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III. A LEI E OS SISTEMAS DE PROTEÇÃO APLICÁVEIS À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA CIDADE DE JUÁREZ
A. Direito internacional
99. Conseguir que a mulher possa exercer livre e plenamente seus direitos humanos é uma prioridade nas Américas. As obrigações fundamentais de igualdade e não discriminação constituem o eixo central do sistema regional de direitos humanos, e a Convenção de Belém do Pará estabelece o compromisso dos Estados partes de prevenir, sancionar e erradicar a violência contra a mulher, que em si é uma manifestação da discriminação baseada no gênero. A prioridade dada pela CIDH e sua Relatoria Especial à proteção dos direitos da mulher reflete também a importância que dão a esta esfera os próprios Estados membros.
100. Os princípios da não discriminação e a igual proteção da lei são pilares em todo sistema democrático e constituem bases fundamentais do sistema da OEA. O artigo 3(l) da Carta da OEA estabelece o princípio básico de que “Os Estados americanos proclaman os direitos fundamentais da pessoa humana sem fazer distinção de raça, nacionalidade, crença ou sexo”.
101. México é um Estado parte da Convenção Americana sobre Direitos Humanos desde sua adesão em 2 de março de 1981. O artigo 1 da Convenção Americana estabelece a obrigação dos Estados partes de respeitar e garantir todos os direitos e liberdades reconhecidos, sem discriminação baseada, inter alia, no sexo.[28] Quanto ao princípio da não discriminação, o artigo 24 reconhece o direito a igual proteção diante da lei, e o artigo 17 estabelece que o Estado deve garantir o igual reconhecimento dos direitos e “a adequada equivalência de responsabilidades” dos cônjuges no matrimônio. Ao reconhecer os direitos fundamentais de todas as pessoas, sem distinção, a Convenção protege direitos básicos como os da vida, a liberdade e a integridade pessoal (artigos 4, 5 e 7). O tráfico de mulheres está expressamente proibido no artigo 6. Os direitos das crianças são objeto de medidas especiais de proteção no artigo 19.
102. Os objetivos principais do sistema regional de direitos humanos e o princípio de eficácia requerem que essas garantias sejam levadas à prática. Consequentemente, quando o exercício de qualquer desses direitos ainda não está garantido jurídicamente ou na prática, os Estados partes, conforme o artigo 2 da Convenção Americana, comprometem-se a adotar as medidas legislativas e de outro tipo necessárias para implementá-los. Ademais, a Convenção Americana dispõe que o sistema nacional deve estabelecer e fazer efetivos recursos judiciais para as pessoas que reclamem sobre a violação de seus direitos dispostos na legislação nacional ou na Convenção. Quando não existe acesso a esses recursos internos ou os mesmos resultam ineficazes, os interessados podem acudir, conforme o estipulado pelo sistema interamericano, ao sistema de petições individuais.
103. Para efeitos do presente relatório, reviste de especial importância os direitos e obrigações estipulados na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (“Convenção do Belém do Pará”), ratificada pelo México em 12 de dezembro de 1998.[29] Como reflexo do consenso hemisférico sobre a necessidade de reconhecer a gravidade do problema da violência contra a mulher e adotar medidas concretas para erradicá-la, a Convenção:
- Define a violência como “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico a mulher, tanto no âmbito público como no privado”;[30]
- Reconhece expressamente a relação que existe entre violência de gênero e discriminação, indicando que tal violência é uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens, e que o direito da mulher a uma vida livre de violência inclui o direito a ser livre de toda forma de discriminação e a ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados;[31]
- Reconhece que essa violência afeta as mulheres por múltiplas vias, impidindo-lhes o exercício de outros direitos fundamentais, civis e políticos, bem como direitos econômicos, sociais e culturais;[32] e
- Dispõe que os Estados partes atuem com a devida diligência para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher, em caso de que ocorra dentro da casa ou da comunidade e perpetrada por indivíduos, ou na esfera pública por agentes estatais.[33]
104. Por conseguinte, o Estado é diretamente responsável pela violência contra a mulher perpetrada por seus agentes. Ademais, pode surgir responsabilidade estatal quando o Estado não atua com a devida diligência para prevenir a violência perpetrada por indivíduos, e para responder a mesma.
