INTRODUÇÃO

 

 

          1.          As sequelas dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 levaram, durante o ano de 2002, a uma reflexão coletiva sobre os meios a serem empregados para o esclarecimento e responsabilização pelo cometimento deste tipo de crimes e sobre a intensidade das estratégias perseguidas com o fim de prevení-los.  A legitimidade destes esforços de responsabilização e prevenção encontra-se ligada ãos propósitos do próprio Estado democrático e  precisamente por isso que sua implementação deve respeitar o estado de direito.  As iniciativas antiterroristas, seja qual for a situação excepcional que justifique sua adoção e sua magnitude, devem ser abordadas com pleno respeito ão direito  internacional e ão  direito  internacional dos direitos humanos.  Trata-se de uuma área na qual os Estados membros da OEA devem cuidar de preservar o equilíbrio entre seu dever de proteger a população civil e as instituições democráticas e sua obrigação de não desatender a função de administrar justiça com as devidas garantias e sem arbitrariedade.

 

          2.          Em dezembro de 2002 a Comissão publicou o seu “Relatório sobre Terrorismo e Direitos Humanos”, no qual apresentou um estudo sobre a vigência e o respeito pelos direitos fundamentais frente as iniciativas antiterroristas legitimamente adotadas pelos Estados membros, baseada em sua experiência de mais de quatro décadas e os padrões do direito internacional.  Em seu relatório, a Comissão menciona vários princípios fundamentais concernentes ão papel dos direitos humanos no momento de lidar-se com o terrorismo.  A Comissão indica de forma determinante que os governos do continente estão obrigados a adotar as medidas necessárias para prevenir o terrorismo e outras formas de violência e garantir a segurança de sua população.  Ão mesmo tempo, a Comissão declara que os Estados encontram-se, em todo momento,  vinculados a suas obrigações, as quais somente podem ser suspensas ou restringidas nas formas especificamente permitidas pelo direito internacional nos casos em que a existência da nação esteja ameaçada.  O relatório também reconhece que a violência terrorista pode ocorrer em tempos de paz, estados de emergência e em situações de guerra e, portanto, considera as obrigações do Estado tanto no âmbito do direito internacional dos direitos humanos como aquelas inseridas na normas que regem os conflitos armados.

 

          3.          O relatório considera,  de acordo com estes regimes legais, como padrões de proteção seis áreas principais: o direito à vida e o tratamento humano, o direito a liberdade e a segurança pessoais, o direito a um julgamento justo, o direito a liberdade de expressão, os direitos a proteção judicial e a não discriminação e a proteção dos trabalhadores migrantes, refugiados, solicitantes de asilo e outros estrangeiros.  O relatório enfatiza, por exemplo que os detidos nunca devem ser sujeitos a torturas ou outros tratamentos ou castigos cruéis, desumanos ou degradantes nas condições de detenção, interrogatórios ou em qualquer outra circunstância.  Em conexão com este princípio, faz referência ão requisito de que os detidos sejam sujeitos a mecanismos de supervisão adequados conforme o direito internacional aplicável em tempos de paz e durante conflitos armados.  O relatório enfatiza que as pessoas acusadas e julgadas por crimes relacionados com o  terrorismo devem, em toda circunstância, gozar das garantias fundamentais do devido processo legal, incluindo o  direito do acusado a notificação imediata e detalhada das acusações formuladas  contra elas, o direito a ser assistido por um advogado  de imediato e o direito a um julgamento público.  Adicionalmente, o relatório insta os Estados membros a garantir o direito a liberdade de expressão em qualquer circunstância, sujeito somente a restrições e derrogações permissíveis, tendo em vista que a informação pública pode ser uma ferramenta efetiva no momento de supervisionar e prevenir abusos das autoridades públicas durante situações de ameaça terrorista.  A situação de trabalhadores migrantes, refugiados e solicitantes de asilo e de especial preocupação para a CIDH, já que os direitos humanos destas pessoas encontram-se em uma situação de especial vulnerabilidade vis-a-vis a execução de medidas antiterroristas.  Por ultimo, o relatório enfatiza a necessidade de que os Estados cumpram, em qualquer circunstância,  com a proibição absoluta de discriminar por razão de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outro caráter, origem social ou nacional, status econômico, nascimento ou outra condição social.  O relatório termina com uma série de recomendações dirigidas especificamente aos Estados membros da OEA com o finalidade de dar efeito as conclusões da CIDH.

