RELATÓRIO N°41/02

ADMISSIBILIDADE

PETIÇÃO 11.748

JOSÉ DEL CARMEN ÁLVAREZ BLANCO E OUTROS (COMUNIDADE BELLO)

COLÔMBIA

9 de outubro de 2002

 

 

I.                   RESUMO

 

1.          Em 5 de maio de 1997, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “a Comissão” ou “CIDH”) recebeu uma petição apresentada pela  Associação de Familiares dos Detidos e Desaparecidos de Colômbia (FEDEFAM), a Federação Latinoamericana de Associações de Familiares de Detidos e Desaparecidos (ASFADDES) e a Comissão Colombiana de Juristas (CCJ) (doravante denominados “os peticionários”), a qual alega a responsabilidade de agentes da República da Colômbia (doravante denominada, “o Estado” ou “o Estado colombiano”) pela tortura e desaparecimento de José del Carmen Álvarez Blanco, Fermín Agresor Moreno, Víctor Manuel Argel Hernández, Genor Arrieta Lara, Cristóbal Manuel Arroyo Blanco, Diomédes Barrera Orozco, Urías Barrera Orozco, José Encarnação Barrera Orozco (menor), Ricardo Manuel Bohórquez Pastrana, Jorge Fermín Calle Hernández, Jorge Arturo Castro Galindo, Ovidio Carmona Suárez, Genaro Benito Calderón Ramos, Juan Miguel Cruz Ruiz, Ariel Euclides Diaz Delgado, Camilo Antonio Durango Moreno, Juan Luis Escobar Duarte, José Leonel Escobar Duarte, César Augusto Espinoza Pulgarín, Wilson Flórez Fuentes, Andrés Manuel Flórez Altamira, Santiago Manuel Gonzáles López, Carmelo Guerra Pestana, Miguel Ángel Gutiérrez Arrieta, Lucio Miguel Hurzula Sotelo, Ángel Benito Jiménez Julio, Manuel Ángel López Cuadrado, Jorge Martínez Pacheco, Mario Melo, Carlos Melo, Juan Mesa Serrano, Pedro Antonio Mercado Montes, Manuel de Jesús Montes Martínez (menor), Luis Carlos Pérez Ricardo, Miguel Pérez, Raúl Antonio Pérez Martínez, Benito José Pérez Pedroza, Euclides Ricardo Pérez, Andrés Manuel Pedroza Jiménez, José Manuel Petro Hernández, Luis Miguel Salgado Barrios, Célimo Urrutia Hurtado, e Eduardo Zapata, durante uma incursão paramilitar perpetrada em 14 de janeiro de 1990 na comunidade Bello, Município de Turbo, Estado de Antioquia.

 

2.          Os peticionários alegaram que o Estado era responsável pela violação do direito a vida, a integridade e a liberdade pessoais consagrados nos artigos 4, 5  e 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada “a Convenção Americana” ou “a Convenção”) bem como das garantias judiciais previstas nos artigos 8 e 25 do  Tratado, em detrimento das vítimas e seus familiares e da obrigação genérica de respeitar  e garantir os direitos nela protegidos. Com relação a admissibilidade da petição, os peticionários alegaram que são aplicáveis as exceções ao esgotamento dos recursos internos previstas nos artigos 46(2)(a) e 46(2)(c) da  Convenção.  O Estado alegou que não se havia provado a participação de agentes estatais nos fatos denunciados e que os tribunais locais tinham atuado conforme a lei, motivo pelo qual não se tinha violado nenhum direito consagrado na Convenção Americana.

 

3.          Após analisar as posições das partes, a Comissão concluiu que é competente para conhecer o caso apresentado pelos peticionários, e que este é admissível, à luz dos artigos 46 e 47 da  Convenção Americana.

