|
2. Petições declaradas admissíveis
RELATÓRIO Nº 3/02* ADMISSIBILIDADE CASO 11.498 JORGE FERNANDO GRANDE ARGENTINA 27 de fevereiro de 2002 I.
RESUMO
1.
O presente relatório refere-se à admissibilidade da petição Nº
11.498. O expediente foi aberto pela Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (doravante denominada “a Comissão Interamericana", "a
Comissão" ou "a CIDH”) em virtude da
apresentação de uma petição por parte de Jorge Fernando Grande,
datada de 31 de outubro de 1994 e recebida em 2 de novembro de 1994, contra
a República Argentina (doravante denomianada “Argentina” ou “o
Estado”). O senhor Grande foi
representado por três advogados da seguinte maneira: inicialmente pelo
advogado Martín Federico Böhmer, a partir de 5 de julho de 1995, pelo
advogado Eduardo Oteiza, a partir de uma comunicação recebida em 16
de novembro de 1998, e pelo advogado Pedro Patiño Mayer, (doravante
denominados, coletivamente, de
"peticionários"). 2.
Segundo a petição, o senhor Grande foi detido em 29 de julho de
1980, privado de sua liberdade durante duas semanas em condições brutais e
sujeto a um prolongado processamento baseado em provas obtidas ilegalmente,
a saber, documentos confiscados pela Polícia
sem ordem judicial escrita. Os
peticionários sustentam que o senhor Grande foi processado por delitos de
"subversão econômica" num processo que se prolongou de 29 de
agosto de 1980 a 24 de janeiro de 1989, quando então foi suspenso
definitivamente. Os peticionários alegam que as acusações foram
desprovidas precisamente porque a Câmara Federal de Apelações declarou
que as provas em que foi baseado o julgamento haviam sido obtidas em violação
à Constituição argentina. O
senhor Grande interpôs posteriormente uma ação por danos e prejuízos
contra o Estado. Apesar do
tribunal de primeira instância ter concluido que o
reclamante efetivamente tinha direito
à indenização, o tribunal de segunda instância revogou essa sentença,
acolhendo a posição do Estado. As
tentativas do senhor Grande de promover uma revisão posterior do caso foram
desacolhidas. A petição
argumenta que, face ao exposto, foram violados os direitos do senhor Grande
ao devido processo e a obter uma indenização por erro judicial conforme os
artigos 8 e 10 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante
denominada "Convenção Americana”).
3. O Estado, a sua
vez, limitou sua intervenção substancial neste assunto a um breve relato
da história processual do
caso, indicando, entre outras coisas, que o esgotamento dos
recursos judiciais ocorreu em 1994.
Suas comunicações mostram que centrou-se principalmente em seus
esforços na busca de uma possível solução amistosa do assunto. Embora
ambas partes tenham participado ativamente no processo de solução
amistosa, depreende-se de de suas comunicações que esses esforços não
produziram resultados concretos. Finalmente, numa comunicação de 10 de
dezembro de 2001, o Estado apresentou argumentos que impugnavam a
admissibilidade da petição baseando-se, por uma parte, na carência de
jurisdição ratione temporis da
Comissão e, por outra parte, no fato de que os
peticionários não haviam apresentado fatos tendentes a caracterizar
a violação de um direito protegido. 4.
Como assinalado mais adiante, depois de examinado o caso a Comissão
conclui que é competente para
examinar as reclamações do peticionário com respeito a supostas violações
dos artigos 8, 25 e 1(1) da Convenção
Americana, e que a petição é admissível conforme os artigos 46 e 47
dessa Convenção. Na medida em
que for necessário, a Comissão examinará também os correspondentes
artigos da Declaração Americana ao decidir sobre o mérito do assunto. As
denúncias formuladas em relação ao artigo 10 da Convenção Americana
foram declaradas inadmissíveis. II.
TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO
5.
A Comissão acusou o recebimento da petição em 10 de novembro de
1994. Por nota de 15 de junho
de 1995, a Comissão iniciou o trâmite do assunto transmitindo ao Estado as
partes pertinentes da denúncia
e solicitando-lhe que respondesse dentro de um prazo de 90 dias. Em nota de
19 de setembro de 1995, o Estado solicitou uma prorrogação do prazo de que
dispunha para responder. Em
nota de 21 de setembro de 1995 a Comissão lhe concedeu 45 dias mais.
