Direito à liberdade e proteção contra a privação arbitrária de liberdade

49.          Com freqüência, os migrantes irregulares ou sem documentação são detidos pelas autoridades de imigração.  No ano 2001, a Comissão Interamericana teve a oportunidade de pronunciar-se sobre a detenção de um grupo específico de migrantes por parte dos Estados Unidos de América.[20] Este caso refere-se a  uma petição apresentada em abril de 1987 por várias organizações de direitos humanos, em nome de um grupo de nacionais cubanos que formavam parte da “Flotilla Liberdade” de Mariel. Este grupo de pessoas saiu de Cuba em direção aos Estados Unidos em 1980. A petição inicial foi feita em nome das 335 pessoas intitulada Rafael Ferrer-Mazorra e outros, os quais nesse momento encontram-se privados de sua liberdade.

50.          É importante mencionar que entre as provas colhidas neste caso, a Comissão Interamericana realizou diversas inspeções in situ a lugares de detenção de nacionais cubanos, como as vítimas deste caso. A finalidade destas inspeções in situ era avaliar as condições gerais de detenção destas pessoas e receber informação dos funcionários dos Estados e das pessoas detidas. No relatório, a Comissão descreve suas observações a partir da visita. A Comissão observou que em razão de se tratar de uma detenção administrativa, os peticionários, que se chamam a si próprios de “os cubanos de Mariel”, encontram-se numa situação de significativa desvantagem em comparação com outras pessoas privadas de liberdade que cumprem penas de prisão”.[21] Por exemplo, as pessoas sob detenção administrativa não tem direito a beneficiar-se de programas de reforma e reabilitação, tais como educação e trabalho.

51.          Com relação ao argumento do Estado relativo à detenção dos cubanos do Mariel, a Comissão entende que não está amparada pela Declaração Americana. A Comissão pontua que os Estados tem uma ampla margem de discricionariedade em matéria de imigração, mas isto não  implica que essa faculdade não esteja sujeita as obrigações internacionais em matéria de direitos humanos.  A Declaração Americana deve ser interpretada e aplicada de forma que sejam protegidos os direitos básicos dos seres humanos, independentemente de sua nacionalidade, nos Estados em que este  instrumento é fonte de obrigações internacionais. A Comissão apóia-se no preâmbulo da Declaração Americana, que estabelece que “os Estados Americanos reconhecem que os direitos essenciais do homem não nascem do fato de ser nacional de determinado Estado mas que tem como fundamento os atributos da pessoa humana”. Outros artigos da Declaração reiteram este postulado básico, tais como os artigos II e XVII. Com efeito, os Estados membros da OEA estão obrigados a garantir os direitos protegidos pela Declaração Americana “a todas as pessoas que se encontram sob sua autoridade e controle, recaindo sobre o Estado o ônus de provar a existência de uma disposição ou uma reserva permissível que explicitamente limite ou exclua a aplicação de algumas ou de todas as disposições do instrumento a uma classe determinada de pessoas, como os estrangeiros expulsáveis”. A Comissão entende que o Estado não identificou ou demonstrou que exista uma disposição ou reserva neste sentido. Os peticionários e em geral os cubanos do Mariel, encontram-se sob a jurisdição dos Estados Unidos, já que não somente estão fisicamente no território deste Estado desde 1980, mas porque foram objeto de procedimentos e medidas administrativas e judiciais. O Estado está obrigado a garantir e proteger os direitos dos peticionários conforme a  Declaração Americana, incluindo a liberdade pessoal.

52.          A Comissão também afirmou no relatório que os Estados não podem aduzir disposições de sua legislação interna como fundamento para descumprir suas obrigações internacionais. Neste caso, apesar de que os tribunais nacionais considerem que os “estrangeiros expulsáveis” nunca ingressaram no  território dos Estados Unidos para efeitos da legislação interna, isto não serve de justificação para o descumprimento da obrigação de garantir os direitos estabelecidos na Declaração Americana, inclusive com relação aos “estrangeiros expulsáveis”, se eles encontram-se sob a jurisdição dos Estados Unidos. O tratamento que o Estado dispensa aos peticionários, incluindo sua detenção, não está à margem da Declaração, mas sim, deve concordar com este instrumento internacional. Isto não obsta que o status de migrantes destas pessoas não possa ter-se em conta no momento de avaliar a maneira em que o Estado garante e protege seus direitos humanos. Em qualquer  caso, esta garantia e proteção deve ao menos garantir “as proteções fundamentais” estabelecidas na Declaração Americana. Desta forma, a Comissão é competente para conhecer este caso.

