CAPÍTULO IV

 

LIBERDADE DE EXRESSAO E POBREZA[1]

 

 

A.      Introdução

 

1.       A pobreza e a marginalidade social em que vivem vários setores da sociedade na América, afetam a liberdade de expressão dos cidadãos do hemisfério, toda vez que suas vozes se encontram abafadas e por isso fora de qualquer debate.[2]

 

2.       A pobreza[3] pode levar a violações de diferentes direitos humanos. A Convenção Americana assinala em seu preâmbulo que "somente pode se realizar o ideal do ser humano livre, isento do temor e da miséria, se forem criadas condições que permitam a cada pessoa gozar de seus direitos econômicos, sociais e culturais, tanto como de seus direitos civis e políticos". No mesmo sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) tem assinalado que “certamente, os requisitos do direito humano a uma vida digna transcendem aos conteúdos, igualmente fundamentais, do direito à vida (entendido em seu sentido mais estrito), do direito à integridade física, do direito à liberdade pessoal, dos direitos relacionados com o sistema de democracia representativa e dos demais direitos civis e políticos”.[4]

 

3.       A CIDH ressaltou, igualmente, que o preâmbulo do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, “Protocolo de San Salvador” reconhece em forma expressa “a estreita relação que existe entre a vigência dos direitos econômicos, sociais e culturais e a dos direitos civis e políticos, em conseqüência, as diferentes categorias de direitos constituem um todo indissolúvel, que encontra sua base no reconhecimento da dignidade da pessoa humana, por isso exigem uma tutela e promoção permanente com o objetivo de lograr sua vigência plena, sem que jamais possa justificar a violação de alguns para a realização de outros”.

4.       Em um trabalho realizado pelo Banco Mundial[5], intitulado “A voz dos pobres. Existe alguém que nos escuta?” pode-se determinar o escasso grau de participação que tem os setores pobres do mundo e em particular os da América Latina. Aos pobres tem sido negado, historicamente, o acesso à informação e a influenciar em decisões que afetam profundamente suas vidas cotidianas, e portanto se encontram desprovidos de seu direito de participação ativa no contexto nacional.[6]

 

5.       A Comissão Interamericana vem reiterado, inúmeras vezes, que a pobreza é uma negação fundamental dos direitos humanos ao afirmar que:

 

A pobreza extrema constitui uma violação generalizada a todos os direitos humanos, tanto civis e políticos como sociais, econômicos e culturais. As necessidades do direito humano a uma vida digna transcendem àquelas, igualmente fundamentais, no direito a não ser executado arbitrariamente, no direito à integridade física, no direito à liberdade pessoal, nos direitos relacionados com o sistema de democracia representativa e nos outros direitos civis e políticos. Além de destinar recursos públicos, em  uma quantidade suficiente para os direitos sociais e econômicos, os Estados devem velar pelo uso apropriado de tais recursos. A experiência demonstra que a pobreza extrema pode afetar seriamente à instituição democrática, pois constitui uma desfiguração da democracia e faz ilusória a participação cidadã, o acesso à justiça e o gozo efetivo, em geral, dos direitos humanos. [7]

 

6.       Em seu relatório do ano 2000, a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão referiu-se ao efeito que produz a discriminação, de certos setores da população, no fortalecimento das democracias:

 

A falta de participação eqüitativa impede o desenvolvimento amplo de sociedades democráticas e pluralistas, exacerbando a intolerância e a discriminação. A inclusão de todos os setores da sociedade nos processos de comunicação, decisão e desenvolvimento é fundamental para que suas necessidades, opiniões e interesses sejam contemplados no projeto de políticas e na tomada de decisões.”[8]

 

“É precisamente através de uma participação ativa e pacífica de toda a sociedade nas instituições democráticas do Estado que o exercício da liberdade de expressão manifesta-se plenamente, permitindo melhorar a condição dos setores marginalizados.”[9]

 

7.       Neste sentido, o efetivo respeito à liberdade de expressão é uma ferramenta fundamental para incorporar a quem, por razões de pobreza, são marginados tanto da informação, como de qualquer diálogo. Dentro deste marco de referência, é dever do Estado garantir a igualdade de oportunidades a todas as pessoas para receber, buscar e solicitar informação por qualquer meio de comunicação sem discriminação, eliminando todo tipo de medidas que discriminem a um indivíduo ou grupo de pessoas em sua participação eqüitativa e plena da vida política, econômica e social de seu país. [10] Este direito garante uma voz informada para todas as pessoas, condição indispensável para a subsistência da democracia.