Em nota de 6 de novembro de 1995, o Estado solicitou uma prorrogação
adicional. Em nota de 7 de
novembro de 1995, a Comissão lhe outorgou uma prorrrogação final de 45
dias. 6.
Na comunicação datada de 7 de novembro de 1995 e recebida no dia
seguinte, os peticionários informaram à Comissão que haviam se reunido
com autoridades do Estado e solicitaram uma suspensão do procedimento por
30 dias para tratar de alcançar uma solução amistosa nos termos do artigo
48(f) da Convenção Americana. Em
10 de novembro de 1995, a Comissão acusou recebimento dessa comunicação e
transmitiu ao Estado as partes pertinentes da
mesma. A Comissão
informou ambas partes que valorizava a iniciativa destinada a uma possível
solução amistosa e expressou seu desejo de ser informada a respeito do
avanço do processo e dos resultados
atingidos. 7.
O Estado apresentou uma resposta à petição através de uma nota
datada de 14 de dezembro de 1995, na qual indicou expressamente sua disposição
de buscar uma solução amistosa do assunto.
A mesma foi transmitida aos peticionários em 18 de dezembro de 1995,
solicitando-lhes que apresentassem suas observações ou informação
adicional dentro de um prazo de 30 dias. 8.
Em 28 de outubro de 1996, os
peticionários apresentaram uma comunicação solicitando que o Estado
definisse sua posição sobre uma proposta de solução amistosa.
Em 4 de novembro de 1996, a Comissão solicitou ao Estado que
proporcionasse informação sobre o desenvolvimento do processo de solução
amistosa e anexou uma cópia da comunicação
antes referida, apresentada pelos peticionários. 9.
Em 12 de novembro de 1996, o Estado informou sobre uma reunião
celebrada com os peticionários em 11 de novembro de 1996, na qual o
advogado do senhor Grande comprometeu-se a apresentar uma proposta tendente
a uma solução amistosa dentro de um prazo de 30 dias.
Em 21 de janeiro de 1997, o Estado informou que esta proposta tinha
sido apresentada e estava sob estudo. Através
das notas de 7 e 27 de março, 5 de junho e 1º de agosto de 1997l, os
peticionários solicitaram que o Estado definisse prontamente sua posição
sobre um possível acordo. Em 7
de agosto de 1997, a Comissão dirigiu-se ao Estado para solicitar informação
sobre o processo de solução amistosa e transmitir uma cópia da
comunicação dos peticionários
de 1º de agosto de 1997. 10.
Mediante as notas de 6 de novembro de 1997 e 4 e 12 de março e 1º e
23 de junho de 1998, os peticionários informaram à Comissão que devido à
divergência de opiniões dentro do próprio governo, o processo de solução
amistosa não estava avançando. Em
6 de julho de 1998 a Comissão indicou que esta questão estava entre as que
tinham de ser analisadas em reuniões com o
Estado no mês de agosto de 1998.
A petição foi analisada com ambas partes durante uma visita
realizada a Argentina em agosto de 1998 pelo
Relator e o Secretário Executivo da
Comissão. 11.
Em 20 de agosto de 1998, os peticionários manifestaram seu desejo de
prosseguir com o trâmite de solução amistosa, apesar das demoras e outros
obstáculos. Em 21 de agosto de
1998, o Estado informou que havia iniciado esforços tendentes a aplicar as
medidas internas necessárias para concretar um acordo amistoso, e que esse
processo tinha sofrido certas demoras devido à inexistência de normas
internas nesta esfera. Em 25 de
agosto de 1998, foi transmitida esta comunicação ao peticionário, ao qual
se solicitou a apresentação de eventuais observações dentro de um prazo
de 30 dias. Os peticionários responderam em uma breve comunicação datada
de 9 de setembro de 1998. As
comunicações dos peticionários
de 20 de agosto e 9 de setembro foram transmitidas ao Estado em 25 de
setembro de 1998, solicitando-lhe que enviasse toda a informação relativa
ao assunto dentro de um prazo de 60 dias. 12.