53.          Os peticionários alegam ter esgotado os recursos internos, tendo inclusive interposto um incluso recurso de certiorari perante a Corte Suprema de Estados Unidos, que foi indeferido em 14 de outubro de 1986. Por outro lado, os peticionários argumentam que o recurso de habeas corpus não constitui um recurso judicial efetivo porque os tribunais federais dos Estados Unidos determinaram que os “estrangeiros expulsáveis” não têm direito à proteção constitucional da Quinta e Sexta Emendas à Constituição. Defendem também que a revisão da detenção mediante o plano de revisão não constitui um recurso efetivo, já que não garante os elementos do devido processo estabelecidos pela Declaração Americana. O Estado considera que não foram esgotados  todos os recursos, porque os peticionários foram beneficiados e continuam beneficiando-se dos planos de revisão.

54.          A Comissão entende que foram esgotados os recursos internos existentes nos Estados Unidos. Com respeito ao argumento do Estado em relação aos planos de revisão, a Comissão considera que precisamente um dos argumentos de fundo dos peticionários é que estes procedimentos desconhecem a proteção de direitos fundamentais estabelecida nos artigos I, II, XVII, XVIII, XXV e XXVI da Declaração Americana. Sendo assim, a decisão a respeito deste ponto difere da consideração dos méritos deste caso, o qual se fará mais adiante neste relatório. A Comissão entende que os demais requisitos de admissibilidade foram cumpridos pelos peticionários.

55.          Quanto ao mérito do caso, a Comissão estima que há problemas fundamentais. O primeiro deles é considerar se a detenção dos cubanos do Mariel está sujeita à Declaração Americana. Se a resposta é afirmativa, a segunda questão refere-se a determinar se o Estado protegeu e garantiu os direitos humanos dos peticionários. A Comissão considera que o Estado é responsável por proteger e garantir os direitos dos peticionários a partir do momento em que eles ficaram sob a  autoridade e controle deste em 1980.

56.          Antes de referir-se ao segundo ponto, a Comissão considera necessário pronunciar-se sobre a forma em que os peticionários foram privados de sua liberdade. Tem em vista que a CIDH não recebeu informação precisa a respeito de cada um dos 335 peticionários da petição adicional, a Comissão opta por fazer referência à informação proporcionada pelas partes, apesar de que esta as vezes seja em caráter geral e não seja necessariamente relevante para os peticionários. 

57.          Entre abril e setembro de 1980, cerca de 125.000 pessoas de nacionalidade cubana chegaram aos Estados Unidos como parte da “Flotilla Liberdade” do Mariel. Apesar de que a maioria destas pessoas não tinha documentação, foram postas em liberdade quase que imediatamente. Este grupo estava composto de cerca de 117.000 pessoas. Os restantes 8.000 cubanos foram remetidos a acampamentos de assentamento para um processo mais complexo de seleção de imigração. Em 1981 este processo foi finalizado, e cerca de 6.200 cubanos foram liberados. Os restantes 1.800 continuaram detidos em razão de seu comportamento, porque se suspeitava, e eles mesmos admitiram que tinham antecedentes penais, motivo pelo qual não podiam ingressar nos Estados Unidos de acordo com a legislação de imigração, ou porque sofriam de doenças mentais. Os peticionários fazem parte dos 125.000 cubanos que chegaram aos Estados Unidos como parte da “Flotilla Liberdade” do Mariel. No momento de apresentar o caso os 335 peticionários continuavam privados de sua liberdade desde sua chegada ao país ou haviam sido detidos novamente por ter cometido delitos ou violar as condições de sua liberdade condicional. Posteriormente, em desenvolvimento do plano de revisão estabelecido pelas autoridades norte-americanas, vários cubanos do Mariel foram postos em liberdade. Alguns cubanos que haviam sido liberados violaram as condições de liberdade condicional ou cometeram delitos e novamente foram privados de sua liberdade. Desta foram, o número de cubanos do Mariel privados de liberdade varia.

58.          Em 1988 o Estado estimava que entre 100 e 150 dos cubanos do Mariel continuavam detidos desde sua chegada aos Estados Unidos. Em 1999 o Estado afirmou que todos os peticionários haviam obtido a liberdade condicional pelo menos uma vez. Não obstante, a Comissão não recebeu informação a respeito de tempo de detenção de cada um dos peticionários deste caso. A partir da informação parcial apresentada pelo Estado, a Comissão estima que quatro pessoas estavam privadas de sua liberdade entre 1988 e 1999, isto é, durante 11 anos; outras duas pessoas estavam detidas desde 1994, e outras quatro haviam estado detidas desde 1996. Durante o tempo que estiveram privadas de liberdade, estas pessoas, deveriam ter tido acesso ao processo de revisão para que lhes fossem outorgada a liberdade condicional, a qual lhes foi negada, ou não tiveram acesso ao mesmo.

