...continuación

56.            A Comissão nota que a legislação doméstica prevê penas de prisão de quatro a oito anos para os delitos de conversión, transferencia de bienes e testaferrismo.[15]   Dayra Levoyer Jiménez foi detida em 21 de junho de 1992 e permaneceu submetida a medida cautelar privativa de liberdade por mais de seis anos, o que equivale a mais de um terço da metade das penas máximas correspondentes.

          57.          Todavia, os processos abertos contra a senhora Levoyer Jiménez enquadravam-se na exceção prevista no artigo 114 do Código Penal equatoriano na sua parte in fine, motivo pelo qual ela se viu privada de beneficiar-se dos prazos máximos de prisão preventiva estabelecidos no corpo da norma.  Esta exceção, entretanto, já foi desqualificada tanto a nível interno como internacional.  Em sua sentença de 17 de novembro de 1997 no Caso Suárez Rosero, a Corte Interamericana declarou que o conteúdo do último parágrafo do artigo 114 do Código Penal do Equador constituía uma violação de jure da obrigação convencional de tomar as medidas de direito interno necessárias para fazer efetivo o direito à liberdade pessoal, consagrado no artigo 7(5) da Convenção Americana.[16]

          58.          Segundo assinala a  Corte Interamericana, apesar de que a norma doméstica estabelece condições objetivas para a liberação de pessoas que sofrem prisão sem sentença, a exceção estabelecida na última parte do artigo em discussão retira o gozo de um direito de toda uma categoria de detidos, com base unicamente no delito imputado contra eles.[17]

          59.          A Comissão foi informada que em 24 de dezembro de 1997 o Pleno do Tribunal Constitucional do Equador declarou a inconstitucionalidade do artigo 114 in fine do Código Penal. Esta declaração de inconstitucionalidade permitiu a aplicação do prazo máximo de prisão preventiva a casos como o da senhora Levoyer Jiménez.

          60.          Com respeito aos parâmetros do artigo 7(5) da Convenção, a Comissão estabeleceu que, toda vez que a prisão preventiva se prolongue além do prazo estipulado na  legislação doméstica, esta não pode ser considerada como prima facie ilegítima, independentemente da natureza do delito de que se trate e da complexidade do caso.  Nestas circunstâncias, o ônus de justificar a demora recai sobre o Estado.[18]

          61.          No caso sob exame, a declaração de inconstitucionalidade do artigo 114 in fine não interrompeu a privação de liberdade até seis meses depois de ter sido editada.  Com efeito, em 16 de junho de 1998, a senhora Levoyer Jiménez recuperou sua liberdade, como consequência da resolução de um dos tantos habeas corpus impetrados em seu favor.  Nesse momento, a Segunda Sala do Tribunal Constitucional considerou cumpridos os prazos de prisão preventiva estabelecidos no Código Penal, por aplicação da precedente declaração.  Durante o lapso de seis meses, a senhora Levoyer Jiménez permaneceu em prisão preventiva, sem norma interna que justificasse sua detenção, em direta violação da norma convencional contida no artigo 7(5), que estabelece que toda pessoa deve ser julgada dentro de um prazo razoável ou ser posta em liberdade, bem como do artigo 7(2) pois a detenção além do prazo previsto pelo direito interno configura uma detenção ilegal.

62.            Outrossim, a Comissão conclui que apesar da declaração de inconstitucionalidade da exceção ao artigo 114 bis do Código Penal equatoriano, em 24 de dezembro de 1997, que beneficia a todas aquelas pessoas acusadas de delitos sob a Lei de Substâncias Entorpecentes e Psicotrópicas, o fato de que Dayra María Levoyer Jiménez não tenha sido posta em liberdade até seis meses depois dessa resolução, viola o artigo 2 da Convenção Americana, pois o Estado não tomou as medidas adequadas de direito interno que permitissem fazer efetivo o direito contemplado no artigo 7(5) da Convenção Americana.

