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RELATÓRIO Nº 35/08 - CASO 12.019

ADMISSIBILIDADE E MÉRITO (PUBLICAÇÃO)

ANTÔNIO FERREIRA BRAGA

 

D.        Violação dos artigos 8 e 25 da Convenção (Garantias judiciais e proteção judicial), em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo Instrumento

 

91.     Quanto à violação dos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, bem como dos artigos 1 e 6 da Convenção Interamericana contra a Tortura, os peticionários alegam que o processo em que foram imputados os responsáveis de terem infringido torturas à suposta vítima durou 5 (cinco) longos anos até ser proferida a decisão final, a qual trouxe consigo a prescrição da pena em relação aos condenados, fato que produziu uma situação de impunidade a respeito da questão.

 

92.       O artigo 8.1 da Convenção Americana estabelece:

 

1.       Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

 

93.      O artigo 25 da Convenção Americana dispõe:

 

1.       Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.

 

2.         Os Estados Partes comprometem-se:

 

a)         a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso;

 

b)         a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e

 

c)         a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso.

 

94.         O artigo 1.1 da Convenção Americana indica:

 

Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita a sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.

 

95.         A investigação policial sobre o assunto foi aberta em 13 de abril de 1993, sendo concluída em 6 de maio do mesmo ano[52]. Em 26 desse último mês e ano, o Ministério Público apresentou denúncia contra Valderi Almeida da Silva, José Sergio Andrade da Silva, Sônia Maria Gurgel Amaral e Francisco Girolando Batalha[53].  A sentença de primeira instância foi proferida em 29 de julho de 1996, mediante a qual os agentes Valderi Almeida da Silva e José Sergio Andrade da Silva foram condenados a 6 (seis) meses de pena privativa de liberdade com base em agravantes, sendo na mesma resolução absolvidos Sônia Gurgel e Francisco Girolando Batalha por não terem participado da prática delituosa[54]. Para o proferimento dessa decisão transcorreram aproximadamente 3 (três) anos e 3 (três) meses desde que ocorreram os fatos.
 

96.         A sentença de condenação, ao ser recorrida posteriormente, foi modificada e em 12 de maio de 1999 estabeleceu-se definitivamente a pena[55], para em seguida decretar-se a extinção da punibilidade, em 10 de junho de 1999, em virtude do tempo transcorrido entre a data em que ocorreram os fatos e o momento em que foi proferida a decisão[56]. Para a conclusão do procedimento penal transcorreram quase 6 (seis) anos desde a ocorrência dos fatos.

 

97.         O processo administrativo instaurado, concluído em 29 de novembro de 1994 determinou a demissão de Valderi Almeida da Silva e José Sergio Andrade da Silva, com base nas torturas que praticaram contra a suposta vítima.  Francisco Girolando Batalha foi condenado a uma suspensão de 60 (sessenta) dias por ter cometido abuso do poder, por deter sem ordem judicial o mesmo sujeito e por conduzi-lo à Delegacia de Furtos e Roubos. Decretou-se também a absolvição da Delegada Sônia Maria Gurgel ao se determinar que não teve participação nos fatos[57].

 

98.              No presente caso é preciso ter presente que os acontecimentos datam de 12 de abril de 1993. Estabeleceu-se como fato que a pena, depois do julgamento dos mesmos com base nos fatos puníveis de violência arbitrária e abuso de autoridade, foi proferida em 12 de maio de 1999 em relação a Valderi Almeida da Silva e José Sergio Andrade da Silva[58] para, em seguida, ser decretada a extinção da punibilidade, em 10 de junho do mesmo ano, com  base na prescrição liberatória[59].  A base legal utilizada para aplicar a extinção da punibilidade da sentença de 10 de junho de 1999 foi o tempo transcorrido entre a data da denúncia e o momento em que a decisão foi proferida, ou seja, mais de 5 (cinco) anos[60]. Na decisão de 29 de julho de 1996, proferida pelo Juiz da 9ª Vara Criminal do Ceará, interinamente na 4ª Vara Criminal, foram absolvidos Francisco Girolando Batalha e Sônia Maria Gurgel Matos dos fatos puníveis de que eram acusados, tipificados como lesão grave, constrangimento ilegal e violência arbitrária, previstos nos artigos 129, 146 e 322 do Código Penal.  Essa medida foi adotada com base no artigo 386, inciso IV, do Código do Processo Penal[61].

