RELATÓRIO Nº 2/02

ADMISSIBILIDADE

CASO 12.313

COMUNIDADE INDÍGENA YAXYE AXA DEL PUEBLO ENXET-LENGUA

PARAGUAI

27 de fevereiro de 2002

 

 

I.            RESUMO

 

1.            Em 10 de janeiro de 2000, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada "a Comissão" ou a “CIDH”) recebeu uma petição apresentada por Tomás Galeano e Esteban López, líderes da  Comunidade Indígena Yaxye Axa do Povo  Enxet-Lengua, representados pela  Organização Tierraviva para los Pueblos Indígenas del Chaco (doravante denominada “TIERRAVIVA”) e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (doravante denominado “CEJIL”),  (todos doravante denominados “os peticionários"), em favor da  Comunidade Indígena Yaxye Axa del Povo Enxet-Lengua e seus membros, (doravante denominada a “Comunidade Indígena Yakye Axa” ou a “Comunidade Indígena”) contra a  República do Paraguai (doravante denominada o “Estado paraguaio”, “Paraguai” ou o “Estado”). Na petição se alega que o Estado paraguaio violou os artigos 4 (direito à vida), 25 (proteção judicial) em conjunção com o 1.1 (obrigação de respeitar os direitos) contemplados na  Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada “a Convenção” ou a “Convenção Americana”). Além disso, a petição alega que o Estado desconheceu o artigo 27 do Pacto de Direitos Civis e Políticos (doravante denominado “o PIDCP) e os artigos 1(2), 2(1), 4(1) e 5(a) do Convênio 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da  Organização Internacional do Trabalho (doravante denominado o “Convênio 169"), em detrimento da   Comunidade Indígena e seus membros, por não providenciar assistência integral à Comunidade enquanto perdura o processo de reivindicação de território tradicional, não finalizar o trâmite administrativo de recuperação de terras e por proibir suas atividades econômicas tradicionais de subsistência, isto é, a caça, a pesca e a colheita.

 

2.            Com respeito à admissibilidade, os peticionários alegam que sua petição é admissível, por aplicação das exceções contempladas nos requisitos de esgotamento de recursos internos e de prazo de apresentação da  petição, previstos no  artigo 46(2) (a) e (b) da  Convenção. Por sua parte, o Estado ofereceu, desde o início, um processo de solução amistosa e participou ativamente deste processo.

 

3.            A Comissão, após analisar as posições das partes e o cumprimento dos  requisitos previstos nos  artigos 46 e 47 da  Convenção concluiu que é competente para conhecer a petição e a declarou admissível.

 

II.            TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

4.            Em 10 de janeiro de 2000, a Comissão recebeu a petição contra o Estado paraguaio. Em 27 de julho de 2000 a Comissão transmitiu as partes pertinentes ao Estado e solicitou que este encaminhasse a informação que considerasse oportuna no prazo de 90 dias.

5.            Em 16 de outubro de 2000 o Estado manifestou seu interesse de iniciar um processo de solução amistosa. A Comissão solicitou aos peticionários suas observações.

 

6.            Em 1° de março de 2001, durante o 110° período de sessões da  Comissão, foi celebrada uma audiência com a presença de representantes de ambas partes e os peticionários apresentaram as bases para o processo de negociação. Em 10 de abril o Estado enviou informação adicional.

 

7.            Em 10 de setembro  de 2001, os peticionários remeteram uma comunicação à Comissão, na qual informam sobre sua decisão de retirar-se do processo de solução amistosa e solicitaram a adoção de medidas cautelares em favor da Comunidade Indígena. Em 11 de setembro de 2001 a Comissão solicitou ao Estado informação sobre a solicitação de medidas cautelares e em 14 sobre a nota de retirada do processo de solução amistosa. No mesmo dia o Estado remeteu à CIDH informação sobre o pedido de medidas cautelares, a qual foi transmitida aos peticionários. Em 20 e 25 de setembro de 2001, os peticionários enviaram suas observações.