105. Ademais os Estados partes devem dispor do necessário para que essas obrigações se façam efetivas no sistema jurídico interno, e para que as mulheres em situação de risco de sofrer violênciav tenham acesso a proteção e garantias judiciais eficazes.[34] Os mecanismos de supervisão do cumprimento dessas normas compreendem a tramitação das denúncias individuais em que os peticionários alegam violações das principais obrigações através do sistema de petições já estabelecidos no contexto da Comissão Interamericana.[35]
106. O Estado mexicano é parte em vários outros instrumentos internacionais que prevêem importantes mecanismos de proteção dos direitos da mulher. Em termos gerais, os artigos 1 e 2 da Declaração Universal de Direitos Humanos, e os artigos 2 e 3 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, reconhecem oi direito à igualdade e a proibição da discriminação. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, da que o México é parte desde 1981, reforça as disposições sobre igualdade e não discriminação da Carta Internacional de Direitos ao definir a discriminação contra a mulher e dispor que os Estados partes devem adotar medidas específicas para combatê-la.[36] O Estado mexicano ratificou o Protocolo Facultativo dessa Convenção em 15 de março de 2002. Também quanto ao exame da interrelação entre a violência e a discriminação baseadas no gênero é importante assinalar que a definição de discriminação estabelecida na Convenção das Nações Unidas aplica a violência baseada no gênero .[37] A discriminação compreende:
Atos que infligem danos ou sofrimentos de índole física, mental ou sexual, ameaças de cometer esses atos, coação e outras formas de privação da liberdade. A violência contra a mulher pode contravenir disposições da Convenção, sem que espressamente falem da violência .[38]
107. Também deve-se fazer referência a Declaração sobre Violência contra a Mulher, que complementa essas normas, e comparte muitos princípios básicos com a Convenção de Belém do Pará. O Estado mexicano também é parte na Convenção sobre os Direitos da Crinaça, e em 2002 ratificou seu dois protocolos facultativos relativos a participação de crianças em conflictos armados e a venda de crianças, a prostituição infantil e a utilização de crianças na pornografia, respectivamente.
108. Cabe ressaltar que a situação na Cidade de Juárez chamou a atenção e despertou a preocupação de diferentes entidades dentro das Nações Unidas. Após sua visita de 1999, destinada a analisar a situação do direito à vida no México, a Relatora Especial das Nações Unidas para Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias expressou:
Que o Governo, ao descuidar deliberadamente da proteção das vidas dos cidadãos em razão de seu sexo, havia provocado uma sensação de insegurança para muitas das mulheres da Cidade de Juárez. Ao mesmo tempo, havia permitido indiretamente que os autores desses delitos ficassem impunes. Portanto, os eventos da Cidade de Juárez são o típico exemplo de delito sexista favorecido pela impunidade.[39]
Em seu relatório de janeiro de 2002, o Relator Especial das Nações Unidas sobre a independência de magistrados e advogados manifestou que a falta de uma resposta judicial eficaz contra os assassinatos “danou gravemente o império da lei na Cidade de Juárez”.[40] Antes de sua última missão ao México, a Alta Comissariada Mary Robinson expressou renovada preocupação pela persistência da impunidade no México, inclusive em relação aos s assassinatos não esclarecidos de mulheres.[41] Em agosto de 2002, durante o exame do relatório apresentado pelo Estado mexicano a CEDAW, o Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Violência contra a Mulher expressou preocupação com respeito aos assassinatos e desaparecimentos de mulheres na Cidade de Juárez e a falta de uma investigação conclusiva, bem como do julgamento e punição dos responsáveis.[42] Mais recentemente, a Diretora de UNIFEM afirmou sua preocupação pelos assassinatos e a impunidade, e destacou a necessidade de satisfazer melhor as necessidades dos familiares sobreviventes.[43]
B. Legislação nacional
109. As disposições legais aplicáveis no âmbito federal e estatal foram reformadas recentemente de modo a incluir avanços positivos. Através de reformas adotadas em 14 de agosto de 2001, o artigo 1 da Constituição da República foi emendado de modo a proibir todas as formas de discriminação, inclusive com base no sexo. O artigo 4 estabelece que os homens e as mulheres são iguais perante a lei, e que toda pessoa tem direito a decidir de maneira livre, responsável e informada sobre o número e o o planejamento dos filhos. A Constituição reconhece também que os homens e as mulheres tem direitos iguais com respeito a emprego, educação, nacionalidade, remuneração e participação na vida política. Com respeito a legislação do Distrito Federal, a violência familiar foi tipificada como delito no Código Penal, assim como a violação marital, e a violência foi introduzida como causa de divórcio no Código Civil.
