RELATÓRIO Nº 4/02*

ADMISSIBILIDADE

CASO 11.685

RICARDO NEIRA GONZÁLEZ

ARGENTINA

27 de fevereiro de 2002

 

I.          RESUMO

 

1.          O presente relatório refere-se à admissibilidade da petição 11.685.  O expediente foi aberto pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “a Comissão Interamericana", "a Comissão" ou "a CIDH”) em virtude da  apresentação de uma petição por parte de Ricardo Neira González, datada de17 de abril de 1995 e recebida em 10 de maio de 1995, contra a República Argentina (doravante denominada “Argentina” ou “o Estado”).  Após uma comunicação recebida em 6 de maio de 1996, a mãe do Sr. Neira, Elisa González Brea, foi incorporada ao expediente como copeticionária.  A Comissão recebeu em 28 de fevereiro de 2000 uma comunicação informando que o Sr. Neira havia-se suicidado, e desde então, a CIDH vem mantendo comunicação com sua mãe (doravante a mãe e o filho recebem, coletivamente, o nome de “peticionário”).

 

2.          Segundo a petição, o Sr. Neira foi processado por roubo agravado e absolvido  em primeira instância, visto que a informação que conduziou à sua detenção foi obtida mediante torturas contra várias pessoas; inclusive o póprio Sr. Neira, que foi torturado enquanto esteve detido, a fim de que lhe obtivessem uma confessão sob coerção.  O peticionário alega que em virtude da  tortura, a qual está presente em relatórios forenses, o juiz que presidiu as atuações rejeitou as provas oferecidas pela acusação, em observância a  doutrina do "fruto da árvore envenenada".  A decisão de absolver o acusado foi apelada pelo  Ministério Público e pelos outros autores e revogada em segunda instância, através de procedimentos que o peticionário considera arbitrários.  O Sr. Neira interpôs um recurso extraordinário contra a sentença condenatória decretada em segunda instância, mas seu recurso foi indeferido.  Segundo a petição, como consequência dos fatos expostos foram violados os direitos do Sr. Neira a proteção judicial e ao devido processo, bem como a sua integridade pessoal, reconhecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada "a Convenção Americana"). 

 

          3.          O Estado, a sua vez, alega que a petição é inadmissível por não ter invocado fatos que configuram a violação de nenhum direito protegido pela Convenção Americana.  Assinala que o Sr. Neira gozou de todas as garantias do devido processo quando foi julgado, e que em sua defesa não fez menção alguma sobre a suposta tortura.  O Estado sustenta que a petição do Sr. Neira não demostra nenhuma violação de seu direito a uma defesa judicial adequada, e que efetivamente tenha sido objeto de tortura.  Indica que foram esgotados plenamente os recursos internos em relação à condenação do Sr. Neira, e chama a atenção sobre o fato de que, não obstante, esta pessoa nunca tenha formulado denúncia alguma por supostas torturas perante a Procuradoria Penitenciária.

 

4.          Conforme demonstrado mais adiante, após analisar o caso a Comissão concluie que é competente para examinar as reclamações do peticionário sobre supostas violações de direitos estabelecidsos nos artigos 5, 8, 25 e 1(1) da  Convenção Americana, e que a petição é admissível segundo o previsto nos artigos 46 e 47 desta Convenção.

 

II.         TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

5.          A Comissão acusou recibo da petição e dos documentos apresentados como anexos em 18 de maio de 1995.  Em nota de 28 de março de 1996, a Comissão iniciou o  trâmite do assunto transmitindo ao Estado as partes pertinentes da  denúncia e solicitando-lhe que respondesse dentro de um prazo de 90 dias.  Mediante nota de 25 de junho de 1996 o Estado solicitou uma prorrogação do prazo para responder e, em 27 de junho de 1996, a Comissão  concedeu ao Estado 30 dias e informou ao peticionário.  Em 23 de julho de 1996 o Estado solicitou uma prorrogação adicional, a qual foi concedida pela Comissão em 26 de julho de 1996, por outros 30 dias, tendo esta informado o peticionário.  Em 20 de agosto de 1996 foi solicitada nova prorrogação.  Em  23 de agosto de 1996 a Comissão concedeu uma prorrogação de 30 dias e informou ao peticionário.  

