RELATORIO SOBRE A SITUACAO DOS DEREITOS HUMANOS NO BRASIL

CAPÍTULO IV


AS CONDIÇÕES DE RECLUSÃO E TRATAMENTO NO SISTEMA PENITENCIARIO BRASILEIRO

 

A. A REALIDADE CARCERARIA

Antecedentes

1. Ultimamente, a Comissão vem recebendo informações de que as condições de detenção e prisão no sistema carcerário brasileiro violam os direitos humanos, provocando uma situação de constantes rebeliões, onde em muitos casos os agentes do governo reagem com descaso, excessiva violência e descontrole.

2. A Constituição Federal e as leis brasileiras contem prescrições avançadas com relação aos direitos e ao tratamento que deve ser dispensado aos presos, e também no tocante ao cumprimento da pena.(1) O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, órgão subordinado ao Ministério da Justiça no âmbito federal, dita as políticas e diretrizes quanto a prevenção de delitos, a administração da justiça criminal, a execução das penas, as medidas de segurança e a elaboração do programa nacional penitenciário(2) A administração dos centros penais esta a cargo do Poder Executivo de cada estado da Federação, por meio das Secretarias de Justiça ou de Segurança Publica, e a supervisão externa do sistema penitenciário cabe aos Poderes Judiciais estaduais.(3)

3. Em 1994, um censo oficial indicou que dos 297 estabelecimentos penais existentes no Brasil, 175 se encontravam em situação precária e 32 em construção. A população carcerária gira em torno dos 130 mil presos, dos quais 96,31% são homens e 3,69% são mulheres. Quanto aos motivos da detenção, 51% dos presos cometeram furto ou roubo, 17% homicídio, 10% tráfico de drogas e o restante outros delitos.(4) É importante observar que 95% dos presos são indigentes e 97% são analfabetos ou semi-analfabetos. A reincidência na população penal é de 85%, o que demonstra que as penitenciárias não estão desempenhando a função de reabilitação dos detentos.

4. Como resultado de sua visita in loco, e também de outros antecedentes, a Comissão considera que os grandes problemas de que padece o sistema penitenciário brasileiro são os indicados a seguida.

Superpopulação Carcerária

5. A capacidade das penitenciárias brasileiras está estimada oficialmente em 51.639 vagas. Isso significa que, com um universo de 130 mil internos, existe atualmente um déficit de cerca de 75 mil vagas e que cada vaga atual esta sendo ocupada por 2,5 presos em média.(5) De acordo com esses números oficiais, é necessária a criação de pelo menos 150 novos presídios para mitigar a situação do déficit de vagas. Outras fontes apresentam uma situação numérica muito mais grave, indicando que as prisões estão abrigando entre 5 a 6 vezes mais detentos do que permite sua capacidade real.(6) e 7

6. Essa falta de espaço, o amontoamento e a superpopulação foram constatados pela Comissão sobretudo na visita a Casa de Detenção de Carandirú(7) e ao 3º Distrito Policial da cidade de São Paulo. Um funcionário policial deste último centro afirmou que a delegacia era um verdadeiro "depósito de presos". É tamanha a superpopulação e a promiscuidade ali existentes que a Comissão pode comprovar que em um espaço de três metros por quatro (12 m2), destinado a alojar seis presos, se alimentavam e dormiam, sem leitos, nem qualquer comodidade por mínima que fosse, muitas vezes sentados ou de pé por falta de espaço, quase 20 presos.(8) 0 pátio central, a que esta Comissão teve acesso, oferecia um quadro impressionante, com presos de pé, sujos e seminus ocupando praticamente cada centímetro de sua superfície. Era tal a falta de espaço que, para que os membros da Comissão pudessem se movimentar e conversar com os detentos, eles tinham de se comprimir para abrir caminho. Segundo se informou a Comissão, esse pátio serve de moradia para muitos deles, que dormem amontoados, as vezes sentados, de pé ou até pendurados nas grades, expostos a chuva e as intempéries. Alguns presos mostraram ferimentos nas pernas, causados pela posição em que eram obrigados a dormir no chão.