 

8.       Pela complexidade da temática abordada, este Capítulo não pretende ser uma análise exaustiva dos fatores que dão origem à pobreza ou a diversas alternativas existentes para combatê-la. O relatório tão somente pretende identificar aspectos relacionados com diversas formas no exercício da liberdade de expressão que, a consideração da Relatoria para a Liberdade de Expressão, contribuiriam para melhorar as condições dos pobres no hemisfério.

 

9.       Em conseqüência, a seguir, serão expostos aspectos que tem a ver com a necessidade de garantir o exercício deste direito sem nenhum tipo de discriminação; também se abordará o assunto relacionado com a importância de estabelecer mecanismos para que os pobres tenham acesso à informação pública, como parte de sua liberdade de expressão. Por último serão traçadas algumas linhas gerais sobre o exercício da liberdade de expressão e o direito de reunião em espaços públicos e a utilização de meios de comunicação comunitários como canais para efetivar estes direitos. Na conclusão serão feitas algumas observações detalhadas.

 

B.       O exercício da liberdade de expressão sem discriminação em razão de origem social ou posição econômica

 

10.     Um dos pilares básicos dos sistemas democráticos é o respeito aos direitos fundamentais dos indivíduos, sob os princípios de igualdade e não-discriminação. A história hemisférica tem demonstrado que um dos desafios principais, para a consolidação das democracias, requer que se intensifique a participação de todos os setores sociais na vida política, social, econômica e cultural de cada nação. Neste sentido, o artigo 1 da Convenção Americana estabelece a necessidade de que os Estados membros se “comprometam a respeitar os direitos e liberdades reconhecidos nela e a garantir o livre e pleno exercício de todas as pessoas que estejam sujeitas a sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivos de [...] origem social, posição econômica [...] ou qualquer outra condição social.”

 

11.     O sistema interamericano de direitos humanos estabelece e define um conjunto de direitos básicos, normas e condutas obrigatórias para promover e proteger esses direitos, dentre os quais se encontra o direito a liberdade de expressão. 

 

12.     O direito e o respeito da liberdade de expressão se constrói como instrumento que permite o intercâmbio livre de idéias e funciona como elo fortalecedor dos processos democráticos, ao mesmo tempo que outorga, à cidadania, uma ferramenta básica de participação.  A Corte Interamericana de Direitos Humanos afirma que:

 

[A] liberdade de expressão é uma pedra angular na existência de uma sociedade democrática. É indispensável para a formação da opinião pública e para que a comunidade, na hora de exercer suas opções, esteja suficientemente informada. É por isso que, é possível afirmar que uma sociedade que não está bem informada, não é plenamente livre. A liberdade de expressão é portanto não só um direito dos indivíduos mas da própria sociedade.[11]

 

13.     Dentro deste contexto, a Relatoria para a Liberdade de Expressão assinalou que os Estados membro devem procurar a eliminação de todo tipo de medidas que discriminem o indivíduo de uma participação plena na vida política, econômica, pública e social de seu país. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos consagra, o direito das pessoas a não-discriminação, como pilar básico no fortalecimento e funcionamento dos sistemas democráticos do hemisfério.[12] A Carta da OEA em seus artigos 33 e 44 estabelece:

 

A igualdade de oportunidades, a distribuição eqüitativa da riqueza e o ingresso, assim como a plena participação de seus povos nas decisões relativas a seu próprio desenvolvimento são, entre outros, objetivos básicos do desenvolvimento integral[…e fomenta] a incorporação e a crescente participação dos setores marginados da população, tanto do campo como da cidade, na vida econômica, social, cívica, cultural e política da nação, a fim de conseguir a plena integração da comunidade nacional, o aceleramento do processo de mobilização social e a consolidação do sistema democrático.

 

14.     A falta de participação eqüitativa impede o desenvolvimento das sociedades democráticas e pluralistas, exacerbando a intolerância e a discriminação. A inclusão de todos os setores da sociedade nos processos de comunicação, decisão e desenvolvimento é fundamental para que suas necessidades, opiniões e interesses sejam contemplados no projeto de políticas e na tomada de decisões.  Neste sentido, a Corte Interamericana expressou que:

 

Dentro de uma sociedade democrática [é necessário que] se garantam as melhores condições de circulação de notícias, idéias, opiniões, assim como o mais amplo acesso a informação por parte da sociedade como um todo […]Tal como está concebido na Convenção Americana, [é necessário] que se respeite escrupulosamente o direito de cada ser humano de expressar-se livremente e o da sociedade, como um todo, de receber informação.[13]

