RELATÓRIO Nº 129/01

CASO 12.389

JEAN MICHAEL RICHARDSON

HAITI

3 de dezembro de 2001

 

 

I.          RESUMO

 

1.                 Em 21 de dezembro de 2000, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada a “Comissão Interamericana”, a “Comissão” ou “a CIDH”) recebeu uma petição do senhor Jean Michael Richardson (doravante denominado “o peticionário”), contra a República de Haiti (doravante denominada “o Estado” ou “Haiti”), cujos fatos caracterizam supostas violações dos direitos à liberdade pessoal (artigo 7), as garantias judiciais (artigo 8) e proteção judicial (artigo 25), em conjunção com o dever geral do Estado em respeitar e garantir os direitos (artigo 1(1)), todos estabelecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada a “Convenção” ou a “Convenção Americana”).

 

2.                 O peticionário alega que em 8 de fevereiro de 1998 foi arbitrariamente detido em Jean Rabel, município do Departamento de Nord Ouest, dependente da jurisdição de Port de Paix, por parte de membros da polícia, e levado à prisão de Petion Ville, onde se encontra atualmente, sem ter sido levado perante o juiz natural competente. Além disso, alega que em virtude de diversos recursos interpostos na jurisdição interna, a autoridade judicial competente ordenou sua liberdade em 1º de junho de 1998, mas esta ordem não foi cumprida até esta data.

 

3.                 O Estado não apresentou resposta aos fatos alegados pelos peticionários, nem questionou a admissibilidade da petição sob exame.

 

4.                 A CIDH, de conformidade com o disposto nos artigos 46 e 47 da Convenção Americana, decide admitir a petição, no que respeita a eventuais violações dos artigos 1(1), 7, 8 e 25 da Convenção Americana, e iniciar o procedimento sobre o mérito da questão. A Comissão decide igualmente notificar as partes desta decisão, publicá-la e incluí-la no seu Relatório Anual a Assembléia Geral da OEA.

 

II.                  TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

5.                 Em 21 de setembro de 2000 o senhor Richardson apresentou uma petição a CIDH. Em 10 de novembro de 2000, a CIDH remeteu ao Estado a petição e solicitou informação com um prazo de 30 dias, de conformidade com o artigo 30 do Regulamento vigente nessa data. Em 16 de novembro de 2000, o Estado informou a CIDH que havia recebido a comunicação de 10 de novembro. Em 1º de dezembro de 2000 a CIDH recebeu informação suplementar do peticionário, a qual continha: 1) cópia do recurso de habeas corpus relativo a sua liberdade; 2) cópia da ordem emitida por Leonard de Port de Paix assinalando que não era competente para decidir sobre a prisão do senhor Richardson; 3) cópia da decisão ditada pela Corte de Apelação que nega outorgar a liberdade ao senhor Richardson tendo em conta a ordem do Tribunal de Port de Paix, e 4) cópia assinada do antigo Comissário do Governo de Port de Paix relativa a sua prisão.  E 11 de abril de 2001, os peticionários apresentaram a CIDH informação adicional relativa ao caso: 1) comunicação do Comissário do Governo Josue Pierre Louis, datada em 15 de fevereiro de 2001, através da qual ordena o responsável da APENA que ponha em liberdade Jean Michel Richardson em virtude de uma ordem emitida em 1º de junho de 1998 e várias notas da imprensa local que se referem à prisão do senhor Richardson.

 

6.                 Em 12 de junho de 2001, a CIDH encaminhou ao Estado cópia da comunicação do peticionário e seus anexos, e reiterou seu pedido de informação, remetendo cópia das comunicações anteriores do peticionário. Em 12 de setembro de 2001 (recebida em 24 de setembro), o Estado somente informou que havia recebido em 2 de agosto de 2001 a comunicação da CIDH datada de 12 de junho de 2001.  Em 27 de setembro de 2001 a CIDH informou ao Estado que esperaria a informação que lhe havia solicitado.  Em 29 de outubro de 2001 o peticionário enviou uma nova comunicação reiterando que ainda encontrava-se detido apesar das ordens de liberdade emitidas a seu favor e de suas diligências frente a diferentes agentes do Governo. Até o momento de elaboração do presente Relatório, o Estado somente havia acusado recebimento das comunicações da CIDH, mas não havia informado sobre esta petição.

 

III.          POSIÇÃO DAS PARTES

 

A.          O peticionário

 

7.          O peticionário alega que em 8 de fevereiro de 1998 foi arbitrariamente detido em Jean Rabel, município do Departamento de Nord Ouest, dependente da jurisdição de Port de Paix, por parte de membros da polícia, e levado à prisão de Petion Ville, onde se encontra atualmente sem haver sido levado perante o juiz natural competente. 