 

6.          Em 24 de setembro de 1996, a Comissão recebeu uma breve comunicação do peticionário.  Em 25 de setembro de 1996, o Estado solicitou uma prorrogação adicional do prazo para apresentar sua resposta.  Na nota de 30 de setembro de 1996 a Comissão transmitiu ao Estado as partes pertinentes da  nova comunicação do peticionário, e lhe solicitou que apresentasse sua resposta e toda a informação dentro de um prazo de 30 dias. 

 

7.          O Estado apresentou sua resposta mediante uma comunicação datada de 8 de novembro de 1996, cujas partes pertinentes foram transmitidas aos peticionários em 13 de novembro de 1996.  Os peticionários apresentaram suas observações em 25 de novembro de 1996.  Em 19 de dezembro  de 1996 foram remetidas ao Estado as partes pertinentes dessas observações, solicitando-lhe que apresentasse sua resposta dentro de um prazo de 30 dias.

 

8.          Em 15 de janeiro de 1997, o Estado solicitou uma prorrogação do prazo para responder.  Em 17 de janeiro de 1997, a Comissão outorgou-lhe mais 30 dias.  Em 17 de fevereiro de 1997, o Estado solicitou uma prorrogação adicional.  Em 21 de fevereiro de 1997, a Comissão lhe concedeu outros 30 dias.  O Estado apresentou suas observações em 19 de março de 1997.  Essa comunicação foi transmitida aos peticionários em 15 de abril de 1997, solicitando-lhes a presentação de eventuais observações dentro de um prazo de 30 dias.

 

9.          Em 28 de janeiro de 2000, a Comissão dirigiu-se ao peticionário para peguntar-lhe se desejava apresentar informação adicional.  Em 16 de fevereiro de 2000, a mãe do Sr. Neira respondeu apresentando a notificação de que seu filho havia sido libertado em 6 de outubro de 1998, e tinha completado os requisitos necessários para receber seu título de advogado.  Em 8 de janeiro de 1999 o Sr. Neira suicidou-se.  Esta informação foi remitida ao Estado em 27 de novembro de 2000, solicitando apresentar observações adicionais dentro de um prazo de 30 dias.  O Estado proporcionou informação adicional através de uma comunicação datada de 2 de janeiro de 2001, que foi transmitida ao peticionário com carácter informativo em 23 de janeiro de 2001.  Em 18 de outubro de 2001, o Estado apresentou uma breve comunicação, na qual reiterou sua posição sobre a inadmissibilidade da  petição.  Este documento foi transmitido ao peticionário, com caráter informativo, em 29 de outubro de 2001.

 

III.      POSIÇÃO DAS PARTES 

A.          Os peticionários

 

10.          Para efeitos do presente relatório, em que se examina a admissibilidade da  denúncia, cabe resumir o aduzido pelo peticionário.  O Sr. Neira, cidadão peruano e pai de três filhos argentinos, foi objeto de três processos penais.  Ainda que os outros dois como pontos de referência, a petição objeto de estudo refere-se exclusivamente o processamento por roubo agravado. 

 

11.          A petição indica que o Sr. Neira foi submetido ao processo 2915 em relação com um roubo a mão armada que teve lugar em 23 de abril de 1990.  Aproximadamente dois anos e meio depois foi absolvido em primeira instância porque o juiz que conduziu as atuações desacolheu a prova produzida contra ele e um outro acusado.  O peticionário sustenta que a exclusão dessa prova deve-se precisamente ao fato dela ter sido obtida mediante tortura.  Segundo a petição, Daniel Perrone, o primeiro dos detidos em suposta conexão com esse assalto, foi torturado para que revelara os detalles do assalto, incriminara e implicara ao Sr. Neira e a outros.  O peticionário sustenta que juntamente com o Sr. Perrone, ele e outras duas pessoas foram torturadas enquanto estiveram detidas, a fim de confessar, e que essas torturas constam dos respectivos relatórios médicos. 