63.            Por último, o fato de que a detida não tenha sido levada imediatamente frente a um juiz depois de ser privada de sua liberdade também viola o artigo 7(5).

iii.     Incomunicabilidade, liberdade pessoal e Habeas Corpus  -  Violação dos artigos 7(6) e 25

64.            O peticionário argumenta que a senhora Levoyer Jiménez ao se detida foi transferida às instalações do ex-SIC, levada a um porão , e mantida incomunicável durante 39 dias.  Em sua apresentação sobre o fundo do caso, datada de 18 de maio de 2000, o peticionário alegou que o estado de incomunicabilidade da senhora Levoyer Jiménez havia sido estendido desde sua detenção em 21 de junho de 1992 na delegacia até 30 de julho do mesmo ano, data em que foi transferida a uma prisão.  O Estado não controverteu esta afirmação em sua contestação.

65.            A Corte Interamericana estabeleceu que:

…a incomunicabilidade é uma medida de caráter excepcional que tem como propósito impedir que se dificulte a investigação dos fatos.  Referido isolamento deve estar limitado ao período [..] determinado expressamente por lei.  Ainda neste caso o Estado está obrigado a assegurar ao detido o exercício das garantias mínimas e inderrogáveis estabelecidas na Convenção e, em especial, o direito a questionar a legalidade da detenção, e a garantia do acesso, durante seu isolamento, a uma defesa efetiva”.[19]

66.            A sua vez o artigo 28 da Constituição Política do Equador, dispõe que:

Toda pessoa que acredita estar ilegalmente privada de sua liberdade poderá impetrar o Habeas Corpus.   Este direito poderá ser exercido por si mesmo ou por outra pessoa, sem necessidade de mandado escrito, perante o prefeito sob cuja jurisdição se encontrar ou perante aquele que o substituir.  A autoridade municipal ordenará imediatamente que o impetrante seja conduzido a sua presença, e se exiba ordem de privação de liberdade.

67.            Durante o tempo que se encontrava incomunicável, a senhora Levoyer Jiménez não teve a oportunidade de ter sua detenção revisada judicialmente. Adicionalmente, depois ter cessado sua incomunicabilidade, apresentou numerosos recursos de habeas corpus, sem que estes tivessem produzido algum resultado.  Ainda que o acesso aos recursos não implica a garantia de um resultado favorável,[20] o direito de acesso a justiça neste caso requeria que um juiz tivesse revisando os motivos da detenção bem como sua adequação as normas internacionais correspondentes, coisa que não ocorreu em nenhum dos habeas corpus que foram impetrados.

68.            Sendo assim, a Comissão entende que a incomunicabilidade da senhora Levoyer Jiménez violou o artigo 7(6) da Convenção Americana, pois impediu a detida o  contato com o mundo e não lhe permitiu exercitar o seu direito ao recurso de habeas corpus.

69.            O peticionário alega que a falta de resposta ou despacho atrasado nos habeas corpus impetrados neste caso vulneram a garantia prevista nos artigos 7(6) e 25 da Convenção Americana.  O Estado não contestou de forma expressa esta alegação.

70.            O artigo 7(6) da Convenção estabelece:

Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou  detenção e ordene sua soltura se a prisão ou a detenção forem ilegais. Nos Estados Partes cujas leis prevêem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa.

71.            A sua vez, o artigo 25 da Convenção estabelece:

Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção,mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.

72.            O artigo 458 do Código de Processo Penal estabelece que toda vez que um detido dirige-se a um juiz competente numa demanda de sua liberdade, este deve ordenar imediatamente o comparecimento do detido e depois de avaliar a informação necessária, deverá resolver sobre o pedido dentro das 48 horas seguintes.