 

99.        Cumpre indicar que, embora neste caso os processos internos tenham tido tramitação, foram ineficazes para determinar a responsabilidade de todos os acusados e indenizar a suposta vítima, uma vez que, de acordo com as exigências tanto da Convenção Americana como da Convenção Interamericana contra a Tortura, toda situação em que se tenha demonstrado a prática de fatos considerados como tortura deve ser prontamente investigada e julgada.  Todas as pessoas que forem consideradas responsáveis por esses atos devem ser declaradas responsáveis e penalizadas, devendo igualmente a pessoa que tenha sofrido as torturas ser devidamente indenizada. Se isso não ocorrer, os processos carecem de efetividade e integralidade.

 

100.       Nessa ordem de considerações, a Corte afirmou que, para haver num processo verdadeiras garantias judiciais, é preciso que nele sejam atendidos todos os requisitos que “sirvam para proteger, assegurar ou fazer valer a titularidade ou o exercício de um direito”[62], ou seja, as “condições que devem cumprir-se para assegurar a adequada defesa daqueles cujos direitos ou obrigações estão sob consideração judicial”[63].

 

101.       No tocante ao processo judicial interno e à sua duração, a Corte estabeleceu que aquele termina quando se profere sentença definitiva e firme no assunto, com o que se esgota a jurisdição e, particularmente em matéria penal, esse prazo deve abranger todo o procedimento, incluindo os recursos de instância que possam eventualmente surgir[64].

 

102.       No que diz respeito ao prazo razoável de que trata o artigo 8.1, esse Tribunal estabeleceu que é preciso levar em conta três elementos para determinar a razoabilidade do prazo em que se desenvolve um processo: a) complexidade do assunto; b) atividade processual do interessado; e c) conduta das autoridades judiciais[65].  Em conformidade com os fatos e provas apresentadas no presente caso, o assunto não era complexo. Policiais da Delegacia de Furtos e Roubos detiveram Antônio Ferreira Braga sem dispor de uma ordem judicial para tais efeitos, ou sem surpreendê-lo cometendo um delito flagrante. Ademais, ao chegar à delegacia realizaram atos de tortura contra Antônio Ferreira Braga para que este confessasse um delito que não teria cometido. Cumpre indicar, além disso, que os fatos no presente caso deram origem a uma ação penal pública de promoção exclusiva do Ministério Público, a qual não foi promovida com a devida celeridade.

 

103.       Quanto à duração de processos jurisdicionais, a Corte considera que uma demora prolongada pode chegar a constituir por si mesma, em certos casos, uma violação das garantias judiciais e que cabe ao Estado expor e provar a razão pelo qual se requeria mais tempo do que o razoável, em princípio para pronunciar a sentença definitiva em um caso particular, em conformidade com os critérios indicados[66].

 

104.       No que diz respeito ao direito a um recurso efetivo, a Comissão considera que neste caso é evidente que, segundo as provas apresentadas pelos peticionários, não controvertidas pelo Estado, os processos internos demoraram mais de 6 (seis) anos para ser concluídos e em 12 de maio de 1999, data em que foi fixada a pena para os indivíduos condenados, já estava em vigor a prescrição liberatória em relação à mesma, sendo isto assim determinado em 10 de junho do mesmo ano. Assim, os supostos responsáveis não foram castigados pelo fato punível. A Comissão também determinou como um fato que a suposta vítima não foi indenizada.

 

105.       A jurisprudência da Corte é constante em reiterar que não é suficiente que os recursos internos existam formalmente, mas devem ter efetividade[67], ou seja, devem produzir resultados ou respostas às violações dos direitos previstos na Convenção. Com outras palavras, toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer recurso eficaz perante os juízes ou tribunais competentes que a amparem contra as violações de direitos fundamentais[68].  Essa garantia “constitui um dos pilares básicos, não só da Convenção Americana, senão do próprio Estado de Direito em uma sociedade democrática no sentido da Convenção”[69]. Por outro lado, como também indicou o Tribunal “…não podem ser considerados efetivos os recursos que, pelas condições gerais do país ou inclusive pelas circunstâncias particulares de um determinado caso, forem ilusórios[70]”.