 

8.            Em 26 de setembro de 2001 a Comissão solicitou ao Estado a adoção de medidas cautelares em favor da  Comunidade Indígena Yakye Axa. Em 1° de outubro de 2001, os peticionários encaminharam  à Comissão informação adicional. Em 12 de outubro de 2001, o Estado informou sobre a adoção das medidas cautelares e a Comissão transmitiu as partes pertinentes aos peticionários. Em 2 e 7 de novembro de 2001, as partes enviaram informação adicional.

 

9.            Em 12 de novembro de 2001, durante o 113° período de sessões da  Comissão, as partes subscreveram um “Acordo de Apromixação de Vontades”.

 

10.            Em 19 de dezembro de 2001, o Estado e os peticionários, respectivamente, remeteram informação adicional, a qual foi trasladada às partes para observações. Em 2 de janeiro de 2002, o Estado enviou informação adicional, a qual foi transmitida aos peticionários para suas observações. Em 19 de janeiro de 2002, os peticionários comunicaram sua decisão de retirar-se do processo de solução amistosa, nota que foi trasladada ao Estado em 22 de janeiro de 2002.

 

A.            Medidas cautelares

 

11.            Em 11 de setembro de 2001, os peticionários solicitaram à Comissão a adoção de medidas cautelares em favor da  Comunidade Indígena Yakye Axa, em atenção a “graves acontecimentos registrados nas últimas horas e que punham em sério risco a segurança e a integridade das famílias da Comunidade”. Manifestaram que o juiz do Juizado Penal de Liquidação e Sentença da Circunscrição Judicial de Concepção, na causa sobre “Averiguação de invasão de imóvel alheio, coação grave e furto na Fazenda Loma Verde”, ordenou o  retirada das residências dos membros da  Comunidade Indígena, localizadas nuna faixa de domínio público de uso e jurisdição da  Direção de Serviço Público. Afirmam que durante o  processo de solução amistosa o Estado comprometeu-se a garantir a ocupação pacífica dessa área por parte dos membros da comunidade.[1] Entretanto, no dia 29 de agosto o Instituto Nacional do Indígena (doravante denominado “INDI”), foi notificado pelo  tribunal mencionado da  resolução que ordenava, em conjunto com o Ministério de Obras Públicas e o Ministério do Interior, executar a retirada das residências da  Comunidade. Informaram os peticionários que neste juizo contra a Comunidade, não lhes permitiu designar um advogado, de modo que alegam que a Comunidade ficou absolutamente sem defesa e poderia ser desalojada nas próximas horas. A solicitação de medidas cautelares foi enviada ao Estado em 11 de setembro de 2001, para que este enviasse informação à  Comissão em 4 dias.

 

12.            Em 26 de setembro de 2001, a Comissão, tendo presente a informação recebida do Estado e dos  peticionários, solicitou a adoção de medidas cautelares em favor da  Comunidade Indígena Yakye Axa:

 

1.  Suspender a execução de qulaquer orden judicial ou administrativa que implique no  despejo e/ou retirada das residências da Comunidade Indígena Yaxye Axa e de seus membros, até que os órgãos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos tenham  examinado a presente petição e adotado uma decisão definitiva sobre o fondo do assunto.

 

2.  Abster-se de realizar qualquer outro ato ou diligência, que afete o direito à propriedade e à circulação e residência da  Comunidade Indígena Yakye Axa e de seus membros.

 

3.  Adotar todas as medidas necessárias para assegurar a vida e integridade física, psíquica e moral dos membros da Comunidade Indígena Yakye Axa, tendo em consideração os fundamentos e disposições do Decreto Presidencial N° 3789 de 23 de junho de 1999.

 

13.            Em 12 de outubro de 2001, o Estado informou à CIDH sobre a adoção das medidas cautelares, expressando que o Presidente da  Corte Suprema de Justiça e Ministro encarregado de questões relativas a Direitos Humanos, Dr. Raúl Sapena Brugada, havia solicitado o expediente ao juiz que decretou a retirada das residências da  Comunidade Indígena e pedido aos Ministérios de Obras Públicas e do Interior suspender todo trâmite de despejo da Comunidade Yakye Axa.