 

          12.          Segundo a petição, tanto o Promotor como os co-autores interpuseram recursos de apelação contra a sentença absolutória perante a Sala VII da Câmara de Apelações  Criminal e Correcional da  Capital Federal.  Em virtude dessa apelação, foi revogada a sentença de absolvição e o Sr. Neira foi sentenciado em segunda instância a sete anos de prisão.  O peticionário sustenta, inter alia, que a sentença de segunda instância não considera o disposto no artigo 316 do antigo Código de Procedimentos em Matéria Penal, aplicável  durante seu julgamento, segundo o qual para que a declaração possa ser aceita dentro do processo, deve ter sido recebida por um juiz.  Ademais sustenta que o tribunal de segunda instância omitiu arbitrariamente em considerar as objeções do tribunal de primeira instância com respeito à credibilidade dos oficiais de polícia que realizaram a investigação.  Alega que o juiz de primeira instância questionou a versão da polícia segundo a qual o primeiro dos  acusados, Sr. Perrone, foi detido para que se revisara os documentos de seu carro, estando seus documentos em ordem, na presença de sua família, quando disse espontaneamente o tema do roubo aos oficiais que examinavam seus documentos.  O peticionário insiste que o  tribunal de segunda instância desconsiderou arbitrariamente as provas de tortura registradas nos relatórios médicos.

 

13.          O peticionário argumenta que o Sr. Neira foi notificado desta decisão de segunda instância enquanto estava detido preventivamente, mas que inicialmente não lhe  proporcionaram os fundamentos que a respaldavam.  Conforme a petição, solicitou à Sala VII que lhe fossem expostos os fundamentos da decisão, o que lhe foi negado, e o obrigaram a enviar a um familiar ao tribunal para obter uma cópia da  sentença a tempo de interpor o recurso extraordinário dentro do prazo de dez dias previsto pela  lei.  Segundo a petição, o recurso extraordinário foi indeferido, assim como o posterior recurso de queixa, em 17 de novembro de 1994.  Sustenta que não foi possível fazer valer suas acusações de tortura por falta de adequado assessoramento jurídico.  Alega que sua principal preocupação no julgamento e na apelação consistiu simplesmente em defender-se frente às imputações penais planteadas contra ele, com a limitada assistência de um defensor público.

         

          14.          Juntamente com a petição, o Sr. Neira apresentou cópias da (1) sentença de absolvição de primeira instância; (2) a sentença de segunda instância; (3) um relatório médico referente a seu estado em 2 de maio de 1990; (4) sua solicitação de suspensão do prazo previsto pela lei para interpor um recurso extraordinário enquanto lhe explicavam os fundamentos da  decisão em segunda instãncia; (5) o recurso extraordinário que interpôs em sua própria defesa; (6) a comunicação apresentado pelo  defensor público em relação ao recurso extraordinário; (7) o recurso de queixa que apresentou em sua própria defesa e (8) o indeferimento desse recurso de queixa por parte da  Corte Suprema, acompanhada da notificação. 

 

          B.             O Estado

 

          15.          O Estado informa que o Sr. Neira foi processado pelo  delito de roubo agravado pelo uso de armas na causa Nº 2915, conduzido perante a Secretaria Nº 24 do Julgado de Sentença Letra “Q”.[1]  O acusado foi absolvido em 28 de agosto de 1991, e condenado em segunda instância, em 15 de abril de 1992.  O Estado assinala que não tem informação sobre a interposição de nenhum recurso posterior perante a Corte Suprema de Justiça. 

 

          16.          O Estado sustenta que a Câmara de apelações levou a cabo o processo respeitando plenamente a lei, e em especial as garantias do debido processo pertinentes.  Sustenta também que a polícia cumpriu plenamente suas obrigações.  Em caso de ter havido alguma irregularidade --expressa o Estado-- a defesa do Sr. Neira esteve plenamente habilitada para formulá-la perante os tribunais, mas esta não aduziu nem demonstrou a existência de nenhum  vício desse gênero no âmbito da apelação.

 

          17.          O Estado sustenta que as denúncias apresentadas pelo Sr. Neira são de caráter genérico, carentes de suficiente explicação; que sua análise do processo não revela nenhuma  violação de nenhum fato protegido; que não formulou argumento específico algum referente ao direito a uma defensa jurídica adequada, e que não explicou perante os tribunais internos nem perante a Comissão em que consistiu o que qualifica como tortura.

 

          18.          Com relação às asseverações específicas sobre tortura, o Estado informa que o Sr. Neira não apresentou a correspondente denúncia perante a Procuradoria Penitenciária.  O  Estado sustenta que esse órgão foi criado especificamente para proteger os direitos humanos dos  detidos dentro do sistema carcerário.  O Estado afirma que existe contradição entre a omissão do Sr. Neira de denúnciar as torturas que alega ter sofrido  e o fato de que apresentou uma denúncia referente ao cômputo de sua sentença e a data de sua liberação. 