59.          Com respeito ao segundo problema jurídico, ou seja, se o Estado garantiu e protegeu os direitos humanos dos peticionários, a Comissão desenvolve a seguinte análise. O direito a liberdade e a proteção contra a detenção ou a detenção arbitrária estão consagrados nos  artigos I e XXV da Declaração. Todas as pessoas que se encontram sob a jurisdição de um Estado têm direito a liberdade, sem distinção alguma. Este direito não é absoluto, os Estados podem privar uma pessoa de sua liberdade em certas condições.

60.          Os órgãos internacionais de direitos humanos indicam em sua jurisprudência que as razões para a privação de liberdade não se relacionam com a investigação e sanção de delitos somente. Os Estados detêm as pessoas com o propósito de controle do ingresso e residência de estrangeiros em seu território,[22] em razão de sua saúde mental,[23] e durante as ocupações de território sob a figura de internação de população civil conforme o direito internacional humanitário.[24] Em qualquer caso de privação da liberdade de uma pessoa, esta deve ser efetuada segundo as garantias e limitações estabelecidas no artigo XXV da Declaração. Este artigo faz referência à legalidade da detenção, isto é, que esta tenha sido efetuada de acordo com os procedimentos estabelecidos por leis preexistentes de acordo com as normas substanciais e processuais de direito interno. É importante aclarar que estas normas devem estar de acordo com o propósito fundamental do artigo XXV: a proteção contra a privação arbitrária da liberdade. Sendo assim, “o direito interno deve ser justo e previsível e, portanto, não pode ser arbitrário”.[25]

61.          A Comissão estima que é possível derivar três requisitos a partir do artigo XXV: a) a detenção preventiva com fundamento na segurança pública deve ter fundamento legal; b) a detenção não pode ser arbitrária; e c) deve existir um controle judicial de supervisão expedito, em condições de detenção continuada, o qual implica a supervisão em intervalos regulares. Os procedimentos de revisão da detenção devem  cumprir com as normas de justiça processual: julgamento imparcial, oportunidade de apresentar provas, direito de defesa e direito à representação legal.[26]

62.          Os peticionários estão ou estiveram detidos em razão de sua condição de “estrangeiros expulsáveis”, conforme a legislação de imigração norte-americana. Em geral, as pessoas que fazem parte desta classificação são devolvidas a seus países de origem. Nesse caso, isto não foi possível porque o Governo de Cuba se nega a aceitar o seu regresso. O artigo XXV da Declaração se aplica aos peticionários por estarem ou terem estado sob detenção administrativa, com relação a seu status de imigrante. Na opinião da Comissão, as circunstâncias da detenção, incluindo a lei que autoriza esta detenção não cumprem com os requisitos dos artigos I e XXV da Declaração. A legislação interna não reconhece nenhum direito à liberdade aos peticionários, o qual viola o artigo I da Declaração e portanto incide sobre a lei que autoriza a detenção e sobre os mecanismos disponíveis para determinar a legalidade da mesma.

63.          A Lei de Imigração e Naturalização, fundamento legal da detenção dos peticionários, outorga amplas faculdades ao Procurador Geral para deter os “estrangeiros expulsáveis” e deportá-los, bem como para outorgar-lhes a liberdade condicional dentro dos Estados Unidos, a qual não modifica sua condição de “expulsáveis”.  Em outras palavras, sob a legislação norte-americana de “estrangeiros expulsáveis” não tem direito à liberdade. Os tribunais norte-americanos coincidem com a interpretação da legislação quando esta se refere que os “estrangeiros expulsáveis” não ingressaram no território nacional, o qual junto com o caráter administrativo de sua detenção determina que estas pessoas sejam privadas de sua liberdade, e que não tenham direito ao devido processo e a um recurso judicial efetivo. Os tribunais norte-americanos concluíram que os estrangeiros expulsáveis podem estar detidos indefinidamente, dado que a lei não estabelece um limite de tempo nesse sentido.

64.          Tendo em vista o exposto, a Comissão considera que a legislação norte-americana que fundamenta a detenção dos peticionários é “em essência a antítese das proteções prescritas nos artigos I e XXV da Declaração, pois não reconhece nenhum direito a liberdade de parte dos peticionários apesar da sua presença física dentro do território do Estado”. [27] Esta norma estabelece a presunção de detenção, em lugar da de liberdade, a qual é incompatível com o objetivo e propósito do direito a liberdade (artigo I) e o direito a não ser privado arbitrariamente da liberdade (artigo XXV).

