RELATÓRIO Nº 66/01*

CASO 11.992

DAYRA MARÍA LEVOYER JIMÉNEZ

EQUADOR

14 de junho de 2001

I.           RESUMO

1.         Mediante a petição recebida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada "a Comissão" o "CIDH") em 29 de dezembro de 1997, a Comissão Ecumênica de Direitos Humanos (doravante denominada "o peticionário") apresentou uma denúncia contra o Estado do Equador (doravante denominado "Equador" ou "o Estado"), pela violação dos direitos humanos da senhora Dayra María Levoyer Jiménez.  O peticionário alega que a senhora Levoyer Jiménez foi detida em 21 de junho de 1992, sem ordem judicial e mantida incomunicável por 39 dias, durante os quais foi submetida a torturas psicológicas.  Permaneceu detida sem condenação por mais 5 anos e teve todos os processos abertos contra ela suspensos. 

2.         Durante sua detenção, a senhora Levoyer interpôs numerosas ações de habeas corpus que não tiveram êxito. Finalmente, em 16 de junho de 1998, o Tribunal Constitucional, ao resolver uma apelação referente ao último dos habeas corpus impetrados, decidiu conceder-lhe liberdade, com base na duração prolongada da prisão preventiva. O peticionário sustenta que a detenção e posterior prisão durante mais de cinco anos da senhora Levoyer Jiménez deve-se exclusivamente ao fato de ser a companheira de Hugo Jorge Reyes Torres,[1] quem foi acusado de liderar um poderoso grupo de narcotraficantes no Equador.  Alega ademais, que o Estado violou seu direito de propriedade, pois até esta data não lhe foram devolvidos os bens sequestrados no momento de sua detenção.

3.         Em consequência, o peticionário alega que o Estado violou os direitos à  integridade física, à liberdade pessoal, ao devido processo legal , à propriedade e ao acesso a um recurso simples e rápido para o reconhecimento de seus direitos, consagrados nos artigos 5, 7, 8, 21 e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada “a Convenção" ou "a Convenção Americana").  O Estado argumenta que os recursos da jurisdição interna não foram esgotados. 

4.         Durante seu 106° período ordinário de sessões e mediante o Relatório 29/00 (7/03/00), a Comissão declarou admissível o presente caso relativo às alegadas violações dos artigos 5, 7, 8 e 25 da Convenção Americana.  A Comissão também decidiu postergar para o relatório de fundo a parte relativa à admissibilidade da denúncia pela suposta violação do artigo 21 em concordância com os artigos 8 e 25 da Convenção.  Após a análise dos fatos, a Comissão, no presente relatório, conclui que o Estado equatoriano violou os artigos 5, 7, 8 e 25  da Convenção Americana.

II.          TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

5.         Em 19 de março de 1998, a Comissão procedeu à abertura do Caso N° 11.992. Após dar o trâmite correspondente, a Comissão emitiu, em 7 de março de 2000, o Relatório 29/00 sobre admissibilidade, mediante o qual determinou que era competente para analisar o fundo do caso.  Neste relatório a Comissão decidiu ademais, postergar para o relatório de fundo a questão de admissibilidade da denúncia quanto à suposta violação do artigo 21 em concordância com os artigos 8 e 25 da Convenção.

6.         Entre os meses de fevereiro e dezembro de 1999, antes de aprovar o relatório de admissibilidade, a Comissão colocou-se à disposição das partes para alcançar uma solução amistosa.  Em seu Relatório 29/00 sobre admissibilidade, a Comissão colocou-se novamente à disposição das partes com o fim de chegar a uma solução amistosa do caso conforme os princípios consagrados na Convenção Americana.  O peticionário, por carta de 7 de abril de 2000, manifestou que a tentativa anterior de conseguir uma solução amistosa havia sido infrutífera, motivo pelo qual solicitou a Comissão continuar com a análise de fundo do caso.  O Estado não se pronunciou sobre este ponto.