 

15.     O Relator Especial considera que é precisamente através de uma participação ativa e pacífica de toda a sociedade nas instituições democráticas do Estado que o exercício da liberdade de expressão se manifesta plenamente permitindo melhorar a condição de setores historicamente marginalizados. Nesta ordem de idéias, a Relatoria entende que para garantir o pleno exercício da liberdade de expressão dos pobres sem discriminação, os Estados devem procurar buscar as condições que habilitem a participação ativa dos pobres dentro da vida política, social, econômica e cultural das nações.  Na busca dessas condições, deve-se evitar que se estabeleçam práticas de iure o de facto que discriminem estes setores e que em definitivo, seja negado a eles, o direito a exercer sua liberdade de pensamento e expressão.

 

C.      O acesso à informação pública como exercício da liberdade de expressão dos pobres

 

16.     Em inúmeras ocasiões a Relatoria assinalou a importância do direito de acesso à informação como requisito indispensável para o próprio funcionamento da democracia. Em um sistema democrático representativo e participativo, a cidadania exerce seus direitos constitucionais de participação política, votação, educação e associação entre outros, através de uma ampla liberdade de expressão e de um livre acesso à informação. 

 

A publicidade da informação permite que o cidadão possa controlar [a gestão pública], não somente por meio de uma supervisão dos mesmos conforme a lei, que os governantes juraram cumprir, mas  também exercendo o direito de petição e de obter uma transparente prestação de contas.[14]

 

17.     O acesso à informação, ao mesmo tempo que forma um aspecto importante da liberdade de expressão, torna-se um direito que fomenta a autonomia das pessoas e que lhes permite a realização de um plano de vida que se ajuste a sua livre decisão.[15]

 

18.     Portanto, a falta de participação de um setor da sociedade no conhecimento da informação, da que seria diretamente afetada, limita as liberdades fundamentais, priva as pessoas de dignidade[16] e impede o desenvolvimento amplo das sociedades democráticas, exacerbando possíveis condutas corruptas dentro da gestão governamental e promovendo políticas de intolerância e discriminação.

 

19.     No relatório sobre desenvolvimento humano do PNUD se assinalou que os pobres, em geral, são os que têm menos possibilidade de obter informação sobre as decisões e políticas públicas, que lhes afetam diretamente, privando-lhes de informação vital para suas vidas tais como, entre outras, a informação sobre a existência de serviços gratuitos, o conhecimento de seus direitos, o acesso à justiça, etc. Ao mesmo tempo, estes setores têm menor acesso às fontes de informação tradicionais para expressarem suas opiniões ou fazerem pública, denúncias sobre violações a seus direitos básicos.[17] 

 

20.     Sem esta informação, não se pode exercitar plenamente o direito á liberdade de expressão como um mecanismo efetivo de participação cidadã, nem de controle democrático da gestão governamental. Este controle se faz ainda mais necessário, quando um dos graves obstáculos para o fortalecimento das democracias é a corrupção que atinge funcionários públicos. A ausência de controle efetivo “implica na denegação da essência do Estado democrático e deixa a porta aberta para transgressões e abusos inaceitáveis”.[18] Garantir o acesso a informação em poder do Estado contribui para aumentar a transparência dos atos de governo e a conseqüente diminuição da corrupção na gestão estatal. 

 

21.     A corrupção estatal afeta diretamente os pobres toda vez que, por exemplo, as verbas destinadas a projetos de obras públicas, estão envolvidas.  O relatório A voz dos pobres. Existe alguém que nos escuta? assinala que[19] os pobres têm ampla e íntima experiência com o efeito adverso que tem a corrupção no atendimento da saúde, na educação, no abastecimento de água, na exploração florestal, nos programas de ajuda oferecidos pelo governo e, em seu caso, na assistência social em suas vidas no cotidiano. O fenômeno da corrupção não só atinge a legitimidade das instituições públicas, a sociedade, o desenvolvimento integral dos povos e os demais aspectos de caráter mais geral mencionados anteriormente, mas também tem um impacto especifico no gozo efetivo dos direitos humanos da coletividade em geral e os pobres em particular.[20] A Comissão sustentou que a corrupção tem uma incidência adversa no campo da proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais quando diz:

 

[A corrupção] é um dos fatores que pode impedir ao Estado “adotar as medidas necessárias... até o máximo dos recursos disponíveis.. com o objetivo de lograr progressivamente.. a plena efetividade de” tais direitos. A esse respeito, assinalou-se que os recursos máximos disponíveis não se utilizam tão efetivamente como seria possível para a plena realização dos direitos econômicos, sociais e culturais quando uma porção substancial dos recursos naturais vão para conta privada de um alto funcionário, ou quando a ajuda para o desenvolvimento é erroneamente gerenciada, utilizada ou desviada.[21]