Em 16 de novembro de 1998, o senhor Grande informou à Comissão que
tinha substituido seu
representante legal. Em 30 de
novembro de 1998, o Estado solicitou uma prorrogação do prazo disponível
para apresentar suas observações. Em
8 de dezembro de 1998, a Comissão concedeu mais dois meses, e informou aos
peticionários sobre sua decisão. Em 8 de fevereiro de 1999, o Estado
solicitou uma prorrogação adicional. Em 18 de fevereiro de 1999 a Comissão
concedeu outros 30 dias e também informou aos peticionários.
O Estado apresentou observações por meio de uma comunicação que
foi recebida em 23 de março de 1999, na qual indicava que seguía tratando
de resolver a questão da falta
de normas internas relativas ao procedimento de solução amistosa, e que em
todo caso existiam opiniões divergentes no seio do governo quanto à
viabilidade de um acordo desse gênero.
Esta documentação foi transmitida ao peticionário em 22 de abril
de 1999, solicitando-lhe a apresentação de observações à resposta do
Governo dentro de um prazo de 60 dias. 13.
Em nota recebida em 16 de junho de 2000, os peticionários
apresentaram informação
adicional e solicitaram à Comissão que adotasse um relatório sobre este
assunto conforme o artigo 50 da Convenção. Esta documentação foi transmitida ao Estado em 11 de julho
de 2000, solicitando-lhe a apresentação de eventuais observações num
prazo de 30 dias. Em 19 de
julho de 2000 os peticionários reiteraram seu pedido de que a Comissão
adotasse um relatório. Esta informação foi transmitida ao Estado em 24 de agosto
de 2000, solicitando-lhe a apresentação de observações dentro de um
prazo de 30 dias. Em 14 de
agosto de 2000 o Estado solicitou uma prorrogação, e por nota de 15 de
agosto de 2000 lhe foram concedidos mais 30 dias.
Os peticionários apresentaram breves notas nos dias 5 e 9 de
setembro de 2000, que foram incorporadas ao expediente do caso.
Em 26 de outubro de 2000, a Comissão dirigiu-se ao Estado para
reiterar sua solicitação de observações de 24 de agosto de 2000.
14.
Em 4 de dezembro de 2000, o Estado apresentou informação no sentido
de que dada a aceitação, por parte de administrações anteriores, da
possibilidade de buscar uma solução amistosa, bem como a existência de
opiniões diferentes sobre a viabilidade dessa solução dentro da atual
administração, as dependências pertinentes estavam estudando a questão
para efeito de adotar uma posição unificada.
Esta comunicação foi transmitida aos peticionários em 19 de
dezembro de 2000, e lhes foi solicitado que apresentassem
eventuais observações dentro de um prazo de 30 dias.
Em 25 de setembro de 2001, a Comissão recebeu uma breve comunicação
dos peticionários, em que reiteravam sua posição e solicitavam a adoção
de um relatório. Esta
documentação foi transmitida ao Estado, com carácter informativo, através
de nota datada de 24 de outubro de 2001.
Em 10 de dezembro de 2001, o Estado informou que, tendo em vista que suas
autoridades competentes haviam concluido
que a petição não surgia nenhuma violação de direitos, não seria possível
continuar buscando uma solução
amistosa.
15.
Finalmente, com respeito à questão da solução amistosa, a Comissão
deseja assinalar que o procedimento previsto no artigo 48(f) da Convenção
oferece uma excelente oportunidade de resolução não contenciosa de
controvérsias e em muitos casos beneficiou
ambas partes. Não obstante, se as partes em determinado assunto assinalam
que o processo não avança ou não pode produzir uma solução
conforme o disposto no artigo 48(f), como ocorre com a petição dos autos,
a Comissão considerará concluido o processo de solução amistosa. III.
POSIÇÃO DAS PARTES
A.
Os peticionários
16.
Para efeito do presente relatório, no qual se examina a
admissibilidade das reclamações formuladas, pode-se resumir do seguinte
modo os fatos alegados pelos peticionários.
Em 28 de julho de 1980, a Polícia Federal Argentina iniciou uma
investigação a respeito da Cooperativa de Crédito "Caja
Murillo", em que o senhor Grande trabalhava como Chefe de Créditos,
por supostas atividades
delitivas da gerência. O
senhor Grande alega que desde o primeiro dia colaborou com a investigação
dando informação, e que somente depois se inteirou que a polícia não
estava atuando com ordem judicial. No
dia seguinte, ele foi solicitado a comparecer à Divisão Bancos da Polícia
Federal no Banco da Nação Argentina.