III.      POSIÇÃO DAS PARTES

A.          Posição do Peticionário

7.         Segundo a denúncia apresentada a Comissão, em 21 de junho de 1992 a senhora Dayra Levoyer Jiménez foi detida sem ordem judicial, durante a chamada "Operação Ciclone”, uma operação policial na qual foram detidas grandes quantidades de pessoas suspeitas de pertencer a um grupo de narcotraficantes.  No momento de sua detenção, não lhe foi  informada a causa de sua detenção.  Ela foi mantida incomunicável por 39 dias, durante os quais sofreu torturas psicológicas, com o objetivo de obrigá-la a realizar uma declaração.  A ordem de detenção contra ela foi emitida pelo intendente de polícia depois de sua detenção, em 30 e 31 de julho de 1992, indiciando-na como responsável dos delitos de narcotráfico,  enriquecimento ilícito, conversão dos bens e de ser testa-de-ferro.  O  Juiz penal de Pichincha emitiu uma ordem de detenção em 11 de agosto do mesmo ano, quase dois meses depois de sua detenção. O peticionário alega que a falta de ordem judicial, bem como a falta de cumprimento dos prazos e os requisitos estabelecidos pela lei, constituem uma detenção ilegal e arbitrária em violação do artigo 7 da Convenção.  Alega ainda que a detenção por 39 dias em condições de incomunicabilidade violou o prazo estabelecido na legislação interna e também o artigo 7(2) da Convenção, bem como o artigo 5 do mesmo tratado, por constituir um trato cruel, desumano e degradante.

8.   Como consequência da ordem de detenção, foram iniciados quatro processos que envolviam a senhora Levoyer Jiménez e outras pessoas.  Um dos acusados, o General de Divisão do  Exército, gozava de foro privilegiado.  Por esta razão, os processos foram remetidos a Presidência da Corte Superior de Quito.[2]  O Presidente da Corte Superior de Quito (doravante denominada  "a Corte Superior") levantou os autos de processo durante setembro e novembro de 1992 e confirmou a prisão preventiva nas quatro causas.  Em consequência determinou as ordens de detenção em 1º de dezembro do mesmo ano.

9.   No processo por enriquecimento ilícito, apesar da falta de acusação do promotor, o Presidente da Corte Superior editou o auto de apertura del plenário (início  da fase de instrução)  em 22 de novembro de 1996.  Este auto foi apelado e elevado à Quarta Sala da Corte Superior, que em 29 de abril de 1998 emitiu auto de sobreseimiento definitivo.  No julgamento por conversión de bienes, em 30 de setembro de 1996, o Presidente da Corte Superior emitiu sobrestamento provisório do feito e determinou a consulta de lei, que foi resolvida pela Quarta Sala da Corte Superior em 29 de abril de 1998, a qual também emitiu sobrestamento definitivo do feito.

10.   No momento de decidir a consulta nos dois últimos casos, a Quarta Sala da Corte Superior editou auto de sobreseimiento definitivo, baseado nos artigos 76 e 77 da Lei sobre Substâncias Entorpecentes e Psicotrópicas, que exigem como pressuposto para atribuir responsabilidade por estes delitos que se tenha cometido o delito de tráfico de drogas, o que não foi provado no presente caso.

11.   O Ministério Público interpôs recurso de cassação contra a decisão da Quarta Sala da Corte Superior, em ambos casos (enriquecimento ilícito e conversión de bienes).  Como o recurso de cassação foi denegado, o Promotor apresentou um recurso de fato.[3]  Segundo a informação proporcionada a Comissão, este último recurso encontrava-se em  trâmite em julho de 1998.  Em consequência, a resolução sobre o sobrestamento não era definitiva nestes casos.  O peticionário alega que, conforme a jurisprudência da Corte Suprema de Justiça sobre o recurso de cassação, a interposição deste recurso é improcedente, porque o Código de Procedimento o prevê unicamente contra sentenças dos tribunais penais que violaram a lei.[4]   Portanto, sustenta o peticionário, o recurso não procede contra resoluções de sobrestamento de uma sala da Corte Superior, como sucede no  presente caso.  Estas afirmações do peticionário não foram controvertidas pelo  Estado.

12.   Quanto ao processo por testaferrismo, o Presidente da Corte Superior dispôs a liberdade da senhora Levoyer em 29 de abril de 1996.  Em 23 de março de 1998 editou contra a senhora Levoyer Jiménez um auto de apertura del plenario, contra o qual interpôs recurso de apelação. A Primeira Sala da Corte Superior resolveu em 7 de julho de 1999 confirmar o sobrestamento e determinar que os bens seriam devolvidos no momento de proferir a sentença.  O peticionário alega, por conseguinte, a violação do direito de propriedade, uma vez que com o sobrestamento não será proferida a sentença e portanto a retenção dos bens tem  caráter de confisco. No processo por tráfico de drogas, em 19 de julho de 1995 foi emitido auto de sobreseimiento.  Elevado para consulta, a Sala Um da Corte Superior resolveu confirmar o sobreseimiento em 6 de abril de 1996.