 

22.     O relatório A voz dos pobres. Existe alguém que nos escuta? Também, identifica que os pobres enfrentam muitos obstáculos quando tentam conseguir acesso aos serviços oferecidos pelo governo. Em geral, estes setores da população têm pouca informação sobre as decisões do governo ou de entidades privadas que incidem profundamente em suas vidas. Por outro lado, o relatório anteriormente citado acrescenta: “Quando as instituições do Estado se deterioram, os serviços como a educação e a atenção á saúde se convertem em privilégios aos que tem acesso, principalmente, aos que já tem poder e recursos.”[22] Nesse sentido, existe uma necessidade premente de, por um lado, garantir as condições necessárias para que os pobres fortaleçam suas próprias organizações, tanto nas comunidades em si, como em associações entre comunidades e exercer deste modo seu direito à informação e a que lhes prestem contas sem temor a conseqüências pessoais negativas e, por outro, que os Estados desenvolvam leis e regulamentos de acesso à informação não-discriminatórias e de fácil acesso. A falta de acesso à informação coloca, indiscutivelmente, os setores mais carentes da sociedade em uma situação de vulnerabilidade com relação a possíveis atos abusivos de particulares e ações de corrupção por parte de entidades estatais e seus funcionários.[23] 

 

23.     Como assinalou a Relatoria, em seu relatório do ano 2001, o Plano de Ação da Terceira Cúpula das Américas estimula a necessidade de apoiar iniciativas que permitam uma maior transparência para garantir à proteção do interesse público e impulsionar a que os governos utilizem seus recursos, efetivamente, em função do benefício coletivo.[24]  Dentro deste contexto, a Relatoria considera que a corrupção pode ser adequadamente combatida através de uma combinação de esforços dirigidos a elevar o nível de transparência dos atos do governo.[25]  qualquer política dirigida a obstaculizar o acesso à informação relativa a gestão estatal a que tem direito todas as pessoas, tem o risco de promover à corrupção dentro dos órgãos do Estado debilitando assim as democracias. O acesso à informação se constitui uma forma preventiva contra estas práticas ilegais que atingem os países do hemisfério.[26] A transparência dos atos do governo pode ser incrementada através da criação de um regime legal, pelo qual a sociedade tenha acesso à informação. Neste contexto, a regra deve ser a publicação dos atos de governo como bem comum e não a manipulação e ou ocultação dos atos públicos.

 

24.     Resumindo, o direito de acesso à informação se constitui como ferramenta legal para alcançar a transparência dos atos do Estado como também como meio de fiscalização e participação efetiva de todos os setores da sociedade, sem discriminação.[27] Propiciar e promover o acesso à informação dos setores mais empobrecidos das sociedades do hemisfério habilitaria sua participação ativa e informada sobre o projeto de políticas e medidas públicas que afetam diretamente suas vidas.

         

D.      O exercício da liberdade de expressão e o direito de reunião

 

25.     A falta de poder de ingerência no planejamento de políticas e de opinar são fatores que também influem no aumento da sensação de vulnerabilidade e na incapacidade da população pobre para se proteger de possíveis abusos a seus direitos.

 

26.     O relatório de Desenvolvimento Humano 2000 do PNUD insiste na vontade de participar dos povos do mundo. Destacam que “As pessoas não querem participar passivamente, limitando-se a emitir o voto nas eleições, o que querem é participar ativamente das decisões e dos acontecimentos que determinam suas vidas.[28]

 

27.             A Comissão Interamericana tem sustentado que

 

o conceito de democracia representativa baseia-se no princípio de que é o povo o titular da soberania política e que em exercício desta soberania elege seus representantes para que exerçam o poder político. Estes representantes, ademais são eleitos pelos cidadãos para aplicar medidas políticas determinadas o que, por sua vez, implica que tenha havido um amplo debate sobre a natureza das políticas a serem aplicadas -- liberdade de expressão -- entre os grupos políticos organizados -- liberdade de associação -- que tiveram a oportunidade de se expressar e se reunir publicamente -- direito de reunião. Por sua parte, a vigência dos direitos e liberdades, mencionados, requerem uma ordem jurídica e institucional na qual as leis se anteponham à vontade dos governantes e que exista o controle de umas instituições sobre outras com o objetivo de expressar a pureza da expressão da vontade popular –estado de direito.[29]

 

28.     Neste sentido é importante reverter o conceito de pessoa pobre como objeto a atender transformando-o em sujeito ativo de opinião, de ação e de tomada de decisões.[30]  Por isso, pode-se afirmar que um elemento fundamental para o fortalecimento das democracias e o estabelecimento de um marco jurídico que proteja os direitos de participação e livre expressão de todos os setores da população.

