70.     Com base nesta análise, a Corte concluiu que o descumprimento do artigo 36 da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares com respeito a um estrangeiro detido num  caso de pena capital constituiria uma privação arbitrária da  vida, conforme os princípios internacionais de direitos humanos. Segundo a Corte

a inobservância do direito à informação do estrangeiro detido, reconhecido no  artigo 36.1.b) da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares, afeta as garantias do devido processo legal e, nestas circunstâncias, a imposição da  pena de morte constitui uma violação do direito a não ser privado da  vida “arbitrariamente”, nos  termos das disposições relevantes dos  tratados de direitos humanos (v.g. Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 4; Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, artigo 6), com as consequências jurídicas inerentes a uma violação desta natureza, isto é, aquelas concernentes à responsabilidade internacional do Estado e ao dever de reparação”.[43]

71.     A Corte Internacional de Justiça (CIJ), de maneira similar, recentemente emitiu uma sentença no  Caso LaGrand (Alemanha contra Estados Unidos)[44] tendo em vista a rejeição dos  Estados Unidos em aderir à Convenção de Viena sobre Relações Consulares com respeito a dois cidadãos alemães que foram julgados e condenados em 1984 por delitos puníveis com pena capital nos  Estados Unidos. O caso LaGrand tratava sobre a condenação e sentença à pena de morte de dois cidadãos alemães, os irmãos Karl e Walter LaGrand, por assassinato em primeiro grau no Arizona. Karl LaGrand foi executado em 24 de fevereiro de 1999 e um dia antes da data da execução programada para Walter LaGrand, em 2 de março de 1999, a Alemanha apresentou o caso perante a CIJ.

72.     A respeito do  mérito do caso, a Alemanha alegou que os Estados Unidos não cumpriram com sua obrigação, estipulada no artigo 36 da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares, de informar sem demora aos irmãos LaGrand sobre seu direito de comunicarem-se com o consulado da Alemanha depois de sua detenção. A Alemanha também argumentou que a doutrina jurídica dos Estados Unidos de “rebeldia processual” havia impedido aos irmãos LaGrand formular uma violação da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares perante os tribunais norte-americanos. Os Estados Unidos reconheceram seu fracasso em assegurar o cumprimento da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares, mas argumentou que a Convenção de Viena não confere nenhum direito privado a um nacional e, portanto, não tem nenhuma relação com as ações penais no foro interno. Os Estados Unidos informaram ter pedido desculpas a Alemanha e que haviam adotado medidas substanciais a fim de prevenir que casos como este pudessem se repetir.

73.     Em sua sentença sobre o mérito do caso, a CIJ decidiu, por quatorze votos a um, que, ao não informar sem demora os irmãos  LaGrand depois de sua detenção sobre seus  direitos, os Estados Unidos violaram suas obrigações com a Alemanha e o irmãos  LaGrand de conformidade com o artigo 36(1)(b) da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares. A CIJ também decretou que os Estados Unidos haviam violado suas obrigações com a Alemanha e os irmãos LaGrand as disposições contidas no artigo 36(2) da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares, de que os direitos reconhecidos pelo  artigo 36(1) tenham pleno efeito sob sua sleis e regulamentos, já que não permitiu a revisão e reconsideração das sentenças dos  irmãos LaGrand depois de ter estabelecido as violações da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares.

74.     Ao chegar a estas conclusões, a CIJ entendeu que o artigo 36 confere direitos privados que, no  contexto da  CIJ, poderiam ser invocados pelo  Estado do cidãdão detido e que os Estados Unidos haviam violado os dirteitos dos LaGrand:

A Corte indica que o parágrafo 1(b) do artigo 36 estabelece as obrigações que o Estado receptor tem em relação à pessoa detida e o Estado que envia. A Corte entendeu que, a pedido da  pessoa detida, o Estado receptor deve informar “sem demora” o consulado do Estado que envia sobre a  detenção do indivídu e que toda comunicação pela pessoa detida dirigida ao consulado do Estado que envia deve ser remetida “sem demora ” pelas autoridades do Estado receptor.  É significativo que este subparágrafo termine com as seguintes palavras: “As autoridades mencionadas deverão informar sem demora o interessado de seus direitos em virtude deste subparágrafo” (ênfase da Corte). Ademais, de conformidade com o parágrafo 1(c) do artigo 36, o direito do Estado que proporciona assistência consular à pessoa detida não pode ser exercido “se esta se opõe expressamente a esta ação”. A claridade destas disposições, observadas neste contexto, não admite dúvida alguma. Conforme entendido anteriormente , a Corte deve aplicá-las conforme o estabelecido. [. . .] De acordo com o texto destas disposições, a Corte conclui que o parágrafo 1 do artigo 36 cria direitos privados que, em virtude do artigo I do  Protocolo Facultativo, podem ser invocados nesta Corte pelo  Estado nacional da pessoa detida. Neste caso, estes direitos foram violados.[45]

75.     Assim como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Corte Internacional de Justiça reconheceu que a falta de uma notificação, de conformidade com o artigo 36 da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares, implica violações de obrigações jurídicas internacionais tanto para o Estado que envia como para o indivíduo interessado, que a sua vez, pode implicar na responsabilidade internacional do Estado receptor. Emboa a CIJ tenha rejeitado abordar a natureza deste direito como um direito humano,[46] a Corte Interamericana entendeu que o artigo 36(1)(b) da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares também  formula obrigações de direitos humanos, de conformidade com as disposições do devido processo dos  tratados internacionais de direitos humanos.[47]

76.     A Comissão assinala que a importância do cumprimento da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares para a proteção de um estrangeiro foi explicitamente reconhecida em outros foros internacionais, entre eles a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas[48] e a Assembléia Geral da  Organização dos  Estados Americanos.[49] Ademais, num processo anterior perante à Corte Internacional de Justiça, os Estados Unidos afirmaram a existência de um direito de um estrangeiro ao acesso consular e enfatizou a importância de cumprir com as obrigações estipuladas no artigo 36 da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares.[50]

77.     A Comissão considera, portanto, que é apropriado que esta considere o cumprimento de um Estado com os requisitos do artigo 36 da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares ao interpretar e aplicar as disposições da Declaração Americana relacionadas com o direito ao devido processo e a um julgamento imparcial na  medida em estes são aplicáveis a um estrangeiro que foi detido ou posto em prisão preventiva, ou se encontra detido por qualquer razão, por um Estado membro da  OEA.[51]  Em especial a Comissão pode examinar o quanto um Estado parte deu pleno efeito aos requisitos do artigo 36 da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares com o propósito de avaliar o cumprimento desse Estado com as garantias judiciais do devido processo de conformidade com os artigos XVIII e XXVI da  Declaração Americana.

78.     Nas circunstâncias do caso do Sr. Martínez Villareal, os peticionários alegaram  que o Estado não cumpriu com suas obrigações de conformidade com o artigo 36(1)(b) da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares em relação à detenção e posterior julgamento do Sr. Martínez Villareal. Por sua parte, o Estado não argumentou que os requisitos do artigo 36(1)(b) da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares foram satisfeitos neste caso. O Estado alega, porém, que a publicidade acerca do julgamento do Sr. Martínez Villareal foi tal que deveria supor-se que o pessoal dos  consulados de México em Tucson e Nogales tinham conhecimento do caso. O Estado também faz referência a provas documentais e de outro tipo que sugerem que o pessoal consular tinha feito  comentários sobre o julgamento do Sr. Martínez Villareal e que, de fato, recebeu uma visita de alguém do consulado no primeiro dia de seu julgamento.

79.     A Comissão considera que o Estado não lhe proporcionou provas que demonstrem suas alegações com respeito ao conhecimento do caso pelo  pessoal consular mexicano no Texas. Ademais, à luz da  estrita norma do devido processo legal a que os condenados a pena capital tem direito conforme o direito internacional de direitos humanos, incluindo a Declaração Americana, a Comissão é reticente em basear-se em especulações sobre se o  México tinha conhecimento da  situação do Sr. Martínez Villareal e em qual medida, tendo em vista a  obrigação clara e positiva dos  Estados Unidos, em virtude da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares, de assegurar a notificação oficial do início de um processo penal como aquele tramidado contra o Sr. Martínez Villareal.