7. Chamou especialmente a atenção da Comissão o fato, confirmado pelo censo penitenciário, de que, como conseqüência da falta de estabelecimentos penais e de espaço dentro destes, 48% dos presos judicialmente condenados cumprem pena nas cadeias dos distritos policiais, que são prisões de caráter provisório ou de transito, o que implica que muitas vezes detentos simples, suspeitos e/ou presos primários são colocados juntos com outros condenados por graves delitos, o que constitui, como se verá mais adiante, uma aberta violação das normas internacionais, e acarreta graves prejuízos para certas categorias de presos.

8. 0 atual Governo é consciente do problema, da superpopulação carcerária e isso está refletido no Programa Nacional de Direitos Humanos. Seus objetivos a curto prazo são: 1) criar novos estabelecimentos e aumentar o numero de vagas, utilizando para tanto recursos do Fundo Penitenciário Nacional; 2) apresentar projeto de lei com a introdução de sentenças alternativas as penas privativas de liberdade para os crimes não-violentos; e, a médio prazo, 3) incentivar a agilização dos procedimentos judiciais para reduzir o numero de detentos a espera de julgamento.

9. No caso especifico de Carandirú o Governo informou a CIDH do convênio entre o governo federal e o governo do Estado de São Paulo para a desativação do Complexo Penitenciário de Carandirú. Serão construídos, em curto prazo, nove presídios - seis de segurança média e uma casa de detenção para presos sem condenação definitiva (cada um com capacidade para abrigar 600 presos). A segunda fase do plano prevê a construção de mais 25 presídios, também dotados de 600 vagas cada um.

10. Segundo o Governo, a construção de novos presídios resolverá o problema de vagas e permitirá a criação de um ambiente propício para a re-socialização dos internos. Em São Paulo, onde o problema é mais grave, o governo do estado já vem adotando outras medidas para evitar que a superlotação e a existência de rebeliões leve a repetição de incidentes como o do Carandirú, onde 111 presos morreram durante ação policial. Nas rebeliões ocorridas recentemente, a disposição do Governo para atuar com rigor, embora com respeito aos direitos humanos, evitou mortes em situações tão ou mais complexas do que aquela enfrentada no Carandirú. Esse resultado foi obtido graças a medidas de controle do uso da força: a autoridade responsável pela ordem de invasão dos presídios e repressão da rebelião está sempre a frente da tropa e apenas os oficiais mais graduados portam armas de fogo. As rendições são freqüentes porque há garantia de que não ocorrerão represálias e torturas. Há também maior treinamento das tropas de choque.

11. Com vistas a diminuir a pressão sobre o sistema penitenciário brasileiro e contribuir para uma rápida recuperação dos internos, o Executivo Federal enviou projeto de lei ao Congresso nacional estendendo a aplicação de penas alternativas a privação de liberdade. O objetivo é atingir sobretudo aquelas pessoas que tenham cometido crimes contra o patrimônio publico, fazendo com que elas reconstituam o que foi destruído ou devolvam aos cofres públicos o que retiraram indevidamente Atualmente as penas alternativas são aplicadas apenas aos condenados a penas de até um ano de prisão, mas caso o projeto seja aprovado, o benefício alcançará os condenados a até cinco anos.

12. A comissão teve a oportunidade, em Julho de 1997 de visitar os estabelecimentos do sistema penitenciário brasileiro, onde pode observar um esforço sério e científico de se concretizar novos modelos para o tratamento e reabilitação dos reclusos.

Um deles é o centro Penitenciário de Papuda, no Distrito Federal, onde alem de um aceitável cumprimento dos standards internacionais de tratamento existem ainda programas de reinserção através do trabalho produtivo, dentro e fora do estabelecimento penal, o qual atinge uma parcela substancial da população carcerária. Também pude apreciar outras iniciativas( atelier de pintura, teatro, aprendizagem, biblioteca) que tendem a cumprir o objetivo de reabilitação, o qual deveria ser a norma para todos os estabelecimentos.

Em outros estabelecimentos visitados , merece também ser mencionado o Hospital Penal em Niterói, Estado do Rio de Janeiro, vinculado com a Secretaria de Justiça e Interior deste estado. Estabelecimento este onde se realiza de maneira sistemática atendimento médico, curativo e preventivo, aos reclusos em sua jurisdição, utilizamdo-se de recursos modernos e desenvolvendo iniciativas experimentais de grande potêncial.