Indicou que atendeu a notificação, sem assistência legal, a fim de
colaborar na investigação, e foi detido nesse mesmo dia e privado de sua
liberdade até 12 de agosto de 1980, quando foi liberado sob fiança.
17.
Embora o senhor Grande não indique estes fatos como violações
perante a Comissão, assinala, de todos modos, que nessas duas semanas foi
torturado brutalmente. Alega
que o mantiveram incomunicado durante cinco dias no Departamento Central da
Polícia Federal em Buenos Aires, e que foi interrogado no Banco da
Nação. Afirma que foi ameaçado de morte a fim de que informasse o
paradeiro de méritos a respeito dos quais desconhecia.
Afirma ter sido golpeado, encapuzado e torturado mediante a aplicação
de corrente elétrica. Assinala que quando finalmente foi levado perante um
magistrado, desejava denunciar o ocorrido, mas um funcionário do tribunal
lhe advertiu que dadas as circunstâncias políticas imperantes ele poderia
estar em perigo de vida e que o melhor era não dizer nada.
18.
O senhor Grande informou que foi submetido a processo penal que durou
de 29 de agosto de 1980 até 24 de janeiro de 1989, data em que foi suspenso
definitivamente. Assinala que esta última decisão baseou-se na nulidade,
decretada pela Câmara Federal
de Apelações, das buscas realizadas no banco e do confisco de documentos,
e que estas medidas tinham sido realizadas sem autorização judicial e em
violação da Constituição.
19.
O senhor Grande indica que apresentou uma ação de danos e prejuízos
contra o Estado, baseada no que qualifica como detenção e processamento
injustos. Em 14 de abril de
1992, o juiz de primeira instância do Tribunal Contencioso Administrativo
Federal ordenou ao Estado pagar
ao senhor Grande a quantia de $150.000 mais juros e custas por danos e prejuízos.
Sustenta que esta decisão foi baseada na conclusão de que as atuações
irregulares da Polícia Federal levaram a uma falta no serviço da justiça. Assinala que os danos e prejuízos causados a seu estado
psicológico foram provados nesse processo através de diversos meios,
incluindo um parecer do próprio perito médico do tribunal.
20.
Tanto o Estado como o senhor Grande apelaram da sentença. Em 6 de
abril de 1993, a Câmara Nacional de Apelações do Contencioso
Administrativo Federal revogou a sentença decretada em primeira instância,
fundamentando, em primeiro lugar, que a responsabilidade do Estado somente
pode ser estabelecida no caso de erro judicial "evidente, manifesto e
inquestionável", o que não havia sido demostrado no caso do senhor
Grande. Este sustenta que
o erro em que se baseou a acusação cumpria efetivamente esse critério
e que o processo contra ele estava caracterizado por manifestas
irregularidades. Em segundo
lugar, a Câmara de Apelações
declarou que o senhor Grande não havia utilizado todos os meios jurídicos
disponíveis para subsanar de imediato as irregularidades alegadas.
O senhor Grande indica que toda limitação que pode ter
experimentado em sua capacidade de invocar outros recursos jurídicos
obedeceu precisamente às lesões psicológicas sofridas como consequência
do maltrato de que foi objeto. Argumenta
ainda que a Câmara de Apelações concluiu
que não existia um erro manifesto no processo contra ele,
fundamentando que a suspensão definitiva do processo não foi baseada na
inocência do senhor Grande, mas sim na impossibilidade de produzir novas
provas contra ele.
21.
O senhor Grande sustenta que interpôs um recurso extraordinário
perante a Câmara Nacional de Apelações, solicitando a revisão desta última
sentença. Esse recurso
foi denegado, motivo pelo qual interpôs um recurso de queixa perante a
Corte Suprema de Justiça. Este
último recurso foi desprovido sem fundamentos em 12 de abril de 1994, e o
senhor Grande afirma ter sido notificado dessa resolução em 3 de
mayo de 1994. Sustenta que a
essa altura tinha esgotado os recursos internos.
22.
Os peticionários alegam que o senhor Grande foi objeto de detenção
e julgamento ilegal e arbitrário em mãos da ditadura militar, que o acusou
de "subversão econômica". Argumenta
que os fatos aduzidos constituem violações do artigo 8 da
Convenção Americana, em especial no que se refere às garantias do
devido processo que devem ser observadas nos procedimentos penais, e do
artigo 10, relativo ao direito a ser indenizado em caso de ter sido
condenado em virtude de erro judicial por sentença transitada em julgado.