 

          19.          Em resumo, ao longo de suas exposições, o Estado assinala que a petição é inadmissível  porque não foram estabelecidos fatos que tendem a caracterizar a violação do direito protegido.  Por uma parte, o Estado sustenta que a petição não estabelece elementos concretos suficientes para respaldar ou provar as violações de direitos aduzidas.  Por outra parte, argumenta que o Sr. Neira teve plena oportunidade de litigar em relação às denúncias perante os tribunais nacionais, e que tenta reabrir novamente o litigio perante a Comissão Interamericana, o que segundo o Estado equivaleria a fazer da Comissão um  órgão de revisão de quarta instância, para o qual carece de competência.

 

          20.          Em suas comunicações finais, o Estado assinala que lamenta o falecimento do  Sr. Neira, mas reitera sua posição quanto à inadmissibilidade da  petição.  Defende que dado que o senhor Neira não expôs fatos que caracterizem uma violação, combinada com a inação processual da  mãe do Sr. Neira, que na sua opinião,  não insistiu em levar adiante o trâmite da  petição em suas comunicações posteriores a morte de seu filho, a petição deve ser declarada inadmissível.

 

IV.     ANÁLISE DE ADMISSBILIDADE

 

A.       Competência da Comissão ratione pessoae, ratione materiae, ratione temporis e ratione loci

 

21.          A Comissão é competente para examinar a petição em questão.  Conforme o previsto no artigo 44 da  Convenção Americana, o peticionário está legitimado para apresentar uma denúncia perante a Comissão.  A petição dos autos indica que a suposta vítima estava sujeita à jurisdição do Estado argentino no momento dos  fatos alegados.  Quanto ao Estado, Argentina é um Estado membro da Convenção Americana, tendo depositado seu instrumento de ratificação em 5 de setembro de 1984.  Consequentemente, a Comissão é competente ratione pessoae para examinar a denúncia apresentada.

 

          22.          Na medida em que a petição formula questões referentes aos direitos estabelecidos nos artigos 5, 8, 25 e 1(1) da Convenção Americana, a Comissão é competente ratione materiae para examiná-la.

 

23.          Por outra parte, a Comissão é competente ratione temporis para examinar o assunto.  A petição baseia-se em fatos supostamente ocorridos no início de 1990, estando em plena vigência as obrigações contraídas pelo  Estado no marco da  Convenção Americana.

 

          24.          Por último, a Comissão tem competência ratione loci para analisar a petição, tendo em consideração que esta alega violações de direitos protegidos em virtude da  Convenção Americana, que teriam tido lugar no território de um Estado membro.

 

B.           Outros requisitos de admissibilidade da  petição

 

a.            Esgotamento dos recursos internos

 

25.          O artigo 46 da Convenção Americana estabelece que a admissibilidade de um caso está condicionada a "que se tenha interposto e esgotado os recursos da jurisdição interna, conforme os princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos".  Este requisito foi estabelecido para garantir ao Estado a oportunidade de resolver as disputas dentro de seu próprio marco jurídico.  Não obstante, a Convenção prevê que estas disposições não serão aplicadas quando os recursos internos não estão disponíveis, seja por uma razão legal, seja por uma situação de fato.[2]  O artigo 46(2) estabelece que esta exceção deve ser aplicada se a legislação interna do Estado em questão não existe o devido processo legal para a proteção dos direitos alegadamente violados; se foi negado ao suposto prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos de jurisdição interna, ou se houve atraso injustificado na decisão sobre os mencionados recursos.

 

          26.          No caso dos autos, as partes reconhecem que o procedimento judicial contra o Sr. Neira adquiriu caráter de res judicata.  Os documentos apresentados juntamente com a petição demonstram  que o Sr. Neira foi julgado em primeira instância no processo 2915 perante o Juiz Ricardo José Galli, do Julgado Nacional Criminal de Sentença letra "S", e absolvido por sentença decretada em 4 de setembro de 1992.  Desta se depreende que tanto o Sr. Neira como o co-réu, o Sr. Perrone, apresentaram retificações pouco depois de ter  declarado perante o juiz de instrução, argumentando cada um deles que haviam sido objeto de abusos físicos enquanto estavam sob detenção policial.  Essa sentença reflete a conclusão do juiz de que os resultados da investigação policial foram obtidos através de maus tratos físicos infrigidos aos acusados  Perrone e Maffeo, o que exige, consequentemente, excluir as provas correspondentes. 