 

          4.          A ansiedade gerada tanto pela ameaça da violência terrorista como pelas expectativas de puní-la tende a desviar a atenção das autoridades e de parte da opinião pública, de muitos dos problemas endêmicos de caráter econômico, social e cultural que afligem as sociedades de nosso hemisfério e, em especial,  a seus setores mais vulneráveis.  A persistência e o agravamento destes problemas continuam erodindo a participação cidadã no processo democrático, afetando os pressupostos do seu funcionamento e debilitando sua eficácia como ferramenta de governo e convivência pacífica.

   

          5.          E possível notar que esta percepção de impaciência da população por serem incluidos de forma efetiva no processo democrático parece afetar de uma forma ou outra e com diferente intensidade, a todos os Estados membros.  Nos casos mais graves, a degradação da participação democrática e a consequente exclusão de vastos setores da cidadania agrava a precariedade institucional que aflige a muitos Estados do hemisfério, corroe a coesão requerida para a construção da democracia e se  traduz na perda das condições de estabilidade necessárias para garantir a governabilidade e o gozo dos direitos humanos fundamentais.

 

          6.          Neste sentido, a CIDH observa com preocupação a crescente deterioração da institucionalidade democrática.  As eleições periódicas nos países de nosso hemisfério não obstam a que muitas democracias da região demonstrem debilidades institucionais e, inclusive,  estejam expostas a tentativas de golpes de estado ou alterações da ordem constitucional.  Felizmente, os Estados membros da OEA são atualmente consistentes em rejeitar coletivamente estas tentativas, invocando instrumentos tais como a Resolução 1080 e a Carta Democrática Interamericana.

 

          7.          A pobreza, a exclusão e as brechas sociais, econômicas, étnicas e de gênero contribuem para a insegurança jurídica, a corrupção e, portanto, a instabilidade.  Esta situação é agravada pela falta de acesso efetivo à justiça e não somente contribui para perpetuar a falta de eficácia e a impunidade que atinge o funcionamento dos sistemas judiciais do hemisfério, mas também alimenta a exclusão dos cidadãos da administração de justiça.  A desconfiança em sistemas de justiça que não protegem aos mais vulneráveis quando são vítimas da discriminação nem facilitam o acesso efetivo à determinação de seus direitos, coincide com a progressiva sensação de insegurança da cidadania frente a violência e a criminalidade crescente.

 

          8.          Consequentemente, existe um insistente pedido por medidas tendentes a priorizar a ordem e segurança da sociedade de acordo com as garantias judiciais.  Esta situação urge que se facilite o acesso dos setores excluidos e mais vulneráveis a administração e a proteção da justiça, que se intensifique o respeito as garantias judiciais e que haja uma modernização da imposição de penas com a finalidade de reintegrar à sociedade aqueles que hajam delinquido.  Todas estas legítimas demandas geram sérios debates em âmbitos legislativos e de outro tipo sobre o endurecimento da legislação, a ampliação da aplicação de tipos penais e a imposição rígida de condenações mais severas.

 

          9.          Os matizes da situação refletem os constantes desafios que enfrenta a democracia como instrumento para dar resposta às necessidades da população na ordem  social, econômica e cultural; o dever do Estado de garantir a observância dos direitos humanos fundamentais e velar por seu desenvolvimento progressivo de uma maneira que contribua para a governabilidade e ajude o seu desenvolvimento.

