RELATÓRIO N. 73/01

CASO 12.350

MZ

BOLÍVIA

10 de outubro de 2001

  

I.          RESUMO

 

1.          Em 22 de novembro de 2000 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “A Comissão Interamericana”, “Comissão” ou “a CIDH”) recebeu uma denúncia apresentada pelo Escritório para a Mulher, o Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) e o Centro de Justiça e Direito Internacional (CEJIL) (“as peticionárias”) contra o Estado da Bolívia  (”o Estado”) pela violação dos direitos e garantias judiciais de MZ. [1] A peticionária alega que os fatos denunciados configuram a violação de várias disposições da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada a “Convenção Americana”) a saber: respeitar e garantir os direitos (artigo 1); direito a integridade pessoal ( artigo 5); garantias judiciais (artigo 8.1); proteção a honra e a dignidade (artigo 11); igualdade perante a lei (artigo 24); proteção judicial (artigo 25); e os artigos 3, 4, 6, e 7 da  Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.

 

2.          Segundo a petição, a suposta vítima MZ foi violada sexualmente no dia 2 de outubro de 1994, e recorreu à justiça penal do Estado Boliviano, com a finalidade de que seu agressor, Jorge Carlos Aguilar, fosse investigado e punido. A pena ínfima imposta pelo juiz de primeira instância fez com que a vítima apelasse da decisão, para que o fato pudesse ser punido com uma pena maior, que guardasse proporção com o dano causado; porém os juízes que examinaram o recurso de apelação tomaram a decisão arbitrária e discriminatória de absolver o agressor, deixando impune a violação sexual de MZ que fora vítima.

 

3.          O Estado considera que o Poder Executivo não pode responder à denúncia interposta contra a Bolívia por MZ, já que isto atentaria contra a independência do Poder Judicial. Argumenta que a mencionada denúncia  é inadmissível já que foi interposta fora do prazo de 6 meses estabelecido no artigo 38 do anterior Regulamento da Comissão  - vigente à época da apresentação da denúncia – e 46 da Convenção Americana; que a valorização da prova por parte dos juízes durante o desenvolvimento de todo o processo perante a jurisdição interna da Bolívia foi conduzida no exercício de sua jurisdição, de acordo com as leis e a jurisprudência boliviana; e com respeito aos critérios de livre arbítrio e crítica; e que MZ teve acesso a todos os recursos que consagra a legislação boliviana.

 

4.       Sem prejudicar o fundo do assunto, a CIDH conclui que neste relatório que o caso é admissível, pois reúne os requisitos previstos nos artigos 46 e 47 da Convenção Americana. Portanto, a Comissão Interamericana decide notificar a decisão às partes e continuar com a análise de mérito relativa a suposta violação dos artigos 1(1), 5, 8(1), 11, 24, 25, da Convenção Americana e os artigos 3, 4, 6 y 7 da Convenção de Belém do Pará. 

 

II.          TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO INTERAMERICANA

 

5.          A petição foi recebida em 22 de novembro de 2000 e transmitida ao Estado boliviano em 14 de dezembro de 2000 com o número 12.350. O Estado apresentou suas observações em 16 de março de 2001, as que foram transladadas aos peticionários em 21 de março de 2001. As peticionárias solicitaram uma prorrogação de 30 dias para contestar e fazer as observações correspondente a resposta do Estado boliviano. Em 17 de abril de 2001 as peticonárias solicitaram uma prorrogação de 30 dias, e a Comissão concedeu-lhes 60 dias de prorrogação no dia 19 de abril de 2000. Em 15 de junho de 2001 CEJIL solicitou uma prorrogação de 20 dias, a CIDH concedeu-lhe uma prorrogação de 30 dias em 18 de junho de 2001.  As peticionárias apresentaram observações sobre a resposta do Estado e informação adicional em 19 de julho de 2001, as que foram transladadas ao Estado Boliviano no dia 8 de agosto de 2001, com um prazo de 30 dias. O Estado solicitou uma prorrogação no dia 11 de setembro de 2001, a qual foi concedida pela CIDH por 30 dias em 14 de setembro de 2001. 