80.     Ainda que os funcionários consulares mexicanos tivessem tido conhecimento do processo contra o Sr. Villareal tal como sugere o Estado, isto teria ocorrido nas apresentações do Estado muito cerca do início do julgamento do Sr. Martínez Villareal e portanto depois das etapas preliminares fundamentais de seu processo penal, entre elas a contratação de seu advogado, a apresentação das acusações e a preparação de sua defesa. Não teria ocorrido nenhum atraso conforme o disposto no  artigo 36(1)(b) da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares. Em todo o caso, as conjecturas sobre o  possível conhecimento dos funcionários do consulado mexicano não servem para abordar o direito independente do Sr. Martínez Villareal a ser informado de seu direito a assistência consular, por ser a pessoa que se encontrava na  melhor posição para avaliar se necessitava deste apoio.

81.     A Comissão conclui, portanto, que o Estado não informou ao Sr. Martínez Villareal de seus direitos de conformidade com o artigo 36(1)(b) da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares e tampouco informou aos consulados mexicanos da  detenção e posterior julgamento do Sr. Martínez Villareal, conforme estipula este dispositivo. 

82.     A Comissão considera que, no caso do Sr. Martínez Villareal, a falta de notificação de conformidade com o artigo 36(1)(b) da Convenção de Viena sobre Relações Consulares poderia, segundo a informação disponível, ter tido um efeito significativo sobre a imparcialidade do processo penal do Sr. Martínez Villareal. Segundo o expediente, o Sr. Martínez Villareal era um cidadão mexicano que foi preso e processado nos Estados Unidos, mas que não falava inglês, e foi representado por um advogado que não falava espanhol. O expediente também indica que o Sr. Martínez Villareal desconhecia o sistema jurídico dos  Estados Unidos e que isto, juntamente com as suas limitações lingüísticas, afetou seu nível de compreensão do processo penal interposto contra ele e sua participação no mesmo. Os peticionários alegam, por exemplo, que o Sr. Martínez Villareal não compreendeu quais eram as pessoas na  corte que formavam parte do júri ou qual era a finalidade do júri, e que os exames preliminares de testemunhas ou jurados não foram traduzidos para o idioma que ele pudesse entender. O expediente também assinala que o advogado não entrou em contacto com a família do Sr. Martínez Villareal no México e que, ademais, atestou pessoalmente num depoimento sobre a sua falta de experiência e ineficiência para tramitar o caso do Sr. Martínez Villareal.

83.     Estas circunstâncias sugerem  firmemente que a qualidade do devido processo concedido ao Sr. Martínez Villareal sofreu devido a sua condição de estrangeiro, uma circunstância que o cumprimento dos  requisitos de notificação estipulados no  artigo 36(1)(b) da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares, poderia ter atenuado. A Comissão não considera que as garantias do Sr. Martínez Villareal, de conformidade com a Declaração Americana e os princípios gerais do direito internacional, foram satisfeitas de acordo com as alegações do Estado sobre este assunto relacionadas com o possível conhecimento e participação dos  funcionários consulares mexicanos.

84.     Conforme a análise anterior, a Comissão conclui que o direito á informação do Sr. Martínez Villareal disposto no artigo 36(1)(b) da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares constituia um componente fundamental das garantias judiciais do devido processo legal conferidos pelos artigos XVIII e XXVI da  Declaração Americana, e que o fracasso do Estado em respeitar e garantir esta obrigação constituia graves violações dos  direitos do Sr. Martínez Villareal ao devido processo e a um julgamento imparcial em virtude destas disposições da  Declaração.

85.     Por conseguinte, se o Estado vier a executar o Sr. Martínez Villareal baseando-se no  processo penal que o condenou e sentenciou, a Comissão considera que isto  constituirá  uma privação arbitrária da  vida do Sr. Martínez Villareal contrariamente ao estipulado na  Declaração.

86.     Num caso como este, em que a condenação do acusado ocorreu como resultado de um processo que não satisfaz os requisitos mínimos de imparcialidade e devido processo, a Comissão considera que a reparação adequada inclui um novo julgamento de conformidade com as garantias de devido processo a um julgamento imparcial estabelecidos nos  artigos XVIII e XXVI da  Declaração Americana ou, se não for possível a celebração de um novo julgamento em cumprimento destas garantias, a liberação do Sr. Martínez Villareal.[52]

87.     À luz da  decisão da  Comissão a respeito da violação dos  direitos do Sr. Martínez Villareal ao  devido processo legal e a um julgamento imparcial em virtude dos  artigos XVIII e XXVI da  Declaração, em conexão com a ausência de uma notificação de conformidade com o artigo 36 da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares, e sua recomendação correspondente no sentido de conceder ao Sr. Martínez Villareal um novo julgamento ou, alternativamente, a sua liberação, a Comissão não considera necessário examinar as alegações restantes formuladas pelos  peticionários neste caso. 

V.      ATUAÇÕES POSTERIORES AO RELATÓRIO 114/01

88.     Em 15 de outubro de 2001, a Comissão aprovou o Relatório 114/01 conforme o o artigo 43 do Regulamento, incluido a sua análise dos  antecedentes, conclusões e recomendações nesta matéria.

89.     O relatório 114/01 foi remetido ao Estado em 19 de outubro de 2001, solicitando-lhe que enviasse  informação sobre as medidas que havia tomado para dar cumprimento as recomendações contidas no  relatório, dentro de um prazo de dois meses, de acordo com o  artigo 43(2) do Regulamento da  Comissão.

90.     Mediante comunicação de 26 de dezembro de 2001, recebida pela Comissão em 27 de dezembro de 2001, o Estado enviou uma  resposta a pedido de informação da  Comissão, na qual pedia que esta “reconsiderasse a base jurídica de suas conclusões e recomendações, retirasse o  relatório Nº 114/01 e rejeitasse a petição”.

91.     Antes de examinar estas objeções com mais detalhe, a Comissão ressalta que o propósito de remeter o relatório preliminar sobre o mérito ao Estado afetado, de acordo com o  artigo 43(2) do Regulamento da  Comissão, é receber informação a respeito das medidas que tenham sido adotadas para dar cumprimento a suas recomendações.[53] A esta altura do processo, as partes tiveram a oportunidade de argumentar suas posições, as etapas de admissibilidade e mérito estão concluidas, e a Comissão adotou sua decisão. Portanto, embora o  Estado possa oferecer seus pontos de vista sobre as conclusões de fato e de direito a que chegou a Comissão em seu relatório preliminar, não cabe ao Estado a esta altura reiterar argumentos anteriores ou formular outros novos, em relação com a admissibilidade ou o mérito da  denúncia recebida pela Comissão, nem está obrigada a considerar esses argumentos antes de aprovar seu relatório final sobre a matéria.

92.     Tendo em consideração o significado das questões jurídicas que a matéria implica  além das circunstâncias deste caso, e sem prejulgar as considerações de carácter processual assinaladas, a Comissão decidiu, não obstante, resumir suas observações sobre certos aspectos da  resposta do Estado. A Comissão baseia seu argumento em três elementos: que a Declaração Americana dos  Direitos e Deveres do Homem não é mais que uma recomendação aos Estados americanos que não cria obrigações jurídicas; que ainda que fosse possível que um Estado violasse a Declaração, a petição não estabelece fatos que pudessem constituir uma violação de algum dos dispositivos deste instrumento, e que o significado e alcance das obrigações dos Estados conforme a Convenção de Viena sobre Relações Consulares não está dentro das competências da  Comissão.

93.     Os Estados Unidos alegam que os argumentos do Sr. Martinez Villareal em relação com seus direitos a um julgamento imparcial e ao devido processo, bem como os relacionados com sua capacidade mental, foram detalhadamente examinados pelos  tribunais nacionais e que continuam buscando por uma reparação pela via dos  recursos internos a seu alcance. O Estado argumenta que, apesar dessas proteções, a Comissão conclui que a  sentença do Sr. Martinez Villareal está essencialmente viciada porque não ele não foi informado no momento de sua detenção a respeito da assistência consular mexicana, como disposto no  artigo 36 da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares. O Estado impugna a argumentação da  Comissão e questiona o recurso desta às opiniões da  Corte Interamericana de Direitos Humanos em sua Opinão Consultiva OC-16/99, pois os “Estados Unidos divergem fundamentalmente da argumentação e as conclusões da  Corte nesse procedimento”.