 

II.                 TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

4.          Em 12 de fevereiro de 1990, a Comissão recebeu uma ação urgente na qual se denunciava o desaparecimento de 43 camponeses da comunidade Bello.  Na mesma data, sob o número 10.566, a CIDH dirigiu-se ao Estado com o objetivo de solicitar informação conforme o Regulamento vigente até 30 de abril de 2001. O Estado apresentou sua resposta em 10 de maio de 1990, a qual foi remetida ao denunciante em 26 de junho de 1990, outorgando-lhe um prazo de 30 dias para formular observações.  Em 6 de dezembro de 1990 a CIDH recebeu  informação de outra fonte sobre o assunto, a qual foi enviada ao Estado para suas observações.  O Estado apresentou sua resposta em 16 de agosto de 1991.  A Comissão tentou comunicar-se com o denunciante original mediante comunicações escritas e datadas de 9 de junho de 1993 e 18 de janeiro de 1994, sem êxito.  Em 3 de janeiro de 1997, a Comissão solicitou informação atualizada sobre o assunto ao Estado.

 

5.          Em 5 de maio de 1997, a Comissão recebeu uma petição apresentada por ASFADDES, FEDEFAM e a CCJ em relação aos mesmos fatos, alegando violações a Convenção Americana, e iniciou um novo trâmite sob o número 11.748.  Em 7 de maio de 1997 a Comissão informou ao Estado colombiano a abertura do caso 11.748 e lhe outorgou um prazo de 90 dias para responder a petição.  Em 20 de maio de 1997 o Estado comunicou-se com a CIDH a fim de fazer referência ao trâmite iniciado sob o número 10.566 e, em resposta, em 28 de maio de 1997 a Comissão informou ambas partes que os fatos matéria do presente assunto seriam acumulados e processados no  expediente número 11.748.  Em 12 de junho de 1997 os peticionários remeteram informação adicional, a qual foi enviada ao Estado para suas observações em 24 de junho de 1997.

 

6.          Em 24 de fevereiro de 1998, durante o 98° período de sessões, foi celebrada uma audiência na qual os peticionários apresentaram informação adicional.  Em 3 de março de 1998, a Comissão dirigiu-se a ambas partes a fim de colocar-se à disposição para efeitos de alcançar uma solução amistosa do assunto, e lhes outorgou um prazo de 30 dias para apresentar sua resposta. O Estado solicitou uma prorrogação, a qual foi concedida em 16 de abril de 1998.  Em 31 de març de 2000 a Comissão informou ao Estado que o Centro pela  Justiça e o Direito Internacional tinha-se incorporado ao trâmite como co-peticionário.

 

7.          Em 10 de outubro de 2000, durante o 108° período de sessões, a Comissão celebrou uma audiência com a participação de ambas partes.  Em 3 de novembro de 2000, a Comissão trasladou ao Estado a  informação apresentada pelos peticionários na audiência, outorgando-lhes um prazo de 30 dias para apresentar suas observações.  O Estado apresentou suas observações em 5 de dezembro de 2000.

 

 

III.               POSIÇÕES DAS PARTES

 

A.                Posição dos peticionários

 

8.          Os peticionários alegam que em 14 de janeiro de 1990, dois caminhões que transportavam aproximadamente 60 homens armados e uniformados ingressaram de madrugada no corregimento da Comunidade Bello, Município de Turbo, estado de Antioquia e invadiram várias residências e uma igreja evangélica em busca dos habitantes da comunidade.  Os homens armados detiveram um número de pessoas e as forçaram a deitarem-se de boca para abaixo na praça principal. Posteriormente selecionaram 43 camponeses, os amordaçaram e os levaram, sendo que estes nunca mias foram vistos com vida.  Antes de retirarem-se em direção a San Pedro de Urabá, os homens armados incendiaram três imóveis e disseram aos habitantes da comunidade Bello: “Isto é para que respeitem ‘Los Tangueros’ ”, presudamente referindo-se ao grupo paramilitar então liderado por Fidel Castaño, proveniente da  fazenda  “Las Tangas”, situada as margens do Río Sinú no estado de Córdoba.