 

29.     Entretanto, isso não é uma realidade atualmente. Os setores mais empobrecidos de nosso hemisfério confrontam políticas e ações discriminatórias, seu acesso á informação sobre o planejamento e execução de medidas que afetam suas vidas diárias é incipiente e em geral os canais tradicionais de participação para fazer públicas suas denúncias, se vêem muitas vezes cerceados. Em face deste cenário, em muitos países do hemisfério, o protesto e as mobilizações sociais constituem uma ferramenta de petição a autoridade pública e também como canal de denúncias públicas sobre abusos ou violações aos direitos humanos.

 

30.     O Artigo 15, da Convenção Americana, protege o direito de reunião pacífica e sem armas e estabelece que tal exercício só pode estar sujeito as restrições, previstas na lei, que sejam necessárias em uma sociedade democrática em interesse da segurança não da ordem pública ou para proteger a saúde ou a moral pública aos direito e liberdades dos outros. O intercâmbio de idéias e reivindicações sociais como forma de expressão, supõe o exercício de direitos conexos, tais como o direito dos cidadãos a se reunir e se manifestar, e o direito ao livre fluxo de opiniões e informação. Ambos direitos contemplados nos artigos 13 e 15, da Convenção Americana, constituem-se como elementos vitais para o bom funcionamento do sistema democrático inclusivo de todos os setores da sociedade.

 

31.     A Relatoria assinala que, apesar da importância outorgada, tanto à liberdade de expressão como ao direito de reunião pacífica para o funcionamento de uma sociedade democrática, não os transforma em direitos absolutos. Em efeito, tanto o artigo 13 como o artigo 15, da Convenção enumeram as limitações a estes direitos, e estabelecem que estas restrições devem estar expressamente previstas na lei e que sejam necessárias para garantir o respeito aos direitos dos outros ou a proteção da segurança nacional, a ordem pública ou a saúde ou a moral pública. 

 

32.     A respeito da palavra “necessária”, a Corte Interamericana de Direitos Humanos  sustenta que mesmo que não significa “indispensável”, implica a existência de uma “necessidade social imperiosa” e que para que uma restrição seja “necessária” não é suficiente demonstrar que seja “útil”, “razoável” ou “oportuna”. Também, assinalou que “a legalidade das restrições dependerá de que estejam orientadas a satisfazer um interesse público imperativo. Quer dizer, a restrição deve ser proporcional ao interesse que a justifica e ajustar-se diretamente para lograr esse legítimo objetivo”.[31]

 

33.     Ao falar do direito de reunião como forma de expressão participativa da sociedade, e a ingerência que cabe ao Estado para regulá-las, a Relatoria destaca que, de acordo aos parâmetros expostos no parágrafo anterior, a finalidade na regulamentação do direito de reunião, não pode ser a de criar uma base para que a reunião ou a manifestação seja proibida. Ao contrário, a regulamentação que estabelece, por exemplo, o aviso ou notificação prévia, tem por objetivo informar ás autoridades para que tomem as medidas que necessárias a facilitar o exercício do direito sem afetar de maneira significativa o desenvolvimento normal das atividades do resto da comunidade.[32]

 

34.     A Relatoria assinala que a participação das sociedades, através da manifestação social, é importante para a consolidação da vida democrática das sociedades e que, em geral, ela como exercício da liberdade de expressão, reveste um interesse social imperativo, o que deixa ao Estado um marco ainda mais estrito para justificar uma limitação a essa forma de exercício da liberdade de expressão.[33] A Relatoria entende que as limitações, ao exercício do direito de reunião, devem estar dirigidas exclusivamente a evitar ameaças graves e iminentes. Seria insuficiente um perigo eventual e genérico, já que não se poderia entender o direito de reunião como sinônimo de desordem pública para restringi-lo per se.[34]

 