13.   Na medida que a senhora Levoyer Jiménez teve seus processos sobrestados,  se emitia em seu favor uma ordem de liberdade.  Entretanto, essas ordens de liberdade não puderam ser executadas, já que o Código de Procedimento Penal estabelece que os autos de sobreseimiento devem ser obrigatoriamente elevados em consulta a Corte Superior.  Em consequência, as causas foram sucessivamente elevadas a diferentes salas da Corte Superior de Quito, conforme descrito supra.  Nos  casos que envolvem delitos contemplados na Lei sobre Sustâncias Entorpecentes e Psicotrópicas, o indiciado deve permanecer detido durante o tempo que dura a consulta, ainda que haja um sobrestamento em seu favor.  Sustenta o  peticionário que para qualquer outro delito, o indiciado teria recuperado sua liberdade antes que a resolução fosse elevada em consulta.

14.   Na comunicação de 10 de dezembro  de 1998, o peticionário informou que depois da detenção da senhora Levoyer Jiménez, além dos quatro processos já  mencionados, foram iniciados os seguintes processos:

  • Uma ação por porte ilegal de armas, no qual foi emitido o sobrestamento provisório em 7 de novembro de 1994.

  • Uma ação tributária, iniciada em 11 de março de 1994, na qual se emitiu um sobrestamento em 22 de dezembro de 1995.

  • Uma ação por conversión de bienes do Banco de Andes iniciada em 23 de junho de 1994, na qual se emitiu um auto de apertura del plenário em 23 de janeiro de 1998.

  • Uma ação por conversión de bienes do Banco Sociedade Geral de Crédito, iniciada em 30 de janeiro de 1996, na qual foi emitido um sobrestamento provisório em 1999 e elevada para consulta.

15.           Com relação a ação por conversión de bienes do Banco de Andes, a Segunda Sala da Corte Superior, depois de vários incidentes, remeteu a causa aos juizes dessa mesma sala, quem resolveram editar sobrestamento definitivo em 5 de julho de 1999. Aparentemente, a Sala percebeu que havia três causas por conversión de bienes a raiz da “Operação Ciclone” ", em violação da proibição de duplo julgamento .

16.           Durante o tempo em que esteve detida, a senhora Levoyer Jiménez interpôs numerosas ações de amparo ou habeas corpus judicial, com o objetivo de obter sua liberdade, alegando a  violação da Constituição, a lei e os tratados de direitos humanos, a saber: em 26 de julho de 1994, em 3 de abril de 1995, em março de 1996, em 18 de outubro de 1997 e em 18 de novembro de 1997.  Todos elas foram interpostas perante o Presidente da Corte Suprema de Justiça, sem que nenhum caso tenha sido resolvido pelo Presidente.  O peticionário argumenta que a interposição de quatro habeas corpus sem a correspondente resolução constitui a falta de acesso a um  recurso simples e rápido, e portanto configura uma violação do artigo 25 da Convenção. 

17.   Em 15 de abril de 1998 foi impetrado um novo  habeas corpus, em que  se solicitou ao prefeito de Quito[5] a imediata liberdade da senhora Levoyer. A petição foi denegada em 21 do mesmo mês,  e motivou uma apelação que foi apresentada em 24 de abril de 1998, perante o Tribunal Constitucional. 

18.   A Segunda Sala do Tribunal Constitucional, ao resolver em 16 de junho de 1998, considerou configurado o excesso dos prazos da lei 04,[6] revogou a decisão da prefeitura e ordenou a liberdade da senhora Levoyer Jiménez.  O Tribunal Constitucional assinalou que a exceção que a Lei sobre Sustâncias Entorpecentes e Psicotrópicas fazia quanto à aplicação do artigo 114.1 do Código Penal, para os casos de delitos contemplados nesta lei, havia sido declarada inconstitucional por esse mesmo Tribunal, mediante resolução Nº 119-1-97 de 24 de dezembro de 1997, em consequência, não se encontrava vigente.  Com base nesses fundamentos, o Tribunal considerou cumpridos os prazos do artigo 114.1 e ordenou a liberdade de Dayra María Levoyer Jiménez, que foi efetivada um dia mais tarde.