94.     O Estado reitera também seus argumentos perante a Corte Interamericana e esta Comissão de que “a obrigação de notificação consular da  Convenção de Viena não estabelece um requisito prévio para a observância dos  direitos humanos nas ações penais, nem é uma fonte  independente de direitos humanos individuais”. Ademais, o Estado afirma que as conclusões da  Comissão estão fora do âmbito adequado de sua competência, na  medida em que a Comissão sugere que uma violação da obrigação do artigo 36 da  Convenção de Viena requer que seja concedido ao réu um novo julgamento ou a liberdade, apesar da  conclusão da Comissão de que não se considerava competente para determinar a responsabilidade do Estado por violações da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares per se.

95.     Por último, o Estado apresenta as seguintes observações:

Os Estados Unidos reiteram, porém, que tomam muito a sério as obrigações da  Convenção de Viena em relação à notificação e o acesso consulares. Desde 1998, os Estados Unidos empreenderam um intenso esforço  por melhorar o cumprimento das disposições por parte dos  funcionários públicos federais, estaduais e municipais. Esse esforço continua e está permanentemente institucionalizado. O Departamento de Estado publicou um folheto de 72 páginas (Consular Notification and Access: Instructions for Federal, State and Local Law Enforcement and Other Officials Regarding Foreign Nationals in the United States and the Rights of Consular Officials to Assist Them, 1998), uma pequena cartilha de referência para os funcionários que realizam as detenções e um vídeo instrutivo para assistí-los nesta tarefa, e continua atuando estreitamente com os funcionários estaduais e federais para garantir o cumprimento das obrigações de notificação consular.

96.     Com respeito à afirmação do Estado de que a Declaração Americana não constitui mais que uma recomendação aos Estados membros da  OEA, a Comissão reitera o preceito claramente estabelecido, articulado no  relatório sobre a admissibilidade nesta matéria, de que a Declaração Americana é fonte de obrigações internacionais para os Estados Unidos e para os demais Estados membros da  OEA que não são partes da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos.[54]

97.     Quanto à competência da  Comissão em relação à Convenção de Viena sobre Relações Consulares, ficou claro na  decisão sobre mérito nesta matéria que a Comissão pode considerar a medida em que os Estados partes da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares dão efetividade aos requisitos do artigo 36 desse instrumento, enquanto esses requisitos formam parte do corpus juris gentium das normas jurídicas internacionais aplicáveis ao avaliar a observância pelos  Estados dos  direitos consagrados na  Declaração Americana. A Comissão concluiu após examinar os elementos da denúncia do Sr. Martinez Villareal que o descumprimento da obrigação disposta no  artigo 36 pode ter um efeito direto e prejudicial na  qualidade do devido processo legal outorgado ao réu e, com isto, por  por em dúvida o cumprimento dos requisitos dos  artigos XVIII e XXVI da  Declaração Americana e de disposições similares de outros instrumentos internacionais de direitos humanos.

98.     Com respeito aos argumentos do Estado, a Comissão valoriza a iniciativa dos Estados Unidos em tomar medidas para fomentar o cumprimento de suas obrigações em virtude da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares quanto à notificação e o acesso consulares, visto que estes são fundamentais para a garantia devida e efetiva dos  direitos das pessoas que são presas, recluidas, detidas em custódia a espera de julagamento, ou de alguma outra maneira detidas num Estado do qual não são nacionais. Neste sentido, pode parecer que o Estado tomou algumas medidas para implementar a segunda recomendação da  Comissão, reproduzida mais adiante. Todavia o Estado não apresentou nenhuma informação a respeito da  implementação da  primeira e mais imediata recomendação da  Comissão, a saber, outorgar um recurso efetivo à vítima neste caso. Portanto, a Comissão conclui que o Estado não tomou medidas para dar pleno cumprimento a suas recomendações. Com base nisto, e depois de ter analisado as observações do Estado, a Comissão decide ratificar suas conclusões e reiterar suas recomendações, conforme descritas a seguir.

VI.      CONCLUSÕES

99.     Com base nas considerações de fato e de direito anteriormente expostas, e à luz da  resposta do Estado ao Relatório 114/00, a Comissão ratifica as seguintes conclusões:

100.   A Comissão conclui que o Estado é responsável pelas violações dos  artigos XVIII e XXVI da  Declaração Americana no  julgamento, condenação  e imposição de sentença de pena de morte a Ramón Martínez Villareal. A Comissão também conclui que, se os Estado vier a executar o Sr. Martínez Villareal de conformidade com o processo penal em questão, o  Estado perpetrará uma violação grave e irreparável do direito fundamental à vida em virtude do artigo I da  Declaração Americana.

VI.      RECOMENDAÇÕES

101.   De conformidade coma a análise e as conclusões do presente relatório,

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS RECOMENDA QUE   OS ESTADOS UNIDOS:

1.       Outorguem ao senhor Martínez Villareal uma reparação efetiva que inclua um novo julgamento de conformidade com as garantias do devido processo e um julgamento imparcial consagrados nos artigos XVIII e XXVI da  Declaração Americana ou, caso não seja possível realizar um novo julgamento em cumprimento destas garantias, que o Sr. Martínez Villareal seja posto em liberdade.

2.       Examinem suas leis, procedimentos e práticas para assegurar que todo  estrangeiro detido de qualquer forma inclusive em prisão preventiva nos  Estados Unidos seja informado sem demora de seu direito à assistência consular e que, simultaneamente, seja o consulado informado sem demora das circunstâncias do seu nacional, de conformidade com as garantias judiciais do devido processo legal e um julgamento imparcial consagrados nos  artigos XVIII e XXVI da  Declaração Americana. 

VIII.    NOTIFICAÇÃO E PUBLICAÇÃO

102.   Tendo em vista a análise precedente, e dadas as circunstâncias especiais do presente caso, em que a vítima continua sob ameaça iminente de execução de acordo com uma pena de morte que a Comissão determinou que era inválida, e que o Estado indicou claramente sua intenção de não dar cumprimento às recomendações da  Comissão quanto às violações da  Declaração Americana dos  Direitos e Deveres do Homem, a Comissão decide, de conformidade com o  artigo 45(2) e (3) de seu Regulamento, não fixar nenhum outro prazo prévio à publicação para que as partes apresentem informação sobre o cumprimento das recomendações, remeter o presente relatório ao Estado e aos peticionários, publicá-lo e incluí-lo no seu  Relatório Anual à Assembléia  Geral da  Organização dos  Estados Americanos. De acordo com as normas contidas nos  instrumentos que regem seu mandato, a Comissão seguirá avaliando as medidas a serem adotadas pelos  Estados Unidos com relação às recomendações anteriores até que os Estados Unidos as cumpra por completo .

Dado e assinado na  cidade de Washington, D.C., aos 10 dias de mês de outubro de 2002. (Assinado): Juan E. Méndez, Presidente; Marta Altolaguirre, Primeira Vice-presidenta; José Zalaquett, Segundo Vice-presidente; Membros da Comissão Julio Prado Vallejo, Clare K. Roberts e Susana Villarán.

OPINÃO CONCORRENTE DO MEMBRO DA COMISSÃO HÉLIO BICUDO[55]

1. Embora apóie as conclusões, fundamento e motivos de meus companheiros  membros da Comissão neste relatório, gostaria de analisar o assunto mais a mérito e expressar minha opinião com respeito a legitimidade da pena de morte no sistema interamericano.  

2. A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, aprovada na 9a. Conferência Internacional Americana, realizada em Santa Fé de Bogotá em maio/ junho de 1948, afirmou que “todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança de sua pessoa” (Artigo 1°), e mais, que “todas as pessoas são iguais perante a lei e têm os direitos e deveres consagrados nesta declaração, sem distinção de raça, sexo, idioma, credo religioso, ou qualquer outro que seja” (artigo 2°).

