RELATORIO SOBRE A SITUACAO DOS DEREITOS HUMANOS NO BRASIL

CAPÍTULO III


A VIOLÊNCIA POLICIAL, A IMPUNIDADE E O FORO PRIVATIVO MILITAR DA POLÍCIA

A. VIOLÊNCIA E IMPUNIDADE POLICIAL

1. As forças de segurança brasileiras foram repetidamente acusadas de violar de maneira sistemática os direitos das pessoas e de que há um sistema que assegura a impunidade dessas violações. A Comissão considera que efetivamente há uma história de práticas violatórias da polícia, como comprovou a justiça brasileira e reconheceu o próprio Governo em seu Plano Nacional de Direitos Humanos, embora não seja conveniente adjudicar em geral responsabilidades violatórias a todas as forças de segurança nacionais ou estaduais.

2. Anteriormente à análise do tema da violência ilegal que advém da açao destas forças, cabe apresentar uma análise de sua estrutura e responsabilidades, para então passar a um estudo da violência policial e de seus mecanismos de controle internos e externos.

 

Estrutura do sistema policial

3. A competência para exercer, organizar e garantir a segurança pública é distribuída entre a União e os Estados, existindo uma Polícia Federal e, em cada Estado, uma polícia civil e outra chamada de polícia militar.

4. A Polícia Federal, nos limites da competência da União, está subordinada ao Ministério da Justiça e atua em todo o território nacional. A principal função da Polícia Federal é "comprovar as infrações penais contra a ordem política e social; e contra os bens, serviços e interesses da União; de suas entidades autárquicas e empresas públicas, bem como outras infrações que tenham repercussão interestadual ou internacional ou exijam repressão uniforme segundo a lei dispõe. Também se encarrega de prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e o contrabando e desvio destes, na polícia marítima, aérea e fronteiriça e no exercício das funções da polícia da União".

5. As polícias estaduais dividem-se em polícia civil e polícia "militar". Esta última cumpre tarefas próprias das polícias civis típicas, subordina-se diretamente ao Poder Executivo (Governador e Secretário de Segurança Pública de cada estado) e não é um força interna do aparato militar nacional. Contudo, mantém o nome de polícia "militar" que lhe foi atribuído ao ser criada em 1977 no decorrer do período de governo militar.(40) Insistindo-se em que não se trata propriamente de uma força militar e em que se subordina diretamente ao Poder Executivo de cada estado, figurará neste relatório entre áspas.

6. A "polícia militar", tem a responsabilidade do policiamento ostensivo e da preservação da ordem pública, ou seja, ela se ocupa, primordialmente, das tarefas diárias de patrulhamento e de perseguição de criminosos. Quanto à subordinação, as polícias estaduais, tanto "militares" quanto civis, subordinam-se aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. (Artigo 144, parágrafo 6 da CF). O chefe das polícias estaduais é o Secretário de Segurança Pública, auxiliar direto do Governador e responsável pelos atos que pratica ou referenda no exercício de seu cargo.

7. A polícia civil exerce a função de polícia judicial do estado, encarregando-se de verificar as infrações penais, com exceção das penas militares e das de competência da Polícia Federal.

 

A violência policial

8. A Comissão por anos vem sendo informada por órgãos governamentais, pela imprensa e por organizações não-governamentais da atuação violenta das polícias estaduais, especialmente da militar, acusada de atuar violentamente tanto no exercício de suas funções como fora dele. Um argumento comumente usado pelas polícias "militares" sobre as acusações que lhes são feitas sobre as múltiplas mortes que ocasionam é que estas são ocasionadas em legítima defesa ou no estrito cumprimento do dever.(41) Embora seja certo que em muitos estados há um clima de violência delinqüente, há provas de que a reação da polícia não só excede os limites do legal e regulamentar mas, em muitos casos, os funcionários policiais usam de seu poder, organização e armamento para atividades ilegais. A Comissão quer, ao mesmo tempo, salientar que o Governo Federal e alguns governos estaduais se empenham em corrigir esses excessos e violações, em geral por iniciativa de organizações da sociedade civil e com o apoio delas.

9. Em 1994, dados parciais para 14 estados federados do Brasil revelam que ocorreram 6.494 homicídios de todos os tipos e que, para cerca da metade deles, há atribuição de responsabilidade. Destes últimos, 8% são atribuídos a policiais "militares" e outros 4% a "esquadrões da morte". Analisando Estado por Estado o perfil dos acusados, há importantes diferenças: acusam-se policiais como responsáveis em 17% dos casos em Alagoas; em 6% a 9% dos casos no Amazonas, Amapá, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul; e em 5% ou menos dos casos no Ceará, Espírito Santo, Rio Grande do Norte, Roraima e Sergipe.

10. Entretanto, essas percentagens aumentam se incluem policiais de todos os tipos, guardas privados e membros de grupos de extermínio. Por exemplo, no Estado de Pernambuco, revela-se que dos 1.176 acusados de homicídio, no período de janeiro de 1994 a outubro de 1995, 215 (18,3%) eram policiais, e outros 154 (13,1%) eram membros de grupos de extermínio.

11. Segundo informações recebidas, grande número dessas mortes não são causadas por ação da polícia no estrito cumprimento do dever; muitas vezes, essas mortes estão relacionadas com as chamadas "execuções extrajudiciais", decorrentes da participação de membros da polícia estadual em grupos de extermínio, inclusive de adolescentes e crianças. No caso de mortes ocasionadas em serviço, de acordo com o levantamento feito pela própria polícia, tem peso considerável a falta de preparação profissional.

12. A Comissão Parlamentar de Investigação dos assassinatos de crianças e adolescentes no Brasil chegou à conclusão de que grande parte da responsabilidade por esse tipo de crime recaía sobre os policiais "militares", concluindo, ademais, que os policiais acusados de crimes eram apoiados em diversas frentes, a começar pelas deficientes investigações policiais e, em seguida, pela maneira indulgente com que eram tratados pela justiça militar.

13. As explicações dadas pelas autoridades sobre esses casos tornam evidente que, apesar das profundas transformações políticas por que passou o país desde o fim do governo militar, a polícia "militar" continua a seguir o modelo repressivo desse governo, motivo por que os membros dessas polícias orientam-se no sentido de atuar de maneira violenta, a fim de prevenir ou aniquilar possíveis movimentos então considerados subversivos. Daí o fato de que muitos policiais "militares" cometam atualmente no desempenho de suas funções abusos que são notados inclusive quando, do exame das vítimas, se infere que foram mortas por disparos fatais em partes vitais do corpo ou nas costelas, verificando-se claramente que as mesmas não tentavam resistir, estando em muitos casos desarmadas.