73.            A garantia de acesso a um recurso simples e eficaz consagrada nas  disposições convencionais não se satisfaz com a mera existência formal dos recursos idôneos para obter uma ordem de liberdade.  Segundo assinalou a Corte, citados recursos devem ser eficazes dada a sua finalidade de obter uma decisão rápida sobre a questão da legalidade da detenção ou prisão.[21]

74.            Estes direitos constituem um dos pilares básicos do Estado de Direito em uma sociedade democrática.[22]

75.            Conforme surge da prova documental aportada ao expediente, o peticionário, em representação da senhora Levoyer Jiménez, dirigiu-se perante os juízes competentes em reiteradas ocasiões solicitando que fosse levantada a medida cautelar ou terminada a sua detenção ilegal.  Em todos os casos -- com exceção da decisão de 22 de junho de 1998 que ordenou a sua liberdade – os habeas corpus foram ignorados ou denegados com demora.

76.            Com referência à previsão do artigo 25 da Convenção Americana, a Corte entendeu no caso Suárez Rosero, o seguinte:

O artigo 25 da Convenção Americana estabelece que toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer  outro recurso efetivo perante os juízes ou tribunais competentes.  A Corte declarou que esta disposição constitui um dos pilares básicos, não somente da  Convenção Americana, mas também do próprio Estado de Direito em uma sociedade democrática no sentido da Convenção.

O artigo 25 está intimamente ligado à obrigação geral do artigo 1.1 da Convenção Americana, ao atribuir funções de proteção ao direito interno dos Estados Partes.  O habeas corpus tem como finalidade, não somente de garantir a liberdade e a integridade pessoais, mas também prevenir o desaparecimento ou indeterminação do lugar de detenção e, em última instância, assegurar o direito à vida (Caso Castillo Páez, Sentença de 3 de novembro  de 1997. Série C No. 34, pars. 82 e 83).[23]

77.            Portanto a Comissão, com base na valoração das provas analisadas que foram anexadas ao expediente pelas partes, conclui que foi violado o  direito de Dayra María Levoyer Jiménez a aceder a um recurso simples e eficaz para a proteção de seus direitos fundamentais nos termos dos artigos 7(6) e 25 da Convenção Americana.

78.            Adicionalmente, a Comissão considera necessário realizar uma análise sobre a norma contida no artigo 28 da Constituição equatoriana, antes transcrita, que prevê o direito de habeas corpus com respeito a sua adequação ao estipulado na Convenção Americana.  O artigo 7(8) da Convenção, estabelece claramente que "Toda pessoa privada de liberdade tem direito a recorrer perante um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua detenção ou prisão" (ênfase nossa).  Todavia, a norma constitucional equatoriana estabelece que é o prefeito o chefe do Executivo Municipal,[24]  quem resolverá sobre a legalidade ou ilegalidade da detenção.

79.            A revisão da legalidade de uma detenção implica na constatação não somente  formal, mas substancial, de que essa detenção é adequada ao sistema jurídico e que não viola nenhum direito do detido.  Essa constatação ao ser levada a cabo por um Juiz cobre o procedimento de determinadas garantias, fato que não ocorre se a resolução está em mãos da autoridade administrativa, quem necessariamente não tem formação jurídica adequada, e que em nenhuma hipótese, pode ter a faculdade de exercer a função jurisdicional. 

80.            O perigo deste tipo de resolução em mãos de uma autoridade municipal foi assinalado pelo mesmo Tribunal Constitucional do Equador, ao entender que:

A legalidade da detenção é substancial no recurso de habeas corpus, e isto é o que deve ser analisado, não a legalidade aparente, mas a legalidade real, no mérito e na  forma. [ênfase do original]. Na maioria dos casos os Prefeitos, certamente por desconhecimento das normas constitucionais, limitam-se a constatar se o detido está à disposição de um Juiz e se este editou, ainda que ilegal e de forma extemporânea, ordem de detenção preventiva, e com base unicamente nisso, depois da audiência, negam o recurso de habeas corpus, o que na prática implica desconhecimento do que representa o direito à liberdade pessoal, como importante garantia constitucional. [ênfase nossa].[25]