3.                  Em 1969, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, proclamada em 22 de novembro desse mesmo ano em São José da Costa Rica, dispõe em seu artigo 4°, que “toda pessoa tem direito a que se respeite sua vida” e que “esse direito estará protegido pela lei, em geral, a partir do momento da concepção”. E mais, que "ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.

4.       Ainda a Convenção Americana, ao incluir no âmbito dos direitos civis e políticos o direito a integridade pessoal, estabelece que “ninguém deve ser submetido a torturas nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”.

5.      Entretanto, a pena de morte e consentida pela Convenção Americana, na sua versão original. Nesse sentido, o seu artigo 4°, inciso 2°, admite a pena capital naqueles Estados partes que não a tenham abolido até o momento de sua edição e, naturalmente, posterior ratificação, e, assim mesmo, de forma excepcional: para os delitos de maior gravidade.

6.      Trata-se, sem dúvida, de uma contradição, relativamente aos dispositivos citados, que repelem a tortura, penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.

7.      Realmente, a Declaração Americana resguarda a vida como um direito primordial e a seguir, a Convenção Americana repudia, como vimos, a tortura ou a imposição de penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Ora, tenha-se, desde logo, que a eliminação de uma vida e o que se poderia qualificar como o ponto culminante da tortura ou de tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.

8.      Tem-se, assim, a impressão de que a tolerância expressa no inciso 2°, do artigo 4° da Convenção Americana, revela, tão somente a adoção de uma posição política de conciliação entre as Partes contratantes, para aprovar-se o dispositivo mais geral, relativo ao direito a vida.

9.      Antes, entretanto, de aprofundarmos uma reflexão sobre o verdadeiro alcance da aludida permissão para a permanência da pena capital naqueles países que já continham em suas leis penas, no momento de sua aprovação aos termos da Convenção, convêm notar que a Convenção Interamericana para prevenir e sancionar a Tortura, subscrita em Cartágena de Índias, Colômbia, a 9 de dezembro de 1985, define o que se deve entender por tortura: “é todo ato realizado intencionalmente pelo qual se inflijam a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio intimidatório, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou qualquer outro fim” (artigo 2°).

10.  Veja-se que esse dispositivo fala em tortura como pena ou castigo pessoal, segundo qualquer finalidade.

11.  Pois bem, a condenação à morte, por si só, impõe ao condenado um sofrimento que não é, sequer, mensurável. Já se imaginou a angustia a que se sujeita um condenado a morte, ao ouvir a sentença, ao depois, ao aguardar o momento da execução? Seria, sequer, possível avaliar o sofrimento de pessoas que esperam, nos chamados “corredores da morte”, pela sua execução, por vezes postergada por vários anos? Nos Estados Unidos da América, menores de 15, 16, 17 anos, que praticaram homicídio e foram condenados a morte, aguardam, por vezes, quinze anos ou mais anos, pela sua execução. Pode-se considerar maior sofrimento? Entre a esperança e a desesperança, até o encontro final com o carrasco?

12.  Acrescente-se que os Estados Membros da OEA, ao adotarem a Convenção Americana sobre desaparecimento forçado de pessoas, reafirmaram que “o sentido da solidariedade americana e de boa vizinhança não pode ser outro que o de consolidar neste Hemisfério, dentro do espírito das instituições democráticas, um regime de liberdade individual e da justiça social, fundado no respeito aos direitos essenciais do homem”.

13.  Caberia recordar que nos anos de 1998 e 1999, os Estados Unidos da América foram o único país do mundo conhecido por executar jovens menores de 18 anos. A esse propósito vale observar que os Estados Unidos da América são parte do Pacto Internacional de Direitos Civis e políticos desde setembro de 1992 e que o inciso 5° do artigo 6°desse Pacto estipula que a pena de morte não será imposta a menores de 18 anos nem a mulheres grávidas. Embora ao ratificar o aludido Pacto o Senado norte-americano tenha emitido reserva relativamente a esse dispositivo, existe hoje um consenso internacional quanto à nulidade dessa reserva a luz do disposto na alínea “c”, do artigo 19 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Esta, em suma, delega ao Estado a faculdade de formular reservas, desde porém, que não sejam incompatíveis com o objeto e propósito do Tratado.

14.  Em junho deste ano (2000), no Estado do Texas (USA), foi executado Shaka Sankofa, antes conhecido como Gary Graham, condenado por um crime que teria cometido quando contava 17 anos de idade. Foi executado depois de 19 anos de espera no corredor da morte, apesar das solicitações formalmente apresentadas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ao Governo Americano, com o fim de que se suspendesse o ato extremo, até que se decidisse sobre queixa apresentada em seu nome à aludida Comissão, pois havia sérias dúvidas sobre a autoria do delito atribuído ao paciente. O não atendimento por parte do Governo Americano, que não poderia escapar à competência da CIDH, no âmbito da proteção dos Direitos Humanos no hemisfério, segundo a Declaração Americana, provocou um comunicado a imprensa, estranhando e profligando esse procedimento, em tudo contrário ao funcionamento do sistema interamericano de proteção dos Direitos Humanos. [56](ver em nota de rodapé o inteiro teor do comunicado de imprensa da CIDH).

15.  Por outro lado, a Convenção Americana para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra a mulher, proclamada em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994, impede a submissão da mulher à pena de morte. É o que se deduz do disposto em seu artigo 3°, ao afirmar “que toda mulher tem direito a uma vida livre de violência, tanto no 6ambito público, como privado”, e repete no artigo seguinte que dentre seus direitos compreende-se o “direito a que se respeite sua vida”. Entre os deveres do Estado, dispõe, ainda, a Convenção de Belém do Pará, inclui-se a de “abster-se de qualquer ação ou prática de violência contra a mulher e velar para que as autoridades, seus funcionários, pessoal, agentes ou instituições se comportem na conformidade com esta obrigação”. Ora, com a afirmativa de que toda a mulher tem direito à vida, e uma vida livre de violência, negando-se ao Estado qualquer ação ou prática contra a mulher, parece evidente que a Convenção de Belém do Pará proíbe a aplicação da pena de morte à mulher. Não se pode ver nos dispositivos citados uma discriminação com relação aos homens ou às crianças e jovens. E nem se argumente com a chamada discriminação positiva, pois esta existe para preservar direitos inerentes à qualificação de uma pessoa, para preservar direitos que só a ela pertencem. Por exemplo: a mulher grávida ou com filhos tem direitos próprios a sua condição de gestante e de mãe e que não se estendem, por evidente, aos homens. Além disso, uma medida de discriminação positiva tem que visar realizar a igualdade entre grupos de pessoas entre as quais persistem desigualdades de fato, de modo temporário e proporcional. Não existe uma desigualdade entre homens e mulheres no que diz respeito ao direito à vida. E em qualquer caso, a imposição da pena de morte não é uma medida proporcional, como veremos adiante. Quando se trata de direitos comuns – como direito à vida – não se pode falar em discriminação positiva. Nesse caso, todos são iguais perante a lei. Naturalmente, ao se proibir a imposição da pena de morte, às mulheres, teve-se em atenção não apenas sua condição feminina, mas, sobretudo, sua qualificação enquanto pessoa humana.

16.  Nesse sentido, o artigo 24, da Convenção Americana, enuncia que “todas as pessoas são iguais perante a lei”. E, em conseqüência, "têm direito, sem discriminação, à igual proteção da lei”. Não obstante essa norma defina o termo discriminação, a CIDH considera que essa expressão inclui toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em algum motivo que tenha por objeto ou por resultado anular ou menoscabar o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nas esferas política, econômica, social, cultural, ou em qualquer outra esfera da vida pública”. (cf., Manual de Preparações de Informes sobre os Direitos Humanos, Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, artigo 26).

17.  Convém anotar, ademais, que a Convenção sobre os direitos da criança proíbe a imposição da pena de morte a menores de 18 anos de idade, nos termos de seu artigo 37, letra “a”,

18.  Trata-se de instrumento jurídico dotado de significativa universalidade no campo dos direitos humanos (apenas os Estados Unidos da América e a Somália não o ratificaram).

19.  O citado artigo 37 da aludida Convenção dispõe que “nenhuma criança deve ser submetida à tortura ou outras formas cruéis, desumanas ou degradantes de tratamento ou punição. Nem a pena de morte, nem a prisão perpétua serão impostas nos casos de delitos cometidos por pessoas menores de 18 anos”.