35.     Dentro dos limites estabelecidos nos parágrafos precedentes, resulta em princípio, inadmissível, a penalização também per se das demonstrações na via pública quando se realizam no marco do direito à liberdade de expressão e ao direito de reunião. Em outras palavras: deve-se analisar a utilização de sanções penais encontra justificativa sob o padrão da Corte Interamericana que estabelece a necessidade de comprovar que esta restrição (a penalização) satisfaz um interesse publico imperativo necessário para o funcionamento de uma sociedade democrática. Também, è necessário avaliar se a imposição de sanções penais se constitui como o meio menos nocivo para restringir a liberdade de expressão praticada através do direito de reunião, manifestado em uma demonstração na via pública ou em espaços públicos. E importante recordar que a penalização poderia gerar, nestes casos, um efeito amedrontador sobre uma forma de expressão participativa dos setores da sociedade que não podem aceder a outros canais de denúncia ou petição, isto é, a imprensa tradicional ou o direito de petição dentro dos órgãos estatais onde o objeto da reclamação se origina. O medo à expressão, através da imposição de penas privativas da liberdade para as pessoas que utilizam o meio de expressão antes mencionado, tem um efeito dissuasivo sobre aqueles setores da sociedade que expressam seus pontos de vista ou suas críticas à gestão do governo como forma de incidência nos processos de decisões e políticas estatais que os afeta diretamente.

 

36.     Neste sentido, faz-se necessário que ao impor restrições a esta forma de expressão, os Estados membro levem a cabo uma análise rigorosa dos interesses que se pretende proteger através da restrição tendo em conta o alto grau de proteção que merece a liberdade de expressão como direito que garante a participação da cidadania e a fiscalização da atuação do Estado em questões públicas.

 

E.       O exercício da liberdade de expressão por meios de comunicação comunitários

 

37.     A liberdade dos indivíduos para debater e criticar abertamente as políticas e as instituições, protege os mesmos, contra as violações aos direitos humanos. A abertura dos meios de difusão não só promove as liberdades civis e políticas, mas muitas vezes, contribui com os direitos econômicos, sociais e culturais. Em alguns casos, a utilização dos meios de comunicação tem ajudado a gerar uma consciência pública e exercer pressões para que se adotem medidas e melhorarem a qualidade de vida dos setores marginalizados ou mais vulneráveis da população. [35]

 

38.     Entretanto, a utilização dos meios tradicionais de comunicação de massa nem sempre se apresentam como meio acessíveis para a difusão das necessidades e reivindicações dos setores mais empobrecidos ou vulneráveis da sociedade. Neste sentido, os meios comunitários de comunicação e difusão vêm insistindo, há algum tempo, para incluir nas agendas nacionais, estratégias e conteúdos que atendam as necessidades destas comunidades.

 

39.     As rádios denominadas comunitárias, educativas, participativas, rurais, insurgentes, interativas, alternativas e cidadãs são, em muitos casos, e quando atuam no marco da legalidade, as que ocupam os espaços que deixam os meios de massa; instalam-se como meios que canalizam a expressão dos integrantes do setor pobre, onde costumam ter mais oportunidades de acesso e participação do que as possibilidades que podem ter nos meios tradicionais.

 

40.     A UNESCO define a rádio comunitária de acordo a palavra "comunidade", que "designa a unidade básica da organização social e horizontal". Desta maneira, a rádio comunitária "usualmente é considerada como complemento das operações dos meios tradicionais, e como um modelo participativo de administração e produção de meios"[36].

 

41.     As rádios comunitárias, que devem atuar num marco de legalidade facilitado pelos Estados, respondem em muitos casos às necessidades, interesses, problemas e expectativas de setores muitas vezes relegados, discriminados e empobrecidos da sociedade civil. A necessidade crescente de expressão das maiorias e minorias sem acesso a meios de comunicação, e sua reivindicação do direito de comunicação, de livre expressão de idéias, de difusão de informação faz premente a necessidade de buscar bens e serviços que lhes assegurem condições básicas de dignidade, segurança, subsistência e desenvolvimento. 

 

42.     Em muitos casos, estas emissoras podem, atuando dentro do marco da legalidade, facilitar a circulação livre de informação facilitando a liberdade de expressão e o diálogo dentro das comunidades para promover a participação. “O acesso eqüitativo, digno e imaginativo aos meios como síntese contemporânea do público, é uma maneira fundamental de romper a leitura “individualizada” e isolada da pobreza, a condição de superar essa visão que assume que mais meios, mais entrevistas ou programas sobre pobreza e pobres, mais crônicas (desde fora), constituem realmente um ganho dos setores marginalizados frente a uma comunicação democrática"[37].