 

9.                 A informação assinala que os veículos paramilitares passaram pelas barricadas fiscalizadas pelos Batalhões Vélez e Cóndor sem serem detidos ou questionados.  Os peticionários alegam que os 43 camponeses retidos foram levados a fazenda Santa Mónica no estado de Córdoba, onde os esperava o então líder paramilitar Fidel Castaño. Alegam que foram interrogados e brutalmente torturados no local: as veias de seus corpos foram furadas, seus olhos perfurados, seus ouvidos tapados, seus orgãos genitais mutilados.  Finalmente foram  executados um a um.

 

10.            No que respeita a responsabilidade dos agentes do Estado, os peticionários alegam, por um lado, que a ofensiva paramilitar teve sua origem nos  destacamentos do  Exército contra os camponeses da comunidade Bello.  Alegam que membros do Exército interpretaram a atitude passiva destes camponeses perante um incidente de roubo de gado pertencente a Fidel Castaño como símbolo de sua suposta afiliação a guerrilha.  Argumentam que as autoridades das bases militares e barricadas de San Pedro de Urabá não somente permitiram a passagem dos veículos paramilitares mas também colaboraram diretamente com o  grupo armado ilegal.  Segundo surge das alegações dos peticionários, uma vez consumados os fatos, membros da  comunidade Bello dirigiram-se as bases militares a fim de solicitar informação sobre o paradeiro das pessoas desaparecidas e posteriormente foram vítimas de atos de intimidação.

 

11.          Os peticionários alegam que em abril de 1990 foram exumados  24 corpos da  fazenda Las Tangas, seis dos quais foram [1] identificados como camponeses da comunidade Bello.  O resto das vítimas permaneceram desaparecidas.  Alegam que apesar de existir indícios sobre a localização dos demais cadáveres, não haviam sido realizadas as  diligências necessárias para levar adiante novas exumações.

 

12.          Quanto a investigação iniciada pelas autoridades judiciais, os peticionários alegam que a atividade da Jurisdição de Ordem Pública de Medellín e a Promotoria Regional Delegada não conduziu ao esclarecimento total dos fatos nem a sanção dos responsáveis.  Sustentam que apesar de ter-se verificado a responsabilidade penal de 13 pessoas conforme os fundamentos da sentença decretada em 26 de maio de 1997 pelo  Julgado Regional de Medellín, somente uma delas foi condenada (José Aníbal Rodríguez Urquijo) e três foram  privadas de sua liberdade (José Aníbal Rodríguez Urquijo, Héctor de Jesús Narváez e Pedro Hernán Ozaga Pantoja).  Alegam que não foi avaliada a participação de outras pessoas acusadas de estarem envolvidas, nem  foram realizadas as diligências necessárias para recuperar os corpos das vítimas.  Após sete anos de ocorridos os fatos, foi determinada a  responsabilidade de um número de civis pela  morte de seis das vítimas mas as violações cometidas em detrimento do resto das vítimas continuam impunes e seus corpos desaparecidos.  Vários dos acusados foram julgados in absentia sem que fossem capturados.  Os peticionários alegam também que os processos perante a justiça penal militar violam os princípios de imparcialidade e independência salvaguardados pela Convenção Americana.

 

13.            Os peticionários alegam, portanto, que o Estado colombiano é responsável pela  violação dos artigos 4, 5, 7, 8 e 25 da  Convenção Americana. Defendem que o Estado deve reparar estas violações mediante a sanção dos responsáveis, a localização dos restos das vítimas e sua identificação, e a compensação aos familiares.

 

14.          Com relação à admissibilidade da petição, argumentam que neste caso, o  requisito de admissibilidade previsto no artigo 46(1) da  Convenção não resulta exigível, por aplicação das excepções ao esgotamento dos recursos internos previstas no artigo 46(2)(a) e (c).  Por um lado alegam que o Estado demorou a esclarecer a morte de 37 das vítimas perante a justiça ordinária.  Também alegam que o recurso utilizado para esclarecer a responsabilidade dos membros do Exército supostamente envolvidos nos fatos, a justiça penal militar, não é adequada conforme os termos do artigo 46(2)(a) da  Convenção Americana.