20.  Observe-se, entretanto, que embora os Estados Unidos da América não tenham ratificado a Convenção sobre os direitos da criança, o simples fato de haverem assinado aquele instrumento em fevereiro de 1995 gera obrigações no plano jurídico. O artigo 18 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados estabelece que os países signatários de um tratado, mesmo que não o tenham ratificado, devem abster-se de qualquer ato contrário a seu objeto e propósito, até que tenham decidido anunciar sua intenção de não tornar-se parte do tratado. No caso, apesar de os Estados Unidos da América não serem parte da Convenção de Viena, o Departamento de Estado Americano já reconhece como texto básico na área de tratados e atos processuais. Segundo a premissa de que a reserva é incompatível com o objeto e a finalidade de um tratado e que os Estados Unidos da América não são parte da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, o Departamento de Estado desse País entende que as normas da Convenção de Viena se constituem numa declaração do direito internacional costumeiro. E nesse caso, devem ser reconhecidas. Isto porque, segundo, ainda a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, deve-se reconhecer a importância progressiva dos tratados como fonte do direito internacional e como meio do desenvolvimento pacífico e cooperativo entre as nações, qualquer que sejam sua Constituição e sistema social.

21.  Ora, da mesma forma, como se anotou na hipótese da imposição de pena de morte a mulheres, não se pode ver no dispositivo em questão uma discriminação a afastar homens e mulheres, pois, como se afirmou, não se trata, ainda neste caso, de uma discriminação positiva, uma vez que o artigo 37, letra “a”, da Convenção sobre os direitos da criança, objetiva preservar direitos que não são próprios, apenas, das crianças ou jovens, mas de todo ser humano.

22.  Se isto é verdade, como sem dúvida o é, o disposto no artigo 4° da Convenção Americana perdeu seu significado anterior, de sorte que os Estados que a subscreveram e a ratificaram, bem como a instrumentos internacionais posteriores não podem impor a pena de morte a qualquer pessoa, independentemente de seu sexo, ou outra qualquer condição.

23.  Examinaremos a matéria tendo em vista princípios de hermenêutica consagrados no direito positivo. O direito internacional pressupõe disposições que estão acima do Estado. Conforme acentua o ilustre jurista italiano Norberto Bobbio, o universalismo – que o direito internacional pretende normatizar – ressurge hoje, em especial depois da segunda guerra mundial e da criação da Organização das Nações Unidas (ONU), não mais como crença num eterno direito natural, como vontade de constituir um direito positivo único do desenvolvimento social e histórico (como o direito natural e o estado de natureza), mas no fim. E pondera que a idéia do Estado mundial único e a idéia-limite do universalismo jurídico contemporâneo, isto é, a constituição de um direito positivo universal (cf. Teoria do Ordenamento Jurídico. Universidade de Brasília, 1991, p. 164).

24.  No caso, não se pode permitir a prevalência de norma anterior, do mesmo conteúdo da posterior que pretende ilidir a esta última. Trata-se do que os juristas denominam antinomia e como tal precisa ser encarada e solucionada. Qual das regras deve prevalecer? Que elas são incompatíveis não há dúvida. Mas como resolver o problema?

25.  Segundo, ainda, Noberto Bobbio, as regras fundamentais para a solução das antinomias são três: a) o critério cronológico; b) o critério hierárquico; e c) o critério da especialidade (op. Cit., p.92).

26.  No primeiro caso, prevalece a norma posterior – lex posterior derogat priori. No segundo, a natural prevalência do direito internacional sobre o direito nacional. Finalmente, enquadra-se, ainda, a hipótese, no último critério, pois se trata de uma regra especial, com especial destinação.

27.  Nem se alegue, entretanto, que a aceitação da pena de morte no parágrafo 2, do artigo 4°, da Convenção Americana, é uma disposição especial com relação ao direito “Geral”à vida. E, muito menos, que ao aceitar a pena de morte, foi ela considerada como um caso particular de pena a não alcançar uma violação do direito à vida ou à proibição da tortura ou de outro tratamento cruel ou desumano.

28.  A Corte Interamericana de Direitos humanos, em sua opinião consultiva OC-3/83, de 8 de setembro de 1983, assinalou que em se tratando de restrições à pena de morte, não se deveria contornar o problema, senão, pôr-lhe um limite definitivo, mediante um processo progressivo e irreversível destinado a cumprir-se tanto nos países que não tenham ainda resolvido aboli-la, como naqueles que já tomaram essa determinação.

29.  Nesta matéria, continua a Corte, a Convenção expressa uma clara tendência de progressividade, consistente em que, sem chegar a decidir a abolição da pena de morte, adota as disposições requeridas para limitar definitivamente sua aplicação e seu âmbito, de modo tal a que estes se vão reduzindo até sua supressão final.

30.  A esse propósito, vale a pena recordar os trabalhos preparatórios da Convenção Americana que confirmam o sentido resultante da interpretação textual de seu artigo 4°. Com efeito, a proposta de várias delegações para que proscrevesse a pena de morte de modo absoluto, ainda quando não tivesse alcançado a maioria regulamentar de votos afirmativos, não teve um só voto contrário. A atitude geral e a tendência amplamente majoritária da Conferência foram registradas na seguinte declaração apresentada ante a Sessão Plenária de Clausura, por quatorze das dezenove delegações participantes (Costa Rica, Uruguai, Colômbia, Equador, El Salvador, Panamá, Honduras, República Dominicana, Guatemala, México, Venezuela, Nicarágua, Argentina e Paraguai):

“As delegações, que assinam abaixo, participantes da Conferência Especializada Interamericana de Direitos Humanos, tendo em vista o sentimento altamente majoritário, expressado no curso de debates sobre a proibição da pena de morte, concorde com as mais puras tradições humanistas de nossos povos, declaramos solenemente nossa firme aspiração de ver desde logo erradicada do âmbito americano a aplicação da pena de morte e nosso indeclinável propósito de realizar todos os esforços possíveis para que, a curto prazo, se possa subscrever um Protocolo adicional à Convenção Americana de Direitos humanos “Pacto de São José, Costa Rica”, que consagre a definitiva abolição da pena de morte e coloque uma vez mais a América na vanguarda da defesa dos direitos fundamentais do homem” (atas e documentos, OEA-serv.K-XVI-12, Washington, D.C., 1973; adiante Atas e Documentos (repr.1978, esp.p. 161, 195, 296 e 449/441).

31.  Coincide, ademais, com tais afirmativas o que foi assinalado pelo Relator da Comissão, no sentido de que a Comissão fez notar, nesse artigo, sua firme tendência à supressão da pena de morte. (atas e documentos, supra n° 296).

32.  Por demais, o Estado de Direito implica, quando da imposição de uma pena, no conhecimento do que essa pena realmente importa. Quando se aplica uma pena que tem pó objetivo, além da punição, a recuperação do detento, este o que vai acontecer com sua pessoa no futuro. Se lhe é imposta uma pena somente punitiva, no caso da prisão perpétua, o réu visualiza, ainda nesta hipótese, o se futuro. Mas, se a pena é de morte, o Estado não aponta ao condenado o que lhe vai suceder com sua eliminação enquanto pessoa humana. É que a ciência, com todo o seu desenvolvimento, não chegou, até hoje, a desvendar o pós-morte; vida futura, com castigo ou prêmio? Pura e simples eliminação?

33.  Assim, ao Estado de Direito é defeso aplicar uma pena cujas conseqüências, não pode desvendar.

34.  Na verdade, todas as penas de que lança mão o legislador, constituem espécies de sanções, distribuindo-se elas segundo uma graduação racional que procura levar em conta uma série de fatores peculiares a cada hipótese de ilicitude.

35.  O pode-dever de punir, que compete ao Estado, abre-se, desse modo, em um leque de figuras ou medidas, segundo soluções escalonadas, mensuráveis em dinheiro ou em quantidade de tempo. Essa ordenação gradativa é da essência mesma da Justiça penal, pois esta não se realizaria se um critério superior de igualdade ou de proporção não presidisse a distribuição das penas, dando a cada infrator mais do que ele merece.