  19.          A senhora Levoyer Jiménez recuperou sua liberdade em junho de 1998, seis anos depois de ter sido detida.  Até o momento, teve todas as acusações contra ela suspensas pela impronúncia.  O peticionário alega que a detenção em prisão preventiva por um lapso de cinco anos, viola o artigo 7(5) da Convenção, por ser um tempo excessivo, violando também o princípio de presunção de inocência.  Alega que a duração dos processos que até esta data não foram finalizados, excedeu o prazo razoável de duração de um  processo, estabelecida pelo artigo 8(1) da Convenção Americana.

20.    Por último, o peticionário alega a violação do artigo 21 da Convenção, tendo em vista que os bens da senhora Levoyer Jiménez que foram sequestrados no momento da sua detenção, não foram ainda devolvidos.

B.           Posição do Estado

21.   Em 27 de junho de 1998, a CIDH recebeu a resposta do Estado, o qual argumenta que não há violação dos direitos humanos no presente caso porque não foram esgotados os recursos da jurisdição interna. 

22.  O Estado alega que o  artigo 249 do Código de Procedimento Penal estabelece que, depois de editado o auto de sobreseimiento provisório, a fase de instrução  fica suspensa por cinco anos, prazo durante o qual podem ser apresentadas novas provas a respeito da inocência ou culpabilidade do acusado.  Além disso, o artigo 252 do mesmo Código dispõe que, depois de cumprido esse prazo sem que tenha sido reaberto o procedimento, o juiz expedirá o auto de sobreseimiento definitivo.

23.   Consequentemente, o  Estado considera que, tendo em vista que os prazos previstos no artigo 249 encontram-se em curso e seja aplicável o encerramento da fase de instrução previsto no art. 252, recursos internos não foram esgotados.  No mesmo sentido, assinala que no processo de enriquecimento ilícito foi editado auto de abertura de plenário e, por esta razão o procedimento interno não foi finalizado.

24.    O Estado informou que existem contra a senhora Levoyer os seguintes processos (dados de 14 de maio de 1998):

  • Ação 91-92 por enriquecimento ilícito. Foi expedido auto de apertura del plenario como co-autora em 25 de novembro de 1996, e encontra-se em fase de apelação na Quarta Sala da Corte Superior de Quito.

  • Ação 92-92 por testa-ferrismo. Foi expedido auto de apertura del plenario como co-autora em 23 de março de 1998, e encontra-se em fase de apelação e consulta.

  • Ação 93-92 por tráfico de drogas. Foi expedido auto de sobreseimiento provisório do processo e da acusada em 19 de julho 1995, e encontra-se em consulta e fase de apelação na Primeira Sala da Corte Superior de Quito.

  • Ação 94-92 por conversión e transferência de bens. Foi expedido o auto de sobreseimiento definitivo, e interposto recurso de cassação pelo  Ministério Público de Pichincha.

  • Ação 76-94 por lavagem de dinheiro. Foi expedido o auto de apertura del plenario como co-autora em 20 de janeiro de 1998, e encontra-se em fase de apelação na Segunda Sala da Corte Superior de Quito.

Conforme o descrito acima, já foi expedido auto de sobreseimiento na maior parte das causas.

IV.      ANÁLISE SOBRE O FUNDO

25.      A Comissão passa a analisar se no presente caso houve a violação dos direitos a liberdade e a integridade pessoais, as garantias judiciais, o direito a propriedade e ao acesso a um recurso judicial simples e efetivo, consagrados nos artigos 1, 5, 7, 8, 21 e 25 da Convenção Americana.

1.           O direito a liberdade e a integridade pessoal

i.           A legalidade da detenção  -  Violação do artigo 7(2) e 7(3)

26.    Segundo surge da informação e a prova documental aportada pelas partes, Dayra María Levoyer Jiménez foi detida em 21 de junho de 1992 aproximadamente as 13:00 horas, por um grupo de 15 pessoas civis e à paisana, quem não se apresentaram como membros da polícia e não tinha em seu poder nenhuma ordem da autoridade competente.  Nos dias 30 e 31 de julho de 1992, o Intendente de Polícia emitiu  uma ordem para sua detenção pelos delitos de narcotráfico, testaferrismo, enriquecimento ilícito e conversión de bienes.  Entre 11 e 13 de agosto de 1992, os quatros juízes que conheceram cada uma das causas emitiram as correspondentes ordens de detenção.

27.    O peticionário alega que estes fatos configuram uma detenção ilegal e arbitrária, em contravenção ao artigo 7(2) e 7(3) da Convenção Americana, bem como da legislação vigente no Equador.