14. A criminalidade das cidades brasileiras é apontada pelas autoridades policiais como uma das causas da violência policial. A Comissão pôde, porém, observar que nem sempre as vítimas de abusos cometidos pelos policiais têm relação com o mundo do crime.

15. O Governo sustém que, após vários incidentes de flagrantes abusos brutais, que vão desde o mal tratamento de prisioneiros até a participação em esquadrões da morte, o Governo Federal e alguns governos estaduais deram início a intensivos programas de combate à ação policial e dos grupos de extermínio. Ademais, a Polícia Federal iniciou em 1993 uma investigação especial sobre a má conduta policial. Unicamente no Estado do Rio de Janeiro, 131 membros de esquadrões da morte foram processados nos últimos dois anos (1994 e 1995), 64 dos quais achavam-se presos em fins de 1995. Além disso, foram expulsos da força policial.

16. Segundo opiniões autorizadas, os excessos cometidos não têm atualmente relação com "crimes políticos", mas com a criminalidade comum que, na mente de alguns setores policiais, e mesmo civis, está identificada com estereótipos de que provém dos "negros", dos "desempregados", dos "pobres", das "meninas de rua" ou dos "meninos de rua".(42)

17. A violência policial com respeito às crianças, especialmente de rua, ao que parece é encarniçada em alguns Estados. Na Bahia, por exemplo, a Comissão Legislativa de Direitos Humanos, em abril de 1995, deu uma audiência sobre o tema, na qual recebeu informações sobre cinco matanças atribuídas à polícia "militar" estadual, três das quais matanças de crianças.

18. Em Manaus, em dezembro de 1994,um jovem de 19 anos, confundido com outro, foi duramente golpeado por policiais e em seguida, recebeu um tiro na espinha dorsal. Ao cair, foi novamente agredido a pontapés restando paralisado.(43) Casos como esse ocorrem com freqüência, sendo também freqüente o fato de que os policiais que cometem abusos chegam, às vezes, a receber prêmios da corporação policial por sua atuação, considerada exemplar. A Comissão foi informada de que autoridades policiais em alguns estados brasileiros chegam a apoiar publicamente a atuação violenta dos policiais, como se verifica ademas em publicações jornalísticas de Novembro de 1996. A Comissão manifesta preocupação ante esse fato, já que seria um estímulo à violência policial, ao legitimar uma violência institucional.

19. Existem ainda casos em que policiais acusados de vitimizarem supostos os criminosos são premiados e promovidos, como exemplo, o episódio de um cabo previamente relacionado a 49 assassinatos e que recebeu o titulo de "Policial do Ano".(44) Por sua vez, o coronel que o condecorou foi acusado de praticar 44 mortes em seus 24 anos de carreira(45).

20. As estatísticas oficiais da polícia "militar" do Estado de São Paulo mostram que entre 1988 e 1992 verificaram-se as seguintes mortes de civis em operações da polícia "militar": 294 em 1988; 532 em 1989; 585 em 1990; 1.074 em 1991; e 1470 em 1992.(46) Em 1994, a polícia "militar" matou 522 pessoas e, só nos três primeiros meses de 1995, a polícia "militar" teria matado 136 civis.(47) Tais índices aumentaram vertiginosamente de 1988 a 1993. A situação inverteu-se na área metropolitana de São Paulo, onde o número de civis mortos pela polícia "militar" vem diminuindo desde 1993, depois do massacre de presos em Carandiru. Em 1992, houve 1.190 civis mortos pela polícia, mais que nos quatro anos posteriores, em que houve em total 1.015. Em 1996, a cifra baixou a 106 civis mortos por ação policial.(48)

21. Enquanto a situação, em número de mortos pela polícia, parece melhorar em São Paulo, ocorre no Rio de Janeiro um fenômeno alarmante desde maio de 1995, ocasião em que tomou posse um novo Secretário de Segurança Pública. Desde esse mês, no período que se estende até fevereiro de 1996, a media de mortos pela polícia "militar", por mês, elevou-se de 3,2 a 20,55 pessoas, ou seja, um total de 201 pessoas em 1996. Um terço das vítimas foram mortas pelo Nono Batalhão o qual patrulha numerosas áreas de favelas.(49)

22. Chama a atenção da Comissão que, embora o normal em enfrentamentos armados seja que haja uma proporção muito maior de feridos do que mortos, nesse período no Rio de Janeiro o número de civis mortos pela polícia "militar" em enfrentamentos foi mais de três vezes o número de civis feridos nos mesmos. Isso demonstraria um excesso de uso de força e, inclusive, um padrão de execuções extrajudiciais pela polícia do Rio de Janeiro. Essas atitudes policiais repercutiram sobre a confiança da população em sua polícia - elemento chave do império do direito - assinalada como muito pouca no Rio de Janeiro. Nos anos de 1995 e 1996, somente 12% daqueles que foram roubados comunicaram o fato à polícia. Essa desconfiança é mais acentuada por nível social, uma vez que um de cada três dos roubados dos setores de alta renda informaram à polícia, ao passo que só um o fez de cada dez roubados de setores pobres.(50)

23. Entretanto, os casos de execuções extrajudiciais por parte da polícia "militar" ocorrem não somente no desempenho de suas funções, mas também fora delas. Esses casos são diariamente comunicados por fontes locais e internacionais e, no parecer da Comissão, demonstram um padrão de conduta alarmante, que merece atenção especial.

24. Por esse motivo, mencionam-se alguns dos muitos casos comunicados por fontes locais e internacionais no período a que se refere este relatório (1988-96), não avaliando cada um dos fatos nele descritos, mas como ilustração do padrão de violência existente.(51) Os casos que implicam violência em geral serão mencionados nesta parte do relatório e os que envolvem violência contra menores serão tratados no capítulo relacionado com execuções extrajudiciais de crianças e adolescentes. Também serão citados alguns exemplos na parte relativa aos esquadrões da morte ou grupos de extermínio.