 

8.          O senhor Richardson alega que utilizou os seguintes recursos da jurisdição interna: Em primeiro lugar, iniciou um processo perante o Tribunal Civil de Primeira Instância de Port-au-Prince, no qual o juiz declarou, em 1º de junho de 1998, que a detenção do senhor Richardson eram ilegais e ordenou sua imediata liberação e a execução da sentença por parte do Ministério Público.  Segundo o peticionário, a ordem de liberá-lo não foi cumprida porque esta deveria conter exequatur do Comissário de Governo.

 

9.          Em segundo lugar, dirigiu-se ao Tribunal Civil de Primeira Instância de Port de Paix, que em Resolução de 28 de julho de 1999 resolveu que essa não era a jurisdição competente para analisar seu caso.  Esta decisão foi apelada perante a Corte de Apelações de Gonaïves, que em Resolução de 24 de janeiro de 2000 ratificou a decisão do Tribunal de Primeira Instância de Port de Paix.  Em 15 de fevereiro de 2001, o Comissário de Governo da jurisdição de Port-au-Prince solicitou ao responsável da APENA de Petion Ville que pusesse em liberdade o senhor Richardson em virtude da ordem emitida em 1º de junho de 1998.  O peticionário alega que apesar dos trâmites realizados na jurisdição interna, e do Tribunal de Primeira Instância resolver em seu favor, ainda encontra-se na prisão e que e não teve direito a ser ouvido por um juiz.

 

B.         O Estado

 

10.        O Estado não apresentou resposta aos fatos alegados pelos peticionários, nem questionou sobre a admissibilidade da petição sob exame.

 

IV.          ANÁLISE SOBRE ADMISSIBILIDADE

 

A.         Considerações prévias

 

11.          A CIDH nota que o Estado limitou-se a informar que havia recebido as comunicações da CIDH datada de 10 de novembro de 2000 e de 12 de junho de 2001. Em nenhum momento apresentou resposta aos fatos alegados pelos peticionários, nem questionou a admissibilidade da petição sob exame. A CIDH ressalta que o Haiti contraiu diversas obrigações internacionais em virtude da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Entre estas obrigações, está aquela contemplada no artigo 48(1)(a) da Convenção que estabelece: "A Comissão, ao receber uma petição ou comunicação (…) a) solicitará informações ao Governo do Estado o qual pertença à autoridade assinalada como responsável pela violação alegada (…) Referidas informações devem ser enviadas dentro de um prazo razoável (…). b) poderá pedir aos Estados interessados qualquer informação pertinente".  A Convenção, então, obriga aos Estados a entregar a informação solicitada pela Comissão durante o trâmite do caso individual.

 

12.          A CIDH também destaca que a informação requerida pela Comissão é aquela que lhe permite tomar determinações sobre um caso submetido a seu conhecimento. A Corte Interamericana de Direitos Humanos assinalou que a cooperação dos Estados é uma obrigação fundamental no procedimento internacional do sistema interamericano nos seguintes termos:

 

A diferença do Direito penal interno, nos processos sobre violações de direitos humanos, a defesa do Estado não pode descansar sobre a impossibilidade do demandante de alegar provas que, em muitos casos, não podem ser obtidas sem a cooperação do Estado.

 

É o Estado quem tem o controle dos meios para esclarecer os fatos ocorridos dentro de seu território. A Comissão, ainda que tenha faculdades para realizar investigações, depende, ao efetuá-las dentro da jurisdição do Estado, da cooperação e dos meios que lhe proporcione o Governo.[1][2]

 

13.          A Comissão e a Corte Interamericanas de Direitos Humanos também entendem que "o silêncio do demandado ou sua contestação elusiva ou ambígua podem ser interpretadas como aceitação dos fatos expostos na demanda, enquanto não for provado o contrário através dos autos ou da convicção judicial".[3]  Portanto, a Comissão recorda que Haiti tem o dever de colaborar como os órgãos do sistema interamericano de direitos humanos para o melhor cumprimento de suas funções na proteção dos direitos humanos.

 

B.      Competência ratione personae, ratione loci, ratione temporis e ratione materiae da Comissão.

 

14.            A peticionária encontra-se facultada pelo artigo 44 da Convenção Americana para apresentar denúncias perante a CIDH.  A petição assinala como supostas vítimas a pessoas individuais, as quais o Haiti comprometeu-se a respeitar e garantir os direitos consagrados na Convenção Americana. No que concerne ao Estado, a Comissão assinala que o Haiti é um Estado parte na Convenção Americana desde 27 de setembro de 1977, data em que depositou o instrumento de ratificação respectivo.  Portanto, a Comissão tem competência ratione personae para examinar a petição.