65.          A Comissão conclui que os procedimentos mediante os quais os peticionários foram detidos e se determinou a legalidade de sua detenção não são congruentes com os requisitos do artigo XXV da Declaração por várias razões. Estes procedimentos são arbitrários porque não definem com suficiente detalhe os fundamentos para a privação da liberdade; invertem o ônus da prova para o detido, quem deve justificar porquê deve ser posto em liberdade; encontram-se sujeitos a uma ampla margem de discricionariedade por parte dos funcionários; e não oferecem garantias de revisão da detenção em intervalos razoáveis. A Comissão considera que a lei e os procedimentos pelos quais os peticionários foram privados de sua liberdade são  violatórios dos artigos I e XXV da Declaração.

66.          A seguir, a Comissão procederá a determinar se os peticionários tiveram um  direito efetivo para determinar a legalidade de sua detenção perante os tribunais. Um dos elementos do artigo XXV é a existência de um controle judicial de revisão, e no caso em que a detenção continue, a decisão de manter a pessoa privada de liberdade deve ser objeto de revisões periódicas. Este controle está dirigido a evitar que a pessoa detida se encontre a mercê da autoridade que ordenou sua privação de liberdade. A Comissão entende que o Estado não cumpriu com o elemento descrito do artigo XXV porque os tribunais aceitaram a validez da ficção referente à não entrada do “estrangeiro expulsável” como fundamento para a detenção dos peticionários e para negar-lhes a proteção constitucional de seu direito à liberdade e de não ser privado arbitrariamente desta. Tanto a revisão judicial como os planos de revisão partem da premissa que os peticionários não tem direito a não estar detidos. Assim, a revisão judicial não garante efetiva e adequadamente os direitos mencionados.

67.          A Comissão conclui que os peticionários estiveram ou estão detidos pelo Estado em violação dos direitos estabelecidos nos artigos I e XXV da Declaração Americana.

68.          Com respeito ao direito à igualdade (artigo II), ao reconhecimento de personalidade jurídica (artigo XVII) e a proteção judicial (artigo XVIII),  a Comissão desenvolve a seguinte análise. O conceito de igualdade da Declaração está relacionado com a  aplicação de direitos substantivos e a proteção dos mesmos. O direito à igualdade inclui o requisito de uma justificação objetiva e razoável como fundamento de uma distinção.

69.          A aplicação do direito à igualdade no contexto da migração implica que, ainda que sejam admitidas diferenças no trato entre nacionais e estrangeiros com respeito ao ingresso e permanência no território de um país, o Estado deve demonstrar que as distinções deste tipo são razoáveis e proporcionais ao objetivo que perseguem.

70.          Neste caso, a Comissão observa que os peticionários, como os outros “estrangeiros expulsáveis”, estão submetidos a um regime legal diferente ao das outras pessoas sob a autoridade e controle do Estado. O fundamento da distinção é a condição de imigração dos peticionários, para a qual a legislação prevê essas consequências. O Estado apresentou o seguinte argumento para fundamentar sua decisão: Liberar os peticionários enviaria uma mensagem aos outros “Estados para que exilassem a seus nacionais não desejados mas perigosos sabendo que os mesmos teriam que ser liberados nas comunidades de outros Estados, independentemente de sua condição legal de expulsáveis”.[28] A Comissão considera que esta diferenciação não é razoável e que o Estado não apresentou provas que sugerissem que a condição jurídica de “estrangeiros expulsáveis” tinha algum efeito nas  políticas de imigração de outros Estados. Adicionalmente, ainda que o Estado tenha a  faculdade de regular o acesso dos estrangeiros a seu território, e para isto pode impor controles a liberdade física e de movimento de pessoas, estas restrições não podem ser  arbitrárias e devem estar sujeitas a uma revisão imediata e periódica. O Estado não argumentou por que isto não era possível no caso dos peticionários, quem estão privados de seu direito a liberdade, sujeitos a discrição quase ilimitada do Executivo. Sendo assim, a  Comissão considera que o tratamento dos peticionários como “estrangeiros expulsáveis” é desproporcionado, e portanto viola o artigo II da Declaração. Pelas razões expostas anteriormente, a Comissão considera que a privação da liberdade dos peticionários contraria os artigos XVII e XVIII da Declaração.

71.          A Comissão determinou que os Estados Unidos haviam violado os artigos I, II, XVII, XVIII e XXV da Declaração Americana em relação à privação de liberdade das pessoas acima mencionadas.