 

Dificuldades na investigação da violência policial

25. A Comissão constatou que, quando as autoridades decidem investigar os casos de violência policial, encontram enormes dificuldades em reunir provas que identifiquem os responsáveis pelas violações dos direitos humanos. Uma dessas causas é o conceito errôneo de corporativismo policial que encobre a violência praticada por seus membros mediante a obstrução da justiça. A Comissão recebeu informações, por exemplo, de que a tortura é comumente utilizada pelas polícias estaduais como método de investigação. Segundo tais informações, quando as autoridades querem verificar as denúncias de torturas, encontram dificuldades e mesmo desobediências às ordens judiciais.(52)

26. Outro obstáculo de fato enfrentado consiste em que no Brasil prevalece a chamada "lei do silêncio", segundo a qual, as testemunhas oculares ("testemunhas") se negam a esclarecer as circunstâncias dos fatos presenciados por temor a possíveis represálias. O medo de represálias é tão forte que muitas vezes as próprias vítimas da violência policial preferem calar-se a ser alvo dessas represálias. Ainda não há no Brasil um sistema efetivo de proteção das testemunhas, embora se esteja começando a implementar um desses sistemas, como veremos mais adiante.(53)

27. O medo de testemunhar fundamenta-se em casos em que a "lei do silêncio" não é respeitada e a potencial testemunha põe sua vida em perigo. Um exemplo disso ocorreu em 6 de novembro de 1994, com o jovem Eduardo de Araújo, de 14 anos, sobrevivente da matança da Candelária. O jovem foi baleado e morto por dois homens que todos os dias passava pela rua onde Eduardo morava, atirando para o alto. O dia em que Eduardo foi assassinado, os homens repetiram a rotina, mas ordenaram a ele que corresse, transformando-o em alvo móvel.(54)

28. Por outro lado, quando uma testemunha se dispõe a colaborar com a justiça na identificação de criminosos, depara-se ela com a lentidão do próprio processo judicial e podem transcorrer meses sem que seja chamada a testemunhar, sem que disponha de serviço algum que a proteja, o que desestimula a colaboração com a justiça. Esse foi o caso de Wagner Dos Santos, lavador de carros, de 23 anos, principal testemunha da matança da Candelária, que sofreu um atentado. Após a matança, Santos foi para a Bahia a fim de proteger-se. Entretanto, quinze dias depois de voltar ao Rio de Janeiro - e vivendo na Casa de Proteção de Testemunhas, sob a proteção da Guarda da Justiça do Estado - sofreu um segundo atentado por parte de policiais "militares" envolvidos na matança.(55)

29. A desconfiança da polícia com respeito à população marginal e em relação à lei desperta, por sua vez, a conseqüente desconfiança da população para com a polícia. Essa desconfiança, embora varie de um estado para outro, é muito alta na maioria deles, o que reflete a situação de insegurança em que se vive em alguns deles, insegurança essa propícia à violação dos direitos humanos. No Estado da Bahia, por exemplo, pesquisas realizadas em 1995 revelaram que 85% da população não confiam na polícia "militar" e 82% não confiam na polícia civil, o que levou a Legislatura a estabelecer uma Comissão Parlamentar de Inquérito a esse respeito. Esses dados confirmam os anteriormente citados para o Rio de Janeiro.

30. Um passo importante para a correção dessa falha foi dado pelo Governo do Estado de Pernambuco ao assinar um convênio com o Gabinete de Assessoria Jurídica das Organizações Populares (GAJOP), uma organização não-governamental. O projeto, conhecido como Programa PROVITA, tem por finalidade proteger as vítimas da violência e consiste em atividades conjuntas de órgãos governamentais, e de entidades e pessoas da sociedade civil interessados em prestar serviços de apoio psicológico às vítimas da violência. O programa também tem por objetivo criar locais que adequadamente assegurem a proteção das testemunhas que se achem sob ameaça. Cumpre assinalar que o convênio, atualmente na fase inicial de implementação, já dispõe de 25 locais de proteção às testemunhas, distribuídos em diferentes regiões do Estado, fato que revela a seriedade com que o Governo estadual acatou a iniciativa da sociedade civil. Um projeto similar foi celebrado entre o Ministério da Justiça e a Ong "Viva Rio", no Estado do Rio. Está também em andamento um programa no Centro de Atendimento à Vítima do Crime(CEVIC), dando a vitima assistência jurídica e psicossocial.

31. A Comissão manifesta sua esperança de que o mencionado convênio produza os resultados pretendidos e que o exemplo pernambucano seja seguido por outros governos estaduais, uma vez que esse projeto que prevê a proteção das testemunhas data de alguns anos; fora proposto em 1993 e retirado do Congresso pelo Executivo em 1996, para estudo à respeito da incompatibilidade de seus dispositivos com a estrutura legal brasileira. Apesar disso, a Comissão observa com satisfação o interesse do Governo em apoiar a criação, pelos Estados, de seus respectivos programas de proteção das testemunhas, interesse que foi manifestado no PNDH, que o inclui como meta de curto prazo.

32. A Comissão não pode deixar de salientar as conseqüências perversas desse descontrole da delinqüência por parte das forças da ordem, elas próprias atuando fora da lei e dos regulamentos, gerando a perda da confiança da população no estado de direito e a procura de soluções através de vias ilegais.(56)

33. A Comissão deseja salientar algumas iniciativas estaduais no sentido de reduzir a violência policial. Uma delas, no mesmo Estado da Bahia, onde a respectiva Comissão Parlamentar iniciou em 1994 a realização de assembléias populares em escolas de bairros humildes, em que se discutem casos de violência policial, com a presença de representantes policiais, de organizações comunitárias e parlamentares.

34. Outro exemplo é o dos Centros Comunitários de Defesa da Cidadânia iniciados pela Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, combinando as Polícias Civis e "Militares" com outros serviços governamentais como os Bombeiros, ajuda para desastres e programas juvenis. Esta secretaria também tem começado a treinar seus funcionários na Universidade nos temas do Império do Direito, Direitos Humanos e Sociologia. Igualmente importante são as tarefas das "auditorias" ("ouvidorias") da Polícia, que atuam como "ombudsman" policiais, o que é analizado no final deste capítulo.