 

27.          Após a apelação interposta pelo Promotor e pelo co-autor, o Sr. Neira foi condenado em segunda instância pela Sala VII da Câmara Nacional de Apelações Criminal e Correcional da  capital, em virtude de sentença datada de 8 de março de 1994.  A Sala VII estabeleceu que os maus tratos físicos não tinham sido provados, mas sim teriam sido de responsabilidade do Sr. Neira.  A petição indica que o Sr. Neira foi devidamente notificado da  sentença em 21 de abril de 1994. 

 

28.          O recurso extraordinário preparado e interposto pelo Sr. Neira perante a Sala VII solicita a revogação, por parte da Corte Suprema de Justiça, de sua condenação em segunda instância com base de que as provas utilizadas para condenar o réu tinham sido obtidas mediante torturas.  O Sr. Neira sustenta  que essas torturas forçaram aqueles que a sofreram, isto é, o Sr. Perrone e o próprio Sr. Neira, a declarar contra seus interesses, e violaram normas básicas do devido processo reconhecidas na Constitução argentina.  Alega que a lei e a prática exigem que as provas obtidas desta maneira sejam exluídas do processo, e que a Sala VII desconsiderou arbitrariamente os relatórios médicos que provavam a existência de tais torturas.  A Sala VII, por resolução de 26 de maio de 1994, declarou inadmissível o recurso extraordinário.  Posteriormente, o Sr. Neira interpôs um recurso de queixa perante a Corte Suprema de Justiça, que o indeferiu por resolução de 17 de novembro de 1994, argumentando que não haviam sido cumpridos os requisitos de fundamentação autônoma.  Esta decisão foi notificada em 22 de novembro de 1994.

 

29.          O Estado assinalou em sua comunicação de 8 de novembro de 1996 que, na sua opinião, o processo tramitado perante os tribunais tinha sido finalizado com a sentença datada de 8 de março de 1994, e informou que não tinha antecedentes de nenhuma apelação interposta no processo 2915 perante a Corte Suprema de Justiça. 

 

30.          Sobre este ponto, a Comissão analisou as denúncias do peticionário e uma cópia da resolução de 17 de novembro de 1994 da Corte Suprema de Justiça, em que esta indefere o recurso de queixa interposto pelo  Sr. Neira no processo 2915 e a notificação dessa decisão, datada de 22 de novembro de 1994, ambos documentos parecem encontrar-se plenamente em ordem.  Embora o Estado tenha assinalado que não é possível localizar nenhum antecedente desse recurso, tampouco refutou expressamente as manifestações do peticionário sobre a autenticidade do documento em questão.  Por conseguinte, a Comissão conclui que os recursos internos referentes ao processo 2915 concluiram com o indeferimento do recurso de queixa notificado em 22 de novembro de 1994.

 

31.          Ainda que o Estado tivesse contestado expressamente a admissibilidade da  petição com base na não caracterização de uma violação, cabe analisar os pontos referentes ao requisito do esgotamento dos  recursos. Em primeiro lugar, o Estado pontua em algumas de suas comunicações que enquanto estava pendente o recurso de apelação perante a Sala VII, o representante legal do Sr. Neira não tentou demostrar nenhuma  irregularidade que tivesse afetado os direitos de seu cliente, defendendo supostamente, que o Sr. Neira não fez pleno uso dos  recursos que estavam a sua disposição.  A posição do Estado a este respeito é um tanto ambígua, dado que foi a parte acusadora, e não o Sr. Neira, quem promoveu a revisão da  sentença decretada em primeira instância.  De todos os modos, da análise dos  documentos realizada pela  Comissão, incluidas as sentenças prolatads em primeira e  segunda instâncias, e o recurso extraordinário interposto, se depreende que as diversas autoridades judiciais que tiveram a seu cargo o processo 2915 foram claramente conscientes das denúncias do Sr. Neira sobre tortura e de sua afirmação sobre a conseguinte nulidade dos  procedimentos. 

 

32.          Em segundo lugar, o Estado refere-se em diversos pontos de suas comunicações ao fato de que o Sr. Neira nunca apresentou uma  denúncia perante o Procurador Penitenciário a respeito das torturas sofridas.[3]  Conforme o disposto no  artigo 46, os recursos pertinentes para efeito da presente análise são recursos judiciais.  A este respeito, a Comissão reitera que da análise do expediente se depreende que as acusações de tortura foram formuladas diretamente perante as autoridades judiciais competentes para examinar o  processo 2915.  Portanto, foi cumprido o disposto no artigo 46 quanto à interposição e o esgotamento dos recursos de jurisdição interna conforme os princípios do direito internacional geralmente reconhecidos.