28.    Em resposta, o Estado não se referiu especificamente a detenção sem ordem judicial, mas sustentou em termos gerais que: "Os tribunais nacionais atuaram dentro da esfera de sua competência nos processos… contra a peticionária, com celeridade na decisão dos diversos e complexos assuntos que este tipo de ação implica… Por isso, essa ilustre Comissão deve verificar os procedimentos para estabelecer que os direitos referentes ao devido  processo e liberdade da peticionaria foram respeitados na forma estabelecida por essa Comissão e pela Corte".[7]

29.  A Convenção Americana estabelece em seu artigo 7(2) e (3):

2. Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições fixadas de antemão pelas Constituições Políticas dos Estados partes ou pelas leis editadas conforme estas.

3.  Ninguém pode ser submetido a detenção ou prisão arbitrárias.

30.          Por conseguinte, é prudente estabelecer em primeiro plano quais são as  “condições fixadas de antemão pela lei”, se essas condições fixadas pela lei estão de acordo com as normas da Convenção e finalmente se foram  respeitadas no caso em questão.

31.          A Comissão passa a analisar então quais são as condições estabelecidas na legislação interna para levar a cabo uma detenção.  Neste sentido, o texto da Constituição Política do Equador, vigente no momento da detenção, estabelecia no seu artigo 22(19)(h):

Ninguém será privado de sua liberdade sem ordem escrita de autoridade competente, nos casos, pelo tempo e com as formalidades prescritas pela lei salvo delito flagrante, em cujo caso tampouco poderá ser mantido sem ação por mais de vinte e quatro horas. Em qualquer dos casos, não poderá ser incomunicável por mais de vinte e quatro horas.

32.          Da mesma forma, o artigo 172 do Código de Procedimento Penal equatoriano estabelece a detenção provisória nos seguintes termos: "antes de iniciada a respectiva ação penal, o Juiz competente poderá ordenar a detenção de uma pessoa, seja por conhecimento pessoal ou relatórios verbais ou escritos dos agentes da Polícia Nacional ou da Polícia Judicial ou de qualquer outra pessoa…".

33.          A lei equatoriana estabelece ademais, no artigo 56 do Código de Processo Penal, que somente pode proceder a detenção sem ordem judicial em caso de delito flagrante ou grave presunção de responsabilidade.  O citado artigo em seu numeral 6, estabelece como uma das funções da Polícia Judicial:

ordenar e executar a detenção provisória da pessoa surpreendida em flagrante delito ou contra a que existam graves presunções de responsabilidade e por dentro das quarenta e oito horas seguintes às ordens do respectivo juiz de instrução.

34.            O Estado não alegou ou apresentou elementos que demonstrem que a senhora Levoyer Jiménez foi detida em flagrante delito, circunstância que justificaria uma detenção sem ordem judicial.  Portanto a Comissão entende que a detenção foi realizada em aplicação ao princípio de “grave presunção de responsabilidade”.

35.          Cabe analisar o padrão de “grave presunção de responsabilidade” e sua adequação com a lei fundamental equatoriana. Embora seja competência dos tribunais locais estabelecer a constitucionalidade das normas que compõe seu direito interno, a Comissão se encontra facultada para analisar estas normas se sua formulação ou aplicação pode ser contrária as normas da Convenção.

36.          A Constituição equatoriana estabelece as circunstâncias formais para proceder a uma detenção, isto é, por ordem de autoridade competente, salvo no caso de flagrante.  A Constituição não estabelece nenhuma outra situação, fora do flagrante, na qual a ordem de autoridade competente não seja necessária.  O Código de processo penal, porém, vai mais adiante da norma constitucional ao estabelecer uma nova causal de detenção sem ordem de autoridade competente. A Comissão considera que a lei não prescreve as circunstâncias objetivas que configurariam uma  "grave presunção de responsabilidade", deixando sua definição ao livre arbítrio do agente policial que leva a cabo a detenção.

37.          A Comissão entende que esta norma está também em contradição com a Convenção, já que permite que uma detenção dependa da apreciação subjetiva do agente de polícia que a executa.  A Comissão entende que o requisito de tipicidade contido na obrigação de "fixar de antemão" as condições de detenção, requer que a lei defina as causas e condições em que uma detenção possa ser levada a  cabo, de  forma pormenorizada e precisa. Isto não se satisfaz com uma previsão genérica e indefinida como "graves presunções de responsabilidade".