110. As leis do Estado de Chihuahua aplicáveis aos casos de violência contra a mulher foram objeto de reformas recentes. Depois de um intenso debate parlamentar, em cujas etapas finais foram incluidas algumas consultas a sociedade civil, a violência familiar está contemplada no artigo 190 do Código Penal. Este artigo dispõe que a violência entre familiares ou entre aqueles que tenham compartido algum outro tipo de relação emocional será punida com pena de prisão de seis meses a três anos. Conquanto essa disposição seja de amplo alcance, já que compreende violência física, verbal, emocional ou sexual, o alcance de sua aplicação limita-se a atos e omissões recorrentes. É essencial que essa violência seja punida pelo Direito, por isso este artigo estabelece uma importante forma de proteção. Não obstante, a limitação de que a violência em questão deve ser de carácter recorrente foi criticada e eliminada das disposições legais similares de outras jurisdições.
111. Os delitos sexuais estão estabelecidos no Titulo Décimo-quarto do Código Penal de Chihuahua. Em relação as reformas mencionadas, a violação é sancionada atualmente como delito quando cometida contra a esposa ou a concubina do perpetrador. Com respeito ao estupro, a norma indicando que este crime não se aplicaria no caso de uma jovem não considerada “honesta” foi eliminada. Também foi esclarecida a definição de assédio sexual.
112. As revisões do Código Civil de Chihuahua adotadas em 2001 incluiram duas disposições referentes a violência familiar. A primeira estabelece que todos dois membros da familia ou unidade doméstica tem direito a que os demais membros respeitem sua integridade física, psicológica e sexual, e podem contar com o respaldo e a proteção das instituições públicas conforme a lei. A outra define a violência familiar em termos amplos e indica que os membros desses grupos estão obrigados a abster-se de condutas que gerem essa violência .
113. Em resumo, a CIDH e sua Relatora Especial observaram o debate gerado por um conjunto de reformas do Código Penal aprovado anteriormente e que foram rejeitadas por muitos como incompatíveis com os princípios da não discriminação e a protecção dos direitos da mulher .[44] A Comissão Interamericana e sua Relatora Especial valorizam a iniciativa do Governo de Chihuahua de abrir um espaço de diálogo com certa participação da sociedade civil para chegar as reformas atualmente vigentes. As reformas atualmente em vigor representam um avanço do processo em compatibilizar a legislação com as obrigações de igualdade e não discriminação. Ademais a Comissão Interamericana e sua Relatora Especial observaram a recomendação da Comissão Parlamentar Especial estabelecida para realizar o seguimento dos assassinatos, para que o Código Civil, Código Penal e Código de Procedimento Penal seja objeto de reformas adicionais destinadas a melhorar a resposta frente a violência imperante contra a mulher .[45] Conforme reconhecido pelo próprio Governo de Chihuahua em sua exposição de março de 2002 perante a CIDH, a legislação pode ser aperfeiçoada não é o suficiente por si só. É importante que prossigam com os esforços destinados compatibilizar a legislação interna com os princípios da igualdade e não discriminação.