 

15.          A Comissão tem competência ratione loci para conhecer a petição, devido a que nela se alegam violações de direitos protegidos na Convenção Americana, que tiveram lugar dentro do território de um Estado parte no mencionado tratado. A CIDH tem competência ratione temporis porque a obrigação de respeitar e garantir os direitos protegidos na Convenção Americana já se encontrava em vigor para o Estado haitiano na data em que ocorreram os fatos alegados na petição.  Por último, a Comissão tem competência ratione materiae, já que a petição denuncia violações de direitos humanos protegidos pela Convenção Americana, tais como o direito à liberdade pessoal (artigo 7), as garantias judiciais (artigo 8) e proteção judicial (artigo 25).

 

C.          Outros requisitos de admissibilidade da petição

 

a.           Esgotamento dos recursos internos

 

16.          O artigo 46(1)(a) da Convenção prevê que a admissibilidade de uma petição apresentada perante a Comissão está sujeita ao requisito de "que se tenham interposto e esgotado os recursos de jurisdição interna, conforme os princípios do Direito Internacional geralmente reconhecidos". O preâmbulo da Convenção expressa que esta outorga “uma proteção internacional de natureza convencional coadjuvante ou complementar da que oferece o direito interno dos Estados”.[4]  A regra do prévio esgotamento dos recursos internos permite ao Estado resolver o problema segundo o seu direito interno antes de enfrentar um processo internacional, o qual é especialmente válido na jurisdição internacional dos direitos humanos.

 

17.          No presente caso, o Estado não alegou a falta de esgotamento dos recursos internos e, por esta razão, se pode presumir a sua renúncia tácita com relação à exceção de não esgotamento dos recursos internos.[5]

 

18.          A respeito, a Corte Interamericana assinala que “a exceção de não esgotamento dos recursos internos, para ser oportuna, deve ser formulada nas primeiras etapas do procedimento, caso contrário poderá presumir-se a renúncia tácita por parte do Estado interessado”.[6]  A CIDH conclui que este requisito encontra-se satisfeito.

 

b.           Prazo de apresentação

 

19.          O artigo 46(1)(b) da Convenção prevê que a petição deve ser apresentada dentro do prazo de seis meses a partir da data em que a vítima seja notificada da decisão definitiva que esgotou os recursos internos. Na petição em estudo, a CIDH estabeleceu que a renúncia tácita do Estado a seu direito de interpor a exceção de falta de esgotamento dos recursos internos, motivo pelo qual não é aplicável o requisito do artigo 46(1)(b) da Convenção Americana. Entretanto, os requisitos convencionais de esgotamento de recursos internos e de apresentação dentro do prazo de seis meses da sentença que esgota a jurisdição interna são independentes. Portanto, a Comissão Interamericana deve determinar se a petição em estudo foi apresentada dentro de um prazo razoável. Neste sentido, a CIDH observa que o peticionário assinala que foi detido em 8 de fevereiro de 1998, e que em duas oportunidades as autoridades emitiram ordens de pô-lo em liberdade e estas não foram executadas. Com efeito, a comunicação do Comissário do Governo de 15 de fevereiro de 2001, a qual se refere à ordem emitida em 1º de junho de 1998. A CIDH nota que a petição original foi apresentada em 21 de setembro de 2000. Em virtude das circunstâncias particulares da petição sob exame, a CIDH considera que foi apresentada dentro de um prazo razoável.

 

c.            Duplicidade de procedimentos e coisa julgada

 

20.             A Comissão entende que a matéria da petição não está pendente de outro procedimento de acordo internacional, nem reproduz uma petição já examinada por este ou outro organismo internacional. Portanto, os requisitos estabelecidos nos artigos 46(1)(c) e 47(d) da Convenção encontram-se satisfeitos.