38.          Por conseguinte, a Comissão considera que a detenção da senhora Levoyer Jiménez em 21 de junho de 1992 foi realizada sem ordem judicial, em circunstâncias que não habilitam uma exceção a necessidade de uma ordem judicial ordenada pela Constituição. Segundo a informação aportada no presente caso, a primeira ordem de detenção foi emitida em 30 de junho de 1992, ou seja,  39 dias depois da detenção, pelo  Intendente de Polícia.  A primeira ordem de detenção emitida pelo Juiz foi feita em  11 de agosto de 1992,  51 dias depois da detenção. O Estado não apresentou nenhum documento que contradiga estas afirmações.  Portanto, cabe concluir que a detenção da senhora Levoyer Jiménez não foi feita pelas causas e sob as  condições estabelecidas na legislação doméstica, e que ela foi arbitrariamente detida em violação aos artigos 7(2) e 7(3) da Convenção Americana.

39.          Adicionalmente, a Comissão observa que a legislação doméstica estabelece um prazo máximo para a incomunicabilidade durante a detenção. O artigo 22(19)(h) da Constituição Política do Equador assinala que esta não pode exceder as 24 horas de duração. Com base nestes elementos, a Comissão conclui que a senhora Levoyer Jiménez, detida em 21 de junho, e trasladada a um centro de detenção em 30 de julho de 1992, permaneceu detida e incomunicável nas dependências policiais, por um lapso de 39 dias.  Isto gerou uma violação do artigo 7(2) da Convenção Americana, pois não foram obedecidas as condições fixadas pela lei, mas infringiu-se o disposto na legislação equatoriana que estabelece que a incomunicabilidade não pode passar as 24 horas.

40.        Por último, a Comissão destaca que dos elementos aportados pelas partes surge que a senhora Levoyer Jiménez cumpriu seu período de incomunicabilidade nas dependências da Polícia. Segundo o estabelecido pela Corte Interamericana, as dependências policiais não podem ser consideradas como adequadas para alojar pessoas detidas de forma preventiva.[8]

ii.            Privação da liberdade pessoal  -  Violação dos artigos 7(5) e 2

41.          Segundo surge da documentação aportada pelas partes, a senhora Levoyer Jiménez  foi detida em 21 de junho de 1992, e permaneceu detida provisoriamente até junho de 1998. Desde o momento de sua detenção, permaneceu 51 dias sem ser levada perante uma autoridade judicial. O peticionário alega que estes fatos constituem uma violação do artigo 7(5) da Convenção Americana.

42.          O artigo 7(5) da Convenção estabelece:

Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, perante um juiz ou outro funcionário autorizado por lei para exercer funções judiciais, e terá direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou ser posta em  liberdade, sem prejuízo de que prossiga o seu processo. Sua liberdade poderá estar condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.

43.            Esta norma convencional reflete o dever do Estado de compatibilizar sua obrigação de garantir o império da lei e a determinação da responsabilidade penal através do poder judicial, e garantir os direitos fundamentais das pessoas acusadas de transgredir as normas penais vigentes. O Estado tem a tarefa de manter um equilíbrio entre o interesse geral de reprimir o delito e dar acesso efetivo a justiça as vítimas e o interesse, também geral, de que sejam respeitadas as salvaguardas que o direito mesmo prevê em favor dos acusados.

44.            Com efeito, o princípio de inocência implica que, no caso em que resultar necessária a privação da liberdade durante o transcurso de um processo, a posição jurídica do acusado continua sendo a de inocente. "Entende-se que a previsão do artigo 7(5) da Convenção [Americana] exige que, uma vez iniciado o processo e detido o acusado, se  existe a necessidade de privá-lo de sua liberdade, a ação pública deve ocorrer, senão de imediato, ao menos em um tempo curto…".[9]   Depois deste breve lapso, o Estado tem o direito de continuar o processo, mas a previsão do artigo requer que o acusado seja posto em liberdade.

45.            Isto, porém, é mais evidente em um caso de impronúncia, ainda quando este não seja definitivo por estar pendente de uma consulta. Com efeito, o princípio de inocência implica que a privação de liberdade de uma pessoa com caráter preventivo, suponha "… a grande probabilidade da existência de um fato punível atribuído ao acusado ou, com palavras distintas mas com sentido idêntico, a probabilidade de uma condenação…".[10]   É evidente que a existência de um impronúncia distancia ao Estado da certeza de culpabilidade que justifica a manutenção da medida de prisão preventiva.