35. No plano federal tomaram-se iniciativas legislativas que visam o combate da impunidade, sobretudo de policiais envolvidos em violações de direitos humanos:

a) A lei 9455/97, que tipifica o crime de tortura e estabelece penas severas como prevê a Constituição Federal, de 1988, e

b) O projeto de lei enviado pelo Executivo ao Congresso Nacional em abril de 1997, com vistas a agilizar os procedimentos de "oitiva" de testemunhas em processos criminais.

 

B. OS ESQUADRÕES DA MORTE

Antecedentes

36. Os esquadrões da morte ou grupos de extermínio foram estabelecidos por antigos oficiais da polícia a fim de combater o crime. No Rio de Janeiro, por exemplo, os primeiros desses grupos foram estabelecidos por volta de 1950. Seus membros são conhecidos como os "justiceiros".

37. Uma pesquisa realizada em 1991 revelou que 27% (8.000 policiais) dos membros das forças policiais do Rio de Janeiro foram convidados, em algum momento, para participar desses grupos.(57) Em 1996, segundo uma pesquisa realizada no Rio de Janeiro e em São Paulo, 76% dos entrevistados declararam crer que há esquadrões da morte compostos por policiais.(58)

38. O relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro sobre Extermínio de Menores identificou 15 grupos de extermínio no referido Estado. Em 1997, esses grupos atuavam nos municípios de Duque de Caxias, Niterói e Barra Mansa.(59) Denúncias apresentadas à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Congresso Nacional revelam que, no mesmo ano, havia no Estado de Pernambuco 30 grupos de extermínio.(60) Também no Estado do Espírito Santo e no Estado de Minas Gerais se denuncia a existência de esquadrões de justiceiros, formados pela polícia civil e pela polícia militar (PM).(61)

39. A composição dos grupos de extermínio é variável. Às vezes, seus membros são policiais de plantão(62) que encontram na participação nesses grupos uma forma de aumentar seu baixo salário. Outras vezes, são policiais expulsos da polícia por sua participação em atos delituosos. Em ambos os casos, tanto os policiais em serviço como os expulsos fazem de sua participação nos esquadrões da morte um meio de vida. Em outros casos, esses esquadrões são constituídos de indivíduos contratados como vigilantes por pequenos comerciantes temerosos de assaltos.(63) Há grupos que não guardam relação específica com o crime organizado e exercem o controle de determinada região a fim de garantir a segurança de seus moradores.(64) Outros grupos formam parte de organizações criminosas, sofisticadas ou não, envolvidas no tráfico de drogas e outras atividades ilícitas.(65) Embora os membros dos esquadrões da morte iniciem suas atividades como verdadeiros vigilantes, seu contato com delinqüentes faz com que freqüentemente acabem por vincular-se com o tráfico de drogas e com diversas atividades delituosas, como a extorsão.(66)

40. Os esquadrões da morte atuam no extermínio tanto de adultos como de adolescentes e crianças. Em relação às vítimas adultas, são elas em geral pessoas pertencentes ao mundo do crime. No caso de crianças e adolescentes, sua característica é serem pobre e serem considerado ameaça social. Às vezes, essas crianças ou adolescentes fazem tratos com os policiais ou o crime organizado e acabam sendo executados com a quebra do acordo.(67)

41. De acordo com dados do Centro de Denúncias sobre os Grupos de Extermínio, criado pelo Governo no Estado do Rio de Janeiro, das 159 pessoas detidas entre abril de 1991 de junho de 1993 por estarem envolvidas nesse tipo de atividade, 53 eram membros da polícia "militar".(68)

42. A fim de entender a psicologia desses esquadrões, referimo-nos às palavras de um dos chamados justiceiros: "a polícia não pode patrulhar cada bairro, nem cada rua... Entretanto, o crime continua a aumentar e o número de indesejáveis se multiplica... Nós impomos ordem".(69)

43. Costuma-se dizer que os políticos locais (prefeitos, conselheiros, vereadores e deputados estaduais e federais) apoiam os esquadrões da morte e que, algumas vezes, usam do controle que exercem os justiceiros sobre a população local para conseguir votos ou intimidar os oponentes. Também se alega que alguns indivíduos processados por pertencerem a esses grupos trabalham abertamente para alguns políticos locais. As pessoas que se opõem ao controle exercido pelos justiceiros em seus respectivos bairros correm o risco de perder a vida; também é muito arriscado delatá-los à polícia. Assim, entre 1991 e 1993, só na área do Rio de Janeiro, os grupos de extermínio executaram 31 líderes comunitários.(70)

44. No Estado do Rio Grande do Norte, por exemplo, supostos membros da polícia deram fim à vida do advogado Francisco Gilson Nogueira de Carvalho na madrugada de 20 de outubro de 1996. Nogueira de Carvalho era advogado das vítimas da violência policial e assistente do Ministério Público em processos que levavam a comprovar a existência de um grupo de extermínio conhecido como os "rapazes de ouro" na polícia civil do Estado. O advogado assassinado também denunciava a conivência das autoridades com os autores dos crimes, uma vez que os resultados das investigações correspondentes às mortes ocasionadas pela polícia jamais foram enviadas à justiça. A Comissão Especial criada para esse efeito pela Procuradoria Geral de Justiça constatou o envolvimento dessa polícia em mais de 30 mortes. As autoridades federais, conhecedoras desde 1995 das ameaças contra Nogueira de Carvalho, colocaram-no sob a proteção da Polícia Federal. O suposto mandante do crime, o ex-Secretário Adjunto de Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Norte, foi afastado do seu cargo.

45. No Estado de Pernambuco, uma Comissão Parlamentar de Inquérito criada pela Legislatura do Estado constatou a existência de 30 grupos de extermínio no Estado, muitos deles com a conivência e participação da polícia.