Higiene e Saúde(9)0

13. A Comissão teve a oportunidade de constatar as condições higiênicas precárias e deficientes em que vivem os presos e a falta de atendimento médico e tratamento psicológico adequados a que estão submetidos. Segundo declarações dos próprios presos, em caso de brigas entre eles ou doenças, eles próprios tem que tratar dos feridos ou enfermos.(10)1 A Comissão, ao visitar a Penitenciária Feminina de São Paulo, recebeu queixas das reclusas quanto à falta de atendimento médico, sobretudo ginecológico e dental, e à inexistência de veículos para o transporte das internas ao médico ou hospital. Nesses recintos, as instalações sanitárias coletivas eram totalmente inadequados e anti-higiênicas.

14. A Comissão teve igualmente a oportunidade de visitar um pavilhão de doentes de AIDS, que jaziam em seus catres, praticamente abandonados e com falta de higiene. Esta grave enfermidade afeta sobretudo os presos dos grandes centros urbanos, e aproximadamente 25% dos presos das cadeias dos distritos policiais e das prisões publicas são portadores do vírus HIV. Quando a doença chega a seu estado terminal, é difícil encontrar quem queira socorrer as vitimas ou levá-las aos hospitais.(11)2

15. Nas visitas da Comissão a Casa de Detenção de Carandirú e ao 3º Distrito Policial, muitos presos se queixaram de que doenças gástricas, urológicas, dermatites, pneumonias e ulcerações não eram atendidas adequadamente, afirmando que muitas vezes nem sequer havia remédios básicos para tratá-las.

16. A Comissão recebeu igualmente queixas de que, quando os presos doentes precisam ser transladados a postos de saúde ou hospitais para receber um tratamento médico determinado ou de urgência, a Policia Militar (órgão encarregado de escoltar ou transportar os reclusos aos hospitais) a vezes se nega a faze-lo ou adia sem qualquer justificação a escolta, o que muitas vezes resulta na piora do estado de saúde do doente.(12)3

Alimentação, roupa e cama(13)4

17. Nos diferentes centros penitenciários que a Comissão visitou, numerosos presos se queixaram da insuficiência da comida que Ihes era servida, de que passavam frio, de que quando chovia se molhavam e não tinham muda de roupa, sendo obrigados a ficar com a roupa molhada e úmida por muitos dias.

18. Da mesma forma, foi-nos informado que os presos que possuem recursos podem conseguir mais comida e agasalho. Chamou ainda a atenção da Comissão, de acordo com os estudos realizados sobre a questão e com os depoimentos por ela recebidos, a freqüência com que nos centros penitenciários ocorre o "desvio de comida". Nesses casos, a comida é comercializada pelos guardas ou por outros que podem ser subornados, fora do estabelecimento, o que acarreta um aumento no clima de violência no interior dos presídios(14)5, com as conseqüências trágicas que são apresentadas neste capítulo.

Assistência judicial e requerimento dos benefícios dos presos(15)6

19. Quase sem exceção, os membros visitantes da Comissão receberam queixas dos presos com relação à lentidão da tramitação burocrática quando requerem os benefícios a que tem direito por lei e à complexidade dos processos judiciais para consegui-los, o que é agravado ainda pela falta de assistência legal adequada.(16)7 Esses benefícios legais são, entre outros, a transferência para regimes abertos e semi-abertos, a redução ou compensação da pena (um dia de desconto da pena para cada três de trabalho) e, ainda mais grave, a decisão de libertar os reclusos depois de terem cumprido suas respectivas penas.

20. Segundo deram a entender os presos com quem a Comissão se reuniu, cerca de 80% dos internos já cumpriram um sexto da pena e, portanto, teriam direito a cumprir o restante em um regime semi-aberto, e cerca de 50% teriam direito a passar para um regime aberto de acordo com o tempo cumprido. Todavia, os procedimentos são longos e complicados, o que os obriga a continuarem em regime de reclusão. Informou-se igualmente à Comissão que pelo menos 50% dos presos do Rio de Janeiro poderiam obter liberdade condicional, o que não conseguem por falta de advogados para fazer o competente requerimento.(17)8

Vínculos e visitas familiares(18)9

21. A Comissão recebeu queixas da parte dos reclusos de que era praticamente impossível desfrutar da intimidade com seus cônjuges ou familiares por ocasião das visitas. Observou-se igualmente que muitas vezes os agentes penitenciários cobravam dinheiro dos familiares dos presos para permitirem as visitas.