C. O papel das entidades nacionais
114. No âmbito do Poder Executivo Federal, em 2001 foi criado o Instituto Nacional das Mulheres, INMULHERES, para promover a não discriminação, a igualdade de oportunidades e de tratamento entre os gêneros, e a possibilidade de que as mulheres exerçam plenamente seus direitos e participem na vida política, cultural, econômica e social da nação. O programa sexenal de trabalho de INMULHERES, denominado Programa Nacional para a Igualdade de Oportunidades e não Discriminação contra as Mulheres 2001-2006 (PROEQUIDAD) se aplica a todos os setores da Administração Federal e estabelece objetivos, projetos e programas específicos destinados a lograr esses fins. Entre os âmbitos prioritários de PROEQUIDAD figura a luta para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra a mulher. A época da visita da Relatora Especial foi desenhado um programa nacional sobre violência familiar e violência contra a mulher. O Instituto promoveu também a criação da Mesa Interinstitucional de coordenação de atividades referentes à violência na família e a violência contra a mulher, em que participam representantes dos diferentes poderes do governo federal e representantes da sociedade civil.
115. A maior parte dos Estados do México, incluindo Chihuahua, criaram recentemente Institutos da Mulher. Os institutos de nível estatal e INMULHERES colaboraram como iguais para institucionalizar a perspectiva de gênero em todo o país.
116. A Relatora Especial reuniu-se com a Presidenta de INMULHERES durante sua visita, para analisar as medidas que estão sendo adotadas para fazer frente a situação existente na Cidade de Juárez. A Presidenta de INMULHERES, Patricia Espinosa, indicou que a situação motiva especial preocupação no Governo, e que INMULHERES vem trabalhando em estreita relação com autoridades de Chihuahua para por em marcha mecanismos de diálogo e colaboração interinstitucional. A Presidente fez referência a Mesa Interinstitucional criada na Cidade de Juárez para coordenar iniciativas de luta contra a violência dentro da família e de violência contra a mulher dentro das diretrizes do modelo nacional acima mencionado. Com respeito à situação específica dos assassinatos, a Presdiente referiu-se às medidas que se estavam tomando para criar outra mesa (que iniciou o seu trabalho em outubro) em procura de soluções adicionais.
117. No âmbito do Poder Legislativo foram criadas Comissões de Gênero e Equidade na Câmara de Deputados e no Senado do Congresso da União. A Relatora Especial reuniu-se com membros das Comissões de Gênero e Equidade durante sua visita, e recebeu informação útil sobre o problema da violência contra as mulheres na Cidade de Juárez. A Relatora Especial reuniu-se também com membros da Comissão Especial da Câmara de Deputados criada para realizar o seguimento desses crimes. Membros da Comissão Especial visitaram a Cidade de Juárez no final de 2001 para entrevistar a familiares das vítimas, representantes da sociedade civil e diversos representantes do Estado e recolher outra informação. O trabalho e as reflexões iniciais dessa Comissão Especial ofereceram valiosas contribuições para compreender a situação. Representantes da sociedade civil assinalaram que na sua opinião seria mais produtivo que a Comissão Especial informasse publicamente os resultados de seu trabalho.
118. A CNDH e a Comissão Estatal de Direitos Humanos também tem um papel quanto a salvaguarda dos direitos e liberdades fundamentais. O valioso trabalho cumprido pela CNDH ao emitir a Recomendação 44/98 sobre os assassinatos de mulheres cometidos na Cidade Juárez, bem como a insuficiente resposta oficial, são analisadas em detalle na Seção II.E.1.a supra. Não obstante, como assinalado, não há informação sobre o seguimento institucional por parte da CNDH que garanta a aplicação das importantes recomendações contidas naquele documento. Por outra parte, até a data da visita da Relatora Especial, a Comissão de Direitos Humanos do Estado de Chihuahua não havia intervido substancialmente nesta situação.