23.
Os peticionários promoveram um processo encaminhado a chegar a uma
possível solução amistosa do assunto.
Dados os obstáculos expressados pelo Estado, desde junho de 2000,
pelo menos, os peticionários solicitaram expressamente a Comissão que
continuara os procedimentos estipulados na Convenção e no Regulamento para
determinar a admissibilidade da petição e adotar um relatório sobre o mérito do assunto.
B.
O Estado
24.
Em sua resposta inicial, o Estado resumiu a história processual do
caso “Grande, Jorge F contra Estado Nacional (Ministério de Educação e
Justiça) s/ Cobro” seguido perante as autoridades judiciais argentinas,
indicando que se havia esgotado os recursos internos devido à decisão
de 12 de abril de 1994 da Corte Suprema de Justiça que indeferiu o
recurso de queixa interposto pelo senhor Grande.
O Estado assinalou que embora o tribunal de primeira instância tinha
adjudicado uma indenização de $150.000 fundamentando que a polícia tinha
atuado ilegalmente na busca e confisco de documentos sem ordem judicial
escrita, a mairoia da Sala Segunda da Câmara Nacional de Apelações do
Contencioso Administrativo Federal discrepou com este entendimento.
Segundo o Estado, a sentença de primeira instância foi revogada
tendo em vista que o tribunal de apelações determinou que o poder judicial
não era responsável pelas atividades da
polícia.
25.
O Estado indicou, em sua resposta inicial, que mantendo sua prática
de colaboração com a Comissão, estava disposto a iniciar procedimentos
tendentes a uma solução amistosa neste assunto conforme o disposto no
artigo 48 da Convenção Americana. O
Estado indicou que desejava
reservar sua contestação as questões de direito formuladas na petição. 26.
Com respeito aos procedimentos realizados na busca de uma possível
solução amistosa, o Estado mencionou repetidamente os obstáculos.
Em primeiro lugar, a inexistência de normas internas que permitissem
realizar um acordo desse gênero. Em
segundo lugar, que os diversos departamentos encarregados do exame do
assunto discrepavam quanto à legalidade
e viabilidade de uma acordo desse gênero.
Conquanto a Comissão
tenha recebido documentação onde estão expostas algumas dessas posições
divergentes, até a data de apresentação da comunicação do Estado de 10
de dezembro de 2001, o Estado não tinha
adotado nenhuma posição oficial sobre o tema do acordo amistoso nem
sobre a admissibilidade e o fundamento das denúncias dos
peticionários.
27.
Em sua comunicação de 10 de dezembro de 2001, o Estado rejeitou a
possibilidade de realizar negociações posteriores destinadas a uma solução
amistosa do assunto, baseando-se no fato em que as autoridades tinham
concluido que da petição não
surgia nenhuma violação de direitos.
O Estado assinalou, primeiro, que a petição é inadmissível porque
as violações de direitos aduzidas são anteriores a data de ratificação,
por parte da Argentina, da Convenção Americana.
Indicou que a busca, motivo da denúncia,
teve lugar em 28 de julho de 1980, e a Convenção Americana entrou em
vigor para Argentina em 5 de setembro de 1984.
O Estado defende que os fatos aduzidos, em que se baseia a petição,
com respeito à busca, a detenção e a suposta tortura, estão fora da
competência temporal da Comissão.
28.
Adicionalmente, o Estado argumenta que os peticionários não
anexaram fatos tendentes a caracterizar a violação de um direito
protegido, porque o senhor Grande consentiu na busca inicial.
Ainda que a Câmara Federal de Apelações tenha considerado que a
falta de uma ordem escrita determinava, de todos modos, a nulidade da busca
e de todas as provas obtidas através dela, o Estado assinalou que a
jurisprudência da Corte Suprema demonstra que o consentimento pode
legitimar uma busca realizada sem orden judicial.
O Estado sustenta que o senhor Grande não podia queixar-se de uma
busca iniciada em virtude de sua denúncia e com a qual havia inicialmente
colaborado.
29.