Reabilitação,(19)0 falta de oportunidade de trabalho (20)1 e recreação (21)2 nointerior das prisões

22. Uma das funções que a pena deve cumprir é a reabilitação do indivíduo, para que este possa reintegrar-se o mais harmoniosamente possível na sociedade. O trabalho produtivo na penitenciaria é considerado como uma mecanismo indispensável para se alcançar esse objetivo.(22)3

23. Sem embargo, muitos dos presos entrevistados pela Comissão se queixaram de que não há trabalho nas prisões, o que os obriga a passar o dia todo dormindo ou andando de um lado para o outro.4 0 censo penitenciário revelou que 89% dos presos não desenvolvem qualquer trabalho, pedagógico ou produtivo, sendo esse um dos fatores mais decisivos para as tensões e revoltas nas penitenciárias. Deve-se ressaltar que a maioria dos detentos tinhám emprego produtivo antes de ir para a prisão.5

24. 0 fato de a população carcerária do Brasil ser significativamente jovem (68% dos reclusos tem menos de 25 anos) torna ainda mais imperativo o desenvolvimento de políticas efetivas de reabilitação dos reclusos e de possibilidades de trabalho. Trata-se, de fato, de uma população que pode ter uma longa vida produtiva pela frente e que, de outra maneira, se verá condenada a uma marginalidade permanente.

25. A Comissão recebeu ainda queixas constantes dos reclusos entrevistados com relação à ausência quase total de atividades recreativas, situação que também ajuda a aumentar o clima de violência existente (ver Rebeliões e Massacres nos Centros Penais). 

Separação dos reclusos por categorias

26. A Comissão pode verificar também, por declarações dos presos, as quais foram confirmadas pelas autoridades penitenciárias, que em muitos centros penais não se dividem os internos de acordo com a natureza do delito nem pela idade. Pelo contrario, em estabelecimentos destinados a detenções temporárias convivem presos condenados por diferentes delitos (primários e reincidentes), menores, adultos, detentos em prisão preventiva, presos em flagrante e outros que aguardam os resultados de investigação.7

27. Uma das principais razões da necessidade de se separar os reclusos por categorias é de evitar, entre outras coisas, que aqueles que tem um passado de crime exerçam influência nociva sobre delinqüentes primários ou submetidos a processos de investigação, além de facilitar a readaptação social e garantir a segurança física dos detentos. A Comissão foi informada, tanto por agentes penitenciários como por reclusos, que as prisões estavam se transformando em verdadeiras escolas do crime nas quais delinqüentes com experiência ensinam os mais jovens a perpetrar diferentes ilícitos penais, estabelecendo vínculos e dependências orientadas para o delito em um mundo de ilegalidade do qual é difícil sair e para o qual o sistema carcerário de fato estimula . 

Sanções disciplinares

28. A Comissão pode comprovar também que ainda existem as chámadas "celas fortes", ou solitárias, nas quais, segundo se informou, depois de um procedimento sumário se encerram os presos que cometeram faltas disciplinares. A reclusão e de até trinta dias e de acordo com as declarações dos presos, são ainda sujeitos a punições adicionais. 

Agentes penitenciários

29. No desempenho de sua tarefas, os agentes penitenciários devem respeitar e proteger a dignidade humana, bem como manter e defender os direitos humanos de todas as pessoas.8 A Comissão recebeu depoimentos de que os agentes penitenciários muitas vezes tratam os presos de maneira desumana, cruel e prepotente, o que se traduz em torturas e corrupção.9 Isso se deve basicamente à falta de treinamento especializado desses funcionários no que diz respeito aos direitos humanos e ao tratamento de presos, além da escassez e má remuneração dos funcionários. Outro fator que contribui é a falta de supervisão e controle adequado, o que acaba gerando impunidade.0

30. 0 sistema penitenciário brasileiro padece da falta de agentes carcerários. Segundo o censo penitenciário, existem 11 presos para cada funcionário, longe da relação recomendada pelas Nações Unidas, que é de três presos por funcionário.

31. A Comissão vê com bom grado os planos do Governo para melhorar o treinamento dos agentes penitenciários,1 como parte do projeto mais amplo de recrutamento, treinamento e melhoria das condições de trabalho dos funcionários penitenciários. E espera que esse venha a se concretizar. 