119. Em resumo, foram adotadas importantes medidas no âmbito nacional e estadual a fim de que a legislação seja compatível com as obrigações de igualdade e não discriminação, e para criar mecanismos encarregados de incorporar a perspectiva de gênero no desenho e aplicação da política pública. Estas medidas destinadas a melhorar o contexto de garantias aplicáveis devem ser complementadas agora com medidas concretas tendentes a efetivar essas garantias. IV. O DIREITO DA MULHER DE NÃO SER OBJETO DE VIOLÊNCIA E AS OBRIGAÇÕES DO ESTADO MEXICANO DE RESPEITAR E GARANTIR ESSE DIREITO
A. Considerações gerais
120. A violência contra a mulher constitui a violação de múltiplos direitos humanos. O direito a estar isento de violência na esfera pública e na esfera privada, estipulado no artigo 3 da Convenção de Belém do Pará inclui, consequentemente, o direito à proteção de outros direitos básicos, inter alia, à vida, à integridade pessoal, à liberdade, a não ser submetida a tortura, à igual proteção perante a lei e a um acesso efetivo à justiça, estipulados no artigo 4. O artigo 5 estabelece que “Os Estados partes reconhecem que a violência contra a mulher impede e anula o exercício de tais direitos”. O artigo 6 estabelece ademais que o direito de toda mulher a uma vida livre de violência compreende o direito a ser livre de toda forma de discriminação e a ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento. Em consequência existe uma conexão integral entre as garantias estabelecidas na Convenção de Belém do Pará e os direitos e liberdades básicos estipulados na Convenção Americana, que são aplicáveis ao tratar a violência contra a mulher como violação dos direitos humanos.
121. Com respeito à situação existente na Cidade de Juárez, deve-se ter em conta também que um considerável número das vítimas respectivas eran meninas menores de 18 anos de idade. Conforme a Convenção Americana (artigo 19) e a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, as crianças tem direito a medidas especiais de proteção.
122. A violência contra a mulher representa, em primeiro lugar e primordialmente, um problema de direitos humanos; foi dada como prioridade na região, na convicção de que sua erradicação é essencial para que as mulheres possam participar plenamente e em condições de igualdade na vida nacional em todas suas esferas. A violência contra a mulher é um problema que afeta a homens, mulheres e crianças; distorce a vida familiar e o tecido social, suscitando consequências por gerações seguidas. Determinados estudos demonstram que a exposição à violência dentro da família durante a infância é um fator de risco de perpetração de atos de violência desse gênero ao chegar a idade adulta. Trata-se de um problema de segurança humana, um problema social e um problema de saúde pública.
123. Dentre os problemas mais importantes que a Relatora Especial encontrou em relação à situação existente na Cidade de Juárez estão os seguintes: primeiramente, a falta de consciêntização suficiente de que os direitos da mulher são direitos humanos, e que o direito da mulher a não ser objeto de violência é em si um direito humano que obriga o Estado mexicano a adotar medidas de prevenção e resposta. Desta forma está claro, por exemplo, a tendência de muitas pessoas, tanto no setor estatal como no não estatal, a limitar a atenção aos assassinatos caracterizados “em série” como fonte de preocupação legítima, dada sua brutalidade. Nesse sentido, não se entende que essas mortes igualmente infringem o direito a não ser objeto de violência, e manifestam na mesma medida que a vítima é considerada como um objeto ou desumanizada em função do gênero, sem importar se o perpetradores não tinham relação com crimes sexuais, ou se estão relacionadas com violência doméstica perpetrada por companheiros. O fato de que os assassinatos denominados “em série” sejam apresentados nos meios de comunicação, e considerados por muitos como chocantes, enquanto que os assassinatos produzidos em relação a violência doméstica recebem menos atenção, demonstra a existência do problema.