 

106.       Como ficou determinado até este ponto, a excessiva demora na tramitação do julgamento dos processos internos levou a que vigorasse a prescrição liberatória da pena imposta. Isso leva a Comissão a determinar que estes foram ineficazes para proporcionar ao afetado um recurso simples e rápido que lhe oferecesse um amparo contra os atos que lesionaram seus direitos.

 

107.       A Corte indicou que, como parte das obrigações gerais dos Estados, estes têm um dever positivo de garantia a respeito dos indivíduos sujeitos à sua jurisdição[71].  Esta obrigação de garantia supõe: “…tomar todas as medidas necessárias para remover os obstáculos que possam existir para que os indivíduos possam desfrutar dos direitos que a Convenção reconhece. Por conseguinte, a tolerância do Estado a circunstâncias ou condições que impeçam os indivíduos de ter acesso aos recursos internos adequados para proteger seus direitos constitui uma violação ao artigo 1.1 da Convenção[72]”.

 

108.       Além disso, no tocante à prescrição estabelecida no nível de direito interno a Corte indicou que são inadmissíveis as disposições de prescrição ou qualquer obstáculo de direito interno, mediante o qual se pretenda impedir a investigação e punição dos responsáveis pelas violações de direitos humanos[73].  A Corte indicou que as obrigações gerais consagradas nos artigos 1.1 e 2 da Convenção Americana requerem dos Estados Partes a pronta adoção de providências de toda natureza para que ninguém fique privado do direito à proteção judicial[74], consagrada no artigo 25 da Convenção Americana.

 

109.       Em conformidade com o direito internacional, a obrigação de julgar e, se forem declarados culpáveis, punir os perpetradores de determinados crimes internacionais, entre os quais figuram os crimes de lesa humanidade, provém da obrigação de garantia consagrada no artigo 1.1 da Convenção Americana.  Essa obrigação implica no dever dos Estados Partes de organizar todo o aparato governamental e, em geral, todas as estruturas por meio das quais se manifesta o exercício do poder público, de maneira tal que sejam capazes de assegurar juridicamente o livre e pleno exercício dos direitos humanos. Como conseqüência dessa obrigação, os Estados devem prevenir, investigar e punir toda violação dos direitos reconhecidos pela Convenção e procurar, além disso, o restabelecimento, se possível, do direito violado e, quando for o caso, a reparação dos danos produzidos pela violação dos direitos humanos.  Se o aparato do Estado atuar de modo que tal violação fique impune e não se restabeleça, na medida do possível, à vítima na plenitude de seus direitos, pode-se afirmar que não cumpriu o dever de garantir seu livre e pleno exercício às pessoas sujeitas à sua jurisdição[75].

 

110.       A Corte determinou que a investigação deve ser realizada por todos os meios legais disponíveis e orientada à determinação da verdade e à investigação, à perseguição, à captura, ao julgamento e ao castigo de todos os responsáveis intelectuais e materiais dos fatos, especialmente quando nesses estiverem ou puderem estar envolvidos agentes estatais[76].

 

111.       Esse Tribunal, além disso, indicou no Caso Barrios Altos que:

 

são inadmissíveis as disposições de anistia, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade que pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis pelas violações graves dos direitos humanos como a tortura, as execuções sumárias, extralegais ou arbitrárias e os desaparecimentos forçados, todas eles proibidos por violarem direitos inderrogáveis reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos[77].

 

112.       Ante o exposto, a Comissão conclui que o Estado violou, em prejuízo de Antônio Ferreira Braga, os direitos garantidos nos artigos 8.1 e 25 da Convenção Americana em relação com o artigo 1.1 da mesma.

 

E.        Violação dos artigos 1, 6, 7 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura

 

113.       Os artigos 1, 6, 7 e 8 da Convenção Interamericana contra a Tortura estabelecem:

 

Artigo 1

 

Os Estados Partes obrigam-se a prevenir e a punir a tortura, nos termos desta Convenção. 