Falta de recursos

32. Os agentes penitenciários informaram à Comissão que um dos principais problemas que aflige o sistema e a falta de uma adoção orçamentaria adequada para o sistema penitenciário, fato este que impede um serviço melhor. Em 1992, por exemplo, o Departamento de Assuntos Penitenciários solicitou a inclusão da soma de US$22.743.000 no orçamento federal, mas o Congresso Nacional só aprovou o montante de US$5.091.000, dos quais só foram efetivamente gastos US$1.873.650.32 

B. AS REBELIÕES E OS MASSACRES NOS CENTROS PENAIS

33. Nos centros penais brasileiros ocorrem em media duas rebeliões e três fugas por dia. 3 As causas para isso são muito variadas. Os presos apontam como tais as condições materiais, a má alimentação, a falta de assistência jurídica, médica e religiosa; a superpopulação, a ausência das condições mínimas de tratamento, a violência carcerária por parte dos agentes penitenciários e a ineficácia dos organismos responsáveis pelo controle e encaminhamento das queixas. Por sua parte, alguns agentes penitenciários consideram as rebeliões como mecanismos de tentativa de fuga em massa usados pelos presos.

34. As rebeliões no interior dos presídios tiveram em muitas ocasiões conseqüências trágicas, custando a vida de muitos presos e de guardas penais. A esse propósito, os fatos indicam que, sempre que as autoridades penitenciárias decidiram não negociar com os rebeldes e esmagar as rebeliões com violência, ocorreram mortes de guardas e detentos, ao passo que, quando houve negociação, foi bem menor o numero de vitimas fatais. Um estudo comparou com uma amostra de rebeliões o resultado das diferentes estratégias seguidas. Comprovou-se que, para 11 rebeliões ocorridas entre setembro de 1986 e abril de 1988, em nenhuma das seis em que se negociou houve mortes; já nas cinco ocasiões em que não se negociou e os rebeldes foram reprimidos com violência, ocorreram 47 mortes entre guardas e detentos.4

35. Um dos massacres ocorreu em 2 de outubro de 1992 na Casa de Detenção de Carandirú, na cidade de São Paulo. A investigação judicial demonstrou que, no Pavilhão 9 da prisão, a Policia Militar disparou contra presos nús e indefesos, que não opunham resistência. Como resultado desse ato de violência, 111 presos foram mortos, crivados pelos disparos dos policiais militares protegidos por escudos.5

36. Com relação ao grande numero de mortes ocorridas no interior das prisões devido ao uso irracional e indiscriminado da força, a Comissão deseja observar que o uso da força por parte dos agentes penitenciários só deve ser aplicado em casos excepcionais, observando-se estrita obediência aos critérios de que seja proporcional ao perigo e razoavelmente necessária, de acordo com as circunstâncias, para a prevenção de delito e que seja proporcional à ameaça e ao risco.6

A negociação deve ser o instrumento idôneo e hábitual, para o qual se deve treinar o pessoal e desenvolver técnicas e especialistas apropriados. O uso de armas de fogo é considerado uma medida extrema, devendo-se fazer todo o possível para se evitar seu uso. Como regra geral, não se devem usar armas de fogo a não ser no caso em que o suposto delinqüente ofereça resistência armada ou ponha em perigo a vida de outras pessoas e não seja possível dominá-lo ou detê-lo com aplicação de medidas menos extremas. 

C. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

37. 0 propósito das penas privativas de liberdade, entre outros, é o de separar os indivíduos perigosos da sociedade para protege-la contra o crime e a readaptação social dos condenados. Para isso, o regime penitenciário deve empregar os meios curativos, educativos, morais, espirituais e de outra natureza, e todas as formas de assistência de que possa dispor, no intuito de reduzir o máximo possível as condições que enfraquecem o sentido de responsabilidade do recluso ou o respeito à dignidade de sua pessoa e a sua capacidade de readaptação social.

38. Da analise que fizemos da realidade carcerária no Brasil, conclui-se que em muitas prisões os detentos se encontram em condições sub-humanas, o que constitui violação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e outros instrumentos internacionais de direitos humanos. Na pratica, os presos no Brasil são, em sua maioria, maltratados e desamparados, o que minimiza a possibilidade de sua reforma e readaptação, dadas as condições físicas e humanas das prisões e do pessoal responsável pelo sistema penitenciário.