 

III.              POSIÇÕES DAS PARTES SOBRE ADMISSIBILIDADE 

A.                As peticionárias

 

6.          As peticionárias alegam que MZ, de 30 anos, nacional de Holanda, solteira, na madrugada de 2 de outubro de 1994, foi atacada e violada em seu domicílio por Jorge Carlos Aguilar, filho de um dos donos da casa que alugava. A surpresa do ataque fez com que a vítima permanecera, a princípio, paralisada de medo pela força física do agressor, mais as ameaças de morte e de que tiraria uma arma. A vítima tentou resistir, chegando a ferir a sobrancelha do agressor  com um objeto consistente. Nas primeiras horas do dia, aproveitando um descuido do agressor, a suposta vítima conseguiu fugir em busca de auxílio. A família que ocupava o apartamento principal do imóvel facilitou-lhe o uso do telefone, e ela ligou para seus amigos GB e KF, quem lhe acompanharam nas providências tomada quanto a denúncia e atenção médica.

 

7.          O pessoal especializado em Criminalística visitou o lugar do ocorrido, colheu evidências para seu processamento em laboratório e tomou fotografias do cenário do crime.

 

8.          As diligências da polícia judicial concluíram que MZ foi vítima dos delitos de violação e invasão de domicílio, assinalando como possível autor a Jorge Carlos Aguilar, o qual não foi encontrado desde o dia da denúncia, não obstante os esforços realizados pela polícia técnica judicial e a Interpol. O agressor foi declarado rebelde e contumaz por lei; porém nos dias prévios à conclusão do período de prova, ele apresentou-se ao juiz para responder à declaração indagatória. Em 26 de maio de 1996, foi editado o ato final de instrução que dispõe sobre o processamento do imputado Jorge Carlos Aguilar  por existir indícios suficientes de autoria da violação sexual. Iniciado o trâmite no plenário, o imputado Jorge Carlos Aguilar foi citado a prestar declaração. A final, o promotor requereu a condena de Jorge Carlos Aguilar pelo delito de violação sexual e invasão de domicílio.

 

9.          O juiz do Terceiro Penal de Cochabamba declarou Jorge Carlos de Aguilar autor do delito de violação sexual, por existir prova plena contra o mesmo, aplicando-lhe a pena de cinco anos de prisão.

 

10.          Ambas as partes apelaram da sentença. Nesta fase do processo, Jorge Carlos Aguilar apresentou  uma declaração escrita com uma terceira versão dos fatos, afirmando que MZ foi quem o agrediu sexualmente.

 

11.          Em 13 de outubro de 1997, a Segunda Sala Penal da Corte Superior do Distrito de Cochabamba, legitimada pela Corte Suprema de Justiça da Nação, edita o auto de vista no qual absolve Jorge Carlos Aguilar pelo delito de violação sexual.

 

12.          Contra esta sentença foi interposto um recurso de cassação no dia 22 de outubro de 1997, baseado no erro de fato e de direito da apreciação da prova. Mencionado recurso foi declarado infundado pela Segunda Sala Penal Corte Suprema de Justiça da Nação em 25 de abril de 2000.

 

13.          Em suas observações relativas à resposta do governo boliviano, as  peticionárias consideram que “O Poder Executivo da Bolívia deve atender a denúncia apresentada perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, dado que representa internacionalmente a todos os poderes e órgãos do Estado, os quais estão vinculados por obrigações internacionais adquiridas por Bolívia”.

 

14.          As peticionárias alegam que a denúncia foi apresentada dentro do prazo de seis meses estabelecido pelo artigo 46.1.b da Convenção Americana. Quanto a outros requisitos de admissibilidade da petição, manifestam;

 

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é competente para conhecer este caso porque os procedimentos de apelação e cassação oferecidos pela jurisdição boliviana são violatórios do devido processo legal e de outros direitos consagrados na Convenção Americana de Direitos Humanos e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, Convenção Belém do Pará.

 

O Estado da Bolívia violou o direito de MZ a obter uma decisão fundada (artigo 8.1). A decisão judicial é arbitrária porque contraria a evidência e carece de uma adequada motivação.

 

Também violou o seu direito de contar com um juiz imparcial na determinação de seus direitos, carente de preconceito de gênero, e que não a discriminasse (artigo 8.1 em conexão com os artigos 1.1 e 24 da Convenção Americana e 7 da Convenção do Belém do Pará).[2]

B.          ESTADO

 

15.          O Estado Boliviano alega que os mais altos tribunais da nação pronunciaram-se no caso de MZ, tendo a Corte Suprema de Justiça editado a resolução  suprema  no dia 25 de abril de 2000 no autos do processo que MZ interpôs contra Jorge Carlos Aguila por delito de violação sexual, procedimento que constitui jurisprudência em matéria penal, aspecto que impossibilita que o Poder Executivo possa responder a demanda interposta perante a CIDH por MZ.