 

          10.          Neste contexto hemisférico, que reflete principalmente as realidades de ordem global, os mecanismos de proteção dos direitos humanos devem continuar tendo um papel fundamental.  Assim, o trabalho de promoção, prevenção, controle, denúncia e representação que cumprem os defensores de direitos humanos e operadores de justiça continua sendo vital para o respeito aos direitos fundamentais dos habitantes de nossos países. Atualmente o papel dos defensores de direitos humanos e das organizações para as quais trabalham  permitem aceder a informação e compreender a situação de grupos vulneráveis, grupos de pessoas e indivíduos afetados tanto pela violência, a pobreza, a exclusão e a discriminação como pelos abusos cometidos em situações de emergência, e responder a suas denúncias.  Como consequência do trabalho que realizam no âmbito nacional, regional e universal, estas pessoas e organizações são, muitas vezes, vítimas da violência e os Estados membros, no marco dos órgãos políticos da Organização, e a CIDH começaram a explorar a obrigação que lhes cabe com relação à segurança dos defensores de direitos humanos e o fomento de seu trabalho.

 

          11.          Durante este ano, a CIDH continuou abordando estes, entre outros desafios hemisféricos, através do exercício de seu mandato de promover e proteger os direitos humanos.  A Comissão prosseguiu com sua tarefa relacionada à situação de grupos especialmente vulneráveis, por intermédio do trabalho de suas relatorias especiais para os direitos das crianças, as mulheres, os povos indígenas, e os trabalhadores migrantes, o qual esta refletido no capítulo VI do presente relatório anual.  A CIDH também prestou especial atenção a situação dos afrodescendentes, tanto através de suas tarefas de promoção, como de seus estudos sobre a situação geral dos direitos humanos nos Estados membros, seus casos individuais e medidas cautelares.  A Relatoria sobre Liberdade de Expresão continuou com seu importante trabalho em matéria de promoção e assesoramento, demonstrada no estudo correspondente ao ano 2002.

 

          12.          Tendo em vista os desafios impostos durante este ano e da avaliação da situação dos direitos humanos no hemisfério formulada no presente relatório anual, a CIDH insta os Estados membros a buscar soluções tendentes a garantir os direitos humanos dos habitantes da região de forma coletiva, através do Sistema Interamericano e fortalecer o respeito pelos princípios baseados na paz, a segurança, a prosperidade, e o funcionamento exitoso da democracia como forma de governo.

 

          13.          A seguir, a Comissão enumera as recomendações de caráter geral que considera oportuno formular aos Estados membros com a finalidade de que sirvam de guia geral para o cumprimento dos objetivos do sistema intereramericano de proteção:

 

I. A Comissão insta os Estados membros a contemplar e respeitar os padrões estabelecidos pelo direito internacional na elaboração de soluções legislativas ou de outro caráter relacionadas a violência e a ameaça impostas pelo terrorismo.

 

II. A Comissão insta os Estados membros a adotar medidas em favor da vigência dos direitos sociais, econômicos e culturais dos habitantes do hemisfério, tanto de forma individual como coletiva.  Além disso, insta os Estados que ainda não o tenham feito, a ratificar o Protocolo Adicional a Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos Sociais e Culturais e desse modo ampliar a proteção desses direitos em favor dos habitantes do hemisfério.

 

III. A Comissão reitera seu apelo aos Estados membros para que derroguem as normas que permitem a discriminação, de acordo com os instrumentos aplicáveis e combatam de maneira decidida estas práticas à luz de suas obrigações internacionais.

 

IV. A Comissão insta os Estados membros a cumprir de maneira cabal e definitiva com o desafio de proteger a infância e adotar ações positivas para assegurar seu desenvolvimento humano, sua segurança, saúde, e educação.

 

V. A Comissão exorta aos Estados membros a redobrar seus esforços com o propósito de assegurar a observância do direito das mulheres e das crianças a viver livres da violência e discriminação por gênero.  Em particular, urge aos cinco Estados membros que, ainda não o tenham feito, a ratificar a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher “Convenção de Belém do Pará”.  É imperativo que os Estados membros adotem medidas legislativas e de outro caráter para assegurar que as normas regionais que garantem a igualdade e a não discriminação  encontrem-se refletidas em sua totalidade no direito  na  prática internos, incluindo medidas concretas para atender a falta de imparcialidade baseada no gênero, na administração de justiça.

 

VI. A Comissão urge os Estados membros a reconhocer os direitos e justas aspirações dos povos indígenas de nosso  continente, mediante a aprovação da Declaração Americana sobre Direitos dos Povos Indígenas.