 

d.           Caracterização dos fatos

 

21.          No presente caso, o peticionário não alega de maneira expressa nenhuma norma da Convenção Americana nem da Declaração Americana, nem de outro instrumento internacional aplicável pela CIDH. Nem a Convenção nem o Regulamento exigem que os peticionários especifiquem os artigos que consideram violados. A respeito, os artigos 46 e 47 da Convenção Americana estabelecem requisitos para admitir as petições, e entre os mesmos não exige a especificação dos artigos que consideram violados. De igual maneira, o artigo 32 do Regulamento da Comissão, vigente ao momento da apresentação inicial da petição dispõe sobre os elementos que deve conter a petição ao momento de sua apresentação. Mais ainda, o artigo 32(c) do Regulamento da Comissão vigente no momento em que o peticionário apresentou a denúncia original estabelece a possibilidade de que "não se faz uma referência específica do artigo supostamente violado". Igualmente, o artigo 28 do Regulamento vigente da CIDH, que entrou em vigor em 1º de maio de 2001, prevê que os requisitos para a consideração de petições devem conter , inter alia, a seguinte informação: "d. uma relação de fato ou a situação denunciada, especificando o lugar e data das violações alegadas", mas não exige a especificação dos artigos que se consideram violados com relação aos fatos denunciados.

 

22.          A Comissão considera que a petição original e as informações adicionais contêm todos os fatos que podiam ser relevantes para uma determinação legal.[7]  As alegações do peticionário com relação à suposta detenção ilegal do Sr. Richardson, bem como falta de sua apresentação perante um juiz competente e a falta de execução de uma ordem para liberá-lo, se provados, podem caracterizar violações do direito à liberdade pessoal (artigo 7) as garantias judiciais (artigo 8) e a proteção judicial (artigo 25), garantidos na Convenção Americana. Portanto, a Comissão considera que a petição não pode ser rejeitada segundo o estabelecido nos artigos 47(b) e (c) da Convenção Americana.  

 

V.           CONCLUSÕES

 

23.          Ao examinar o presente caso, a Comissão conclui que tem competência para conhecê-la e que as alegações do peticionário relativas às violações dos artigos 7, 8 e 25 da Convenção são admissíveis de acordo com o estabelecido nos artigos 46 e 47 da Convenção Americana. A Comissão decide igualmente notificar esta decisão às partes, publicá-la em seu Relatório Anual à Assembléia Geral da OEA.

 

24.          Com base nos argumentos de fato e de direito antes expostos e sem prejudicar o fundo da questão,

 

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,
 
DECIDE:

 

1.           Declarar admissível o presente caso quanto às supostas violações de direitos protegidos nos artigos 7, 8 e 25 da Convenção Americana, conforme os artigos 46 e 47 da Convenção Americana .

 

2.           Notificar as partes desta decisão.

 

3.           Continuar com a análise de fundo da questão.

 

4.           Publicar esta decisão e incluí-la em seu Relatório Anual à Assembléia Geral da OEA.

 

Dado e firmado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., aos 3 dias do mês de dezembro 2001.  (Assinado): Claudio Grossman, Presidente, Juan E. Méndez, Primeiro Vice-presidente; Marta Altolaguirre, Segunda Vice-presidenta; Robert K. Goldman, Peter Laurie, e Julio Prado Vallejo, Membros da Comissão.

 

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[1] Corte IDH, Caso Velásquez Rodríguez, sentença de 29 de julho de 1988. Par. 135 e 136.

[2] Comissão IDH, Relatório Nº 28/96, Caso 11.297, Guatemala, 16 de outubro de 1996, Par. 43.

[3] Caso Velásquez Rodríguez, sentença de 29 de julho de 1988, par. 138.  CIDH, Relatório Nº 28/96, Caso 11.297, Guatemala, 16 de outubro de 1996, Par. 45.

[4] Ver, segundo parágrafo in fine  do Preâmbulo da Convenção Americana.

[5] Ver Corte IDH, Caso Velásquez Rodríguez. Exceções Preliminares. Sentença de 26 de junho de 1987, parágrafo 88. Ver também CIDH, Relatório Nº 30/96, Caso 10.897, Guatemala, 16 de outubro de 1996. Parágrafo 35, e Relatório Nº 53/96, Caso 8074, Guatemala, 6 de dezembro de 1996. Relatório Anual da CIDH 1996. Ver também o Relatório Nº 25/94, Caso 10.508, Guatemala, 22 de setembro de 1994, pág. 52. Relatório Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos 1994.

[6] Corte IDH, Caso Velásquez Rodríguez, Exceções Preliminares, Sentença de 26 de junho de 1987, Série C, n. 1, par. 8; Caso Fairén Garbi e Solis Corrales, Exceções Preliminares, Sentença de 26 de junho de 1987, Serie C, n. 2, par. 87; Caso Gangaram Panday, Exceções Preliminares, Sentença de 4 de dezembro de 1991, Série C, n. 12, par. 38; Caso Loayza Tamayo, Exceções Preliminares, Sentença de 31 de janeiro de 1996, Série C, n. 25, par. 40.

[7] Corte I.D.H. Caso Hilaire, Sentença de 1° de setembro de 2001, parágrafo 40.