39. Diante dessa grave situação, a Comissão considera que os esforços que o Governo Brasileiro se propõe a realizar, no setor penitenciário a curto, médio e longo prazo, conforme as diretrizes traçadas no Programa Nacional de Direitos Humanos, são indispensáveis. Mas requerem toda a energia política, técnica e financeira necessárias, e devem ser encarados com absoluta urgência.

40. A Comissão, além de incentivar o Estado brasileiro a tornar realidade seu programa penitenciário, se permite recomendar-lhe que, no referente a: 

Aplicação de medidas carcerárias

Sejam adotadas todas as medidas adequadas para melhorar a situação de seu sistema penitenciário e o tratamento que os presos recebem, para cumprir plenamente as disposições de sua Constituição e leis, bem como os tratados internacionais de que o Estado brasileiro é signatário. Sob esse aspecto, recomenda-se que se apliquem efetivamente como instrumento-guia as Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos e as Recomendações Relacionadas das Nações Unidas. 

Condições carcerárias físicas

Seja consideravelmente ampliada a capacidade de vagas do sistema penitenciário, com o objetivo de solucionar o grave problema atual de superpopulação e, simultaneamente, sejam criadas condições de abrigo físico, higiene, trabalho e recreação de acordo com as normas internacionais. 

Higiene e saúde

Sejam melhoradas as condições de higiene e saúde nos estabelecimentos penitenciários e nas cadeias das delegacias policiais.

Seja oferecido aos detentos e presos, sem qualquer distinção, o atendimento médico de que necessitem de maneira oportuna e eficaz e, quando for o caso, seja realizado, sem qualquer demora, seu transporte aos centros de assistência médica.

Sejam estabelecidos os serviços de atendimento necessários para os doentes de AIDS e portadores de HIV, proibindo-se toda discriminação imprópria a sua condição.

Alimentação e roupas:

Seja fornecida aos reclusos uma alimentação suficiente e balanceada, com o valor adequado de calorias. Sejam tomadas as medidas cabíveis para se evitar o desvio de alimentos que favorece ilegalmente a alguns reclusos e/ou resulte na corrupção administrativa.

Assistência judicial:

Sejam adotadas todas as medidas necessárias para a prestação de uma assistência jurídica real, efetiva e gratuita aos que dela necessitem e não tem como paga-la durante todas as etapas do processo judicial.

Sejam concedidos e reconhecidos de maneira eficaz e oportuna aos presos os benefícios e privilégios a que tem direito nos termos da lei, em particular quanto a redução de penas, a indultos, a visitas familiares, etc.

Sejam acelerados os processos judiciais que mantém em reclusão réus não condenados e sejam libertados os que cumpriram o máximo autorizado legalmente.

Sejam efetivamente consagradas na legislação normas referentes ao cumprimento alternativo de penas.

Reabilitação e separação dos detentos por categorias

Sejam os detentos em prisão preventiva separados dos condenados, e estes últimos agrupados de acordo com o tipo e gravidade do delito e a idade dos reclusos.

Sejam oferecidas oportunidades de trabalho aos presos, além de programas de educação, reabilitação e recreação que contribuam para a sua readaptação e reinsercão na sociedade.

Sanções disciplinares

Sejam eliminadas as solitárias ou "celas fortes", pois elas estão em contravenção às normas internacionais.

Sejam estabelecidos mecanismos efetivos e oportunos de controle interno no sistema penitenciário para punir os agentes penitenciários responsáveis por abusos e atos de violência contra os presos.

Agentes penitenciários

Sejam criados programas adequados de formação e especialização para os agentes responsáveis pela segurança, administração e supervisão das prisões, bem como para o pessoal médico do sistema carcerário.

Seja aumentado o numero de guardas penitenciários em relação ao numero de presos, de acordo com a proporções estabelecidas internacionalmente.

Dotação de recursos

Sejam alocados nos orçamentos federais e estaduais os recursos financeiros e materiais necessários para que o sistema penitenciário possa desenvolver plenamente os planos e metas traçadas pelo Programa Nacional de Direitos Humanos, e possa alcançar o mínimo de condições e segurança requeridas de acordo com os instrumentos internacionais.

Controle de situações de violência

Sejam desenvolvidas políticas, estratégias e técnicas, para evitar situações de violência, entre os reclusos.

 

NOTAS AO CAPÍTULO IV

(25)

åøæ-)èÉas Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos das Nações Unidas dispõem:

"15. Exige-se dos reclusos asseio pessoal, e para tal fim disporão de água e dos artigos de higiene indispensáveis a sua saúde e limpeza."