46. Em numerosos Estados do Brasil (Acre, Amazonas, Alagoas, Espírito Santo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Pará, Rio de Janeiro, Sergipe, entre outros) a ação dos esquadrões da morte no sentido de eliminar jovens pobres e suspeitos de crimes em áreas urbanas; e líderes comunitários e sindicais em áreas rurais, ficou impune, segundo informação recebida.(71)

 

A impunidade dos "grupos de extermínio"

47. Esses grupos operam impunemente(72), sobretudo pelas ameaças, pela intimidação de testemunhas e ficais, pelas investigações insuficientes para processar seus membros e pela ineficiência do Poder Judicial para condená-los.(73) Por outro lado, suas operações são em parte toleradas pela população, que muitas vezes as considera como forma "rude" de fazer justiça e como paliativo da falta de eficiência demonstrada pelo Poder Judiciário no combate à violência.(74) Alega-se, ademais, que por vezes funcionam com o consentimento das autoridades policiais locais, que não se esforçam para pôr fim a suas atividades, seja porque participam das mesmas, seja porque sentem que os grupos de extermínio ajudam a eliminar criminosos, traficantes de drogas e outros "indesejáveis".(75)

48. Entrevistas com policiais "militares" revelam os motivos aparentes da violência policial. O principal argumento para a matança de supostos criminosos em vez de sua detenção consiste em que, segundo alegam, a luta contra o crime torna-se mais efetiva. Na opinião dos entrevistados, é um modo de evitar que os suspeitos sejam entregues à polícia civil que, alegam eles, aceita subornos e é ineficiente na etapa de investigação.(76)

49. De fato, quando se examina a relação entre os crimes cometidos, as investigações concluídas e os julgamentos realizados, percebe-se que a impunidade é um fato. No Estado de Pernambuco, por exemplo, entre janeiro de 1986 e junho de 1991, ocorreram 460 homicídios de jovens de até 18 anos. Destes, 118 foram julgados. Nos primeiros dez meses de 1994, houve 114 assassinatos de crianças e adolescentes e, de acordo com dados da Secretaria de Segurança, foram abertos somente 16 inquéritos.

50. No Estado do Rio de Janeiro, dados do Instituto de Religião revelam que, de 3.450 inquéritos sobre homicídios, 92% resultaram em impunidade. De 500 casos, somente 7,8% chegaram à justiça. De acordo com o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), num estudo sobre investigação de 306 homicídios de crianças e adolescentes ocorridos no Rio de Janeiro de 1991, na maioria deles teriam sido recolhidos elementos suficientes para comprovar a autoria dos culpados e, em certos casos, cerca de um ano após terem sido instauradas os inquéritos, foram eles abandonados, e dezenas deles nem sequer puderam ser localizados. Concluiu-se com essa pesquisa que a má instrução dos inquéritos é causada pela falta de estímulo por parte dos delegados policiais e fiscais judiciais.(77)

 

Os linchamentos

51. Outro fenômeno observado nas cidades brasileiras é o linchamento, cuja dimensão e caracterização se acham integrados ao cotidiano da sociedade, podendo ser desencadeados por vários motivos, seja pelo simples furto de um adolescente, seja pela ação de um estuprador. Disso se depreende que a ocorrência dos linchamentos, como dos esquadrões da morte, se fundamente na falta de um sistema policial operante e eficaz, bem como na incredulidade da população quanto à efetividade da justiça. O linchamento também poderia ser assinalado como outra mola propulsora da violência policial, pois os membros da polícia estariam cometendo abusos para evitar a ocorrência de linchamentos por parte da população. Na realidade, a violência cometida por membros da polícia seria, do ponto de vista de membros da polícia, inerente à natureza de seu trabalho e, por conseguinte, sempre desse ponto de vista, menos reprovável do que a violência exercida pela população em geral nos linchamentos.

52. Cumpre salientar que, nos casos em que ocorrem tentativas de linchamento por parte da população, a participação policial destina-se a impedir que tais tentativas se concretizem, retirando a vítima e levando-a a lugar seguro. Do exame de 213 casos, em que o linchamento foi impedido, em 54% deles houve atuação direta da polícia, o que demonstra sua eficácia em impedir esse tipo de crime.(78)

 

C. IMPUNIDADE POLICIAL

Sistemas de controle interno e externo da polícia

53. O controle interno da ação policial estadual é feito pelas Corregedorias de Polícia em cada Estado, cabendo a estas, basicamente, as atribuições de acompanhar e fiscalizar a regularidade dos serviços prestados pelas polícias civil e "militar" de cada Estado e de verificar, mediante sindicância determinada pela Secretaria de Segurança, as irregularidades em que tenham estado envolvidos policiais civis e "militares", indicando as penalidades que lhes cabem e instaurando os devidos processos administrativos.

54. A Comissão reconhece a ação de algumas Corregedorias dos Departamentos de Segurança Pública no cumprimento de sua difícil tarefa de controle interno. Para uma idéia dessa tarefa, cumpre assinalar os dados da Corregedoria do Estado de Pernambuco que, em dez meses de 1995, instaurou 435 sindicâncias e concluiu 265. Delas, 46 foram processos administrativos com base em delitos penais (14 deles por lesões corporais causados por policiais). Em conseqüência dos mesmos foram demitidos 1 delegado, 2 comissários, 1 escrivão e 10 agentes, além de sete outras penalidades administrativas. Esse programa se complementa com o já mencionado programa da Secretaria de Segurança pernambucana, para a proteção de testemunhas, familiares e vítimas da violência.

55. A Comissão também salienta que recentemente, em 1995, foi criada por decreto no Estado de São Paulo a primeira Ouvidoria da Polícia, órgão complementar da polícia, dirigido por um representante da sociedade civil e destinado a complementar o controle interno das ações das polícias estaduais. Segundo dados oficiais, a Ouvidoria de São Paulo recebeu, nos primeiros seis meses, desde sua criação, 1.134 casos, dos quais informa haver solucionado 34%. Do total de casos, 64% referem-se a ações impróprias da polícia civil de São Paulo e 36% a de sua polícia "militar". Quase 10% das queixas contra a polícia "militar" corresponderam em 1996 a homicídios em que se alegava envolvimento de policiais "militares". Do total de queixas, cerca de cem (aproximadamente 10%) correspondiam a abusos de autoridade e torturas. A própria Auditoria preparou um anteprojeto de lei para a obtenção de autonomia e independência institucional como primeiro passo para a consolidação da primeira experiência brasileira de ombudsman policial. A Ouvidoria de Polícia de São Paulo em 17 meses de atividades promoveu a punição de 420 policiais.

56. O Governo Federal incluiu a criação das Ouvidorias de Polícia como uma das medidas a serem implementadas por intermédio do PNDH. Na prática, além da Ouvidoria do Estado de São Paulo, há a Ouvidoria do Distrito Federal, e os Estados de Minas Gerais, Pernambuco, Bahia e Pará estão criando a suas, implementando leis estaduais. A existência e ação da Auditoria do Estado de São Paulo, vem sendo amplamente divulgada pelo Governo estadual, bem como o meio de acesso a esse órgão, desse modo estimulando a população a denunciar os abusos cometidos por policiais "militares" e civis. A Comissão chama a atenção para a coincidência da criação desse órgão e a sensível diminuição de mortes causadas por policiais de São Paulo, conforme se informou acima.