36.  Pois bem, quando se decreta a pena de morte, rompe-se abrupta e violentamente a apontada harmonia serial; dá-se um salto do plano temporal para o não-tempo da morte.

37.  Com que critério objetivo ou com que medida racional (pois ratio significa razão e medida) se passa de uma pena de 30 anos ou de prisão perpétua para a pena de morte? Onde e como se configura a proporcionalidade? Qual a escala asseguradora da proporcionalidade?

38.  Dir-se-á que também há uma diferença qualitativa entre a pena de multa e a de reclusão, mas o cálculo daquela é redutível a critérios cronológicos, podendo ser fixada, por exemplo segundo o que representara em termos de jornadas de trabalho perdido, par que possa significar privação e sofrimento à pessoa do infrator, em função de sua situação patrimonial. De qualquer modo, são critérios racionais de conveniência, suscetíveis de contraste na experiência, que governam a passagem de um para outro tipo de pena, enquanto a idéia de “proporcionalidade”submerge-se na perspectiva da morte.

39.  Em suma, a opção pela pena de morte, é de tal ordem que, como afirma Simmel, matiza todos os conteúdos da vida humana, podendo-se dizer que ela é inseparável de um halo de enigma e de mistério, de sombras que à luz da razão não é dado dissipar: querer enquadrá-la em soluções penais equivale a despojá-la de seu significado essencial para reduzi-la à violenta desagregação física de um corpo (apud Miguel Reale, in O Direito como Experiência).

40.  Daí a conclusão do eminente filósofo jurista Miguel Reale: analisada à luz de seus valores semânticos, o conceito de pena e o conceito de morte são entre si lógica e ontologicamente irreconciliáveis e que, assim sendo, “pena de morte” é uma “contradictio in terminis” {cf. O direito como experiência, Saraiva, 2a ed., São Paulo, Brasil).

41.  O jurista Héctor Fáundez Ledesma escreve, a propósito: “quanto aos direitos consagrados na Convenção, estes são direitos mínimos, ela não pode limitar o exercício desses direitos numa medida maior que a permitida por outros instrumentos internacionais. Por conseguinte, qualquer outra obrigação internacional assumida pelo Estado em outros instrumentos internacionais de diretos humanos é da maior relevância, e sua coexistência com as obrigações derivadas da Convenção deve ser tida em conta em  todo aquele que resulte mais favorável ao  indivíduo”.

42.  “O mesmo entendimento, prossegue o jurista, se faz extensivo a qualquer outra disposição convencional que proteja o indivíduo de uma maneira mais favorável, quando esta esteja contida num tratado bilateral ou multilateral, e independentemente de qual seja seu objeto principal” (O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, 1996, pg. 92 e 93).

43.  Acresce que o artigo 29, “b”, da Convenção Americana estabelece, nessa mesma linha de pensamento, que nenhuma disposição da Convenção pode ser interpretada no sentido de “limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possa estar reconhecido de acordo com as leis de qualquer dos Estados partes”. E oportuno, a propósito, ler o informe da CIDH sobre Suriname e a consulta OC-8/87 à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

44.  Nessa oportunidade, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos afirmava que a proibição de impor a pena capital por delitos cometidos por menores de 18 anos, era um princípio emergente do direito internacional. Doze anos mais tarde não há dúvida alguma de que este princípio está hoje totalmente consolidado. A ratificação por 192 Estados, da Convenção dos Direitos da Criança das Nações Unidas, que proíbe a imposição da pena capital àqueles que cometeram delitos quando menores de idade, e, dentre outras, uma prova irrefragável da consolidação desse princípio (cf. Relatório da Anistia Internacional apresentado à CIDH, Washington, 5 de março de 1999).

45.  É certo que a Declaração Universal de Direitos humanos não se refere especificamente à proibição da pena de morte, mas consagra em seu artigo 3° o direito de cada um à vida, liberdade e segurança (o mesmo preceito figura no artigo 1°da Declaração Americana dos Direitos e Deveres dos Homem). Adotada pela Assembléia Geral da ONU, em 1948, sob a forma de mera resolução/recomendação, a Declaração Universal é hoje considerada por insignes doutrinadores como parte do Direito Internacional Costumeiro e como norma obrigatória (jus cogens) – artigo 53, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Mutatis mutandi, seria lícito afirmar que a Convenção sobre os direitos da criança, por sua abrangência e caráter obrigatório, deva também ser observada pelos dois únicos Estados que não a ratificaram, como, aliás, já se salientou e observa o próprio Departamento de Estado, dos Estados Unidos da América.

46.  Convém, ademais, assinalar que a Corte Européia de Direitos Humanos, ao decidir o caso Soering - Jens Soering, nascido na Alemanha, em detenção na Inglaterra e submetido a um pedido de extradição pelos Estados Unidos da América para responder a uma acusação de homicídio praticado no Estado de Virgínia, que pune esse crime com pena de morte - fez oportunos comentários ao artigo 3°, da Convenção Européia, onde se diz que ninguém pode ser submetido a tortura, nem a penas ou tratamento desumano, cruel ou degradante. Considerou a Corte que o pedido não poderia ser atendido a não ser que se tivesse a certeza de que o extraditando seria beneficiado, pelo menos, pelas garantias do aludido dispositivo do artigo 3°, da Convenção (cf. Jurisprudence de la Cour Européenne des Droits de l’homme, 1998, 6a ed., Sirey, os. 18 e seguintes).

47.  Quer dizer, a Corte concluiu que a extradição a um país que conhece a pena de morte não constituiria uma violação do direito à vida ou do direito à integridade pessoal, pois a pena de morte em si não é, explicitamente, proibida pela Convenção Européia. Todavia, a possibilidade de que o réu passasse anos em detenção à espera do momento – aliás, totalmente imprevisível – da execução da pena, a chamada “síndrome do corredor da morte” foi considerada pela Corte como constituindo um tratamento cruel e, de conseguinte, uma violação do direito a integridade pessoal.

48.  Trata-se, sem dúvida, de uma ambigüidade: se há espera, viola-se o direito; se a imposição da pena for imediata, a atuação do Estado não seria considerada uma violação do direito fundamental `vida.

49.  Essa decisão permite, a conclusão de que abandona-se, pouco a pouco, a visão tradicional, positivista, na aplicação do direito. Ao invés de uma interpretação literal dos textos em questão, busca-se uma hermenêutica teleológica, no caso, da Convenção Européia, para chegar-se à conclusão maior, de não se permitir a aplicação da pena de morte em qualquer hipótese.

50.  Assim, a proibição absoluta, pela Convenção Européia, da tortura e das penas ou tratamentos desumanos ou degradantes mostra que o artigo 3°, em referência, consagra um dos valores fundamentais das sociedades democráticas. Salienta o julgado que no mesmo sentido dispõem o pacto Internacional de 1966 relativo aos direitos civis e políticos e a Convenção Americana dos Direitos do Homem, de 1969, ao proteger, em toda sua extensão e profundidade, os direitos da pessoa humana. Trata-se, conclui, de uma norma internacionalmente aprovada.

51.  É bem verdade que o conceito de penas ou tratamentos desumanos ou degradantes depende de todo um conjunto de circunstâncias. Não é por outro motivo que se deve ter todo o cuidado para que se assegure um justo equilíbrio entre as exigências de interesse geral da comunidade e os imperativos maiores da salvaguarda dos direitos fundamentais do indivíduo, na forma dos princípios inerentes ao conjunto da Convenção Européia.

52.  A Anistia Internacional vem afirmando que a evolução das normas na Europa Ocidental quanto à existência e ao uso da pena capital leva à consideração de que se trata de uma pena desumana, no sentido apontado pelo artigo 3°, da Convenção Européia. É nesse sentido que deve-se entender a decisão da Corte no caso Soering.

53.  Por sua vez, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já afirmou que “o  direito à vida e sua garantia e respeito pelos Estados não pode ser concebido de modo restritivo. O mesmo não somente  supõe que ninguém deve ser privado arbitrariamente da vida (obrigação negativa). Exige dos Estados, ainda mais, tomar todas as providências apropriadas para postergá-la e preservá-la (obrigação positiva)” (cf. Repertório de jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, 1998, Washington College of Law, American University, 1/ 102).