72.          O relatório foi aprovado pela Comissão e transmitido ao Estado, o qual  tinha um prazo de três meses para informar a este órgão sobre as medidas que tomaria  em cumprimento das recomendações formuladas. O Estado solicitou uma prorrogação de 90 dias em razão da complexidade do caso, insistindo que boa parte das 335 pessoas não se encontravam detidas. Em 1º de fevereiro de 2001, a Comissão lhe outorgou um prazo adicional de um mês. A Comissão não recebeu resposta durante esse prazo. A Comissão recebeu a resposta do  Governo em 14 de novembro de 2001.[29]

73.          A Comissão expressou sua inquietude a respeito de um aspecto das condições de detenção dos peticionários, a partir das visitas in loco. A Comissão observou que os cubanos do Mariel não tem direito a beneficiar-se dos programas de reabilitação que são oferecidos nos centros de reclusão. A respeito, “a Comissão insta ao Estado a que ofereça aos cubanos do Mariel que continuam detidos, ou que possam vir a ser detidos no futuro, algumas atividades mínimas de desenvolvimento pessoal, tais como as que se oferecem aos delinquentes penais”.

74.          A Comissão fez as seguintes recomendações aos Estados Unidos de América:

Tão pronto como seja possível, convoque a todos os peticionários que se encontram  detidos aos processos de revisão, conforme a Declaração Americana e, em particular,  os artigos I, II, XVII, XVIII e XXV.

Revise as leis, procedimentos e práticas de maneira que seja garantido a todos os estrangeiros que se encontram detidos, incluso aqueles que fazem parte da categoria de “estrangeiros expulsáveis” a proteção de todos seus direitos humanos, conforme a Declaração Americana.

Evolução Jurisprudencial

75.          A Relatoria observa com otimismo que a jurisprudência referente ao tema de trabalhadores migrantes e suas famílias do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos vem aumentando. As decisões da Corte e a Comissão são úteis para interpretar o alcance e conteúdo das obrigações estatais de garantir e proteger os direitos humanos dos trabalhadores migrantes e suas famílias.

76.          Os casos examinados pelo sistema interamericano em 2001 versam sobre diferentes aspectos dos procedimentos de ingresso, permanência e expulsão de estrangeiros. Parece indicar que os Estados devem fazer esforços para contar com normas de imigração e aplicá-las de maneira que garantam e protejam os direitos humanos dos estrangeiros. A seção sobre os elementos de devido processo nos procedimentos de imigração contida no Relatório desta Relatoria do ano 2000 é bastante relevante.

77.          As regras jurídicas que podem ser extraídas das decisões apresentadas são as seguintes:

a)          O procedimento para adquirir uma nacionalidade deve estar sujeito a um processo em que sejam garantidos os elementos fundamentais do devido processo.

b)          Os processos de deportação de estrangeiros, independentemente de que se trate de migrantes documentados ou sem documentação, devem oferecer recursos efetivos que permitam a pessoa que irá ser deportada solicitar que sejam protegidos seus direitos. Caso contrário, a Comissão entende que foram esgotados os recursos internos para efeitos de apresentação destes casos perante o sistema.

c)          Por último, o direito à liberdade e a proteção contra a privação arbitrária da liberdade devem ser garantidos a todas as pessoas que se encontram sob a jurisdição do Estado. As classificações jurídicas dos migrantes não podem criar ficções jurídicas como a dos “estrangeiros expulsáveis,” para justificar a denegação de direitos fundamentais aos migrantes. Os migrantes que se encontram detidos devem ter a possibilidade de dirigirem-se aos tribunais para solicitar que seja revisada a decisão de mantê-los privados de liberdade.

IV.          CONSEQUÊNCIAS ECONÔMICAS DA MIGRAÇÃO

78.          O debate sobre as repercussões econômicas da migração é um tema crucial e que gera ampla controvérsia em diversos setores. Diferentes grupos usam argumentos relacionados com este tema para justificar medidas tendentes a estimular, ou controlar os fluxos migrantes. Setores a favor da imigração, por exemplo, argumentam que os Estados deveriam fomentar a imigração já que esta contribui ao aumento da produtividade e incide positivamente no crescimento econômico dos países. Os grupos contrários à imigração, porém, são os que mais comumente citam as repercussões econômicas como um argumento para restringir a migração.  Estes setores argumentam que a imigração tem efeitos negativos sobre a economia, e que portanto é necessário restringi-la. O argumento mais comumente usado por estes grupos é que a imigração gera desemprego, baixa os salários, recarrega os serviços sociais oferecidos pelo Estado e, em geral, redunda negativamente na produtividade do país. Estes setores manifestam sua inquietude, especialmente, durante ciclos negativos caracterizados por contração econômica. De maneira similar, nos países emissores de mão de obra, existe uma discussão férrea entre diversos grupos sobre se a emigração produze efeitos positivos ou negativos na economia. Grupos a favor da emigração enfatizam a importância das remessas que enviam aos emigrantes, enquanto os grupos contrários à emigração enfatizam que esta deixa os países sem as pessoas mais qualificadas e gera dependência econômica. 