46.            Como princípio geral, as pessoas sobre quem pesam uma acusação penal somente podem ser objeto de uma restrição a sua liberdade mediante sentença baseada em juízo durante o qual hajam tido a oportunidade de defenderem-se. O processo para a determinação da inocência ou culpabilidade dos acusados deve substanciar-se em um prazo razoável de modo de não vulnerar o direito à segurança e liberdade destas pessoas.  A restrição desses direitos além dos parâmetros estabelecidos pela lei e as margens de razoabilidade com a desculpa de preservar a suposta eficácia da investigação, implica favorecer a presunção de que as pessoas que se encontram detidas como resultado dessa investigação são culpáveis.[11]

47.            Uma presunção desse tipo não somente é contrária à letra da Convenção Americana mas aos princípios gerais do direito que o tratado codificou e que tenha sido recorrido  na legislação interna do Equador.  A obrigação do poder judicial de fazer o que está a seu alcance para cumprir com estas normas e proteger o equilíbrio entre interesses é parte da própria essência do Estado de Direito: o funcionamento efetivo de um aparato de justiça na qual todos os cidadãos possam depositar sua confiança, seja qual fora a circunstância.

48.            No caso sob exame, o Estado não aportou elemento algum que tende a justificar a imposição de uma medida de privação de liberdade baseada no risco de fuga ou a gravidade da infração ou da pena.

49.            O artigo 7(5) da Convenção consagra o julgamento dentro de um prazo razoável como parâmetro para a restrição da liberdade pessoal no contexto do processo penal.  A determinação de até quando pode ser estendida razoavelmente esta restrição requer uma análise  caso por caso.[12]  Para estes efeitos, a Comissão adota um teste mediante o qual deve determinar-se, em primeiro lugar, se a privação de liberdade sem condenação está justificada a luz de critérios pertinentes e suficientes, determinados de maneira objetiva e razoável pela legislação preexistente; e em segundo lugar, se as autoridades procederam com especial diligência na instrução do processo judicial.  Na hipótese de se comprovar que a detenção e a duração do processo não estão justificadas, deve proceder-se a restituir a liberdade ao acusado, ao menos de forma provisória,[13]  para o qual podem ser adotadas as medidas que garantem seu comparecimento em juízo.

50.            Com relação ao conteúdo dos critérios de pertinência e suficiência cabe reiterar que, em princípio, a privação provisória de liberdade somente se justifica em relação proporcional ao risco de que o acusado possa fugir, desprezando-se outras medidas não privativas de liberdade que pudessem ser adotadas para assegurar seu comparecimento em juízo ou com relação a periculosidade do acusado.

51.            A gravidade da infração e a severidade da pena são elementos que podem ser considerados no momento de avaliar o risco de que a pessoa acusada possa fugir da justiça.  A privação de liberdade sem sentença, entretanto, não deveria estar baseada exclusivamente no fato de que o detido é acusado de um delito particularmente punível do  ponto de vista social. A adoção de uma medida cautelar privativa de liberdade não deve converte-se em um substituto da pena de prisão.[14]

52.            No presente caso, não foi alegado expressamente nem foram aportados elementos que demonstrem que a senhora Levoyer Jiménez  recorreu aos mecanismos processuais estabelecidos pela lei com o propósito de obstruir o desenvolvimento do processo.

53.            Quanto a conduta das autoridades judiciais, esta será examinada à luz das normas de procedimento vigentes, ao mesmo tempo em que se analisa se houve violação do direito a um julgamento em um prazo razoável, segundo estabelece a Convenção em seu  artigo 8(1).

54.            Além da razoabilidade da prisão preventiva, neste caso o direito interno prevê parâmetros objetivos de duração.  Com efeito, o direito equatoriano é uma das legislações domésticas que prevêem prazos máximos para a prisão preventiva.

55.            Desta forma, o artigo 114 do Código Penal equatoriano, vigente no momento da detenção de Dayra María Levoyer, contempla:

As pessoas que tiverem permanecido detidas sem ter recebido auto de sobreseimiento ou de apertura al plenario por um tempo igual ou maior a terceira parte do estabelecido pelo Código Penal como pena máxima pelo delito pelo qual estiverem sendo acusadas serão postas imediatamente em liberdade pelo  juiz que conheça o processo.