57. O controle externo da ação da polícia tanto civil como militar deve ser exercido pelo Ministério Público (artigo 129, VII, CF) e pelo Poder Judiciário. Como um resíduo de sua criação sob o regime militar, cabe ao Ministério Público Militar Estadual, a competência para promover a ação penal pública perante a Justiça Militar, cabendo-lhe ademais, entre outras atribuições, a de instaurar a investigação policial militar e exercer o controle externo da atividade da polícia militar. Isso significa, no parecer da Comissão, uma falha crítica do sistema de garantias da ação policial, pois se destitui o Ministério Público civil do controle da ação policial comum (a cargo das polícias "militares") que são justamente aquelas às quais se atribui o maior número de violações dos direitos humanos.

58. Também se salienta, em relação ao controle eficaz das atividades policiais, a importância do órgão encarregado de realizar as perícias médico-legais, o Instituto Médico Legal, que, sendo parte da polícia civil, emite laudos periciais muitas vezes imprecisos. Na medida em que muitas dessas perícias tendem a estabelecer a própria responsabilidade do pessoal policial nas mortes ou ferimentos, a Comissão considera de fundamental importância a desvinculação desse órgão da polícia e sugere sua associação com departamentos científicos ou de medicina legal de universidades ou de outra instituição que assegure sua absoluta profissionalidade e independência.

 

A justiça militar estadual como foro privativo para o julgamento dos membros da polícia militar.(79)

59. Por iniciativa do Secretário Nacional de Direitos Humanos, Dr. José Gregori, foi criado um grupo de trabalho encarregado de estudar a reforma do sistema de segurança pública no Brasil. Uma das propostas é a de estabelecimento de uma agência nacional com prerrogativas que incluiriam a fiscalização das forças de segurança pública. O objetivo do grupo é de procurar definir o papel das força de segurança no contexto da democracia e do estado de direito , de modo a tornar as polícias brasileiras agentes centrais na promoção dos direitos e liberdades fundamentais.

60. A justiça militar estadual tem competência para processar e julgar os membros das polícias militares acusadas de cometer crimes, definidos como militares, contra a população civil, ou seja, esse foro é regido pelo direito penal militar (Código Penal Militar, CPM), próprio dos militares, que contém normas substantivas de Direito Penal e que constitui um "complexo de normas jurídicas destinado a assegurar a realização dos fins essenciais das instituições militares, cujo objetivo principal é a defesa da pátria". Prevalecem nesse foro "a hierarquia e a disciplina"(80). Também se rege pelo Código de Processo Penal Militar (CPPM), que contém normas de direito formal ou objetivo. A nova Lei 9.299/96 põe sob jurisdição ordinária penal os casos de delito contra a vida com intenção dolosa, mas mantém o restante da competência da justiça militar acima da polícia.(81)

61. Trata-se de uma ordem normativa especial, com princípios e diretrizes próprias, na qual a maioria das normas são aplicáveis somente aos militares e a civis que cometem crimes contra as instituições militares, diferentemente do que sucede no direito penal comum, em que as normas são aplicáveis a todos os cidadãos.(82)

62. O artigo 125, parágrafo 4, da Constituição Federal estabelece o seguinte:

Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares definidos em lei...

63. A lei de que consta essa definição é o Código Penal Militar, que em seu artigo 9,(83) parágrafo II, alínea f, reza o seguinte:

Artigo 9. Consideram-se crimes militares em tempo de paz:

II. Os crimes previstos neste Código, enquanto tenham a mesma definição na lei penal comum, quando forem cometidos:

f) por militar em situação de atividade, ou entendendo-se que, embora não esteja em serviço, use armamento de propriedade militar ou qualquer material bélico sob custódia, fiscalização ou administração militar, para a prática de ato ilegal.

64. De acordo com a disposição acima transcrita, as forças policiais "militares"(tanto federais como estaduais e do Distrito Federal), que são as corporações encarregadas do policiamento preventivo e ostensivo dos civis, estão sujeitas à legislação penal militar, bem como aos tribunais militares, inclusive quando cometem delitos contra civis no cumprimento de suas funções ou usando armas da corporação. Essa competência foi limitada pela Lei 9.299/96 mas, como veremos adiante, essa limitação não é efetiva para eliminar a impunidade decorrente desse foro privativo.

 

Antecedentes do foro especial militar para julgamento dos policiais militares

65. Até 1977, prevaleceu o critério de que os crimes cometidos pelos policiais militares no exercício de suas atividades policiais eram de natureza civil e, por conseguinte, da competência da justiça comum.(84)

Muitos desses casos chegaram ao Supremo Tribunal Federal, o qual, em numerosas decisões, foi de parecer que o serviço policial ou de fiscalização do trânsito não configura uma função de natureza militar e resolveu o conflito a favor da competência da justiça comum. Tantas foram as decisões nesse sentido que, em 1993, o Tribunal Supremo Federal publicou a Súmula N.º 297, que diz o seguinte:

Os oficiais e cargos das milícias dos Estados no exercício da função policial civil não são considerados militares para efeitos penais, sendo competente a justiça comum para julgar dos crimes cometidos por eles ou contra eles.

66. A partir da Emenda Constitucional N.º 7, de 1977 - que modificou o artigo 144, parágrafo 1, alínea a, da Constituição - conhecida como o "Pacote de Abril", sob o regime militar então reinante tornou-se possível a criação de uma justiça militar estadual de caráter especial para o processamento e julgamento dos policiais militares pelos crimes militares definidos na lei.(85) O Supremo Tribunal Federal modificou então o critério e começou a considerar que a justiça militar estadual era competente para julgar os policiais "militares" pelos crimes militares definidos no Código Penal, quando fossem por eles cometidos no exercício de suas atividades policiais.(86)

67. Essa mudança fundamental na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal teve por conseqüência o aumento dos crimes cometidos por policiais militares, os quais ficaram impunes.