 

14.            Em 2 de novenbro de 2001, os peticionários informaram à Comissão que valorizavam as medidas adotadas pelo Presidente da Corte Suprema, que foram oportunas e céleres, de conformidade com a gravidade da situação. Afirmam que a adoção por parte do Estado das medidas cautelares solicitadas pela CIDH havia sido parcial, considerando que a resolução judicial que ordenava o retirada das residências da  Comunidade não tinha sido revogada, que não se tinha assegurado a ocupação pacífica do lugar onde se encontrava a Comunidade e que não tinha implementado as medidas necessárias para assegurar a vida e a integridade física, psíquica e moral dos  membros da  Comunidade.

 

B.            Processo de solução amistosa

 

15.            Nas suas primeiras observações, o Estado solicitou à CIDH que se colocasse à disposição das partes a fim de chegar a uma solução amistosa. Duante este processo, as partes realizaram reuniões em Assunção, Paraguai. Na  reunião realizada em 27 de março de 2001 as partes resolveram sobre o reconhecimento das terras reivindicadas pela Comunidade Indígena como parte de seu habitat tradicional, fundamentado no relatório elaborado pelo  antropólogo Chase Sardi, a pedido do INDI.[2]

 

16.            Em 10 de setembro de 2001, os peticionários informaram à CIDH sua decisão de retirar-se do processo de negociação, aceitando os resultados obtidos até aquela data e as possibilidades de solução do assunto por essa via. Sua decisão foi baseada no fato de que, embora o Estado tenha reconhecido o direito ancestral da Comunidade sobre as terras que reivindicam, não haviam sido adotadas as medidas que representavam a reparação, ou ao menos um início de reparação efetiva dos  direitos humanos violados da Comunidade. Afirmam que, contrariamente à vontade manifestada pelo Estado, existia uma ordem de retirada das residências da Comunidade, emitida por um juiz da Circunscrição Judicial de Concepção.

 

17.            Durante a reunião de trabalho realizada perante a CIDH em 12 de novembro de 2001, as partes subscreveram um “Acordo de Aproximação de Vontades”, obrigando-se a informar à Comissão sobre o cumprimento dos  compromissos. Em 19 de dezembro de 2001 as partes informaram à Comissão sobre as gestões realizadas no  marco do cumprimento do acordo mencionado.

 

18.            Em virtude das manifestações contidas na nota enviada pelo  Estado de 2 de janeiro de 2002, os peticionários informaram a Comissão sobre sua decisão de retirar-se do processo de solução amistosa, decisão que foi tomada pela Assembléia da Comunidade Indígena Yakye Axa.

 

III.          POSIÇÕES DAS PARTES

 

A.            Os peticionários

 

19.            Os peticionários alegam que o Estado do Paraguai violou os artigos 4 e 25, em conjunção  com o 1(1) da  Convenção; e que o Estado desconheceu o artigo 27 do PIDCP e os artigos 1(2), 2(1), 4(1) e 5.a do Convênio 169, em detrimento da Comunidade Indígena Yakye Axa, do Povo Enxet-Lengua e seus membros, por não providenciar assistência integral à Comunidade enquanto perdura o processo de reivindicação de território tradicional, não finalizar o trâmite administrativo de recuperação de terras e por proibir suas atividades econômicas tradicionais de subsistência, isto é, a caça,a pesca e a colheita.

 

20.            Os peticionários afirmam que a Comunidade Indígena Yakye Axa pertence ao Povo Exet-Lengua, que seus integrantes são caçadores e agricultores e que vem praticando estas atividades historicamente em seu habitat tradicional. Manifestam que a Comunidade está constituída por 47 famílias[3] e desde o ano 1996 está assentada no quilômetro 80, nas margens da rodovia que une Pozo Colorado a Concepção, frente à Fazenda Loma Verde, no estado de Presidente Hayes, onde está localizado o território que reivindicam como ancestral ou habitat tradicional.