81.            Esta norma constitucional viola o artigo 7(6) da Convenção Americana. A Comissão considera que é imprescindível que o Estado equatoriano tome as medidas necessárias para reformar a legislação de acordo com a presente análise, e que tome medidas imediatas necessárias para pô-las em prática.

iv.      Incomunicabilidade.  Tratamento cruel, desumano ou degradante  -  Violação do artigo 5(2a)

82.            O peticionário também alegou que o prolongado estado de incomunicabilidade ao qual foi submetida a senhora Levoyer Jiménez, constituiu um tratamento cruel e desumano nos  termos do artigo 5(2) da Convenção Americana. Esta norma estabelece:

Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou     degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à        dignidade inerente ao ser humano.

83.            A Corte Interamericana considerou que a mera constatação de que uma pessoa tenha sido privada por um período prolongado de toda comunicação com o mundo exterior permite concluir que foi submetida a tratamento cruel e desumano. Muito pior quando se verifica que é contrária a normativa interna.[26]

84.            Neste sentido a Corte Interamericana entende que:

…uma das razões pelas quais a incomunicabilidade é concebida como um instrumento excepcional é pelos graves efeitos que tem sobre o detido. Com efeito, o isolamento do mundo exterior produz em qualquer  pessoa sofrimentos morais e perturbações psíquicas, a coloca em uma situação de particular vulnerabilidade [...][27]

85.            Por conseguinte, a Comissão, com base na valoração das provas analisadas que foram aportadas ao expediente pelas partes, conclui que a prolongada incomunicabilidade a qual foi submetida   Dayra María Levoyer Jiménez violou o direito consagrado no artigo 5(2) da Convenção Americana.

2.           O respeito as garantias judiciais.

          86.          O peticionário expressou que no presente caso o Estado não foi capaz de garantir os direitos fundamentais da senhora Levoyer Jiménez desde sua detenção em junho de 1992, e que foram violadas as garantias estabelecidas no artigo 8 da Convenção Americana.  Em seu relatório de admissibilidade a Comissão sustentou que “… a determinação da duração do processo, requer uma análise de fundo da questão.  Por isso, a Comissão resolve postergar para a fase de mérito do caso, as questões relativas à admissibilidade das alegadas violações dos artigos 8, 21 e 25 da Convenção…”.

          87.          A Comissão passa então a examinar os fatos à luz da garantia de julgamento no prazo razoável e os princípios gerais de presunção de inocência e non bis in idem  consagrados na Convenção Americana.

i.            A determinação de culpabilidade no prazo razoável  -  Violação do artigo 8(1)

          88.          O peticionário argumenta que a demora no trâmite das ações interpostas contra a senhora Levoyer Jiménez viola seu direito a ser julgada dentro de um prazo razoável.

89.            O artigo 8(1) da Convenção Americana estabelece:

Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo        razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido        anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para        que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de        qualquer outra natureza.

90.            O princípio de "prazo razoável", ao qual faz referência esta a disposição, tem como finalidade impedir que as pessoas acusadas de cometer um delito permaneçam processadas de indefinidamente. Em matéria penal, este prazo compreende todo o procedimento, incluindo os recursos de todas as instâncias.[28]

91.            Quanto a razoabilidade da duração de um processo, esta Comissão e a Corte Interamericana desenvolveram jurisprudência que assinala que a razoabilidade do prazo de duração do processo deve ser avaliada à luz dos três parâmetros: a complexidade do assunto, a atividade processual do interessado e a conduta das autoridades judiciais.[29]

92.            Com respeito ao  prazo de duração do processo, o Estado alegou em sua resposta de 26 de janeiro de 2000, que:

…a razoabilidade de uma medida ou de um prazo deve ser apreciada em contexto próprio ou específico, como o estado resolveu este caso, em um prazo de acordo com o  tipo de ação que se trata, dentro das próprias possibilidades que o estado tem a seu alcance, porque não se pode imputar ao estado equatoriano que demorou na resolução do assunto da Sra. Dayra María Levoyer Jiménez, quando este apesar de sua complexidade, foi resolvido rapidamente pelos tribunais competentes.  Tendo em vista de que os prazos utilizados pelo Estado para resolver os processos internos estão dentro dos limites da razoabilidade estabelecidos pela Corte e a Comissão, não se pode atribuir que houve violação à garantia estabelecida no artigo 8.1.