 

B.                 Posição do Estado

 

15.            No que se refere à alegada participação dos agentes estatais nos fatos matéria do presente caso, o Estado defende que os membros do Exército supostamente envolvidos foram absolvidos mediante as decisões já proferidas no âmbito judicial ordinário, penal militar e disciplinário.  Considera que estas decisões são fundamentadas e concluem que não existiu vinculação entre os agentes do Estado e os fatos cometidos pelos grupos paramilitares.  Alegam que as afirmações dos peticionários baseiam-se em prova produzida perante os tribunais locais tirada fora do contexto.[2]

 

16.            O Estado alega que os mecanismos judiciais internos destinados a esclarecer os fatos e julgar os responsáveis funcionaram e que continuam tentando localizar os corpos do resto das vítimas.[3]  O Estado apresenta informação sobre o processo no qual a Direção Regional de Promotorias de Medellín proferiu resolução de acusação contra 13 civis em 10 de novembro de 1995.  Esta resolução ordenou que não se investigara as outras três pessoas acusadas de pertencer a grupos armados, e esta foi confirmada pela Promotoria delegada perante o Tribunal Nacional. Assinala que, entre março e abril de 1995, foram realizadas diligências de exumação nas quais foram localizadas e identificadas parte das vítimas.[4]  Em 26 de maio de 1997 o Julgado Regional de Medellín condenou em primeira instância Fidel Castaño Gil e outras nove pessoas a penas de 12 a 30 anos de prisão e ao pagamento de multas pelos delitos de homicídio múltiplo, formação de quadrilha, sequestro, porte ilegal de armas de uso privativo, e violação do decreto 1194 de 1997.  A sentença foi apelada e em 30 de dezembro de 1997 o Tribunal Nacional decretou a nulidade do processo relacionado às vítimas da comunidade Bello cujos restos não haviam sido encontrados.  O Estado indica que esta sentença modificou as penas e ordenou investigar os co-partícipes não incluídos na resolução de acusação original[5].  Alega que o senhor José Rodríguez Urquijo aceitou os cargos de sequestro e extorsão, homicídio agravado e criação de grupos paramilitares dentro deste processo e foi condenado a 22 anos de prisão mediante sentença antecipada.  A causa foi enviada à consideração da Corte Suprema de Justiça.

 

17.            Quanto ao julgamento de membros do Exército por sua suposta participação nos fatos matéria do presente caso, o Estado faz referência a quatro decisões emitidas pela  justiça penal militar.  Em primeiro lugar, em 21 de janeiro de 1992 foram emitidas duas resoluções absolutórias.  Em 11 de setembro de 1995 o Comando Geral das Forças Militares da Colômbia emitiu uma decisão na qual resolveu que não existia mérito para abrir formalmente uma investigação penal.  Por último, em 14 de abril de 1998 o Exército Nacional manifestou que a vinculação das Forças Militares aos fatos baseia-se somente em suposições e denúncias genéricas, e não em provas concretas.  O Estado conclui que, dados os resultados das investigações judiciais e disciplinárias dos fatos, a responsabilidade é exclusivamente atribuível ao grupo paramilitar e não a membros do Exército.[6]

 

18.            O Estado também informa que em 27 de novembro de 1991 a Procuradoria  Delegada para a Defesa dos Direitos Humanos decidiu arquivar os processos disciplinários contra oficiais do Exército e abrir outra investigação pela possível participação de outros agentes estatais nos fatos.  Em 10 de março de 1999 foi emitido um auto de acusação contra um tenente do Exército, mas em 31 de junho de 2000 a Procuradoria Delegada para os Direitos Humanos emitiu decisão absolutória a favor do acusado.[7]