 

21.            Com respeito ao processo de recuperação de seu território ancestral, alegam que no  ano 1993 iniciaram as gestões administrativas e judiciais pertinentes, porém, o  processo continua pendente, apesar da Constituição Política de Paraguai reconhecer a existência dos  povos indígenas, definidos como grupos de cultura anteriores à formação e organização do Estado paraguaio e contemplar que é dever do Estado providenciar gratuitamente de propriedade comunitária aos povos indígenas “na  extensão e qualidade suficientes para a conservação e desenvolvimento de suas peculiares formas de vida”.[4]

 

22.            Alegam na  denúncia que o lugar onde atualmente está instalada a Comunidade Indígena é inapto para a vida das famílias que a integram. Manifestam que a fumaça dos  automóveis e o pó constante que levanta o trânsito fluido e permanente vem gerando graves consequências à saúde de seus habitantes mais vulneráveis, ou seja, os idosos e crianças. Alegam que a  maioria das crianças da  comunidade apresentam doenças respiratórias, e que não são tratadas pela  falta de assistência médica e sanitária, situação agravada pela  falta de recursos alimentares, dado que os membros da comunidade são proibidos por ordem judicial a caçar e pescar nas terras que reivindicam como ancestrais, o que lhes impede de sustentar suas famílias com alimentos básicos. Assinalam que quatro pessoas da   Comunidade  faleceram por causa de doenças bronco-respiratórias.

 

23.            A grave situação sanitária e alimentar que vive a Comunidade foi reconhecida pelo Estado do Paraguai quando, em 23 de junho de 1999, este decretou o Decreto N° 3789/99, declarando estado de emergência na comunidade e ordenando que lhes fosse outorgada  assistência sanitária e alimentar, enquanto durasse o processo de reivindicação da  terra.

 

24.            Os peticionários afirma que a situação deplorável em que vivem os membros da  Comunidade Indígena foi constatada pela CIDH, durante a  visita in loco ao Paraguai realizada em 1999.[5]

 

25.            Apesar do reconhecimento expresso do Estado, através do decreto mencionado, da  situação de emergência em que se encontra a Comunidade Indígena, o “fornecimento de atenção médica e alimentar” ordenada pelo Presidente da República para as famílias da  Comunidade tem sido escassa e deficitária.

 

26.            Em relação ao processo de solução amistosa iniciado perante a CIDH durante o trâmite desta denúncia, os peticionários, em 19 de janeiro de 2002, informaram que se retiravam da  negociação por decisão dos membros da Comunidade, tendo em vista que continuar neste processo apenas prolongaria ainda mais qualquer solução.

 

B.            O Estado

 

27.            O Estado manifestou nas suas primeiras observações à denúncia seu interesse em iniciar um processo de solução amistosa; e adiantou sua disposição de instalar uma mesa de diálogo com os peticionários a fim de chegar a um bom entendimento com respeito a esta petição, tendo em consideração a experiência do caso das  Comunidades Indígenas Enxet-Lamenxay e Kayleyphapopyet - Riachito, N° 11.173.

 

            28.            O Estado informou à Comissão sobre o Decreto Presidencial N° 3789/99, de 23 de junho de 1999, que declarou  estado de emergência na Comunidade Yakye Axa e ordenou que lhe fosse concedida assistência sanitária e alimentar. Em suas partes pertinentes, o Decreto dispõe:

 

Que, por sua parte, a comunidade Yakye Axa do Povo Enxet Lengua, composta de cinquenta e sete famílias tenta reivindicar 15.000 hectáres de seu território tradicional, e que enquanto aguardam a solução de seu pedido, estabeleceram-se em frente as terras solicitadas, na faixa  de segurança do trecho entre Pozo Colorado e Concepção no Km. 80.

 

Que estas comunidades estão privadas do acesso aos meios de subsistência tradicionais ligados a sua identidade cultural, devido a proibição dos proprietários ao ingresso destes no  habitat reclamado como parte de seus territórios ancestrais.