43.     Dada a importância que podem ter estes canais de exercício da liberdade de expressão comunitárias, resulta inadmissível o estabelecimento de marcos legais discriminatórios que obstaculizam a adjudicação de freqüências a rádios comunitárias. Igualmente preocupante resultam as práticas que, mesmo nos casos de funcionamento no marco da legalidade, levam ameaças de fechamento injustificadas, o apreensão arbitrária de equipamentos.

 

44.     Este isto, existe um aspecto tecnológico que não deve ser deixado de lado: para um melhor uso das ondas de rádio e televisão do espectro rádioelétrico, a União Internacional de Telecomunicações (UIT), distribui grupos de freqüências aos países, para que se encarreguem de sua administração em seu território, de forma que, entre outras coisas, se evitem as interferências entre serviços de telecomunicações.

 

45.     Pelo exposto, a Relatoria entende que os Estados, em sua função de administradores das ondas do espectro rádioelétrico, devem designá-las de acordo com critérios democráticos que garantam uma igualdade de oportunidades a todos os indivíduos, no acesso aos mesmos. Isto precisamente é o que estabelece o Princípio 12, da Declaração de Princípios de Liberdade de Expressão[38].

 

F.       Observações finais

 

46.     A Relatoria para a Liberdade de Expressão entende que existe uma íntima relação entre o pleno exercício do direito à liberdade de expressão ou, melhor este, à falta deste exercício com a pobreza. Um dos objetivos das democracias é aumentar a participação política e a tomada de decisões a todo nível e desenvolver políticas que facilitem o acesso da população aos assuntos que os afetam diretamente. Neste sentido, as democracias facultam as sociedades a participação ativa através do acesso à informação, a criação de entidades de participação e a tolerância à discrepâncias.

 

47.     O presente relatório foi uma primeira análise das diferentes formas de exercício do direito à liberdade de expressão dos setores da população, da América Latina, que não têm satisfeitas suas necessidades básicas.

 

48.     A Relatoria para a Liberdade de Expressão recomenda que os Estados membros adotem as medidas necessárias para garantir este direito de acordo as observações feitas no presente capítulo.


 

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[1] A Relatoria agradece a cooperação da jornalista Maria Seoane, quem como consultora da Relatoria para a Liberdade de Expressão e com a colaboração do jornalista Hector Pavón realizou uma pesquisa de campo sobre Pobreza e Liberdade de Expressão nas América apresentada em julho de 2002. Tal pesquisa serviu como base preliminar para a elaboração do presente Capítulo.

[2] Santiago Canton, nesta ocasião, Relator para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, OAS, apresentou ante as Nações Unidas: Relatório para a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, 56º Seção, 20 Março ao 28 Abril de 2000.

[3] Conforme o relatório da Comissão Econômica para América Latina (CEPAL), América Latina conta com 200 milhões de pobres (um 44% da população). Encabeçam os países mais pobres Honduras (79.1%), Nicarágua (67.4%), Paraguai (61.8%), Bolívia (61.2%), Equador (60.2%), Guatemala (60.4%), Colômbia (54.9%) e El Salvador (49.9%). Também com índices altos se encontram Peru (49%), Venezuela (48.5%), México (42.3%). Seguem a estes países Brasil (36.9%), Panamá (30.8%), Argentina (30.3%), República Dominicana (29.2%), Costa Rica (21.7%) Chile (20%) e Uruguai (11.4%).[3] Em 1998 o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) calculava que 150 milhões de pessoas na América Latina e o Caribe viviam na pobreza, o que é igual dizer que um de cada três habitantes está vivendo uma situação de pobreza. Lustig, Nora e Deutsch, Ruthanne, The Inter-American Development Bank and Poverty Reduction: An Overview, pág. 2 BID Washington, março de 1998.

[4] CIDH, Segundo Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos em Peru, 2000, cap. VI.1 e 2.

[5] Narayan, Deepa, A voz dos pobres. Existe alguém que nos escuta? Banco Mundial, 2000.

[6] Public Hearing at the Committee on Foreign Affairs, Sub-Committee on Human Rights in Brussels, presentation by Frances D'Souza, Article 19: Freedom of Expression: The First Freedom? 25 Abril 1996.

[7] Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Terceiro Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Paraguai, 2000, Cap. V. 17.

[8] CIDH, Relatório Anual, ano 2000, Volume III, Relatório da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão,
pág. 18.

[9] CIDH, Relatório Anual, ano 2000, Volume III, Relatório da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão,
pág. 19.

[10] Ver CIDH, Documentos Básicos em Matéria de Direitos Humanos no Sistema Interamericano, OEA/ser.L/V/II92/rev. 3, 3 maio de 1996.