 

IV.              ANÁLISE SOBRE COMPETÊNCIA E ADMISSIBILIDADE

 

A.                Competência

 

19.          Os peticionários encontram-se facultados pelo artigo 44 da Convenção Americana para apresentar denúncias perante a CIDH. A petição assinala como supostas vítimas a pessoas individuais,  a respeito das quais a Colômbia comprometeu-se a respeitar e garantir os direitos consagrados na Convenção Americana. No que se refere ao Estado, a Comissão assinala que a Colômbia é um Estado parte na Convenção Americana desde  31 de julho de 1973, data em que foi depositado o instrumento de ratificação respectivo. Portanto, a Comissão tem competência ratione pessoae para examinar a petição.

 

          20.          A Comissão tem competência ratione loci para conhecer a petição, visto que a mesma alega violações de direitos protegidos na Convenção Americana que teriam ocorrido dentro do território de um Estado parte deste tratado. A CIDH tem competência ratione temporis já que a obrigação de respeitar e garantir os direitos protegidos na Convenção Americana encontrava-e em vigor para o Estado na data em que ocorreram os fatos alegados na petição. Finalmente, a Comissão tem competência ratione materiae, porque a petição denuncia violações a direitos humanos protegidos pela Convenção Americana.

 

B.                 Requisitos de Admissibilidade

 

1.                 Esgotamento dos recursos internos e prazo de apresentação da petição

21.          O artigo 46(1) da Convenção Americana estabelece como requisito de admissibilidade de uma petição o  prévio esgotamento dos recursos disponíveis na jurisdição interna do Estado.  No presente caso, os peticionários alegam que o julgamento perante  a justiça militar dos agentes do Estado supostamente envolvidos nos fatos privou as vítimas e seus familiares do acesso a um recurso adequado e efetivo.  Também alegam que houve uma demora injustificada no esclarecimento dos fatos, a localização dos restos de 37 das vítimas e a responsabilidade de todos os civis implicados.  Os peticionários concluem argumentando que no presente caso o requisito de admissibilidade previsto no artigo 46(1) da  Convenção não deve ser exigido, por aplicação das exceções ao esgotamento dos recursos internos previstas no artigo 46(2)(a) e (c).  O Estado, por sua parte, apresentou informação sobre os resultados obtidos pela  jurisdição militar e ordinária e sobre as investigações pendentes.

 

          22.          O artigo 46(2) da Convenção prevê que o requisito de prévio esgotamento dos recursos internos não é aplicável quando:

 

a) não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados;

b) não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; e

c) houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.

 

Segundo estabelecido pela Corte Interamericana, toda vez que um Estado alega a falta de esgotamento dos recursos internos por parte do peticionário, este tem o ônus de demostrar que os recursos que não foram esgotados são “adequados” para corrigir a violação alegada, isto é, que a função desses recursos dentro do sistema do direito interno é idônea para proteger a situação jurídica infringida.[8]

 

          23.          A Comissão considera pertinente referir-se às condições de esgotamento dos recursos internos nos presente caso por várias razões: em primeiro lugar, no que se refere às causas ventiladas perante a justiça penal militar e, em segundo lugar, as perspectivas de efetividade das causas que tramitam perante a justiça ordinária e as investigações pendentes.

 

          24.          A Comissão pronunciou-se reiteradamente no sentido de que a jurisdição militar não constitui um foro apropriado e portanto não oferece um recurso adequado para investigar, julgar e punir violações aos direitos humanos consagrados na Convenção Americana, supostamente cometidas por membros da  força pública ou com sua colaboração ou aquiescência.[9]   A Corte Interamericana confirmou que a justiça penal militar somente constitui uma instância adequada para julgar militares pelo cometimento de delitos ou faltas que por sua própria natureza atentem contra bens jurídicos próprios da ordem militar.[10]  O julgamento  na justiça militar de membros do Exército supostamente envolvidos no massacre por ação ou omissão não constitui um remédio adequado para esclarecer sua responsabilidade nas graves violações denunciadas, nos termos do artigo 46(1) da  Convenção Americana.