 

Que esta circunstância dirimida atualmente em instâncias administrativas e judiciais dificulta o normal desenvolvimiento da vida destas comunidades nativas, em razão da  falta de meios de alimentação e de assistência médica mínimos e indispensáveis, é uma preocupação do Governo que exige uma resposta urgente.

 

Que, sendo de interesse público a tutela de preservação dos povos  indígenas da  nação conforme claras disposições contidas no  capítulo V da  Constituição Nacional, as leis 904/84 “Estatuto das comunidades indígenas” e 234/93 “Que aprova o Convênio 169 da  OIT”, e sendo obrigação do Estado prover atenção pública e socorro para prevenir ou tratar casos de necessidades peremptórias, conforme dispõe a norma mencionada, cabe apoiar as Comunidades Indígenas Yakye Axa e Sawhoyamaxa.

 

PORTANTO,

 

O PRESIDENTE DA  REPÚBLICA DO PARAGUAI DECRETA:

 

Artigo 1° Declaro estado de emergência nas comunidades indígenas Yaxye Axa  e Sawhoyamaxa do Povo  Enxet Lengua do Distrito de Pozo Colorado do estado de Presidente Hayes, Chaco Paraguaio.

Artigo 2° Disponha-se que o Instituto Paraguaio do Indígena conjuntamente com os Ministérios do Interior e de Saúde Pública e Bem-estar Social execute as ações necessárias para a imediata concessão de assistência médica e alimentar às familias integrantes das comunidades mencionadas, durante o iempo que durem os  trâmites judiciais referente à regularização das terras reclamadas como parte do habitat tradicional das mesmas.[6]

          29.            Em relação ao processo de reivindicação de terras, o Estado informou que as terras reivindicadas pela Comunidade Indígena foram declaradas parte de seu habitat tradicional.

 

            30.            O Estado participou ativamente das reuniões celebradas entre as partes em Assunção e em Washington D.C.

 

IV.       ANÁLISE SOBRE COMPETÊNCIA E ADMISSIBILIDADE

 

A.         Competência ratione loci, ratione pessoae, ratione temporis e ratione materiae da  Comissão

 

31.            Os peticionários encontram-se facultados, em princípio, pelo  artigo 44 da  Convenção Americana para apresentar denúncias perante a CIDH. A petição assinala como supostas vítimas indivíduos,[7] a respeito das quais o Estado paraguaio  comprometeu-a respeitar e garantir os direitos consagrados na  Convenção Americana. No que se refere ao  Estado, a Comissão assinala que o Paraguai é um Estado parte na Convenção Americana desde 24 de agosto de 1989, data em que depositou seu  instrumento de ratificação. Portanto a Comissão tem competência ratione pessoae para examinar a petição.

                       

32.            A Comissão tem competência ratione loci para conhecer a petição, visto que esta alega  violações de direitos protegidos na  Convenção Americana que teriam  tido lugar dentro do território de um Estado parte neste tratado.

 

         33.            A CIDH tem competência ratione temporis porque a obrigação de respeitar e garantir os direitos protegidos na Convenção Americana já se encontrava em vigor para o Estado na data em que ocorreram os fatos alegados na  petição.

 

34.            Finalmente, a Comissão tem competência ratione materiae, porque a  petição denuncia violações a direitos humanos protegidos pela  Convenção Americana.

 

35.            Com relação ao pedido dos peticionários que seja declarado que o Estado do Paraguai desconheceu o artigo 27 do PIDCP e os artigos 1(2), 2(1), 4(1) e 5(a) do Convênio 169 da  OIT, a Comissão carece de competência a este respeito, sem prejuízo de poder utilizá-los como pauta de interpretação das obrigações convencionais, à luz do disposto no  artigo 29 da  Convenção.

 

B.            Requisitos de admissibilidade

 

1.            Esgotamento dos  recursos internos

36.            O artigo 46(1) da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos estabelece que para que uma petição ou comunicação apresentada conforme os artigos 44 ou 45 seja admitida pela  Comissão, é necessário o esgotamento prévio dos  recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios do direito internacional geralmente reconhecidos. O  artigo 46(2) da  Convenção Americana estabelece que a disposição do artigo 46 (1)(a) não será aplicada quando: a) não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados;b) não se houver permitido ao suposto prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; e c) houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.

