidos privativamente pelo júri.

 

19.          Em 27 de março de 1999 a tabeliã Susana de Umaña interpôs uma apelação contra a decisão interlocutória anterior perante a Corte de Apelações, citando como fundamento a resolução de 19 de janeiro de 1999 da Corte de Constitucionalidade. Mediante despacho de 30 de abril de 1999, o Vigésimo Tribunal acolheu a apelação, e Bruce Harris interpôs um recurso de revisão em 4 de maio de 1999, mas este foi declarado improcedente. Em 11 de maio de 1999, a Corte de Apelações decidiu que o caso deveria ser decidido em sede penal. A fim de cumprir esta decisão, em 8 de junho de 1999, o Vigésimo Tribunal, acolhendo a decisão da  Décima Sala, instaurou a ação penal oral e pública contra Bruce Harris pelo  delito de calúnia, injúria e difamação.

 

20.          Em 18 de junho de 1999, Bruce Harris interpôs um recurso de amparo perante a Corte Suprema de Justiça, alegando que a apelação interposta perante a Décima Sala de Apelações era improcedente, já que tinha sido interposta antes do recurso de revisão. Em 25 de junho de 1999, a Corte Suprema de Justiça declarou improcedente o recurso ao considerar que as circunstâncias não o permitiam.

Sobre as questões de direito

 

21.          Os peticionários alegam que suas declarações não constituem delito dado que a informação difundida era de interesse público e que a senhora Umaña atuou na qualidade de funcionária pública, segundo o estipulado no artigo 35 da  Constituição Política da  República de Guatemala que dispõe que “Não constitui delito ou falta as publicações que contenham denúncias, críticas ou imputações contra funcionários ou empregados públicos por atos efetuados no exercício de seus cargos. Os funcionários e empregados públicos poderão exigir que um tribunal de honra, integrado na  forma que determine a lei, declare que a publicação que os afeta baseia-se em fatos imprecisos ou que as acusações são infundadas”.

 

22.          Os peticionários alegam que o fato de que atualmente o senhor Harris esteja sendo julgado pelos delitos de injúria, calúnia e difamação, a partir das declarações públicas que fez sobre as adoções guatemalenses imputando a uma funcionária pública a responsabilidade por fatos concretos, constitui uma limitação ou restrição arbitrária e injustificada de seu direito à liberdade de expressão, tendo o Estado da Guatemala violado o artigo 13 da  Convenção.

 

23.          Os peticionários argumentam que a senhora de Umaña possui qualidade de funcionária pública por sua atuação profissional nas adoções de crianças guatemalenses, de acordo com o artigo 1º, Disposições Gerais, Terceiro  Livro do Código Penal: “Para os efeitos penais entende-se: 2º -Por funcionário público quem, por disposição da  lei, por eleição popular ou legítimo nomeação exerce cargo ou mandado jurisdicional ou representação de caráter oficial. Os tabeliões serão considerados como funcionários quando se trate de delitos que cometam atos relativos ao exercício de sua profissão”.

 

24.          Os peticionários alegam que o direito à liberdade da  manifestação do pensamento consagrado no artigo 35 da  Constitução é um direito aplicável a todas as pessoas e não unicamente a jornalistas. Portanto, os peticionários argumentam que a decisão do Tribunal Constitucional e da  Décima Sala de Apelações que negam a Bruce Harris o acesso a um tribunal de júri, “constitui uma distinção discriminatória entre os ‘jornalistas’ e o resto da  sociedade”, em violação do direito à igualdade perante a lei consagrado no artigo 24 da  Convenção Americana.

 

25.          Os peticionários alegam que a denúncia de injúria, calúnia e difamação apresentada pela  senhora de Umaña contra Bruce Harris deveria ser conhecida por um Tribunal de Imprensa de acordo com o artigo 35 da  Constituição, porque as declarações feitas por Harris citando o nome da tabeliã foi baseado na sua atuação profissional e pública caracterizando-a como funcionária pública. Os peticionários argumentam que a decisão de julgar Bruce Harris através de um tribunal penal e não por um tribunal de imprensa constitui uma violação ao artigo 13 da  Convenção sobre liberdade de pensamento e de expressão.

 

26.          Finalmente, os peticionários indicam que os recursos internos foram esgotados neste caso quando a Corte Suprema de Justiça indeferiu o recurso de amparo apresentado pelo  senhor Harris reclamando seu direito constitucional de ser julgado por um tribunal  de imprensa por declarações públicas protegidas pela Lei de Livre Manifestação do Pensamento, e  confirmou a sentença anterior ordenando a abertura de juízo penal contra o senhor Harris.