 

            Artigo 6

 

          Em conformidade com o disposto no artigo 1, os Estados Partes tomarão medidas efetivas a fim de prevenir e punir a tortura no âmbito de sua jurisdição.

 

          Os Estados Partes assegurar-se-ão de que todos os atos de tortura e as tentativas de praticar atos dessa natureza sejam considerados delitos em seu direito penal, estabelecendo penas severas para sua punição, que levem em conta sua gravidade.  

 

          Os Estados Partes obrigam-se também a tomar medidas efetivas para prevenir e punir outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, no âmbito de sua jurisdição.

 

            Artigo 7

 

         Os Estados Partes tomarão medidas para que, no treinamento de agentes de polícia e de outros funcionários públicos responsáveis pela custódia de pessoas privadas de liberdade, provisória ou definitivamente, e nos interrogatórios, detenções ou prisões, se ressalte de maneira especial a proibição do emprego da tortura.  

 

          Os Estados Partes tomarão também medidas semelhantes para evitar outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.  

 

            Artigo 8

 

          Os Estados Partes assegurarão a qualquer pessoa que denunciar haver sido submetida a tortura, no âmbito de sua jurisdição, o direito de que o caso seja examinado de maneira imparcial.

 

          Quando houver denúncia ou razão fundada para supor que haja sido cometido ato de tortura no âmbito de sua jurisdição, os Estados Partes garantirão que suas autoridades procederão de ofício e imediatamente à realização de uma investigação sobre o caso e iniciarão, se for cabível, o respectivo processo penal.  

 

          Uma vez esgotado o procedimento jurídico interno do Estado e os recursos que este prevê, o caso poderá ser submetido a instâncias internacionais, cuja competência tenha sido aceita por esse Estado.

 

114.      A Corte Interamericana indicou que a tortura e as penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes estão estritamente proibidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos. A proibição absoluta da tortura, tanto física como psicológica, pertence atualmente ao domínio do jus cogens internacional.  Essa proibição subsiste mesmo nas circunstâncias mais difíceis, como guerra, ameaça de guerra, combate ao terrorismo e quaisquer outros delitos, estado de sítio ou de emergência, comoção ou conflito interno, suspensão de garantias constitucionais, instabilidade política interna ou outras emergências ou calamidades públicas[78].

 

115.      O direito à integridade física, psíquica e moral de toda pessoa, bem como a obrigação estatal de que as pessoas privadas de liberdade sejam tratadas com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano, implicam na prevenção razoável de situações que poderiam resultar na violação dos direitos protegidos[79].

 

116.      A Corte estabeleceu que o Estado é responsável, em sua condição de garante dos direitos consagrados na Convenção, pela observância do direito à integridade pessoal de todo indivíduo sob sua custódia[80].  Por conseguinte, existe a presunção de considerar o Estado responsável pelas torturas, tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes infligidos a uma pessoa sob a custódia de agentes estatais, se as autoridades não tiverem feito uma investigação séria dos fatos seguida do processo dos que apareçam como responsáveis por tais condutas[81]. Nessa suposição, recai sobre o Estado a obrigação de dar uma explicação satisfatória e convincente do sucedido e desvirtuar as alegações sobre sua responsabilidade mediante elementos probatórios adequados[82].

 

117.      Segundo ficou demonstrado, Antônio Ferreira Braga foi submetido à tortura na manhã de 12 de abril de 1993, em uma dependência da Delegacia de Furtos e Roubos de Fortaleza, Ceará, por agentes dessa dependência policial.  O Estado não preveniu eficazmente tais atos e, de acordo com o resultado dos processos instruídos em relação aos fatos, não puniu os responsáveis pelos mesmos, pois sua demora levou a que vigorasse a prescrição liberatória da pena imposta, posto que a resolução final foi proferida em 12 de maio de 1999, transcorridos mais de 6 (seis) anos desde a ocorrência do fato.

 

118.      O artigo 8 da Convenção Interamericana contra a Tortura consagra expressamente a obrigação do Estado de proceder ex officio e de forma imediata em casos como o presente.