O Estado insistiu em que o senhor Grande não impugnou os
procedimentos penais contra ele, nem a legalidade da busca, mas sim foi um
outro acusado no mesmo assunto quem impugnou a legalidade da mesma. O Estado
alega que o senhor Grande se manteve "passivo" frente ao
julgamento e, portanto, na prática "consentiu" com sua situação
processual. O Estado afirmou
também que o senhor Grande esteve detido somente 14 dias, nunca apresentou
recursos judiciais nem produziu prova alguma de ter sido objeto de abusos
nesse período. Completou
dizendo que era precisamente em observância do princípio da
presunção de inocência que foram indeferidas definitivamente as
acusações contra ele, devido à improbabilidade de encontrar provas
adicionais contra sua pessoa .
30.
Com respeito a tentativa do senhor Grande de obter indenização
mediante uma ação judicial, o Estado alega que a petição que tem perante
si a Comissão simplesmente manifesta discrepância com a sentença de um
tribunal competente, adotada na esfera de sua competência. Por conseguinte,
segundo o Estado, a petição pretende que a Comissão substitua a decisão
dos tribunais argentinos por
uma decisão sua numa questão de direito interno, o que está fora da
competência da Comissão.
31.
O Estado argumenta que o senhor Grande gozou de pleno acesso aos
recursos judiciais e que não expôs nenhum fato que tende a demostrar uma
violação de seu direito ao devido processo.
Assinalou ademais que a denúncia por suposta violação do direito a
obter indenização, previsto no artigo 10 da Convenção Americana, é
inadmissível, pois este artigo refere-se ao direito a ser indenizado por
prejuízos causados por uma sentença definitiva decretada por erro
judicial, mas que na verdade, não se havia prolatado uma sentença de tal
natureza contra o senhor Grande: somente se havia resolvido suspender
definitivamente todas as acusações formulados contra ele. IV.
ANÁLISE DE ADMISSIBILIDADE
A.
Competência da Comissão ratione pessoae, ratione materiae, ratione temporis e ratione loci 32.
A Comissão é competente para examinar a presente petição.
Conforme o disposto pelo
artigo 44 da Convenção Americana, os peticionários estão legitimados
para apresentar uma denúncia perante à Comissão.
A petição objeto de estudo indica que a suposta vítima estava
submetida à jurisdição do Estado argentino na data em que ocorreram os
fatos aduzidos. Argentina é
Estado membro da Organização dos Estados Americanos desde 1948, data em
que ratificou a Carta da OEA e,
portanto está submetida à jurisdição da
Comissão com respeito às denúncias individuais, dado que essa
competência foi estabelecida por estatuto em 1965 em relação a Declaração
Americana dos Direitos e
Deveres do Homem (doravante denominada "Declaração
Americana"”). Argentina
está sujeita à jurisdição da Comissão
nos termos da Convenção
Americana desde o dia 5 de setembro de 1984, data em que depositou o
instrumento de ratificação respectivo.
Consequentemente, a Comissão possui
competência ratione pessoae
para examinar as denúncias apresentadas. 33.
Visto que a petição apresenta denúncias referentes a direitos
previstos na Convenção
Americana --os artigos 8 e 10-- a Comissão possui competência
ratione materiae para examiná-la. 34.
O Estado sustenta que a petição é inadmissível ratione temporis porque os fatos iniciais em que se baseia são
anteriores à data de entrada em vigor da
Convenção Americana para Argentina.
Com relação a estes fatos iniciais, como já assinalado
anteriormente, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem
estabelece os critérios aplicáveis para o exame de um
assunto por parte da Comissão.
Na hipótese em que um Estado membro não tenha ainda ratificado a
Convenção Americana, os direitos fundamentais que o Estado
compromete-se a preservar como parte da Carta da OEA são aqueles
estipulados na Declaração Americana, que é fonte de obrigações
internacionais.[1]
O Estatuto e o Regulamento da Comissão estabelecem normas adicionais
referentes ao exercício da competência da Comissão a este respeito.
Esta competência estava em vigor na data dos primeiros fatos
aduzidos pelos peticionários, e a Declaração, assim como a Convenção,
protege o direito ao devido processo (Artigos XVII e XVIII) invocado
no caso. Uma vez que se fez
efetiva a ratificação por parte de Argentina, a Convenção Americana
converteu-se na principal fonte de obrigações jurídicas,[2]
e se tornaram aplicáveis os direitos e obrigações expressamente
mencionados pelos peticionários. Consequentemente,
a Comissão tem competência ratione
temporis em relação as denúncias apresentadas pelos peticionários.