"22. 1) Todo estabelecimento penitenciário disporá pelo menos dos serviços de um medico qualificado, que devera possuir alguns conhecimentos psiquiátricos [...] 2) Será providenciado o translado dos doentes cujo estado requeira cuidados especiais a estabelecimentos penitenciários especializados ou a hospitais civis [...] 3) Todo recluso deve poder utilizar os serviços de um dentista qualificado."

"23.1) Nos estabelecimentos para mulheres deverão existir instalações especiais para o tratamento das reclusas grávidas [...]."

11 A Pastoral Carcerária informa a este respeito que ficar doente na prisão é perigoso porque são muito poucos os presídios que dispõem de assistência médica adequada. Além disso, os hospitais públicos são renitentes em atender aos presos doentes porque achám que eles ocupam as vagas do cidadão honesto e trabalhádor. Normalmente, nas enfermarias das prisões não há remédios nem para uma simples dor de cabeça. Op. cit. at 21.

12 Idem at pag. 21.

13 Presos com problemas oftalmológicos simples teriam ficado cegos por não terem sido levados ao hospital público. As vezes, uma pequena infeção do dedo de um pé termina na amputação da metade da perna porque a escolta policial militar (PM) não atende ao chámado ou chega tarde e se perde o horário marcado no hospital. "0 pior é que ninguém tem poder sobre a PM, que faz o que quer". Idem, pag. 87.

14 As Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos das Nações Unidas dispõem a respeito: "20. 1) Todo recluso receberá da administração, nas horas costumeiras, uma alimentação de boa qualidade, bem preparada e servida, de valor nutritivo suficiente para a manutenção de sua saúde e de suas forças. 2) Todo recluso devera ter a possibilidade de se abastecer de água potável quando dela precisar." "17.1) Todo recluso a quem não é permitido vestir suas próprias roupas recebera outras apropriadas ao clima e suficientes para mante-lo em boa saúde [...]."

15 Ver ops. cit. at 4, 6, 9.

16 A Convenção Americana em seu articulo 8 (2) (e) dispõe:

"Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se estabelecer legalmente sua culpabilidade. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, as seguintes garantias mínimas:"

"E direito irrenunciável de ser assistido por um defensor oferecido pelo Estado, remunerado ou não segundo a legislação interna, se o acusado não se defender por si próprio nem nomear defensor dentro do Prazo estabelecido por lei".

Da mesma forma, o artigo 25 da Convenção dispõe que toda pessoa tem o direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo perante os juizes ou tribunais competentes, que a ampare contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, por lei ou pela presente Convenção.

17 A maioria dos presos necessita de assistência judicial para recuperar a liberdade e obter os benefícios legais a que tem direito. Dada a indigência da grande maioria dos presos, a assistência legal deve ser gratuita e integral, conforme garante a Constituição. Em vez disso, segundo foi informado a Comissão e aparece corroborado por outras fontes, o Estado designa uns poucos advogados para atender as necessidades judiciais de todos os presídios e cadeias. Op. cit. at 9, pag. 20-21.

18 0 que se expôs e confirmado pela conclusão do Relatório Final sobre o Sistema Penitenciário Brasileiro, preparado pela Câmara dos Deputados do Brasil, no qual se observa que mais de 50% dos presos estão cumprindo pena irregularmente. Op. cit. at 6, pag. 92.

19 As Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos dispõem a respeito:

"79. Zelar-se-ia particularmente pela manutenção e pela melhoria das relações entre o recluso e sua família, quando estas forem convenientes para ambas as partes."

20 As Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos dispõem a respeito:

"65. 0 tratamento dos condenados [...] deve ter por objetivo [...], inculcar-lhes a vontade de viver conforme a lei, sustentar-se com o fruto de seu trabalho e criar neles a aptidão para faze-lo. Esse tratamento visará fomentar neles o respeito por si próprios e desenvolver o sentido de responsabilidade."

"77. 1) Tomar-se-ao providências no sentido de melhorar a instrução de todos os reclusos capazes de tirar proveito dela, incluindo a instrução religiosa nos países em que isto for possível; a instrução dos analfabetos e a dos reclusos jovens será obrigatória e a administração deverá dispensar-lhes atenção especial."