 

37.            Em relação à recuperação do território ancestral da Comunidade Indígena,  principal aspecto da petição, os peticionários informam que em 1993 iniciaram os trâmites contemplados na legislação interna do Paraguai para tal objetivo. No Instituto de Bem-estar Rural (IBR), teve início o expediente N° 7261/93, no qual envolve também o INDI. Assinalam  que trasncorreram mais de 8 anos desde que iniciaram as gestões e até esta data a Comunidade não obteve as suas terras. Isto implica que o procedimento leva mais de oito anos sem ter sido finalizado.

 

          38.            Portanto, dadas as características do presente caso, a Comissão considera que é aplicável a exceção prevista no artigo 46(2)(c) da Convenção Americana, visto que os  requisitos previstos na  Convenção Americana em matéria de esgotamento dos  recursos internos não são aplicáveis.

 

          2.            Prazo de apresentação

 

39.            O artigo 46(1)(b) da Convenção Americana estabelece que para admitir uma petição é necessário: “que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o suposto ofendido em seus direitos tenha sido notificado da  decisão definitiva”. Conforme o artigo 32(2) do Regulamento da  Comissão, este prazo não é aplicável quando há  exceções à regra do prévio esgotamento dos  recursos. O Regulamento prevê que a petição deve ser apresentada dentro de um prazo razoável, tomando em conta a data da  suposta violação e as circunstâncias especiais do caso.

 

40.            A Comissão observa que transcorreram mais de oito anos desde que os representantes da Comunidade Indígena Yakye Axa iniciaram os trâmites para a recuperação de suas terras ancestrais, sem que até esta data a autoridade correspondente tenha resolvido este processo. Ao aplicar-se a exceção de demora injustificada, pode-se concluir que não existe uma decisão definitiva na jurisdição interna. Portanto, a CIDH considera que a petição foi apresentada dentro do prazo razoável estabelecido pela  Convenção.

 

3.            Duplicação de procedimentos e coisa julgada

 

41.            O artigo 46(1)(c) e 47(d)  da  Convenção estabelece que para que uma petição ou comunicação seja admitida pela  Comissão, a matéria da  mesma não deve estar pendente de outro procedimento internacional e que não seja substancialmente a reprodução de petição ou comunicação anterior já examinada pela Comissão ou outro organismo internacional. por outro organismo internacional.

 

42.            Não surge do expediente que a matéria da petição esteja pendente de outro procedimento de acordo internacional, nem que reproduza uma petição já examinada pela  Comissão ou por outro organismo internacional.

 

43.            Portanto, a Comissão conclui que foram cumpridos os requisitos estabelecidos nos  artigos 46(1)(c) e 47(d) da  Convenção.

 

4.            Caracterização dos fatos alegados

 

44.            O artigo 47(b) da  Convenção estabelece que será inadmissível toda petição que “não exponha fatos que caracterizem uma violação dos direitos garantidos pela  Convenção”.

 

45.            A Comissão considera que as alegações dos peticionários, se provadas verdadeiras, poderiam caracterizar uma violação aos direitos garantidos nos  artigos 4 e 25 da  Convenção, em concordância com seu artigo 1(1) do mesmo instrumento internacional. A Comissão observa que os peticionários não alegaram violações dos artigos 21 e 8. A CIDH considera que não é necessáario que as petições assinalem cada um dos  direitos supostamente violados. A este respeito e à luz da  recente jurisprudência da  Corte[8] sobre o direito de propriedade indígena, a Comissão conclui que as alegações dos peticionários poderiam configurar uma violação dos artigos 21 e 8 da  Convenção.

 

46.            Com base no exposto, a Comissão considera que foram satisfeitos os requisitos estabelecidos no  artigo 47(b) e (c) da  Convenção Americana.