 

A impunidade resultante do regime de exceção para julgar os policiais militares

68. Em janeiro de 1983, estabeleceu-se publicamente o desempenho da justiça militar estadual a partir da Emenda Constitucional N.º 7, assinalando-se a esse respeito que:

...a Justiça Militar começou a receber todos os casos (referia-se à Emenda Constitucional N.º 7, de 1977), absolvendo magicamente os soldados e oficiais que matam. Em conseqüência dessa impunidade, quase quatrocentos homens morreram no ano passado, dos quais nem todos eram delinqüentes; as vítimas, em sua grande maioria, eram jovens, crianças, que cometeram uma ou duas infrações e pobres da periferia, oriundos dos estratos mais miseráveis da população... (o grifo é da Comissão).(87)

69. A Constituição de 1988, apesar de todos os seus avanços, manteve(88) a organização policial dos governos militares, a concepção militarizada da segurança pública e o foro de exceção para o julgamento dos crimes comuns cometidos por policiais "militares" no exercício de suas funções policiais. Poder-se-ia dizer que esse texto constitucional conservou um regime de exceção que ratifica a transferência do julgamento dos policiais "militares" para a competência da justiça militar, mantendo-os na mesma situação de quase impunidade semelhante à decorrente da Emenda Constitucional N.º 7, promulgada na época da ditadura militar.

70. Para o entendimento das causas dessa impunidade, é importante analisar alguns aspectos da estrutura da justiça militar no Brasil.

71. A justiça militar da União e a dos estados federados baseiam-se em estrutura análoga. Os ilícitos penais distribuem-se entre as auditorias militares, que são os órgãos de primeiro grau da jurisdição da justiça militar e que correspondem às varas criminais na justiça comum. As auditorias militares são constituídas por um corpo colegiado composto de um juiz-auditor e um Conselho de Justiça.

72. O Conselho de Justiça reúne-se especialmente para julgar o acusado em primeira instância. Atualmente, é constituído por quatro oficiais militares em atividade e por um juiz-auditor civil. O presidente do Conselho, escolhido no dia fixado para o proferimento da sentença, deve ser o militar da mais alta hierarquia (artigo 16 da lei 8457/92).

73. Por sua vez, o juiz-auditor é o único civil que não está colegiado. Esse juiz deve ser advogado e ter sido eleito para o cargo por concurso público. O juiz-auditor goza de competência para receber a denúncia formulada pelo órgão de acusação e, posteriormente, para instruir o processo criminal, decidindo questões de direito que, de outro modo, não seriam adequadamente solucionadas pelos juizes militares, que em geral não são advogados.

74. No âmbito federal, as decisões tomadas pelas auditorias militares estão sujeitas a recursos conhecidos pelo Superior Tribunal Militar (STM). Trata-se de órgão colegiado de segunda instância, constituído por 15 membros, a saber: quatro oficiais-generais do Exército, três oficiais-generais da Marinha e três oficiais-generais da Aeronáutica. Cumpre assinalar que todos esses oficiais devem estar na ativa e ser nomeados pelo Presidente da República, ouvido o Senado Federal. O Supremo Tribunal Militar também é constituído por cinco civis, dos quais dois devem ser juízes- auditores e os demais, juristas de notória erudição e maiores de 35 anos.

75. Além de conhecer os recursos de apelação, o Supremo Tribunal Militar goza de competência para restabelecer a jurisdição militar quando a mesma for invadida por um juiz de primeira instância (da justiça comum). Para esse efeito, tem competência para chamar o processo a juízo superior (artigo 6. IV da Lei 8457/92), ou seja, se um juiz de vara criminal da justiça comum resolver julgar um militar por um delito comum, o processo poderá ser chamado à esfera da justiça militar por decisão do Supremo Tribunal Militar.

76. A Constituição autoriza os Estados federados, desde que o contingente policial militar estadual tenha mais de vinte mil membros, a criar, por proposta do Tribunal de Justiça, seu órgão de segunda instância militar, ou seja, o Tribunal de Justiça Militar. Atualmente, existe esse tipo de tribunal nos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.(89)

77. Os processos perante os tribunais militares muitas vezes tardam anos,(90) em virtude do excesso de trabalho,(91) da escassez de juizes e fiscais, das excessivas formalidades nos procedimentos e dos incidentes dilatórios. A Comissão pôde estabelecer que esses tribunais tendem a ser indulgentes com os policiais acusados de abusos dos direitos humanos e de outras ofensas criminais, o que facilita que os culpados fiquem na impunidade.

78. Nesse clima de impunidade,(92) que predispõe à violência por parte da corporação policial militar,(93) os policiais envolvidos nesse tipo de atividade se vêem estimulados a intervir em execuções extrajudiciais, em abuso dos detentos e em outros tipos de atividade delituosa. A violência eventualmente estendeu-se ao fiscais quando estes insistiram em prosseguir as investigações dos crimes cometidos por policiais "militares", passando eles a ser objeto de ameaças, até mesmo ameaças de morte. Tão pouco estranho é o fato das testemunhas convidadas a declarar contra os policiais processados, recebam ameaças intimidantes.(94)

79. Em carta dirigida à Comissão em 1996, o Centro Santos Dias expressa o seguinte a esse respeito:

Nos inquéritos militares, formalizados nos órgãos da justiça militar, a parcialidade em favor dos policiais incriminados, na maioria dos casos, é escandalosa, a ponto de transformar as vítimas em réus. Também é muito comum a intimidação das testemunhas, cujas deposições judiciais são tomadas na presença dos policiais acusados. Nessas condições, não é de estranhar que a freqüência com que se determina o arquivamento das investigações por motivo de deficiência de provas... Se, cumprida essa etapa, se chegasse a apresentar ou a acolher uma denúncia, surgiriam novas dificuldades na marcha do processo, deliberadamente moroso e cheio de incidentes dilatórios: demora na constituição dos conselhos, adiamentos sucessivos por motivo de pequenas falhas formais etc. (O grifo é da Comissão). Assim, não é de estranhar que uma instrução(95) se arraste por quatro ou cinco anos, ou indefinidamente, por tempo suficiente para apagar a lembrança dos fatos nos periódicos e na memória das pessoas. Passado tanto tempo, as famílias das vítimas já terão perdido a esperança, as testemunhas terão mudado de domicílio e as provas já se terão desvanecido.(96)