93.             A Comissão considera que a afirmação do Estado não é suficiente para justificar a razoabilidade do prazo.  Com efeito, o Estado limita-se a assinalar quais são, a seu critério, os requisitos de prazo razoável, e conclui que no caso o prazo foi efetivamente razoável, sem aportar nenhum fundamento que permita chegar a esta conclusão.

94.            No caso sob exame, a detenção da senhora Levoyer Jiménez  em 21 de junho de 1992 marca o início de um processo múltiplo, baseado nos mesmos fatos e provas.  Segundo a informação proporcionada a Comissão, este processo ainda não foi finalizado.

95.            A Comissão considera que os quase oito  anos transcorridos desde o início das investigações excede em muito o princípio da razoabilidade de um prazo para resolver um processo, sobretudo tendo em conta que segundo a lei equatoriana, mesmo quando editado o sobrestamento provisório, a causa permanece aberta por cinco anos, prazo durante o qual a investigação pode ser reaberta em caso do advento de novas provas.[30]  Esta situação é  agravada se se considera  que até a data a acusada teve todas as causas sobrestadas.

96.            Por conseguinte, a Comissão, com base na valoração das provas analisadas que foram  aportadas ao expediente pelas partes, conclui que o Estado violou o direito de Dayra María Levoyer Jiménez a ser julgada dentro de um prazo razoável, segundo estabelece o artigo 8(1) da Convenção Americana.

ii.              O princípio de presunção de inocência  -  Violação do artigo 8(2)

97.             O peticionário argumenta que a privação de liberdade da qual foi objeto a senhora Levoyer Jiménez resulta violatória do princípio de presunção de inocência estabelecido na Convenção Americana.  Assinala que neste caso a imposição de prisão preventiva de forma indefinida traduziu na antecipação do castigo.

98.             O Estado não apresentou sua posição quanto ao respeito ao princípio de presunção de inocência no presente caso.

99.            O artigo 8(2) da Convenção Americana estabelece:

Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.

100.        A Corte Interamericana entende que o propósito das garantias judiciais nasce no princípio de que uma pessoa é inocente até que se comprove a sua culpa mediante uma decisão judicial transitada em julgado.[31]  Por isso, os princípios gerais de direito universalmente reconhecidos, impedem antecipar a sentença.  Se ignoradas estas regras, corre-se o risco, como de fato ocorreu no caso sob exame, de privar de liberdade por um prazo não razoável a uma pessoa cuja culpa não pôde ser verificada.  Vale recordar que neste caso a senhora Levoyer Jiménez  permaneceu privada de sua liberdade por um período maior que a metade da pena máxima estabelecida para os delitos dos quais foi acusada e absolvida, e foi mantida detida depois de definitiva sua absolvição.

101.        A Comissão, com base na análise das provas aportadas ao expediente pelas partes, conclui que, com respeito a Dayra María Levoyer Jiménez, o Estado equatoriano violou o princípio de presunção de inocência, consagrado no artigo 8(2) da Convenção Americana.

iii.           Non bis in ídem  -  Violação do artigo 8(4)

102.        Em sua comunicação de 18 de maio de 2000, o peticionário alegou que o Estado equatoriano violou a Convenção Americana, porque iniciou três processos pelo mesmo fato e o mesmo delito, por três tribunais distintos de forma sucessiva.

103.        Segundo assinala o peticionário, a primeira ação por conversión de bienes foi iniciada em 1992, tramitando na  primeira instância perante o Presidente da Corte Superior e em segunda instância na Quarta Sala da mesma Corte, que em abril de 1998 emitiu o auto de sobrestamento definitivo.