 

b.           Prazo para a apresentação da petição

 

33.          Conforme o previsto no artigo 46(1)(b) da Convenção, toda petição, para que possa ser admitida, deve ser apresentada no prazo de  seis meses seguintes à data em que a parte denunciante tenha sido notificada da sentença definitiva adotada no âmbito  interno.  A regra dos seis meses garante certeza legal e estabilidade uma vez  adotada a decisão. 

 

34.          Segundo o expediente, o Sr. Neira foi notificado sobre o indeferimento do recurso de queixa pela Corte Suprema no dia 22 de novembro de 1994.  A petição do Sr. Neira perante a Comissão foi apresentada em 17 de abril de 1995 e recebida em 10 de maio de 1995, logo esta  cumpre o requisito da  apresentação no prazo certo.

 

c.            Duplicação de procedimentos e res judicata

 

35.          O artigo 46(1)(c) estabelece que a admissão de uma petição está sujeita ao requisito de que o assunto "não esteja pendente de outro processo de solução internacional” e o artigo 47(d) da  Convenção estipula que a Comissão não poderá admitir uma petição que “for substancialmente reprodução de petição ou comunicação anterior, já examinada pela Comissão ou por outro organismo internacional".  No caso dos autos as partes não alegaram nem se depreende do expediente a existência de nenhuma dessas duas circunstâncias de inadmissibilidade.

 

d.           Caracterização dos fatos alegados

 

36.          O artigo 47(b) da Convenção Americana declara inadmissível toda petição em  que não expuser fatos que caracterizem violação dos direitos garantidos pela mesma.  O  Estado apresentou três argumentos básicos para fundamentar a sua posição quanto à inadmissibilidade da petição conforme  esta norma. Em primeiro lugar, sustenta que no julgamento do Sr. Neira não existiram  verdadeiras irregularidades que possam ter afetado os direitos desta pessoa.  Em segundo lugar, a defesa do Sr. Neira renunciou em provar ou não conseguiu provar nenhuma irregularidade desse gênero durante os procedimentos judiciais e não explicou nem definiu o que entendia pelas torturas que aduzia, nem perante os tribunais internos nem em sua denúncia perante a Comissão.  Em terceiro lugar, sustenta que o que se pretende essencialmente através da petição é que a Comissão revise uma sentença judicial com o qual o  peticionário simplesmente não está satisfeito.  Isto, na opinião do Estado, implica exigir que a Comissão atúe como "quarta instância" de revisão, função que escapa a sua competência. 

 

37.          O exame da  primeira afirmação corresponde a etapa de análise de mérito do assunto por parte da  Comissão.  Conforme o disposto na Convenção e no Regulamento da  Comissão, o pressuposto que deve ser cumprido na etapa de admissibilidade não é o de provar as violações de direito, mas sim verificar se a petição formula fatos que, se oportunamente forem comprovados como certos, tendem a caracterizar uma violação de direitos.

 

38.          A segunda afirmação foi efetuada e repetida, sem que se tenha feito referência a procedimentos específicos ou outra informação concreta.  Após examinar o expediente, a Comissão observa que o Sr. Neira declarou ao juiz encarregado da investigação judicial que tinha sido golpeado repetidamente enquanto se encontrava sob custódia dos policiais que o  investigavam, que estes tinha detido sua esposa grávida durante um breve intervalo e que posteriormente tinham ameaçado sua família.  Ademais manifestou que tinha sido encapuzado,  sufocado, e ameaçado repetidamente de outras maneiras caso não colaborasse.  O expediente assinala também que na sua declaração inicial, antes de aduzir que tinha sido torturado, indicou que sofria de dores corporais, e pediu que lhe fosse tirados raios X.  Estes aspectos das declarações efetuadas perante o juiz de instrução estão refletidos na sentença de primeira instância.  Essas declarações e a  mencionada sentença formam parte, por sua vez, do  expediente em que se baseou o Sr. Neira para promover a revogação dessa sentença através da  Sala VII.  A este respeito, as denúncias apresentadas perante as instâncias internas parecem ter sido definidas com suficiente claridade como para que as autoridades responsáveis  pudessem responder e como para indicar que, se resultavam comprovadas, constituiriam  violações de direitos protegidos no  marco da Convenção Americana. 