79.          Ainda que a discussão sobre as repercussões econômicas da migração representa um verdadeiro desafio, a Relatoria decidiu abordar o tema devido a que este está revestido de considerável importância na discussão em torno das políticas estatais de migração.  Através deste estudo, a Relatoria pretende apresentar algumas das conclusões dos especialistas no tema como um ponto de partida para iniciar o debate em relação à proteção dos direitos econômicos e sociais dos trabalhadores migrantes e suas famílias.

80.          O tema dos efeitos econômicos da migração não somente é controversial, porque diversos grupos o usam como bandeira de luta para promover sua visão particular frente ao mesmo, mas também porque não existem estudos que tenham produzido evidência conclusiva sobre as repercussões econômicas da migração, tanto em países receptores como emissores. Como os grupos ou partidos políticos a favor ou contrários à migração,  economistas, cientistas políticos e sociólogos dedicados a estudar o tema se mostram bastante divididos a respeito. Por outra parte, desentranhar as consequências econômicas da migração é uma tarefa extremamente difícil dada a complexidade da economia atual caracterizada por um alto nível de interconexão, interdependência e sofisticados níveis de tecnologia. Se isto não fosse suficiente, estudos deste tipo se dificultam pela falta de informação adequada que permita realizar investigações que produzam evidência irrefutável sobre os efeitos da migração na economia. Outra debilidade dos estudos nesta matéria é que estes foram, em sua grande maioria, levados a cabo em países desenvolvidos, motivo pelo qual não existe demasiada informação sobre as consequências da imigração em países receptores não desenvolvidos. Não foram realizados muitos estudos sobre o impacto econômico da emigração em países emissores. [30]

81.          Neste sentido, até agora as investigações sobre as repercussões econômicas da migração somente foram capazes de apresentar evidência parcial sobre certas indústrias, setores, ou regiões em alguns países. Segundo um relatório publicado pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD) que revisou toda a literatura sobre o tema entre 1970 e 1993, os especialistas dedicados a estudar as repercussões econômicas da migração somente coincidem em duas coisas: primeiro, que não existe evidência conclusiva sobre o assunto e que todos os estudos apresentam debilidades; e segundo, que mais além de ser negativo ou positivo, o efeito da migração sobre a economia à nível agregado é marginal.[31]

82.          Para situar o debate atual, e dada a importância que o tema tem para os direitos humanos dos trabalhadores migrantes e suas famílias, a seguinte seção do relatório examina de maneira bastante sucinta o debate da literatura especializada em torno das consequências econômicas da migração. Com respeito aos países receptores, se discute sobre a incidência da migração em três aspectos: (a) salários e emprego; (b) o sistema de segurança social; e por último (c) crescimento econômico. Com respeito aos países emissores, são examinados os seguintes pontos: (a) o efeito das remessas; e (b) o êxodo de capital humano (fuga de cérebros).

Efeito Econômico da Migração nos Países Receptores 

Emprego e salários

83.          Sem dúvida um dos argumentos mais recorrentes em torno do efeito econômico da migração é que esta afeta negativamente as taxas de emprego e as remunerações nos países receptores. A lógica deste argumento é a seguinte: ao imigrar a um país os trabalhadores migrantes entram em direta concorrência pelas vagas de trabalho com os trabalhadores locais. Como os trabalhadores migrantes estão muitas vezes dispostos a aceitar condições de trabalho inferiores, isto é, salários mais baixos, e estão impossibilitados de afiliarem-se à previdência social e aos sindicatos, os empregadores preferem porque deste modo podem reduzir seus custos de operação e incrementar a margem de lucro. Em termos práticos isto resulta que os trabalhadores migrantes deslocam os trabalhadores do país receptor e desta maneira aumentam o desemprego, incidindo negativamente no nível de salários do mercado, ou provocam simultaneamente desemprego e baixam o nível das remunerações no mercado do país receptor. Segundo esta visão, a migração é especialmente perniciosa durante ciclos recessivos ou de desaceleração econômica.

84.          Investigadores em diversos países estudaram o problema para confirmar a validez do argumento apresentado anteriormente. Neste sentido, a maioria dos estudos concluem que, em termos macroeconômicos, o impacto da migração sobre o emprego e a remuneração no mercado de trabalho é bem mais exíguo. Depois de revisar mais de uma dezena de estudos que abordam o tema e que foram realizados na Europa, Estados Unidos, Canadá e Austrália, a OECD conclui que, a nível macroeconômico, a chegada de trabalhadores migrantes tem efeitos leves, seja negativos ou positivos, sobre o nível de emprego e remuneração dos trabalhadores locais.[32]  Outro estudo da OECD que tratou de medir se a influência da migração afetava de maneira negativa a taxa de desemprego durante ciclos recessivos chegou a conclusões similares. Para comprovar a relação entre a chegada de trabalhadores migrantes e o emprego durante ciclos recessivos, os investigadores compararam o impacto migrante em dos períodos econômicos (um recessivo e outro de crescimento) em vários países pertencentes a OECD.[33] Deste modo, tentaram estabelecer se as taxas migratórias aumentavam o nível de desemprego. O estudo, porém, não encontrou evidência que indicara que a migração aumenta as taxas de emprego durante ciclos recessivos.[34]