De igual modo as pessoas  que tiverem  permanecido detidas sem ter recebido sentença, por um tempo igual ou maior a metade do estabelecido pelo Código Penal como pena máxima pelo delito pelo qual estiverem acusados, serão postas imediatamente em liberdade pelo tribunal penal que conheça o processo

Estão excluídos destas disposições aqueles que estiverem acusados de delitos punidos com a Lei sobre Substâncias Entorpecentes e Psicotrópicas.

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* O doutor Julio Prado Vallejo, de nacionalidade equatoriana, não participou da discussão e decisão neste caso, em cumprimento ao artigo 17 do Regulamento da Comissão.

[1] O senhor  Jorge Hugo Reyes Torres também foi detido na chamada  "Operação Ciclone".

[2] O artigo 5.5 do Código de Procedimento Penal do Equador estabelece que "quando entre vários indiciados de uma infração houver algum que goze de foro especial , o juízo especial será de todos os indiciados…".  O artigo 11 do mesmo Código estabelece que "O Presidente da Corte Suprema e os Presidentes das Cortes Superiores serão juízes de instrução nos casos de foro que, de acordo com a lei, lhes corresponda conhecer ”.  Uma das pessoas investigadas juntamente com a senhora Levoyer era o General de Divisão do Exercito equatoriano.  As infrações imputadas aos Oficiais das Forças Armadas determinam a existência de foros de Corte, ou seja, lhes corresponde uma jurisdição especial, e portanto, segundo a norma transcrita, determinam a competência privativa do Presidente da Corte Superior para julgá-los  (Lei de Pessoal das Forças  Armadas, Lei Orgânica da Função Judicial e Código de Procedimento Penal).

[3] O  recurso de fato está previsto no artigo 395 do Código de Procedimento Penal, nos seguintes termos: "O recurso de fato será concedido quando o Juiz do Tribunal Penal tiver negado os recursos oportunamente interpostos e que se encontram expressamente assinalados neste Código".  Portanto, ao denegar um recurso de Cassação, é pertinente a interposição de um recurso de fato, a fim  de que o tribunal superior, neste caso, a Corte Suprema, decida sobre a procedência do recurso.

[4] O artigo 373 do Código de Procedimento Penal estabelece que "O recurso de cassação será procedente perante a Corte Suprema de Justiça quando na sentença tiver sido violada a Lei, por transgredir expressamente seu texto; por ter sido feita uma falsa aplicação da mesma; ou por tê-la interpretado erroneamente".

[5] O artigo 93 da Constituição Política do Equador estabelece que o habeas corpus será exercido  "… perante o prefeito sob cuja  jurisdição se encontre, ou perante aquele que o substitua …".

[6] A lei 04 reformou o Código Penal adicionado o artigo 114.1 que textualmente estabelece: "as pessoas que estiverem detidas, sem ter recebido auto de sobreseimiento ou de apertura al plenario por um tempo igual ou maior a terceira parte do estabelecido pelo Código Penal como pena máxima para o delito pelo qual  estiverem acusados, serão postas em liberdade pelo  juiz que conheça o processo.  De igual modo as pessoas  que tiverem  permanecido detidas sem ter recebido sentença, por um tempo igual ou maior a metade do estabelecido pelo Código Penal como pena máxima pelo delito pelo qual estiverem acusados, serão postas imediatamente em liberdade pelo tribunal penal que conheça o processo".

[7] Resposta do Governo de 26 de janeiro de 2000, recebida pela Comissão em 6 de abril do mesmo ano.

[8] Corte I.D.H., Caso Suárez Rosero, Sentença de 12 de novembro de 1997, parágrafo  46.

[9] Maier, Julio B. J. Direito Processual Penal. Tomo I. Editores Del Puerto, Buenos Aires, 2da. Ed. 1996, pág. 537.

[10] Maier, op. cit. pág. 523.

[11] Relatório 12/96, Caso Giménez, Argentina, CIDH RELATÓRIO ANUAL 1995, par. 76, 77 y 78.

[12]  Id., par. 70. Ver também Corte Européia de Direitos Humanos. Stögmuller v. Austria, Series A 9 (1969).

[13] Relatório 12/96, op.cit. par.  218;  Corte Européia de Direitos Humanos, Neumeister v. Austria, Series A 8 (1968).

[14]  Relatório 12/96, op.cit., par. 83. Ver também Corte Européia de Direitos Humanos. Kenmache v. France, Serie A, pars. 86 e 89.