          25.          Com relação à atividade empreendida pela justiça ordinária, a informação aportada por ambas partes indica que em 26 de maio de 1997, o Julgado Regional de Medellín condenou em primeira instância o líder paramilitar Castaño Gil e outras nove pessoas a penas de 12 e 30 anos de prisão e ao pagamento de multas pelos delitos de homicídio múltiplo, formação de quadrilha, sequestro, porte ilegal de armas de uso privativo, e violação do decreto 1194 de 1997.  Cabe esclarecer que transcorridos mais de cinco anos de decretada  esta sentença somente três dos dez condenados (José Aníbal Rodríguez Urquijo, Héctor de Jesús Narváez e Pedro Hernán Ozaga Pantoja) encontram-se presos.  O resto das ordens de detenção não foram ainda cumpridas.

 

          26.          Em 30 de dezembro de 1997 o Tribunal Nacional decretou a nulidade do processo com relação as vítimas da comunidade Bello cujos restos não haviam sido encontrados e ordenou investigar os co-partícipes não incluídos na resolução de acusação original.  Esta investigação permanece aberta, depois de doze anos de ocorridos os fatos. Como regra geral, uma investigação penal deve ser realizada prontamente para proteger os interesses das vítimas, preservar a prova e salvaguardar os direitos de toda pessoa que, no contexto da  investigação, seja considerada suspeita. A falta de vinculação de vários dos partícipes nos fatos do caso, somada à falta de execução da captura do líder paramilitar e outras pessoas condenadas in absentia, constituem uma manifestação de atraso e das escassas perspectivas de efetividade deste recurso para efeitos do requisito estabelecido no artigo 46(2) da  Convenção Americana.[11]  Segundo assinalado pela Corte Interamericana, embora  toda investigação penal deva cumprir com uma série de requisitos legais, a regra do prévio esgotamento dos recursos internos não deve conduzir a que a atuação internacional em auxílio das vítimas se detenha ou demore até a inutilidade.[12]

 

          27.          Sendo asssim, dadas as características do presente caso, a Comissão considera que são aplicáveis as exceções previstas no artigo 46(2)(a) e (c) da  Convenção Americana, motivo pelo qual o requisito previsto em matéria de esgotamento de recursos internos não é aplicável.  Tampouco é exigível o cumprimento do prazo de seis meses previsto no artigo 46(1)(b) da Convenção, toda vez que a petição for apresentada dentro do prazo razoável estipulado pelo artigo 32(2) de seu Regulamento para os casos nos quais não foi prolatada sentença transitada em julgado anterior à apresentação da  petição.

 

          28.          Cabe ressaltar que a invocação das exceções à regra do esgotamento dos recursos internos previstas no artigo 46(2) da  Convenção encontra-se estreitamente ligada à determinação de possíveis violações a certos direitos nela consagrados, tais como as garantias de acesso a justiça.  Entretanto, o artigo 46(2), por sua natureza e objeto, a Convenção é uma norma com conteúdo autônomo, vis á vis as normas substantivas da mesma.  Portanto, a determinação da possibilidade das exceções à regra do esgotamento dos recursos internos previstas nesta norma serem aplicáveis ao caso em questão deve ser realizada de maneira prévia e separada da análise de mérito do assunto, já que depende de um padrão de apreciação distinto daquele utilizado para determinar a violação dos artigos 8 e 25 da  Convenção.  Cabe esclarecer também que as causas e os efeitos que impediram o esgotamento dos recursos internos no presente caso serão analisados, no que for pertinente, no Relatório a ser adotada pela Comissão sobre o mérito da  controvérsia, a fim de constatar se efetivamente configuram violações a Convenção Americana.