[11] Ver CIDH, A Filiação Obrigatória de Jornalistas, Opinião Consultiva OC-5/85 Serie A, No. 5, parágrafo.  70.

[12] Ver Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Capítulo I, Obrigações Gerais: Artigo 1: Obrigação de Respeitar os Direitos e Capítulo II sobre Direitos Civis e Políticos, Artigo 13: Liberdade de Expressão.

[13] CIDH, Opinião Consultiva OC-5/85 Série A, No. 5, parágrafo. 69.

[14] OEA, Lei Modelo de Acesso a Informação Administrativa para a Prevenção da Corrupção, Seminário Técnico Regional: Guatemala, Novembro 2000.

[15] Víctor Abramovich e Christian Courtis: O Acesso à Informação como Direito em Igualdade, Liberdade de Expressão e Interesse Público, Felipe González e Felipe Viveros, ed. Caderno de Análise Jurídica: Escola de Direito Diego Portales, pág. 198. Em tal artigo, Abramovitch e Courtis identificaram o direito de acesso a informação como instrumento de outros direitos: 1. A informação como mecanismo de fiscalização da autoridade pública, 2. a informação como mecanismo de participação, e 3. a informação como exigência dos direito sociais, econômicos e culturais.

[16] PNUD, Relatório sobre Desenvolvimento Humano 2000: Capítulo 4: Direitos que facultam as pessoas para combater a pobreza, pág. 73.

[17] PNUD, Relatório sobre Desenvolvimento Humano 2000: Capítulo 4: Direitos que facultam as pessoas para combater a pobreza, pág. 78.

[18] Ver Pierini e Outros, pág. 31, citando Habeas Data, Eesterial Universidad, Buenos Aires, 1999, pág. 21.

[19] Narayan, Deepa, A voz dos pobres. Existe alguém que nos escuta? Banco Mundial 2000, pág. 83.

[20] CIDH, Relatório sobre a situação de direitos humanos no Paraguai 2001, Capitulo II.45.

[21] Ibidem, parágrafo. 48.

[22] Banco Mundial, supra 22.

[23] Narayan, Deepa, A voz dos pobres. ¿Existe alguém que nos escuta?, Banco Mundial 2000, pág. 104.

[24] Ver Terceira Cúpula das Américas, Declaração e Plano de Ação, Quebec, Canadá, 20-22 de abril de 2001.

[25] Ver Convenção Interamericana Contra a Corrupção do Sistema Interamericano de Informação Jurídica, OEA.

[26] Alfredo Chirino Sánchez, Lei Modelo de Acesso a Informação Administrativa para a Prevenção da Corrupção, Departamento de Cooperação e Difusão Jurídica, Seminário Técnico Regional: Guatemala, Cidade de Antigua, OEA, Novembro 2000, pág. 3.

[27] Alfredo Chirino Sánchez, Lei Modelo de Acesso a Informação Administrativa para a Prevenção da Corrupção, Departamento de Cooperação e Difusão Jurídica, Seminário Técnico Regional: Guatemala, OEA, Cidade de Antigua, Novembro 2000, pág. 11.

[28] PNUD, Relatório sobre desenvolvimento humano 2000, pág. 38.

[29] Relatório Anual CIDH 1990-1991, Capítulo V, Seção III, “Direitos humanos, direitos políticos e democracia representativa no sistema interamericano”.

[30] Blanca Acosta, Participação e Qualidade de Vida, 1999, Uruguai.

[31] OC 5/85 parágrafo 46. Ver "The Sunday Times", Corte Européia de Direitos Humanos, Decisão de 26 de abril 1979, Série A no. 30, parágrafo. 59.

[32] Assim se expressou a Corte Constitucional da Colômbia. Ver, Sentença No. T-456: Direitos de Reunião/Direito de Manifestação: Considerações da Corte, a. O direito protegido, 14 de julho de 1992.

[33] Ver  "Feldek v. Slovakia", Corte Européia de Direitos Humanos, Sentença do 12 de julho de 2001,
parágrafo. 59.

[34] Corte Constitucional da Colômbia, Sentença No. T-456, supra 32.

[35] PNUD, Relatório sobre desenvolvimento humano 2000: Capitulo 3: a democracia de inclusão garante os direitos, pág. 58.

[36] UNESCO: World Communication Report 1998, pág. 148.

[37] Reguillo Cruz, Rossana, Entrevista com a jornalista Maria Seoane, outubro de 2001.

[38] Vide Declaração de Princípios de Liberdade de Expressão no ANEXO do presente relatório. Particular relação se encontra também no Princípio 13.