104.        A segunda ação, também por conversión de bienes, foi iniciada em 1994, com base num relatório ampliado da Operação Ciclone de 1992.  Esta ação tramitou em primeira instância perante o Presidente da Corte Superior e em segunda instância perante a Segunda Sala da Corte, que em julho de 1999, decidiu pelo sobrestamento definitivo.

105.        A terceira ação por conversión de bienes foi iniciada em 1996, através de um novo relatório ampliado a Operação Ciclone.  Este processo foi levado em primeira instância pelo 1°Juízo Penal, e por razão de impedimento foi transferido ao 8° Juízo, que editou o sobrestamento provisório em março de 1999.  Esta ação passou a conhecimento da Primeira Sala da Corte Superior, mas não foi resolvida até o momento.

106.        Surge do exposto que a senhora Levoyer Jiménez foi submetida  a julgamento de forma simultânea pelo mesmo delito de conversión de bienes e com base nos mesmos  fatos, em duas oportunidades pelo mesmo Juiz (Presidente da Corte Superior de Quito), e uma terceira vez pelo 8° Juiz Penal.

107.        A Comissão considera que esta situação, além de desafiar princípios de economia processual, causa dano a senhora Levoyer Jiménez quem teve que apresentar sua posição perante três tribunais distintos e seus correspondentes tribunais superiores, durante o curso destes processos. A Comissão considera que, no presente caso, a existência de processos paralelos constituiu uma interferência grave com o exercício do direito à defesa e à segurança jurídica nos processos judiciais.

108.        Com relação a suposta violação da Convenção Americana, o artigo 8(4) estabelece:

O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a        novo processo pelos mesmos fatos.

109.        Esta codificação do princípio non bis in ídem tem por objeto estabelecer uma salvaguarda em favor das pessoas absolvidas de forma definitiva para que não sejam submetidas a novo processo pelos mesmos fatos que foram objeto da primeira ação.

110.        Conforme o assinalado, a senhora Levoyer Jiménez foi objeto de três processos pelo delito de conversión de bienes com base nos mesmos fatos.  Ainda que estes processos tenham tramitado de forma paralela, estas jurisdições pronunciaram-se sobre o mérito do caso de forma sucessiva, configurando uma tríplice violação ao princípio consagrado na Convenção.  A primeira jurisdição refere-se ao  segundo processo, em que o Presidente do Tribunal Superior omitiu-se em encerrar a causa depois que a Quarta Sala da Corte, em abril de 1998 decidiu pelo sobrestamento definitivo, proferindo sentença de segunda instância no primeiro processo.  A segunda jurisdição refere-se ao  8° Juiz Penal, que não encerrou a terceira das causas ao proferir a primeira e a segunda sentença.  A terceira jurisdição refere-se a Primeira Sala da Corte Superior, que tampouco resolveu o assunto até o momento.

111.        Esta violação ao princípio non bis in idem foi reconhecida na sentença da Segunda Sala ao entender que:

… tratando-se … de um Relatório Ampliado de Investigação da Operação Ciclone, existe, em consequência, o risco real para juízes e tribunais de incorrer na violação constitucional e legal de julgar a uma pessoa mais de uma vez pela mesma causa ou de continuar iniciando processos contra referido grupo de pessoas quantas vezes fossem elaborados os relatórios ampliados de uma investigação policial que parece não foi concluída, levando os relatórios ad-infinitum, o que viola garantias e preceitos constitucionais, especialmente o número 16 do art. 24 da Lei Suprema…[32]

          112.          Por conseguinte,  a Comissão, com base na análise das provas aportadas ao expediente pelas partes, conclui que o Estado violou o direito de Dayra María Levoyer Jiménez a não ser julgada mais  de uma vez pelo mesmo delito, segundo o que estabelece o artigo 8(4) da Convenção Americana.