 

B.          Posição do Estado

 

27.          O Estado reconhece que as declarações do senhor Harris, prestadas perante os meios de comunicação, ocorreram dentro de um contexto de denúncia e preocupação por um problema nacional, qual seja o tema das adoções internacionais e que o senhor Harris “destacou a necessidade de modificação e modernização da legislação atual e fortalecimento dos meios de controle e fiscalização do cumprimento da  Lei”. Ademais, reconhece que, durante a  conferência de imprensa e com o afã de exemplificar como opera atualmente o sistema das adoções, o senhor Harris referiu-se à senhora Umaña e assinalou que esta pressionava os procuradores das instituições governamentais e usava seu poder para agilizar os casos de adoções que ela tramitava.

 

28.          O Estado argumenta que a Lei de Manifestação do Pensamento contempla um procedimento unicamente aplicável a jornalistas no exercício de sua função, o que não significa que as demais pessoas, que não sejam jornalistas, sejam privadas do mesmo direito. Com efeito, o Estado não considera Bruce Harris como jornalista protegido por esta Lei mas sim como pessoa privada.  A única limitação existente a essa liberdade de expressão é a eventual vulneração dos  intereses das pessoas que se creem afetadas em sua honra e prestígio, os quais podem apresentar sua inconformidade através de ações penais que pretendem evitar o abuso da  liberdade de expressão quando lhe são imputados fatos delitivos falsos.

 

29.          O Estado assinala que a senhora de Umaña não é, nem foi, funcionária pública e que o Estado somente confere fé pública aos tabeliões para que os atos realizados por estes profissionais tenham certeza jurídica. Ademais, o Estado alega que Bruce Harris não demostrou que a tabeliã a senhora Umaña caracteriza-se como funcionária pública invocando a proteção do artigo 35 da  Constituição.

 

30.          O Estado considera a denúncia dos peticionários como um conflito privado entre particulares; portanto, o assunto não é competência do sistema interamericano de proteção dos  direitos humanos.

 

31.          Finalmente, o Estado alega que não foram esgotados os recursos internos até que o procedimento penal chegue a fase de sentença, e não está presente no caso nenhuma  das exceções a esta regra, motivo pelo qual a petição deve ser declarada inadmissível.

 

IV.          ANÁLISE SOBRE A ADMISSIBILIDADE

 

A.          Competência da  Comissão

 

32.          Os peticionários possuim locus standi para apresentar denúncias perante a CIDH, conforme o estipulado no artigo 44 da Convenção. Estas petições assinalam como supostas vítimas pessoas individuais, a respeito das quais a Guatemala comprometeu-se a respeitar e garantir os direitos consagrados na  Convenção. No que se refere ao Estado, a Comissão observa que a Guatemala é Estado parte da  Convenção Americana, desde sua ratificação em 25 de maio de 1978. Portanto, a Comissão tem competência ratione pessoae para examinar a petição.

 

33.          A Comissão tem competência ratione loci para conhecer esta petição visto que a mesma alega violações de direitos protegidos na  Convenção Americana que teriam ocorrido dentro do  território de um Estado parte.

 

34.          A CIDH tem competência ratione temporis porque a a obrigação de respeitar e garantir os direitos protegidos na Convenção Americana já se encontrava em vigor para o Estado na data em que ocorreram os fatos alegados na  petição.

 

35.          Finalmente, a Comissão tem competência ratione materiae, porque a  petição denuncia violações a direitos humanos protegidos pela  Convenção Americana.

 

B.          Esgotamento dos recursos internos

 

36.          A Convenção Americana estabelece em seu artigo 46(1)(a) :

 

Para que uma petição ou comunicação apresentada conforme os artigos 44 ou 45 seja admitida pela  Comissão, se requer:

 

Que sejam interpostos e esgotados os recursos da  jurisdição interna, conforme os princípios do Direito Internacional geralmente reconhecidos

 

37.          A Comissão assinalou de maneira reiterada o caráter “coadjuvante e complementário” do sistema interamericano de proteção dos  direitos humanos. Este caráter está refletido no artigo 46(1)(a) da Convenção, o qual permite aos Estados solucionar previamente as questões formuladas dentro de um marco jurídico próprio antes de enfrentarem um processo internacional.