 

 

V.            CONCLUSÕES

 

47.            A Comissão Interamericana conclui que tem competência para conhecer o mérito deste caso e que a petição é admissível de conformidade com os artigos 46 e 47 da  Convenção Americana. 

 

48.            Com base nos argumentos de fato e de direito expostos anteriormente, e sem prejulgar o mérito da questão,

 

 

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.           Declarar admissível a denúncia dos  peticionários sobre a suposta violação dos  artigos 4, 21, 25, 8 e 1(1) da Convenção Americana em detrimento da Comunidade Indígena Yaxye Axa do Povo Enxet-Lengua e seus membros.

 

2.            Notificar as partes desta decisão.

 

3.            Continuar com a análise sobre o mérito da questão.

 

4.            Publicar esta decisão e incluí-la no Relatório Anual a ser apresentado à Assembléia Geral da  OEA.

 

Dado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., no dia 27 de fevereiro de 2002. (Assinado): Juan Méndez, Presidente; Marta Altolaguirre, Primeira Vice-Presidente; José Zalaquett, Segundo Vice-Presidente, Membros da Comissão  Robert K. Goldman, Julio Prado Vallejo, Clare K. Robert.


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[1] Consta na resolução Nº 4 da ata de reunião celebrada pelas partes em Assunção, Paraguai, o dia 24 de julho de 2001.

[2] O “Relatório Antropólogico sobre a Comunidade Yakye Axa (Loma Verde) do Povo Exet-Lengua”, elaborado pelo  Antropólogo Chase Sardi, obra consta do expediente.

[3] O Decreto Presidencial N° 3789/99, de 23 de junho de 1999, que declarou estado de emergência na Comunidade Yakye Axa, manifesta que a Comunidade está composta de 57 famílias.

[4] Artigo 64 da  Constituição Política do Paraguai.

[5] Na ocasião da  visita in loco a Paraguai no ano 1999, a “CIDH dirigiu-se ao Distrito de Pozo Colorado a fim de entrevistar as comunidades indígenas Yakye Axa e Sawhoyamaxa do Povo Enxet. A Comissão conheceu a situação deplorável na  qual se encontram estes povos, vivendo as margens da rodovia nacional sem nenhum tipo de serviços, e na espera de que os órgãos competentes lhes designem as terras requeridas. A Comissão valoriza a importância do Decreto Presidencial No. 3789 de 23 de junho de 1999, mediante o qual o Estado declarou o ‘estado de emergência’ destas comunidades indígenas, em virtude da  situação extrema na qual se encontram. Não obstante, a Comissão foi informada por estas comunidades indígenas, que os órgãos competentes ainda não adotaram as medidas efetivas ordenadas pelo Decreto Executivo, para a imediata provisão de atenção médica e alimentar às famílias integrantes desta comunidade. A Comissão continuará  observando com atenção o resultado dos procedimentos iniciados, a fim de designar as terras requeridas as Comunidades indígenas.” Comunicado de Imprensa 23/99 da  CIDH.

[6] Decreto N° 3789/99, do Presidente da  República do Paraguai.

[7] Os peticionários aportaram um censo da comunidade indígena com a individualização de cada um dos seus membros.

[8] “Entre os indígenas existe uma tradição comunitária sobre uma forma comunal da  propriedade coletiva da  terra, no  sentido de que a posse desta não se centra num indivíduo mas sim num grupo e sua comunidade.  Os indígenas pelo fato de sua própria existência tem direito a viver livremente em seus próprios territórios; a estreita relação que os indígenas mantém com a terra deve de ser reconhecida e compreendida como a base fundamental de suas culturas, sua vida espiritual, sua integridade e sua sobrevivência econômica.  Para as comunidades indígenas a relação com a terra não é meramente uma questão de posse e produção mas de um elemento material e espiritual de que devem gozar plenamente, inclusive para preservar seu legado cultural e transmiti-lo as gerações futuras”. Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso da  Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni contra Nicarágua. Sentença de Mérito de 31 de agosto de 2001.