 

VII. A Comissão urge os Estados membros a adotar as medidas necessárias para proteger os direitos dos afrodescendentes sem discriminação e atendendo a suas necessidades de desenvolvimento humano e social.

 

VIII. A Comissão recomenda ãos Estados membros que promovam o respeito e garantam os direitos fundamentais dos trabalhadores migrantes e suas famílias na sua legislação interna, de conformidade com os padrões internacionais na  matéria.

 

IX. A Comissão insta os Estados membros a adotar as medidas necessárias para proteger a vida, a integridade pessoal e a liberdade de expressão dos defensores de direitos humanos.

 

X. A Comissão insta os Estados membros a adequar o marco legislativo conforme o qual é exercida a liberdade de expressão em seu território à luz dos padrões da Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão e a Convenção Americana; a eliminar as restrições indiretas e, em especial, a perseguição  contra jornalistas e outras pessoas que exercem seu direito a expressar-se livremente, assim como assegurar a proteção da justiça na difusão de informação e na investigação e julgamento efetivos de crimes contra profissionais da informação.

 

XI. A Comissão insta os Estados membros a adotar medidas eficazes para proteger o direito à vida, à integridade física e à liberdade de seus habitantes e garantir que as violações cometidas sejam devidamente investigadas e reparadas.

 

XII. Os Estados membros devem continuar com seus  esforços para consolidar o imperio da lei e o Estado de Direito à luz dos padrões de nosso sistema regional, evitando retrocessos que afetem a legitimidade e a legalidade das instituições.

 

XIII. A Comissão insta os Estados membros a adotar as medidas necessárias para assegurar a independência e imparcialidade dos juízes, administrar justiça conforme as normas do devido processo legal  e fortalecer seus sistemas judiciais de modo a assegurar a proteção da justiça para aqueles que estão sob sua jurisdição.

 

XIV.         A Comissão insta os Estados membros a adotar as medidas necessárias para melhorar a situação das pessoas privadas de liberdade à luz dos padrões mínimos estabelecidos na Convenção e na Declaração Americanas e pelo  direito internacional dos direitos humanos.

 

XV.           A Comissão insta os Estados membros que, ainda não o tenham feito, a ratificar o Estatuto da Corte Penal Internacional aprovado pela Conferência Diplomática de Roma em 17 de julho de 1998 e adotar as medidas legislativas e de outro caráter necessárias para invocar e exercer a jurisdição universal frente à responsabilidade individual pelo cometimento de crimes de lesa humanidade e crimes de guerra.

 

          14.          E importante reiterar que a integridade e eficácia da proteção prestada aos habitantes do hemisfério pelo sistema depende, primordialmente, dos esfoços dos Estados membros para alcançar a universalidade do Sistema mediante a ratificação da Convenção Americana e os demais instrumentos sobre direitos humanos, bem como a aceitação da jurisdição da Corte; do cumprimento da obrigação de adaptar sua legislação interna a suas obrigações internacionais e sua devida interpretação e aplicação pelos órgãos do Estado, em especial, o Poder Judicial; e por último, do cumprimento dos compromissos internacionais e das decisões e ordens da Comissão e da Corte.

 

          15.          Há pouco mais de uma década, com o retorno dos governos eleitos livremente na maioria dos países da região, a CIDH permitiu-se prever uma promissora  etapa de reconstrução da cultura democrática que pudesse corroborar com o gozo dos direitos humanos.  Infelizmente, nesta oportunidade o diagnóstico revela o estado de incerteza no qual vivem nossas sociedades.  Segundo o estabelecido pela Carta Democrática, o exercicio efetivo da democracia representativa e a base do estado de direito e os regimes constitucionais dos Estados Membros da Organização dos Estados Americanos.  A democracia representativa é reforçada e intensificada com a participação permanente, ética e responsável da cidadania e os Estados membros têm o dever de acompanhar esta participação com a transparência das atividades governamentais, a responsabilidade e o respeito pelos direitos sociais e os direitos humanos fundamentais, de modo a contribuir para a sua consolidação e estabilidade.

 

 

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