 

38.          No presente caso, os peticionários alegam que interpuseram os recursos adequados para amparar as supostas violações de direitos constitucionais perante os tribunais da  jurisdição interna previstos pela  legislação guatemalense. Contudo, indicam que os mesmos resultaram ineficazes para tutelar os direitos vulnerados pelo  Estado.

 

39.          Os peticionários alegam que os recursos internos foram esgotados mediante a decisão da Corte Suprema de Justiça que indeferiu o recurso de amparo interposto por Bruce Harris, solicitando que seu caso fosse ouvido por um Tribunal de Imprensa regulamentado  pelo  artigo 35 da  Constituição de Guatemala. A decisão definitiva da Corte Suprema de Justiça marcou o início da ação penal oral e pública  contra de Bruce Harris pelo  delito de calúnia, injúria e difamação.

 

40.          A sua vez, o Estado guatemalense controverteu os fatos alegados pelos peticionários a respeito do esgotamento dos  recursos internos. O Estado alega que para cumprir com o esgotamento dos recursos internos, os peticionários devem esperar até que o procedimento penal em curso contra Bruce Harris chegue a fase de sentença.

 

41.          A Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou o seguinte quanto à regra do esgotamento prévio dos  recursos internos:

 

Os Estados Partes estão obrigados a oferecer recursos judiciais efetivos às vítimas de violação dos  direitos humanos (art. 25), recursos que devem ser substanciados de conformidade com as regras do devido processo legal (art. 8.1), em conjunção com a  obrigação geral dos mesmos Estados, de garantir o livre e pleno exercício dos  direitos reconhecidos pela  Convenção a toda pessoa que se encontre sob sua jurisdição (art. 1).

 

42.          Consequentemente, para que exista o dever de esgotar os recursos internos, estes devem apresentar características que permitam considerá-los como um remédio adequado e efetivo à violação alegada. O artigo 46 da  Convenção dispõe que os recursos internos deveriam ser esgotados “conforme os princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos” e que estes recursos também sejam adequados e efetivos.[3]  Com efeito, o  artigo 25 da  Convenção estabelece a obrigação dos  Estados de oferecer, a todas as pessoas submetidas a sua jurisdição um recurso judicial efetivo contra atos violatórios de seus direitos fundamentais para que estes recursos sejam realmente idôneos para remediar a violação.[4]

 

43.          No presente caso, os peticionários tentaram perante as instâncias internas todos os recursos contemplados pela  legislação adjetiva guatemalense a fim de tutelar os direitos que alegam violados, mediante a submissão do caso perante o Tribunal de Imprensa que, na sua opinião, é a autoridade judicial competente para conhecer este assunto. A Comissão considera que os peticionários utilizaram os recursos adequados conforme as regras processuais estabelecidas no Código de Procedimentos Penais da Guatemala a fim de impugnar a decisão que fixou a competência para conhecer a queixa contra Bruce Harris na  justiça penal ordinária.

 

44.          Por conseguinte, sem prejulgar o mérito da questão, a Comissão considera satisfeitos os requisitos estabelecidos nos  artigos 47(b) e (c) da  Convenção.

 

C.          Prazo de apresentação da  denúncia perante a CIDH

 

45.          O artigo 46(1)(b) da Convenção Americana estabelece que para admitir uma petição é necessário: “que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o suposto ofendido em seus direitos tenha sido notificado da  decisão definitiva”.

 

46.          A presente petição foi apresentada perante a CIDH em 23 de setembro de 1999, três meses depois que a Corte Suprema de Justiça decidiu indeferir o amparo interposto pelo  peticionário em 25 de junho de 1999. Em nenhum momento durante o trâmite do caso perante a Comissão, o Estado alegou a falta de cumprimento do requisito do prazo com relação aos recursos esgotados.

 

D.          Duplicação de processos

 

47.          O artigo 46(1)(c) da  Convenção estabelece que para que uma petição ou comunicação seja admitida pela  Comissão, a matéria da  mesma não deve estar pendente de outro procedimento internacional. O artigo 47(d) da  Convenção estabelece que a Comissão declarará inadmissível toda petição ou comunicação quando seja substancialmente a reprodução de petição ou comunicação anterior já examinada pela Comissão ou outro organismo internacional.