3.     Violação do direito de propriedade  -  Violação do artigo 21

          113.          O peticionário alegou que no presente caso houve violação do artigo 21 da Convenção, porque os bens da senhora Levoyer Jiménez que foram sequestrados no momento de sua detenção, não haviam sido devolvidos até esta data.

          114.          Ao resolver sobre a admissibilidade do presente caso, a Comissão considerou que a análise desta questão guardava relação com o mérito do caso, motivo pelo qual decidiu  adiar sua resolução para o momento de elaborar o presente relatório de fundo.

          115.   Conforme as manifestações do peticionário, dado que a causa sobre testaferrismo  contra a senhora Levoyer Jiménez foram sobrestadas, foi solicitada a devolução dos numerosos bens que foram sequestrados no momento da sua detenção.  O Juiz não aprovou a solicitação, alegando que a causa encontrava-se ainda em trâmite, e que a devolução dos bens seria feita juntamente com o pronunciamento definitivo.  O peticionário alega que este pronunciamento pode tardar mais de cinco anos, e que a devolução não ocorreria se ela fosse sobreseída, configurando desse modo a violação do artigo 21 da Convenção.

          116.          O Código de Processo Penal equatoriano estabelece o efeito da coisa julgada do sobrestamento definitivo, mas não o do provisório.  O peticionário alega que na hipótese de existir um sobrestamento definitivo, não se estaria na presença de uma sentença e, portanto, os bens nunca seriam devolvidos.  O artigo 110 da Lei sobre Substâncias Entorpecentes e Psicotrópicas estabelece que "Se absolvido o réu proprietário dos bens confiscados, estes lhe serão restituídos… quando assim disponha o juiz e uma vez canceladas as medidas cautelares…"

          117.          A Comissão considera que da leitura das normas não é possível interpretar que o sobrestamento definitivo não se assemelhe a uma absolvição, já que é uma resolução que põe fim ao processo de forma definitiva e que impede uma investigação do processado pelos mesmos fatos.  Uma violação ao artigo 21 exigiria no caso que o Estado se negasse a devolver os bens, uma vez que proferido um  pronunciamento definitivo, hipótese em que então seria afetado o direito de propriedade.

          118.          A Comissão considera que o peticionário não realizou uma exposição de fatos que constituem uma violação a Convenção, e portanto decide não admitir o pedido sobre este ponto.

V.             ATUAÇÕES POSTERIORES AO RELATÓRIO Nº 81/00

119.          Em 5 de outubro de 2000, durante o curso de seu 108° período de sessões, a Comissão aprovou o Relatório 81/00, conforme o artigo 50 da Convenção Americana. O Relatório 81/00 foi notificado ao Estado equatoriano em 26 de outubro de 2000 juntamente com as recomendações correspondentes, e lhe foi outorgado um prazo de sessenta dias para que informasse sobre as medidas adotadas para o cumprimento das mesmas.

120.          O Estado não contatou a Comissão a respeito do presente caso desde o dia 26 de outubro de 2000, nem a Comissão tem conhecimento que este tomou as medidas que para a implementação das recomendações anteriormente mencionadas.

VI.              CONCLUSÕES

          121.          Com base nas considerações de fato e de  direito antes expostas, a Comissão ratifica suas conclusões no sentido de que o Estado equatoriano violou em relação a senhora Dayra María Levoyer Jiménez os seguintes direitos consagrados na Convenção Americana: o direito à integridade pessoal (artigo 5), à liberdade pessoal (artigo 7), as garantias judiciais (artigo 8) e à proteção judicial (artigo 25) em conjunção com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos, prevista no artigo 1(1) do mesmo instrumento.

          122.          Outrossim, a Comissão considera que o Estado equatoriano não é responsável pela violação ao artigo 21 da Convenção Americana em relação a Dayra María Levoyer Jiménez, porque não foram expostos  fatos que caracterizem uma violação da Convenção.