124. Para enfrentar os fenômenos da violência contra as mulheres na Cidade de Juárez é preciso considerar não somente os assassinatos, ms também os delitos sexuais e a violência doméstica. Esta última é, especialmente em certos aspectos, emblemática. A Relatora Especial sobre Violência contra a Mulher das Nações Unidas manifestou que:
Em seu aspecto mais complexo, a violência doméstica é um poderoso instrumento de opressão. A violência contra a mulher em geral, e a violência no lar em especial, são componentes essenciais das sociedades que oprimem a mulher, já que a violência contra ela não somente deriva dos estereotipos sexuais dominantes, mas também os sustenta e, ainda, a utiliza para controlar a mulher no único espaço que ela tradicionalmente domina: o lar.[46]
125. Em segundo lugar, subsiste uma tendência de parte de algumas autoridades a culpar a vítima por colocar-se numa situação de perigo, ou buscar soluções em que insiste que a vítima deve defender seus próprios direitos. Embora o discurso oficial na Cidade de Juárez melhorou consderavelmente desde que a Comissão Nacional de Direitos Humanos mencionou a prática notória por parte das autoridades de desacreditar as vítimas –afirmando que estas usavam saias curtas ou que eram “fáceis” ou prostitutas-- subsiste uma marcada tendência a examinar em primeiro lugar a conduta da vítima ou da família na busca de explicações. Ademais, a Relatora Especial observou que quando as autoridades ocupam-se das iniciativas de segurança pública, muitas tendem a pensar em termos de cursos de autodefesa para mulheres. Ainda que esses cursos possam ser útis, de nada servem para fazer frente as causas do problema.
126. Em terceiro lugar, visto que a nível oficial são limitadas as dimensões de gênero desses delitos, a tendência é tratá-los como questões de gênero da mulher ou problemas da mulher, em lugar de serem enfrentados através da incorporação da perspectiva de gênero no desenho e aplicação de políticas públicas na Cidade de Juárez. (Como já assinalado na Secção E.2, a Relatora Especial percebeu, durante sua visita, certa divisão baseada no gênero quanto as funções cumpridas por mulheres e homens em relação aos assassinatos).
127. Em quarto lugar, o talvez o mais importante, embora haja um consenso por parte do setor estatal e da sociedade civil que a violência contra a mulher na Cidade de Juárez é um problema de graves proporções, a análise da Relatora Especial confirma que este problema não foi enfrentado com medidas que correspondam a essa gravidade. O fato de que a grande maioria desses delitos contra a mulher permanecam impunes requer uma resposta urgente.
128. A violência descrita no resumo acima tem suas raízes em conceitos referentes à inferioridade e subordinação das mulheres. Quando os perpetradores não são responsabilizados --como em geral ocorreu na Cidade de Juárez-- a impunidade confirma que essa violência e discriminação é aceitável, o que fomenta sua perpetuação. Conforme assinalado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em relação as violações de direitos humanos em geral, o Estado tem a obrigação de combater situações de impunidade por todos os meios legais disponíveis, já que a impunidade _”propicia a repetição crônica” das violações de direitos humanos “e a põe indefesos as vítimas e de seus familiares”.[47]
129. Ao examinar esta obrigação em relação a violência doméstica em especial, a Comissão Interamericana insiste que a omissão de processar e punir de forma eficaz os responsáveis na prática implica a aquiescência do Estado a esse respeito. Nos casos em que essa inação e tolerância formam parte de uma modalidade, “é uma tolerância de todo o sistema, que não faz senão perpetuar as raízes e fatores psicológicos, sociais e históricos que mantêm e alimentam a violência contra a mulher ”.[48] Isto cria o ambiente “que facilita a violência doméstica” porque a sociedade não percebe que o Estado esteja disposto a adotar medidas efetivas contra ela.[49]
130. Conquanto as autoridades dos Governos Federal e de Chihuahua tenham manifestado seu compromisso de combater essa impunidade, esse compromiso não foi traduzido ainda em medidas e resultados eficazes quanto a experiência vivida pelas mulheres na Cidade de Juárez.