21 A Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos das Nações Unidas dispõem a respeito:

"71. 1) O trabalho penitenciário não devera ter caráter aflitivo. 3) Proporcionar-se-a aos reclusos um trabalho produtivo, suficiente para ocupa-los pela duração normal de uma jornada de trabalho. 4) Na medida do possível, este trabalho devera contribuir por sua natureza para manter ou aumentar a capacidade do recluso de ganhár honradamente sua vida depois de sua libertação. 5) Dar-se-a formação profissional em algum oficio útil aos reclusos que tenhám condições de tirar proveito dela, sobretudo aos jovens [...]".

22 As Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos dispõem a respeito:

"78. Para o bem-estar físico e mental dos reclusos organizar-se-ao atividades recreativas e culturais em todos os estabelecimentos."

23 0 artigo 5 (6) da Convenção Americana dispõe a respeito que "as penas privativas da liberdade terão como finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados".

24 De acordo com um estudo, 85% dos presos consomem maconhá. (Câmara dos Deputados, op. cit.)

25 0 Dr. Vinícius Caldeira Brant, em um estudo realizado sobre o perfil dos presos, entrevistou uma amostra representativa da população carcerária de São Paulo e concluiu que a maioria dos detentos se encontrava trabalhándo na época de sua prisão e que apenas 1 % da população entrevistada nunca tinhá trabalhádo. Camara dos Diputados, op. cit., p.26.

26 As Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos dispõem a respeito:

"8. Os reclusos pertencentes a categorias diversas deverão ser alojados em diferentes alojamentos ou em diferentes sessões dentro dos estabelecimentos, segundo o sexo e a idade, os antecedentes, os motivos da detenção e o tratamento que Ihe deverão ser aplicados. Ou seja: a) Os homens e as mulheres deverão ser recolhidos, na medida do possível, em estabelecimentos diferentes; no estabelecimento em que se receber homens e mulheres, o conjunto destinado as mulheres devera ser completamente separado; b) Os detidos em prisão preventiva deverão ser separados dos que estão cumprindo condenação; c) As pessoas presas por dividas e os demais condenados a alguma forma de prisão por razoes cíveis deverão ser separadas dos detidos por infração penal; d) Os detidos jovens deverão ser separados dos adultos."

27 0 artigo 5 (4) da Convenção Americana dispõe que "os processados devem ficar separados dos condenados, salvo em circunstancias excepcionais, e serão submetidos a um tratamento adequado a sua condição de pessoas não condenadas".

28 Código de Conduta para Funcionários Encarregados de Fazer Cumprir a Lei, artigo 2.

29 Segundo relatório da Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil, os presos recebem pancadas, surras, insultos, choques elétricos, "corredor polonês", etc. Este tratamento faz parte da rotina de muitos presídios e delegacias. Os carcereiros, guardas, delegados e diretores da prisão muitas vezes abusam respaldados na impunidade. A corrupção também esta presente e eles por vezes cobram pedágio às famílias, "passando a mão no que a família traz para o preso". Op. cit., at. 9, pag. 21

30 A Convenção Americana em seu artigo 5 (1) (2) dispõe que: "1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral", "2. Ninguém deve ser submetido a torturas nem a penas ou tratamentos cureis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade será tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano".

31 Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil, Op. cit., at 9 pag 15.

32 Idem, pag. 8.

33 Op. cit. at 5, pag. 13.

34 Pastoral Carcerária da Arquidiocese de São Paulo, "Elementos para uma reflexão em busca de pistas na questão de rebeliões e reféns 1986-1988", maio 1988, pag. 5.

35 0 caso do massacre de Carandirú (n 11.219) encontra-se atualmente em tramitação junto à Comissão e, portanto, qualquer referencia que se faça a ele e descritiva e não implica prejulgar a essência da questão, que esta sendo objeto de estudo por parte da Comissão.

Para mais informações sobre esse caso, ver AMERICAS WATCH, "Brasil: Prison Massacre in São Paulo", 21 de outubro de 1992; AMNESTY INTERNATIONAL, "Brazil, Death Has Arrived, Prison Massacre at Casa de Detenção. São Paulo", agosto de 1993.

36 0 artigo 3 do Código de Conduta para Funcionários Encarregados de Fazer Cumprir a Lei dispõe: "Os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei somente poderão usar a força quando for estritamente necessário e na medida que o requeira o desempenho de suas tarefas."

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