35.
Por último, visto que a petição refere-se a violações de
direitos protegidos conforme a Declaração e a Convenção Americanas que
teriam tido lugar no território de um Estado membro da OEA, a Comissão
conclui que tem competência ratione
loci para examinar o assunto. B.
Outros requisitos de
admissibilidade da petição
a.
Esgotamento dos recursos internos 36.
O artigo 46 da Convenção Americana estabelece que a admissibilidade
de um caso está condicionada a "que se tenha interposto e esgotado os
recursos da jurisdição interna, conforme os princípios de Direito
Internacional geralmente reconhecidos".
Este requisito foi estabelecido para garantir ao Estado a
oportunidade de resolver as disputas dentro de seu próprio marco jurídico.
Não obstante, a Convenção prevê que estas disposições não serão
aplicadas quando os recursos internos não estão disponíveis, seja por uma
razão legal, seja por uma situação de fato.[3]
O artigo 46(2) estabelece que esta exceção deve ser aplicada se a
legislação interna do Estado em questão não existe o devido processo
legal para a proteção dos direitos alegadamente violados; se foi negado ao
suposto prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos de jurisdição
interna, ou se houve atraso injustificado na decisão sobre os mencionados
recursos. 37.
No caso dos autos, as partes coincidem em que os recursos internos
pertinentes à pretensão do senhor Grande de obter uma indenização foram
esgotados com a decisão da Corte
Suprema de Justiça de 12 de abril de 1994 que indeferiu o recurso de queixa
do senhor Grande. Os peticionários
assinalam que o senhor Grande foi notificado desta decisão em 3 de maio de
1994, e o Estado não impugnou esta afirmação.
A Comissão conclui que em 3 de maio de 1994 é, pois, a data
pertinente para os efeitos da análise de admissibilidade.
38.
Quanto ao requisito de esgotamento dos recursos internos e o alcance
da petição, a Comissão
assinala que as denúncias que foram formuladas referem-se à detenção do
senhor Grande, ao processo penal conexo iniciado em 1980, um processo que
seguiu seu trâmite até que as acusações fossem definitivamente
desacolhidas (1989), e as atuações civis que o senhor Grande iniciou em
busca de indenização. A petição menciona as supostas torturas como ponto
de referência, mas não as inclui dentro das alegações de violações de
direitos nem aduz que denúncias desse gênero tenham sido apresentadas, em
momento algum, perante as autoridades judiciais nacionais conforme o
requerido pelo artigo 46. Ademais,
de acordo com a análise realizada pela
Comissão, esses fatos não foram alegados nos procedimentos
judiciais internos pertinentes para o caso dos autos, motivo pelo qual não
foram incluidos no exame da Comissão. b.
Prazo para a apresentação da petição 39.
Conforme o previsto no artigo 46(1)(b) da Convenção, toda petição,
para que possa ser admitida, deve ser apresentada num prazo de seis meses
seguintes à data em que a parte denunciante tenha sido notificada da sentença
definitiva adotada no âmbito interno.
A regra dos seis meses garante certeza legal e estabilidade, uma vez
adotada a decisão. 40.
Segundo o expediente, no caso dos autos a notificação da sentença
definitiva foi recebida pelo senhor
Grande em 3 de maio de 1994, e a petição foi apresentada em 31 de outubro
de 1994, e recebida pela Secretaria
em 2 de novembro de 1994, logo esta cumpre o requisito da apresentação no
prazo certo. c.
Duplicação de procedimientos e res judicata 41.
O artigo 46(1)(c) estabelece que a admissão de uma petição está
sujeita ao requisito de que o assunto "não esteja não esteja pendente
de outro processo de solução internacional” e o artigo 47(d) da
Convenção estipula que a Comissão não poderá admitir uma petição
que “for substancialmente reprodução de petição ou comunicação
anterior, já examinada pela Comissão ou por outro organismo
internacional". No caso
dos autos as partes não alegaram nem se depreende do expediente a existência
de nenhuma dessas duas circunstâncias de inadmissibilidade. d.
Caracterização dos fatos aduzidos 42. O artigo 47(b)
da Convenção Americana declara inadmissível toda petição em
que não expuser fatos que caracterizem violação dos direitos
garantidos pela mesma.