85.          Ainda que exista evidência de que em termos macroeconômicos o impacto da imigração no mercado de trabalho e nas taxas de remuneração do país receptor é leve, muitos autores reconhecem que a imigração pode repercutir negativamente no nível de salários e nas taxas de emprego em certos setores ou indústrias específicas. De fatos, vários autores argumentam que são os próprios imigrantes as principais vítimas da chegada de novas pessoas, já que muitas vezes entram em direta concorrência entre eles, o que leva a que alguns deles percam postos de trabalho.[35]

86.          Mais importante que enunciar o que estabelecem os estudos, é vital explicar por quê a presença de trabalhadores migrantes não influi de maneira  determinante no nível de salários e nas taxas de desemprego a nível macroeconômico. Para isto é necessário abordar vários pontos.

87.          Em primeiro lugar, as taxas de desemprego e o nível de salários estão mais relacionados com ciclos econômicos e com a estrutura da economia, e não com o  número de pessoas ou densidade populacional. Em outras palavras, mais que o número de pessoas, a estrutura econômica e as capacidades dos trabalhadores migrantes e os locais realmente determinam se o mercado poderá absorver de forma eficaz a mão de obra estrangeira sem deprimir as taxas de emprego e remuneração.[36]

88.          Em segundo lugar, os argumentos que indicam que a imigração repercute de forma negativa nas taxas de emprego e salários partem da falácia que trabalhadores nacionais e estrangeiros são substituíveis (ou seja, que um estrangeiro realiza o mesmo trabalho que um nacional) e não complementar (isto é, que um estrangeiro ocupe vagas que não são preenchidas pelos nacionais). Os investigadores enfatizam que este nem sempre é o caso e que, em geral, os trabalhadores migrantes complementam e não substituem os trabalhadores locais. Neste sentido, é vital recordar que na maioria dos países receptores, os nacionais simplesmente não estão dispostos a fazer certos tipos de trabalhos em razão de sua periculosidade ou do tipo de tarefa (por exemplo trabalhos fisicamente extenuantes como a construção e a colheita de produtos agrícolas). Portanto, é bastante comum que os trabalhadores migrantes ocupem vagas que ao são preenchidas pela força de trabalho local.

89.          A este respeito, Castles e Miller indicam que, em geral, a imigração tem efeitos bastante dispares sobre distintos grupos ou estratos sociais insertos no  mercado de trabalho. Isto tem relação com a segmentação do mercado trabalhista e com a característica dual dos fluxos migrantes. Em geral, os trabalhadores migrantes possuem alto nível de instrução, e portanto, ocupam vagas de trabalho no estrato mais alto do mercado de trabalho (tais como médicos, advogados, altos executivos, funcionários de organismos internacionais e investigadores) ou, pelo contrário, tem um nível de instrução mais limitado, e portanto ocupam vagas de trabalho de nível mais baixo do mercado (em certos serviços que não requerem mão-de-obra qualificada ou a construção e agricultura). Castles e Miller indicam que os imigrantes com instrução em geral não tem dificuldade em encontrar trabalho porque tendem a ter habilidades complementárias à força de trabalho nativa e por esta razão não competem pelas mesmas vagas de trabalho. Os trabalhadores migrantes sem instrução, pelo contrário, explicam estes autores, tendem em geral a competir por postos contra trabalhadores locais de menor qualificação que trabalham no setor primário, serviços e na indústria de máquinas. Dado que estas pessoas competem, em muitas ocasiões com os trabalhadores migrantes, estes podem subtrair postos de trabalho da população local. Em outras palavras, os trabalhadores locais com pouca qualificação são os setores mais afetados em termos de remuneração e trabalho pela chegada de imigrantes.[37]

90.          Em relação com o índice de desemprego, ao menos em países desenvolvidos, as pessoas sem  trabalho muitas vezes preferem cobrar o seguro de desemprego ou continuar buscando emprego até encontrar uma vaga que lhes acomode antes que aceitar certos trabalhos considerados pouco atrativos ou muito pesados. Portanto, a presença de trabalhadores migrantes dispostos a tomar vagas de trabalho que os nacionais não desejam não repercute negativamente na situação de emprego local. Como indicado acima, trabalhadores estrangeiros podem trazer certos talentos (conhecimento de idiomas, experiência, formação) ou contar com uma especialização que é escassa e muito apreciada pela economia local como hoje em dia são os conhecimentos em programação e tecnologia da informação.[38]