 

39.          Com respeito ao terceiro argumento --de que a análise desta petição exigiria que a Comissão atuara como "quarta instância", ultrapassando a esfera de sua competência—cabe ressaltar que a CIDH "não é competente para revisar sentenças decretadas por tribunais nacionais que atuem na esfera de sua competência e apliquem as devidas garantias judiciais"[4], nem "pode fazer as  vezes de um tribunal de alçada para examinar supostos erros de direito ou de fato que podem ter sido cometidos pelos tribunais nacionais que tenham atuado dentro dos  límites de sua competência"[5], porém, dentro de seu mandato de garantir a observância dos  direitos estipulados na Convenção, a Comissão é necessariamente "competente para declarar admissível uma petição e decidir  sobre seu fundamento quando esta refere-se a uma sentença judicial nacional que foi decretadas a margen do devido processo”, o que aparentemente viola qualquer outro direito garantido pela  Convenção.[6]  A Comissão conclui que, no caso dos autos, o  peticionário apresentou denúncias referentes a supostas violações do direito a proteção e as garantias judiciais, bem como o direito a integridade pessoal que, se provados verdadeiros, poderiam configurar a violação de direitos protegidos nos artigos 5, 8, 25 e 1(1) da  Convenção Americana. 

 

40.          Tendo em conta as denúncias formuladas com respeito a proteção e as garantias judiciais e o princípio jura novit curia, a Comissão, na etapa da decisão sobre o mérito do assunto, ocupar-se-á também da questão referente a revisão da decisão de condenação resultante da revogação de uma sentença absolutória decretada em primeira instância. 

 

V.           CONCLUSÕES

 

41.          A Comissão conclui que é competente para conhecer o caso dos autos e que a petição é admissível conforme os artigos 46 e 47 da  Convenção Americana. 

 

42.          Com base nos argumentos de fato e de direito acima expostos, e sem prejulgar o mérito do assunto, 

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.          Declarar a petição admissível em relação a suposta violação dos  direitos reconhecidos nos artigos 5, 8, 25 e 1(1) da  Convenção Americana.

 

          2.          Notificar as partes desta decisão.

 

          3.          Prosseguir com a análise do mérito do assunto.

 

4.          Publicar o presente relatório e incluí-lo no seu Relatório Anual à Assembléia  Geral da OEA.

 

Dado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., aos 27 dias do mês de fevereiro de 2002. (Assinado): Marta Altolaguirre, Primeira Vice-presidenta; José Zalaquett, Segundo Vice-presidente; membros da Comissão Robert K. Goldman, Julio Prado Vallejo, e Clare Kamau Roberts.

 

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* Segundo o previsto no artigo 19(2) do Regulamento da  Comissão, seu Presidente, Juan E. Méndez, de nacionalidade argentina, não participou do debate nem da decisião do presente caso.

[1] A  maior parte dos documentos do expediente referem-se à letra "S".  De todos os modos, ambas partes referem-se claramente ao trâmite do processo 2915.

[2] Ver Corte IDH, Exceções ao esgotamento recursos internos (artigos 46.1, 46.2.a e 46.2.b da  -Convenção Americana sobre Direitos Humanos), Opinião Consultiva OC-11/90 de 10 de agosto de 1990, Serie. A No. 11, parágrafo 17.

[3] A este respeito cabe recordar que essa Procuradoria foi criada en 1993, através da  sanção do Decreto Nº 1598, data posterior a dos  fatos iniciais supostamente ocorridos.

[4] Ver, em geral, CIDH, Relatório Nº 101/00, Caso 11.630 Arauz e outros (Nicaragua), 16 de outubro de 2000, no Relatório Anual da  CIDH, 2000, parágrafo 56, em que se cita CIDH, Relatório Nº 39/96, Caso 11.673, Marzioni (Argentina), 15 de outubro  de 1996, no Relatório Anual da  CIDH, 1996, parágrafos 50 e 51.

[5] CIDH, Relatório Nº 7/01, Caso 11.716 Güelfi (Panamá), 23 de fevereiro de 2001, no Relatório Anual da CIDH, 2000, parágrafo 20, em que se cita Marzioni, supra, parágrafo 51.

[6] Íd.