 

48.          Das  alegações das partes e dos  documentos contidos no expediente não se demonstra que a petição esteja pendente de outro procedimento ou acordo internacional, ou que seja reprodução de uma petição anterior já examinada pela  Comissão ou outro organismo internacional. Portanto, a Comissão considera que no presente caso foram cumpridos os requisitos de admissibilidade contidos nos  artigos 46(1)(c) e 47(d) da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

 

E.          Caracterização dos  fatos alegados

 

49.          Com relação aos fatos alegados referentes à  autoridade judicial competente para conhecer a queixa apresentada pela tabeliã Susana de Umaña contra o senhor Bruce Harris a Comissão considera que, a decisão de submeter o caso ao conhecimento da  jurisdição penal ordinária e não ao Tribunal de Imprensa conforme o estabelecido pelo  artigo 35 da  Constituição guatemalense, poderia caracterizar uma violação ao artigo 8(1) da  Convenção Americana. Embora os peticionários aleguem que mediante esta medida do poder judicial guatemalense houve uma violação do artigo 13 da Convenção Americana, a Comissão entende que os fatos denunciados estão inseridos no âmbito de proteção do direito às garantias judiciais. Com efeito, o artigo 8(1) da  Convenção estabelece, entre outras, que toda pessoa tem o direito a ser ouvida, com as devidas garantias, por um juiz competente. Os peticionários alegam que o senhor Bruce Harris foi privado do direito a ser julgado por um jurado conforme disposto no artigo 35 da  Constituição guatemalense para os delitos ou faltas relativos à manifestação do pensamento.

 

50.          Quanto aos fatos alegados relativos à discriminação na que teria incorrido o poder judicial guatemalense ao excluir Bruce Harris da aplicação do artigo 35 da  Constituição da  República da Guatemala, dado que este não tem qualidade de jornalista, a Comissão considera que poderia caracterizar uma violação ao direito à igualdade perante a lei consagrado no artigo 24 da  Convenção Americana.

 

51.          Finalmente, os peticionários argumentaram que a mera existência de leis que tipificam a calúnia e injúria, bem como a submissão de uma pessoa a um processo penal em virtude destas leis, constitui per se uma violação ao artigo 13 da  Convenção Americana, independentemente ou não da resolução do procedimento mediante uma sentença. A Comissão considera que estas alegações devem ser examinadas na  etapa de mérito da  questão, a fim de determinar se os fatos denunciados constituem violação ao artigo 13 da  Convenção Americana.

 

52.          Por conseguinte, sem prejulgar o mérito da questão, a Comissão considera que foram satisfeitos os requisitos previstos no artigo 47(b) e (c) do referido instrumento internacional.

 

V.          CONCLUSÕES

 

53.          A Comissão considera que tem competência para conhecer esta denúncia e que a petição é  admissível no que se refere aos requisitos de admissibilidade estabelecidos nos  artigos 46 e 47 da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos e as alegadas violações aos artigos 8, 13 e 24 da  mesma.

 

54.          Com base nos argumentos de fato e de direito antes expostos, e sem  prejulgar o mérito do caso,

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.          Declarar admissível o presente caso no que se refere às supostas violações aos direitos protegidos nos  artigos 8, 13 e 24 da  Convenção Americana.

 

2.          Notificar as partes desta decisão.

 

3.          Continuar com a análise sobre o mérito da questão, e

 

4.          Publicar esta decisão e incluí-la no Relatório Anual a ser apresentado à Assembléia Geral da  OEA.

 

Dado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., no dia 28 de fevereiro de 2002. (Assinado): Juan Méndez, Presidente; José Zalaquett, Segundo Vice-Presidente, Membros da Comissão  Robert K. Goldman, Julio Prado Vallejo, Clare K. Roberts.


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[1] A Membro da Comissão Sra. Marta Altolaguirre, de nacionalidade guatemalense, não participou na discussão e votação do presente relatório, em cumprimento do artigo 17(2)(a) do novo Regulamento da  Comissão.

[2] Numa conferência de imprensa outorgada por Bruce Harris em 1997, este assinalou que a funcionária do cartório a senhora Susana de Umaña, por ser cônjuge do presidente da  Corte Suprema de Justiça, instiga funcionários do poder judicial e em geral favorece a tramitação das adoções pressionando e forçando os promotores nas diferentes instituições do governo para que tramitem seus casos o mais rápido possível.

[3] Sentença da  Corte no caso Velásquez Rodríguez de 29 de julho de 1988, par. 64. Ver também a sentença da  Corte no caso Godínez Cruz de 20 de janeiro de 1989, par. 67, e a sentença no caso Fairén Garbi e Solís Corrales de 15 de março de 1989, par. 88.

[4] Corte Interamericana de Direitos Humanos, Opinião Consultiva OC-9/87 de 6 de outubro de 1987 (artigos 27.2, 25, 8, par. 24).