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[28] O artigo 3 do Protocolo Adicional a Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (“Protocolo de San Salvador”), de que o México é parte desde 1996, estabelece uma obrigação similar com respeito ao exercício dos direitos reconhecidos nessa Convenção. [29] Ademais da Convenção Americana, o Protocolo de San Salvador e a Convenção de Belém do Pará, o México também pe parrte da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas e a Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas com Deficiência Física. [30] Ver artigos 1, 2 e 3. [31] Ver preâmbulo, artigos 4, 6. [32] Ver preâmbulo, artigos 4, 5. [33] Ver artigos 7, 2. [34] Ver artigo 7; ver também os artigos 8 e 9. [35] Ver os artigos 10-12. Estes mecanismos incluem também a apresentação de relatórios, pelos Estados parte, a Comissão Interamericana de Mulheres (“CIM”) da OEA. [36] O artigo 1 define essa discriminação nos seguintes termos: Toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo que tenha por objeto ou por resultado menosprezar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e a mulher, dos direitos humanos e as liberdades fundamentais nas esferas política, econômica, social, cultural e civil ou en qualquer outra esfera. A definição compreende toda diferença de tratamento baseada no sexo que intencionalmente ou por inadvertência estabeleça desventagens para a mulher, impeça o pleno reconhecimento por parte da sociedade nas esferas pública e privada, ou impeça a mulher de exercer os direitos humanos de que é titular. [37] Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher , Recomendação Geral No. 19 (11º período de sessões, 1992) “A violência contra a mulher ”, parágrafo 6. [38] Ídem. [39] Relatório da Relatora Especial Asma Jahangir, E/CN.4/2000/3/Add.3, 25 de novembro de 1999, parágrafo 89. [40] Relatório do Relator Especial Dato’Param Cumaraswamy, E/CN.4/2002/72/Add.1, 24 de janeiro de 2002, parágrafo 161. [41] Ver, por exemplo, Kyra Nuñez, “Mary Robinson expressa preocupação pela persistência da impunidade no México”, La Jornada, edição de Internet de 28 de junho de 2002, www.jornada.unam.mx. [42] “Consideração dos relatórios dos Estados partes”, CEDAW/C/2002/EXC/CRP.3/Rev.1, 23 de agosto de 2002 [esboço de avanço], parágrafo 24. [43] Ver, Rosa Elvira Vargas, “O titular de Unifem junta-se ao clamor de justiça pelas mortes de Juárez”, La Jornada, 4 de dezembro de 2002, www.jornada.unam.mx. [44] Ver, por exemplo, o anúncio pago publicado por INMULHERES em que demonstra grave preocupação quanto as reformas anteriores, que restringiam a aplicabilidade de determinados tipos delituosso e reduziam a punição de outros como um sério retrocesso para a proteção dos direitos da mulher e das vítimas. [45] Ver, Relatório da Comissão Especial para Esclarecer os Homicídios de Mulheres na Cidade de Juárez, Chihuahua, 15 de dezembro de 2001, proposta 7. [46] Relatório da Relatora Especial sobre a violência contra a mulher, suas causas e consequências, Sra. Radhika Coomaraswamy, apresentado de conformidade com a Resolução 1995/85 da Comissão de Direitos Humanos, E/CN.4/1996/53, 6 de fevereiro de 1996, parágrafo 27. [47] Corte IDH, Caso Paniagua Morales e outro s. Sentença de 8 de março de 1998 (Fondo), parágrafo 173. [48] CIDH, Caso 12.051, María da Penha Maia Fernandes, Brasil, 16 de abril de 2001, parágrafo 55. [49] Ídem, parágrafo 56.
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