54.  Não foi por outro motivo que a Corte Européia, na decisão apontada, ponderou que “la Convention est sans conteste “un instrument vivant à interpreter (...) à lumière des conditions de vie actuelle [pour déterminer s’il lui faut considérer un traitment ou une peine donné comme inhumains ou dégradants auxfins de l’article 3° la Cour ne peut pás ne pás être influencée par l’évolution et lês normes communément acceptées de la politique pénale des Etats membres du Conseil de l’Europe dans ce domaine”.

55.  Realmente, para saber se a pena de morte, em razão de alterações atuais, tanto do direito nacional, como do direito internacional, constitui um tratamento proibido pelo artigo 3° , é preciso tomar em conta os princípios que regem a interpretação da Convenção. Neste caso, tanto da Convenção Européia, como da Convenção Americana: “ninguém pode ser submetido a tortura nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes (artigo 3°, da Convenção Européia); “ninguém pode ser submetido a torturas nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”(artigo 5°, inciso 2°, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos).

56.  Na mesma linha de pensamento, ao apreciar o caso Irlanda versus Reino Unido, a Corte Européia, já decidira que “a Convenção proíbe em termos absolutos a tortura e as penas ou tratamentos desumanos ou degradantes, quaisquer que sejam as incriminações à vítima. O artigo 3° não prevê restrições: “... seule entrent en ligne de compte lês notions de “torture”et de “traitements inhumain ou dégradants”, à l’exclusionde celle de “peine inhumaine ou degradante”.

57.  Mais recentemente, na opinião consultiva OC – 16/99, de 1° de outubro de 1999, solicitada pelos Estados Mexicanos à Corte Interamericana de Direitos Humanos, sobre o direito à informação a respeito da assistência consular, no conjunto das garantias do devido processo legal, estimou útil “recordar que no exame realizado, em sua oportunidade, sobre o artículo 4°, da Convenção Americana, advertiu que a aplicação e imposição da pena capital esta limitada em termos absolutos pelo princípio segundo o qual “[ninguém] poderá ser privado da vida arbitrariamente”. Tanto o artigo 6° do Pacto Internacional de Diretos Civis e Políticos, como o artigo 4° da Convenção, ordenam a restrita observância do procedimento legal e limitam a aplicação desta pena a “aos mais graves delitos”. Em ambos instrumentos existe, pos, uma clara tendência restritiva à aplicação da pena de morte até a sua supressão final”.

58.  O que falta, pergunta-se, para chegar-se à eliminação universal da pena capital? Tão somente o pleno reconhecimento dos direitos emanados dos tratados.

59.  Vem, justamente, apelo, na linha da posição do jurista e do aplicador da lei sobre a matéria, o voto concorrente, na aludida opinião consultiva – solicitada pelo Estado Mexicano, do juiz Cançado Trindade, ao fazer considerações relevantes, a propósito da hermenêutica do direito frente a novas necessidades de proteção.

60.  O ilustre internacionalista e atual presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos (1999/2001) nesse voto concorrente assinala que “as próprias emergências e consolidação do corpus juris do Direito Internacional dos Direitos Humanos devem-se à reação da consciência jurídica universal perante os recorrentes abusos cometidos contra os seres humanos, frequentemente convalidados pela lei positiva: com isto, o Direito veio ao encontro do ser humano, destinatário último de suas normas de proteção”.

61.  No mesmo sentido, adverte o autor do voto concorrente, “indica a jurisprudência dos tribunais internacionais de diretos humanos até esta data, portanto, os tratados de diretos humanos são, efetivamente, instrumentos vivos, que acompanham a evolução dos tempos e do meio social em que se exercem os direitos protegidos”.

62.  A esse propósito, a Corte Européia de Direitos Humanos, no caso Tyrer versus Reino Unido (1978), ao determinar a ilicitude de castigos corporais aplicados a adolescentes na Ilha de Mana, afirmou que a Convenção Européia de Direitos Humanos “é um instrumento vivo a ser interpretado à luz das condições da vida atual”.

63.  Em remate, com a desmistificação dos postulados do positivismo jurídico voluntarista, tornou-se evidente que somente se pode encontrar uma resposta ao problema dos fundamentos e da validade do direito internacional geral na consciência jurídica universal, a partir da afirmação da idéia de uma justiça objetiva.

64.  Acrescente-se, ainda, que em reunião realizada por representantes dos órgãos de supervisão internacionais baseados em tratados de direitos humanos (os chamados “human rigths treaty bodies”), assinalou-se que os procedimentos convencionais formam parte de um amplo sistema internacional de proteção dos direitos humanos, o qual tem como postulado básico a indivisibilidade dos direitos humanos (civis, políticos, econômicos, sociais e culturais). De modo a assegurar na prática a universalidade dos direitos humanos, a referida reunião recomendou a “ratificação universal”, até o ano 2000, dos seis tratados centrais de Direitos Humanos das Nações Unidas (os dois pactos de Direitos Humanos, as convenções sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial e de discriminação contra a mulher; a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura; e a Convenção sobre os direitos da Criança), das três Convenções Regionais (a européia, a americana e a africana) sobre Direitos Humanos, e das convenções da OIT atinentes a direitos humanos básicos. A reunião advertiu, a seguir, que o não cumprimento pelos Estados Partes do dever de ratificar constituía uma violação das obrigações convencionais internacionais e a invocação da imunidade estatal neste particular equivaleria a um “doube-standard” que penalizaria os Estados que cumpriram devidamente tais obrigações (Cançado Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, vol. 1, Fabris ed., 1997,os. 199/200).

65.  O artigo 27, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados impede que se invoquem normas de direito interno para justificar o não cumprimento de uma obrigação internacional. E mais, uma disposição convencional deve ser interpretada de boa-fé, conforme o sentido comum dos seus termos (artigo 31, da Convenção de Viena, de 23 de maio de 1969: “A treaty shall be interpreted in good faith in accordance with the ordinary meaning to be given to the terms of the treaty in their contest and in the light of its object and purpose”). Deve-se, pois, buscar valorizar a cada um dos termos que não podem ser interpretados como não tendo sido escritos (doutrinas do “efeito útil”).

66.  Aliás, a Corte interamericana, na opinião consultiva OC-14/94, já sustentou que: “segundo o direito internacional as obrigações que este impõe devem ser cumpridas de boa-fé e não pode invocar-se para seu não cumprimento i direito interno. Estas regras podem ser consideradas como princípios gerias de direito e têm sido aplicadas, ainda em se tratando de disposições de caráter constitucional, pela Corte Permanente de Justiça Internacional e pela Corte Internacional de Justiça (caso das comunidades gréco-búlgaras (1930); caso de nacionais poloneses de Dantzig (1931); caso das Zonas livres (1932); e aplicabilidade da obrigação de arbitrar segundo o Convênio da sede das Nações Unidas (caso da missão OLP, 1988).

67.  A vista do exposto, a norma do artigo 4°,  inciso 2°, da Convenção Interamericana, pode-se dizer, está superada pelas disposições contratuais citadas, segundo a melhor hermenêutica do direito internacional dos direitos humanos, sendo-lhe defesa a aplicação, mediante normas de direito interno, ainda que anteriores à Convenção Americana, de penas aflitivas, como a pena de morte.

68.  Isto, porque é princípio do Direito Internacional dos Direitos Humanos, que toda ação deve ter por objetivo primordial a proteção das vítimas.

69.  Nessa perspectiva, dispositivos como aqueles já mencionados (artigo 4°, parágrafo 2°) da Convenção Americana sobre os direitos humanos devem ser desconsiderados em favor de instrumentos jurídicos que melhor protejam os interesses das vítimas de violações de direitos humanos.

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[43] Id., Par. 134-137.

[44] Caso LaGrand, supra.

[45] Id., Par. 77.

[46] Id., Par. 78.

[47] OC-16/99, supra, Par. 121-124, 137.

[48] Ver Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, A Questão da Pena de Morte, N.U., Doc Nº E/CN.4/RES/2001/68 (25 de abril de 2001), ponto 4(d) (solicitando a todos os Estados membros das Nações Unidas que ainda aplicam a  pena de morte que “cumpram  plenamente com suas obrigações internacionais, em particular aquelas estipuladas de conformidad com a  Convenção de Viena sobre Relações Consulares”).