VII.            RECOMENDAÇÕES

          123.          Tendo em vista o exposto, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos reitera suas recomendações ao Estado do Equador para que: 1.  Proceda a outorgar uma reparação plena, o que implica outorgar a correspondente indenização a  senhora Dayra María Levoyer Jiménez; 2. Ordene uma investigação para determinar os responsáveis pelas  violações determinadas pela Comissão, e eventualmente puni-los; e 3.  Tome as medidas necessárias para a reforma da legislação sobre habeas corpus, nos  termos descritos no presente relatório, bem como as medidas necessárias para sua imediata vigência.

VIII.          PUBLICAÇÃO

124.        Em 28 de fevereiro de 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos transmitiu o Relatório Nº 16/01 -- cujo texto é o que antecede—ao Estado equatoriano e aos peticionários, de conformidade com o estabelecido no artigo 51(2) da Convenção Americana e outorgou o prazo de um mês ao Estado para dar cumprimento as recomendações precedentes.  Até a data de aprovação deste relatório, a CIDH não havia recebido resposta do Estado equatoriano.

125.     Em virtude das considerações que antecedem, e o disposto no artigo 51(3) da Convenção Americana, a Comissão decide reiterar as conclusões e recomendações contidas neste relatório, publicar o mesmo e incluí-lo no seu  Relatório Anual a Assembléia Geral da OEA.  A Comissão, em cumprimento do seu mandato, continuará avaliando as medidas tomadas pelo Estado equatoriano com relação as recomendações citadas, até que estas tenham sido cumpridas por completo.

          Dado e firmado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., aos 14 dias do mês de junho 2001.  (Assinado): Claudio Grossman, Presidente; Juan Méndez, Primeiro Vice-presidente; Marta Altolaguirre, Segunda Vice-presidenta; membros da CIDH, Hélio Bicudo, Robert K. Goldman e Peter Laurie.

 

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[15] Artigos 77 e 78 dla Lei sobre Substancias Entorpecentes e Psicotrópicas.

[16] Corte I.D.H., Caso Suárez Rosero, Sentença de 12 de novembro de 1997, par. 99.

[17] Id.,  par. 98.

[18] Relatório 12/96 op.cit., par. 101.

[19] Caso Suárez Rosero, op.cit., par. 51.

[20] Corte I.D.H., Caso Velásquez Rodríguez, Sentença de 29 de julho de 1988, par. 63 e seguintes.

[21] Ibidem.

[22] Corte I.D.H., Caso Castillo Páez, Sentença de 3 de novembro de 1997, par. 82.

[23] Caso Suárez Rosero, op.cit.,  par. 65.

[24] A lei de regime municipal estabelece em seu artigo 68 : "Para dirigir a gestão municipal haverá nos Conselhos um Prefeito", enquanto o artigo 26 da mesma lei diz "O Governo e a administração municipais se exercem conjuntamente através do Conselho e o Prefeito…".

[25] Caso 241-98HC,.Sentença da Segunda Sala do Tribunal Constitucional de 16 de junho de 1998.

[26] Caso Suárez Rosero, op.cit.,  par. 91.

[27] Id., par. 90.

[28] Id., par. 70 y 71.

[29] Relatório 12/96 op.cit.;  Caso Suárez Rosero, op.cit., par. 25;  Caso Genie Lacayo, Sentença de 29 de janeiro de 1997, par. 77. Ver também Corte Européia de Direitos Humanos, Séries A 195; Ruiz Mateos v Spain, Séries A 262 (1993).

[30] O artigo 249 do Código de Processo Penal do Equador estabelece que o sobrestametno provisório do processo suspende seu trâmite por cinco anos, prazo dentro do qual podem advir novas provas relacionadas com o  delito, ou com a responsabilidade ou com a inocência do acusado.

[31] Caso Suárez Rosero, op.cit., par. 77.

[32] Sentença da Segunda Sala da Corte Superior de Quito, de 5 de julho de 1999, par. 7.