91.          Em terceiro lugar, os imigrantes não somente subtraem postos de trabalho como também os criam. Por um lado, a presença destas pessoas incrementa o nível de consumo agregado de bens como serviços e, portanto, gera fontes de trabalho. Neste sentido, ao redor das comunidades de migrantes é criada uma vasta rede de serviços que emprega tanto a nacionais como a estrangeiros. Por outro lado, os trabalhadores migrantes tendem a caracterizar-se por um espírito empreendedor, muitas vezes formam seus próprios negócios e empresas que geram fontes de emprego.[39]

92.          Em quarto lugar, ao assumir certos trabalhos domésticos, em particular o cuidado de crianças, os trabalhadores migrantes podem indiretamente ajudar a trabalhadores locais a reintegrarem-se ao mercado de trabalho. Em outras palavras, a presença de trabalhadores migrantes que se encarregam deste tipo de trabalho libera mão-de-obra local, sobretudo mulheres muitas vezes qualificadas, que de outra maneira não poderiam adentrar ao mercado de trabalho. Isto é particularmente relevante em países nos quais não existe programas estatais ou subsidiados para o cuidado de crianças em idade pré-escolar.[40]

93.          Em quinto lugar, a presença de trabalhadores migrantes dispostos a aceitar uma remuneração baixa ajuda a manter funcionando certas empresas locais que necessariamente deveriam  investir em tecnologia para manter linhas de produção competitivas. Graças a presença de trabalhadores migrantes, estas empresas não se vêem obrigadas a investir em tecnologia e não quebram.  Deste modo não se perdem os postos de trabalho em mãos de trabalhadores locais que se desempenham  comandos médios e altos destas empresas.[41]


 

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[20] Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relatório Nº 51/01, Caso 9903, 4 de abril de 2001.

[21] Ibid., parágrafo 39.

[22] CIDH, Relatório sobre a Situação de direitos humanos das pessoas que buscam asilo dentro do sistema canadense de determinação da condição de refugiado, 28 de fevereiro de 2000, parágrafos 134 - 142, citado em Ibid.

[23] Corte Européia de Direitos Humanos, Caso Winterwerp, Sentença de 24 de outubro de 1979, Séries A Nº 32 2 E.H.R.R. 387, citado em Ibid.

[24] Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relatório Nº 09/99, Caso 10.951, 29 de setembro de 1999.

[25] Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relatório Nº 51/01, Op. cit, parágrafo 211.

[26] Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relatório Nº 49/99. Caso 11.610, 13 de abril de 1999, citado em Ibid, parágrafo 212.

[27] Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relatório Nº 51/01, Op. cit, parágrafo 219.

[28] Ibid, parágrafo 241.

[29] Para ver o texto da resposta do Estado, ver o Relatório de Fundo deste caso no Relatório Anual da Relatoria de 2001.

[30] Simon, Julian. 1994. “On the Economic Consequences of Immigration: Lessons from Immigration Policies.” In Economic Aspects of International Migration, edited by Herbert Giersch. Berlin: Springer- Verlag, pág. 223.

[31] Tapinos, Georges. 1993. “The Macroeconomic Impact of Immigration: Review of the Literature Published Since the Mid 1970s”, in Trends in International Migration. Paris: OECD, pág. 157-77.

[32] Tapinos, Op. Cit. , pág. 161. 

[33] Os países selecionados foram: Estados Unidos, Luxemburgo, Noruega, Suíça, França, Reino Unido e Japão.

[34] SOPEMI. 1997. Trends in International Migration. Paris: OECD

[35] Stalker, Peter.  2001. The No-Nonsense Guide to International Migration. Oxford: New Internationalist Publications; Stalker, Peter. 2000. Workers Without Frontiers: The Impact of Globalization on International Migration. Boulder. CO. Lynne Rienner Publishers, pág. 84-90.

[36] Stalker 2001, Op. Cit., pág., 72-76. Sassen, Saskia. 1998. The Mobility of Labour and Capital. Cambridge: Cambridge University Press,. pág. 91.

[37] Stephen Castles e Mark J. Miller. 1998. The Age of Migration (2nd edition). New York: The Guilford Press, pág. 166.

[38] Castles e Miller, Op. Cit., pág. 166-7; Stalker 2001, Op. Cit., pág. 66

[39] Simon, Op., Cit., pág. 230-33.

[40] Stalker 2001, Op. Cit., pág. 75-77.

[41] Ibid., pág., 73-5.