[49] Organização dos  Estados Americanos, Resolução 1717 (XXX) da  Assembléia Geral, AG/RES. 1717 (XXX-0/00), Os Direitos Humanos de todos os Trabalhadores Migrantes e de suas Familias ( que reitera “enfaticamente o dever dos  Estados de velar pelo  pleno respeito e cumprimento da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares de 1963, particularmente em relação ao direito que tem os estrangeiros, sem importar sua condição migrante, a comunicarem-se com um funcionário consular de seu Estado caso forem detidos e a obrigação a cargo do Estado em cujo território ocorre a detenção a informar o estrangeiro sobre este direito”).

[50] CIJ, Pessoal Diplomático e Consular dos  Estados Unidos em Teerã  (Estados Unidos contra Irã), CIJ, Memórias, em 174 (onde afirma em nome dos Estados Unidos que

[o] canal de comunicação entre os funcionários consulares e os nacionais deve permanecer aberto todo o tempo. Na realidade, esta comunicação é tão  essencial para o exercício das funções consulares que seu impedimento faria que o estabelecimento de relações consulares não tivesse sentido […] O artigo 36 [da  Convenção de Viena sobre Relações Consulares] estabelece direitos não somente para o funcionário consular mas também, e talvez mais importante, para os nacionais do Estado que envia, aos quais se assegura acesso aos funcionários consulares e por meio deles a outras pessoas).

[51] Ver, por analogia, OC-16/99, supra, Par. 87, 137.

[52] Ver, por analogia, Peter Benjamin e outros contra Trinidad e Tobago, Caso 12.148, Relatório Nº 53/00, Par. 283, n. 131. Nesse sentido a Corte Interamericana fez os seguintes comentários pertinentes em sua Sentença de 30 de maio de 1999 no  caso Castillo Petruzzi:

Se o processo sobre o que se baseia a sentença tem deficiências graves que lhe tiram a eficácia que deve ter sob circunstâncias normais, então a sentença não continuará vigente. Não contará com o  reforço necessário que constituem os litígios interpostos por lei. O  conceito de anulação de um processo é conhecido. Através dela, alguns atos são invalidados e se repetem todos os procedimentos posteriores ao  processo em  que ocoreu a violação que causou a invalidação. Isto, por sua vez, significa que se emite uma nova sentença. A legitimidade da  sentença baseia-se na legitimidade do processo.

Corte IDH, Castillo Petruzzi e outros, Sentença de 30 de maio de 1999, Relatório Anual de 1998, Par. 219.

[53] O artigo 43(2) do Regulamento da  Comissão dispõe que  “Se (a Comissão) estabelece uma ou mais violações, preparará um relatório preliminar com as propostas e recomendações que julgue pertinentes e o  transmitirá ao Estado em questão. Neste caso, fixará um prazo dentro do qual o Estado em questão deverá informar sobre as medidas adotadas para cumprir com as recomendações. O Estado não estará facultado para publicar o relatório até que a  Comissão adote uma decisão a respeito”. (ênfase do  autor)

[54] Caso 11.753, Relatório Nº 108/00, Ramón Martinez Villareal contra Estados Unidos (Admissibilidade), Relatório Anual da  CIDH 2000, para. 57, n. 7, que cita, entre outras, a Opinão Consultiva da  Corte IDH OC-10/89, Interpretação da  Declaração Americana dos  Direitos e Deveres do Homem dentro do Marco do artigo 64 da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 14 de julho de 1989, Ser. A, Nº 10 (1989), pars. 35-45.

[55] Cuando el relatório preliminar sobre el mérito fue aprobado conforme al artigo 50 da  Convenção, la composição da  CIDH incluía al Profesor Hélio Bicudo, quien en ese momento presentó una opinão separada.  Por lo tanto, la opinão separada del Profesor Bicudo ha sido incluida no relatório final de este caso, aprobado bajo el artigo 51 da  Convenção, a pesar del fato que el mandato del Profesor Bicudo como miembro da  CIDH expiró el 31 de dezembrode 2001.

[56] COMUNICADO DE IMPRENSA

N° 9100

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos deplora a execução de Shaka Sankofa anteriormente conhecido como Gary Graham, no Estado de Texas, em 22 de junho de 2000. O Sr. Sankofa foi executado apesar das solicitações formalmente  apresentadas pela Comissão ao governo dos Estados Unidos com o fim de que fosse suspendida dua execução, até que a CIDH tivesse decidido sobre uma denúncia apresentada em seu nome.

Em 1993, a Comissão recebeu uma denúncia em nome do Sr. Sankofa, conforme a qual os Estados Unidos, como Estado Membro da Organização dos Estados Americanos, tinha violado os direitos do Sr. Sankofa consagrados na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem incluindo seu direito à vida, previsto no artigo 4 desse instrumento. O peticionário aelgou que o Sr. Sankofa foi sentenciado à morte por um crime que, segundo alegações, foi cometido quando tinha 17 anos,  que era inocente e que tinha sido sujeito a procedimentos em que não deram cumprimento aos padrões internacionais sobre devido processo legal.

Em 11 de agosto de 1993, a Comissão abriu o Caso n° 11.193 com base na denúncia do Sr. Sankofa depois de uma audiência celebrada em 4 de outubro de 1993. A Comissão transmitiu aos  Estados Unidos, em 27 de outubro  de 1993, uma solicitação formal para a adoção de medidas cautelares de acordo com o artigo  29 (2) do Regulamento da Comissão, solicitando que os Estados Unidos garantisse a suspensão da execução do Sr. Sankofa, tendo em conta que seu caso se encontrava pendente perante a Comissão. Nessa oportunidade, se propôs a execução do Sr. Sankofa, cuja data havia sido fixada previamente para 17 de agosto de 1993, até que fossem concluídos certos processos judiciais internos.

Em fevereiro de 2000 a Comissão foi informada sobre a conclusão dos procedimentos internos e a iminente expedição de uma nova ordem de execução. Em resposta, em 4 de fevereiro  de 2000 a Comissão reiterou aos Estados Unidos sua solicitação de medidas cautelares de outubro de 1993. Subsequentemente, em maio de 2000, a Comissão recebeu informação de que a petição do Sr. Sankofa perante a corte Suprema dos Estados Unidos havia sido denegada e sua execução programada para o dia 22 de junho de 2000. Em resposta, em 15 de junho de 2000, durante seu 107 período de sessões, a Comissão adotou o Relatório n°51/00 mediante o qual  declarou admissível a queixa do Sr. Sankofa e decidiu proceder a examinar o mérito do seu caso. Nesse mesmo informe, a Comissão voltou a reiterar aos Estados Unidos sua solicitação de suspensão da execução do Sr. Sankofa enquanto seu caso se encontrasse pendente de decisão final.

Numa comunicação de 21 de junho de 2000, os Estados Unidos acusou o recebimento da nota da Comissão de 4 de fevereiro de 2000 e indicou que a tinha enviado ao Governador e ao Procurador-Geral do Texas. Em 22 de junho, porém, a Comissão tomou conhecimento de que a Junta de Indultos e Liberdade Condicional de Texas havia recusado recomendar o Sr. Sankofa para uma suspensão, comutação ou indulto, e que sua execução teria lugar em 22 de junho de 2000 pela tarde. Em consequência, mediante uma comunicação da mesma data, a Comissão solicitou aos Estados Unidos uma resposta urgente a seu pedido prévio de medidas cautelares. Infelizmente, os  Estados Unidos não responderam à solicitação apresentada pela Comissão em 22 de junho  de 2000, e a execução do Sr. Sankofa foi efetuada conforme o programado.

A Comissão está  preocupada pelo fato de que, apesar de ter admitido o  caso do Sr. Sankofa para sua consideração por um órgão internacional de direitos humanos com competência, os Estados Unidos não respeitou eficazmente no contexto de suas obrigações internacionais em matéria de direitos humanos. Tendo em vista o dano irreparável provocado por essas circunstâncias, a Comissão exorta os Estados Unidos e outros Estados Membros da OEA a cumprir com as solicitações de medidas cautelares da Comissão, particularmente naqueles casos que envolvem o direito mais fundamental, o direito à vida.

Washington D.C., 28 de junho de 2000.