80. Fontes fidedignas informam que, somente em São Paulo, onde 1.470 civis foram mortos em 1992 em mãos da polícia "militar", os tribunais militares terminaram por absolver quase todos os policiais "militares" processados.(97) Por sua vez, um estudo(98) realizado em São Paulo em novembro de 1993 determinou que, num período de 18 meses, se apresentassem nos tribunais militares estaduais 143 casos e que em 92% desses casos os policiais fossem absolvidos.(99)

81. Um problema grave que continua a ocorrer é o limitado número de fiscais que se encarreguem dos numerosos casos de violação supostamente cometidas por policiais militares. Por exemplo, no Estado de São Paulo, havia em 1992 14.000 processos em tramitação perante a Justiça Militar a vários títulos, mas somente havia quatro fiscais atuando nesses processos, ou seja, cada fiscal encarregava-se de 3.500 processos.(100)

82. A violência da polícia militar e a impunidade deram origem a diversas iniciativas na Câmara dos Deputados com vistas a suprimir o foro especial militar para o julgamento dos crimes cometidos por policiais militares no exercício de suas atividades públicas. Entre elas está o projeto de lei apresentado pelo Deputado Hélio Bicudo,(101) que devolve ao foro comum o julgamento dos crimes cometidos pelos oficiais das polícias militares estaduais ou contra eles no exercício de suas funções policiais. Esse projeto propõe que se revogue a alínea f do artigo 9 do Código Penal Militar (Decreto-Lei N.º 1.001, de 21 de outubro de 1969), acima transcrito (ver pfo. 62) e que se inclua o seguinte "Parágrafo único":

Oficiais e praças das polícias militares dos Estados no exercício de suas funções policiais não são considerados militares para os efeitos penais, sendo competente a justiça comum para processar e julgar os crimes cometidos por eles ou contra eles.

83. Esse projeto volta ao conceito da Súmula N.º 297, ou seja, excede o foro comum o julgamento dos crimes cometidos pela polícia militar no exercício de suas funções policiais. Esse projeto de lei não foi plenamente aprovado; em seu lugar foi porém aprovado, com o apoio do bloco favorável ao Governo no Senado, um projeto substitutivo, apesar de o Presidente Fernando Henrique haver endossado o projeto original. O Presidente sancionou o projeto substitutivo, conferindo-lhe força de lei, em 7 de agosto de 1996 (Lei 9.299, de 7 de agosto de 1996). A Lei 9.299 emenda o artigo 9 do Código Penal Militar (Decreto-Lei N.º 1.001), que define os crimes militares. O novo "Parágrafo único" estabelece o seguinte:

Os crimes de que trata este artigo, quando forem crimes dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum. (O grifo é da Comissão).

84. Isto significa que os policiais militares continuarão a ser julgados em foro privilegiado quando se trate de crimes contra a pessoa, tais como o homicídio culposo, lesão corporal, tortura, o seqüestro, prisão ilegal, extorsão e golpes.

85. Durante a tramitação do projeto na Câmara, impôs-se a ele outra limitação grave, que consistia na emenda de uma seção do artigo 82 do Código de Processo Penal Militar, que agora se redige da seguinte maneira:

Nos crimes dolosos contra a vida praticados contra civil, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial à justiça comum. (Artigo 82, seção 2, do CPPM).

86. Com isso, o inquérito permanecerá sob a responsabilidade da autoridade militar, mesmo que se trate de crime doloso contra a vida e apesar de que, de acordo com a nova lei, tais crimes passem à esfera da justiça comum. Essa nova disposição contradiz o artigo 144, seção 4, da Constituição, que atribui às polícias civis as funções de polícia judiciária e a apuração das infrações penais, exceto as militares. Com efeito, se os crimes dolosos contra a vida deixam de ser militares em virtude da nova lei, o inquérito penal deverá ficar a cargo das polícias civis, às quais correspondem, de acordo com o artigo 144, seção 4, da Constituição, "as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais". Ao deixar a investigação inicial em mãos da polícia "militar", de fato se confere a esta a competência para determinar ab initio se o crime é doloso ou não. Isso significa que a Lei 9.299 da República não tem capacidade efetiva para reduzir consideravelmente a impunidade.

87. O Programa Nacional de Direitos Humanos apresentado pelo Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso estabelece, entre as metas de curto prazo, as seguintes:

Atribuir à justiça comum a competência para processar e julgar os crimes cometidos por policiais militares em suas funções policiais ou com arma da corporação, apoiando um projeto específico já aprovado na Câmara dos Deputados.

88. Ao mencionar "um projeto específico já aprovado na Câmara dos Deputados", o aludido programa refere-se, na realidade, ao projeto do Deputado Hélio Bicudo, que fora aprovado na Câmara dos Deputados antes de passar ao Senado e ser substituído pelo projeto substitutivo finalmente aprovado.

89. O projeto substitutivo provocou reação de repúdio que deu origem a uma campanha no sentido de resgatar o texto original. Esse movimento teve início em 14 de maio de 1996 num encontro realizado entre o Foro Nacional Contra a Violência no Campo(102) e a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.

90. Em julho de 1996, o projeto de lei original voltou a ser submetido à consideração da Câmara dos Deputados, desta vez como N.º 2.190, de 1996. Na opinião desta Comissão, a aprovação de um projeto de lei nesse sentido, coincidente com uma das metas de curto prazo do Programa Nacional de Direitos Humanos, implicaria um passo fundamental no combate à violência policial. Se aprovado, os policiais militares, no exercício de suas funções, deixariam de ser considerados militares para fins penais e a justiça militar já não teria competência para julgar os crimes comuns cometidos por eles e contra eles. Isso se aplicaria a "todos" os crimes comuns e não somente aos dolosos contra a vida, como ocorre com a Lei 9.299, recentemente aprovada. Além disso, como prevê o mencionado programa, dever-se-ia incluir os crimes cometidos por policiais militares "usando arma da corporação", a fim de assegurar que os policiais militares que cometam crimes comuns contra civis, como membros de grupos de extermínio e fazendo uso de armas da corporação, também sejam julgados pela justiça penal comum. Assim, a Comissão considera que deveria ficar claro que o inquérito policial estará a cargo da polícia civil, conforme dispõe o artigo 144, seção 4, da Constituição Federal. O projeto foi aprovado pelo Senado, e não contempla os crimes de formação de quadrilha e extorsão. O Governo informou a CIDH que envidara esforços para que a futura lei inclua todos os crimes praticados por policiais militares.

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