A este respeito, a Comissão conclui que os fatos aduzidos podem
estar relacionados a questões referentes às garantias estabelecidas pelo
artigo 8 da Convenção no que tange à legalidade da prova e os meios através
dos quais a mesma tenha sido obtida. Ademais, e tendo em conta o princípio jura novit curia, em sua decisão sobre o mérito do assunto a
Comissão se ocupará também da questão prevista no artigo 8, bem como no
artigo 25, de que qualquer pessoa acusada de um delito deve ser julgada e
ouvida dentro de um prazo razoável.
Os fatos aduzidos também formulam problemas referentes às obrigações
estipuladas pelo artigo 1(1) da Convenção.
No que concerne aos fatos supostamente anteriores à ratificação da
Convenção por parte da Argentina, se for demonstrado que
efetivamente ocorreram, estes poderiam configurar violações do direito ao
devido processo conforme os artigos XXV e XXVI da
Declaração Americana.
43.
Com relação às alegações efetuadas pelos peticionários a
respeito do artigo 10 da Convenção,
a Comissão conclui que elas não implicam em fatos tendentes a configurar
uma violação de direitos. O
artigo 10 refere-se ao direito de toda pessoa " tem direito de ser indenizada conforme a lei, no caso de haver sido
condenada em sentença passada em julgado, por erro judiciário”.
No caso dos autos, não foi decretada contra o senhor Grande uma
sentença definitiva, mas sim uma suspensão definitiva.
A decisão em questão não recaiu sobre o mérito do assunto, ou
seja, a sua inocência ou culpabilidade, mas sobre a questão se o processo
deveria continuar ou ser arquivado. Ainda
que se pudesse supor que as denúncias correspondentes fossem certas, isto não
poderia constituir uma violação da disposição
em referência. 44. A Comissão
conclui que o peticionário apresentou denúncias referentes a supostas
violações de seu direito a proteção e as garantias judiciais, que se
forem compatíveis com outros requisitos e sejam provados verdadeiros,
poderiam tender a configurar a violação de direitos protegidos pelos
artigos 8, 25 e 1(1) da Convenção Americana. Na medida em que seja necessário, a Comissão examinará
também, em sua análise de mérito do assunto, a aplicabilidade dos artigos
XXV e XXVI da Declaração Americana. V.
CONCLUSÕES
45.
A Comissão conclui que é competente para conhecer o caso dos autos
e que a petição é admissível conforme os artigos 46 e 47 da Convenção Americana. 46.
Com base nos argumentos de fato e de direito acima expostos, e sem
prejulgar o mérito do assunto, A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS,
DECIDE: 1.
Declarar a petição admissível em relação a suposta violação
dos direitos reconhecidos nos artigos 8, 25 e 1(1) da Convenção Americana
e, no que for pertinente, dos artigos XXV e XXVI da
Declaração Americana. As
denúncias formuladas a respeito do artigo
10 da Convenção Americana são
inadmissíveis.
2.
Notificar as partes desta decisão.
3.
Prosseguir com a análise do mérito do assunto. 4. Publicar o
presente relatório e incluí-lo no seu Relatório Anual à Assembléia
Geral da OEA. Dado
e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na
cidade de Washington, D.C., aos 27 dias do mês de fevereiro de 2002. (Assinado):
Marta Altolaguirre, Primeira Vice-presidenta; José Zalaquett, Segundo Vice-presidente;
membros da Comissão Robert K. Goldman, Julio Prado Vallejo, e Clare Kamau
Roberts.
[ íNDICE | ANTERIOR |PRÓXIMO ]
*
Segundo o previsto
no artigo 19(2) do Regulamento da Comissão,
seu Presidente, Juan E. Méndez, de nacionalidade argentina, não
participou do debate nem da decisião do presente caso. [1]
Corte IDH, Opinião Consultiva OC-10/89, 14 de julho de 1989, "Interpretação
da Declaração Americana
dos Direitos e Deveres do
Homem em relação ao artigo 64 da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos", Serie. A Nº 10, parágrafos 43 - 46. [2]
Íd., parágrafo 46. [3]
Ver
Corte IDH, Exceções ao esgotamento recursos internos (artigos 46.1,
46.2.a e 46.2.b da -Convenção
Americana sobre Direitos Humanos), Opinião Consultiva OC-11/90 de 10 de
agosto de 1990, Serie.
A No. 11, parágrafo 17.
|