 

2.                 Duplicação de procedimentos e coisa julgada

 

          29.          Não surge do expediente que a matéria da  petição encontre-se pendente de outro procedimento de acordo  internacional, nem que reproduza uma petição já examinada por este ou outro órgão internacional.  Portanto, cabe dar por cumpridos os requisitos estabelecidos nos artigos 46(1)(c) e 47(d) da  Convenção.

 

3.                 Caracterização dos fatos alegados

 

          30.          A Comissão considera que as alegações dos peticionários sobre supostas violações ao direito a vida, a integridade e liberdade pessoal, bem como as garantias judiciais no assunto matéria do presente relatório, poderiam caracterizar violações aos direitos das vítimas e de seus familiares, consagrados nos artigos 1(1), 4, 5, 7, 8 e 25 da  Convenção Americana.  Da  informação provida pelas partes surge que duas das vítimas --Manuel de Jesús Montes Martínez e José Encarnação Barrera Orozco-- eram menores de idade, desta forma, na ocasião de decidir sobre o mérito do assunto, a CIDH determinará se corresponde examinar as obrigações internacionais do Estado com relação ao artigo 19 da Convenção Americana.

 

V.                CONCLUSÕES

 

          31.          A Comissão conclui que é competente para examinar a petição apresentada pelos peticionários sobre a suposta violação do direito a vida, a integridade e a liberdade pessoais dos 43 camponeses da comunidade Bello, bem como sobre a proteção judicial devida as vítimas e seus familiares.

 

          32.          Em função dos argumentos de fato e de direito expostos anteriormente, e sem prejulgar o mérito da questão,

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.        Declarar admissível o caso sob estudo em relação aos artigos 1(1), 4, 5, 7, 8, 25 da  Convenção Americana.

 

2.        Notificar o Estado e o peticionário desta decisão.

 

3.        Iniciar o trâmite sobre o mérito da questão.

 

4.        Publicar esta decisão e incluí-la no Relatório Anual, a ser apresentado à Assembléia Geral da  OEA.

 

          Dado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., aos 9 dias do mês de outubro de 2002. (Assinado): Juan Méndez, Presidente; Marta Altolaguirre, Primer Vice-presidente; José Zalaquett, Segundo Vice-presidente; Membros da Comissão  Robert K. Goldman, Julio Prado Vallejo, Clare K. Robert e Susana Villarán.


[ íNDICE | ANTERIOR |PRÓXIMO ]


[1] Os cadáveres encontrados seriam de Andrés Manuel Pedroza, Juan Luis Escobar Duarte, Leonel Escobar Duarte, Ovidio Carmona Suárez, Ricardo Bohórquez e Jorge David Martínez.

[2] Comunicação do Ministério de Relações Exteriores da República de Colômbia, de 5 de dezembro de 2000.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem.

[5] A Comissão foi informada de que em 8 de março de 2001 a Câmara de Cassação Penal da Corte Suprema de Justiça decidiu não cassar a decisão impugnada por Pedro Hernán Ozaga Pantoja, Sentença da  Sala de Cassação Penal da  Corte Suprema de Justiça da  República de Colômbia, de 8 de março de 2001.

[6] Comunicação do Ministério de Relações Exteriores da  República de Colômbia, de 5 de dezembro de 2000.

[7] Ibidem.

[8] Corte IDH Caso Velásquez Rodríguez, Sentença de 29 de juhio de 1988, parágrafo 64.

[9] CIDH Terceiro Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos em Colômbia (1999), pág. 175; Segundo Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos em Colômbia (1993), pág. 246; Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos em Brasil (1997), páginas 40-42.

[10] Corte IDH Caso Durand e Ugarte, Sentença de  16 de agosto de 2000, parágrafo 117.

[11] Ver Relatório de Admissibilidade Nº 57/00, Relatório Anual da  CIDH 2000, parágrafo 44.

[12] Corte I.D.H. Caso Velásquez Rodríguez, Exceções Preliminares, Sentença de 26 de junho de 1987, parágrafo 93.