 

16.          Entende o Estado que se a Comissão corrigisse as supostas irregularidades denunciadas pelo peticionário, não somente atentaria contra os princípios de seguridade jurídica e independência judicial, como também converteria a Comissão numa instância de revisão, a qual não se compadece com a sua natureza.

 

17.          O Estado argumenta que a denúncia foi apresentada pelas  peticionárias no dia 7 de dezembro de 2000, e que a decisão definitiva da Corte Suprema de Justiça lhes foi notificada em 29 de maio de 2000, conforme demonstra o expediente. Alegam que o prazo para a apresentação da petição deveria ser contado de seis meses a partir do dia 29 de maio de 2000, ou seja, 29 de novembro de 2000, de acordo com o artigo 46.1.b da Convenção Americana e o artigo 38.1 do Regulamento da CIDH vigente à época. Aponta que mencionado requisito não foi cumprido pelas peticionárias, dado que os antecedentes notificados ao Estado boliviano demonstram que as peticionárias apresentaram a demanda em 7 de dezembro de 2000, mediante o caso 12.350, isto é, seis meses e oito dias, o que supera os prazos previstos.

 

18.          O Estado boliviano considera que a valorização da prova por parte dos juízes durante o desenvolvimento do processo perante a jurisdição interna  da Bolívia se fez de acordo com as leis e a jurisprudência, e de conformidade com os critérios de livre arbítrio e crítica, conforme estabelece o artigo 135 do Código de Processo Penal “Todos os meios de provas aportados serão valorados em conjunto com um órgão jurisdicional  em seu livre arbítrio e crítica, expondo, invariavelmente, as razões em que se fundamenta esta valorização jurídica”.

 

19.          Afirma que a demandante utilizou todos os recursos que oferece a legislação boliviana na demanda que interpôs contra Jorge Carlos Aguilar, e descarta qualquer impedimento a seu direito de acesso aos recursos de jurisdição interna ou ainda impedimento de esgotá-los.


IV.      ANÁLISE

 

A.       Competência ratione personae, ratione materiae, ratione temporis e ratione loci da Comissão Interamericana

 

20.          As peticionárias encontram-se facultadas pelo artigo 44 da Convenção Americana para apresentar denúncias perante a CIDH. Mencionadas petições assinalam como supostas vítimas pessoas físicas, as quais a Bolívia comprometeu-se a respeitar e garantir os direitos consagrados na Convenção. Com respeito ao Estado, a Comissão observa que a Bolívia é um estado parte da Convenção Americana, ao tê-la ratificado em 19 de julho de 1979.  Com relação a competência passiva ratione personae , é um princípio geral de direito internacional que o Estado deve responder pelos atos de todos os seus órgãos, inclusive os de seu Poder Judicial. Portanto, a Comissão tem competência ratione personae para conhecer a presente petição.

 

21.          A Comissão tem competência  ratione loci para conhecer esta petição tendo em vista que se alegam violações de direitos protegidos na Convenção Americana que tiveram lugar dentro do território de um Estado parte do mencionado tratado.

 

22.          A Comissão tem competência rationae temporis, porque os fatos alegados na petição ocorreram quando a obrigação de respeitar e garantir os direitos estabelecidos na Convenção já se encontravam em vigor para o Estado.

 

23.          Em relação às alegações sobre possíveis violações à Convenção de Belém do Pará, a Comissão observa que a Bolívia ratificou a  mencionada Convenção no dia 5 de dezembro de 1994. A suposta violação sexual ocorreu em 2 de outubro de 1994, ou seja, com anterioridade à ratificação por parte da Bolívia de dito instrumento internacional. Por conseguinte, a Comissão carece de competência rationae temporis para examinar os fatos. Por outro lado, a Comissão tem competência rationae temporis para aplicar a Convenção do Belém do Pará com relação aos fatos que ocorreram, posteriormente, à ratificação da Convenção por parte do Estado, no que se refere a suposta denegação de justiça.

 

24.          Por último, a Comissão tem competência ratione materiae porque a petição denuncia violações de direitos humanos protegidos pela Convenção Americana. Em relação às alegações das peticionárias sobre as supostas violações do artigo 7 da mencionada Convenção, a Comissão observa que, de conformidade com o artigo 12 da Convenção de Belém do Pará é possível apresentar à CIDH petições que contenham denuncias ou queixas de violação do artigo 7 da mesma por um estado parte, e a Comissão pode examiná-las de acordo com as normas e requisitos do procedimento para a apresentação e consideração de petições estipulados pela Convenção Americana de Direitos Humanos.  Com respeito aos artigos 3, 4 e 6 da referida Convenção, a Comissão Interamericana pode utilizá-los na interpretação de outras disposições aplicáveis à luz do previsto no artigo 29 da Convenção Americana, pelo qual a CIDH tem competência ratione materiae para aplicar a Convenção de Belém do Pará.

 

B.                 Outros requisitos de admissibilidade da petição

 

a.                  Esgotamento dos recursos internos

 

25.          Com a interposição do recurso de cassação perante a Corte Suprema de Justiça e sua posterior resolução através da resolução suprema datada de 25 de abril de 2000, que o rejeita por estar infundado, seguido da notificação das partes em 29 de maio, foram esgotados todos os recursos internos disponíveis na legislação interna da Bolívia.

 

b.                 Prazo de apresentação

 

26.          O Estado controverte o cumprimento do prazo de seis meses que estabelece o artigo 46.1.b. da Convenção Americana, pois alega que a demanda foi apresentada em 7 de dezembro de 2000. A CIDH observa que a comunicação tem carimbo de ingresso e foi recebida pela Secretaria Executiva no dia 22 de novembro de 2000. Tendo em conta que a sentença que esgotou os recursos internos foi notificada em 29 de maio de 2000, a Comissão tem por cumprido o prazo de seis meses para a apresentação da petição. Em relação a nota de 7 de dezembro de 2000, esta se trata de uma segunda comunicação feita pelas peticionárias, na qual anexam documentação de referência.

 

c.                  Duplicação de procedimentos e coisa julgada

 

27.          O expediente do presente caso não contém informação que possa levar a determinar que o presente assunto esteja pendente de outro procedimento em instância internacional o que haja sido previamente decidido pela Comissão Interamericana. Portanto, a CIDH conclui que são aplicáveis as exceções previstas no artigo 46.1(d) e no artigo 47(d) da Convenção Americana.

 

d.                 Caracterização dos fatos alegados

 

28.          A CIDH considera que os fatos alegados, no caso de comprovarem-se verdadeiros, caracterizariam violações de direitos garantidos nos artigos 1.1, 5, 8.1, 11, 24 e 25 da Convenção Americana e 3, 4, 6, e 7 da Convenção do Belém do Pará.

 

29.          As peticionárias não alegam meros erros de fato e de direito, mas sim, argumentam que o processo judicial considerado como um todo e a forma que as autoridades conduziram-no configuram violações ao devido processo legal.

 

V.                CONCLUSÕES

 

30.             A Comissão Interamericana conclui que tem competência para conhecer o fundo deste caso e que a petição é admissível conforme os artigos 46 e 47 da Convenção Americana. Com fundamento nos argumentos de fato e de direito antes expostos, e sem prejudicar o mérito da questão.

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

          1.          Declarar admissível o presente caso, enquanto refere-se a supostas violações de direitos protegidos nos artigos 1.1, 5, 8.1, 11, 24 e 25 da Convenção Americana e 3, 4, 6, e 7 da Convenção de Belém do Pará.

 

2.           Notificar as partes desta decisão.

 

          3.          Continuar com a análise de fundo do assunto, e

 

4.          Publicar o presente relatório e incluí-lo em seu Relatório Anual à Assembléia Geral da OEA.

 

          Dado e firmado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., aos  10 dias do mês de outubro de 2001.  (Firmado):  Claudio Grossman, Presidente; Juan E. Mendez, Primeiro Vice-presidente, Marta Altolaguirre, Segundo Vice-presidente; Comissionados Hélio Bicudo, Robert K. Goldman, Peter Laurie e Julio Prado Vallejo. 

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[1] Nome fictício. A identidade da suposta vítima e de seus familiares foram mantidos em segredo por solicitação expressa da mesma, e de conformidade com as diretrizes da Comissão Interamericana no caso de denúncias de fatos como os relatados no presente caso, cuja publicação pode afetar a privacidade das pessoas (Ver, por exemplo, Relatório Anual da CIDH 1996, Relatório  N° 38/96, Caso 10.506 - X e Y, Argentina, págs. 52 a 78; Relatório Anual de la CIDH 2000, Relatório  N° 53/01, Caso 11.565, Ana, Beatriz e Celia González Pérez, México).

[2]  Comunicação enviada pelas peticionárias no dia 19 de julho de 2001.