 

119.      O Estado, porém, não atuou no presente caso de acordo com essas previsões, pois embora tenham sido instruídos processos administrativos e civis, foram absolvidos os funcionários superiores responsáveis pela Delegacia de Furtos e Roubos e os subalternos condenados não cumpriram pena privativa de liberdade alguma, dado que no momento em que foi confirmada a condenação já estava em vigor a prescrição liberatória da punição, com o que se configurou uma completa ineficácia dos recursos.  Essa comprovada negação da proteção judicial determinou também que o Estado não prevenisse nem investigasse eficazmente as torturas a que a vítima foi submetida.

 

120.      O Estado, por meio de um processo disciplinar administrativo junto à Procuradoria Geral do Estado, demitiu dois agentes de polícia, Valderi Almeida da Silva e José Sérgio Andrade da Silva, pela tortura do Senhor Ferreira Braga; suspendeu por 60 (sessenta) dias o agente de polícia Francisco Girolando Batalha, pela detenção do Senhor Ferreira Braga sem dispor de uma ordem judicial ou em virtude de delito flagrante; e, por último, suspendeu por 15 (quinze) dias a Delegada de Polícia, Sônia Maria Gurgel Matos, em virtude de negligência na supervisão dos presos sob sua custódia e da fiscalização das celas sob sua responsabilidade.  Isso demonstra medidas necessárias adotadas pelo Estado a fim de investigar, punir e julgar os responsáveis por graves violações aos direitos fundamentais consagrados na Convenção Americana, sem, entretanto, constituir de todo medidas suficientes para remediar o dano causado à vítima.

 

121.      Além disso, a Comissão estabeleceu como um fato que a suposta vítima foi submetida a um tratamento, considerado como tortura, na Delegacia de Furtos e Roubos de Fortaleza, Ceará, por agentes dessa dependência policial, com o objetivo de obter a confissão de um furto de que era acusada. O Estado, de acordo com o artigo 7 da Convenção Interamericana contra a Tortura, estava obrigado a tomar medidas para o treinamento de agentes de polícia e de outros funcionários públicos responsáveis pela custódia das pessoas privadas de liberdade, provisória ou definitivamente, de maneira que nos interrogatórios, detenções ou prisões se desse ênfase especial à proibição do emprego da tortura.  Os fatos tidos como certos pela Comissão levam a inferir que os agentes que praticaram os fatos sobre a pessoa da suposta vítima ao interrogá-la não contavam com a preparação adequada com a qual, segundo estipula a Convenção Interamericana contra a Tortura, devem ser formados os funcionários a serviço do Estado nas matérias aludidas.

 

122.      Ante o exposto, determina-se que o Estado faltou aos compromissos contraídos em virtude da Convenção Interamericana contra a Tortura.

 

123.      Portanto, a Comissão conclui que o Estado não cumpriu, em prejuízo de Antônio Ferreira Braga, a obrigação de prevenir e punir a tortura nos termos dos artigos 1, 6, 7 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura.

 

F.         Violação do artigo 1(1) da Convenção: obrigação do Estado de respeitar e garantir os direitos individuais, em conjunção com o artigo 2, que estabelece a obrigação de adotar disposições do direito interno, e o artigo 28, que estabelece a cláusula federal

 

124.          Com base na análise anterior demonstra-se que o Estado não cumpriu a obrigação de respeitar os direitos e liberdades dos indivíduos no âmbito de sua jurisdição, prevista no artigo 1.1 da Convenção Americana, por ter violado os direitos previstos nos artigos 5, 7, 8 e 25 desse Tratado, bem como nos artigos 1, 6, 7 e 8 da Convenção Interamericana contra a Tortura.

 

125.          Conforme indicou a Corte Interamericana, “em conformidade com o artigo 1(1) é ilícita toda forma de exercício do poder público que viole os direitos reconhecidos pela Convenção [Americana]. Nesse diapasão, em toda circunstância na qual um órgão ou funcionário do Estado ou de uma instituição de caráter público lesione indevidamente um de tais direitos, está-se perante uma presumida falta de observância do dever de respeito consagrado nesse artigo”[83].

 

126.          A segunda obrigação prevista no artigo 1(1) é a de garantir o livre e pleno exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção. A Comissão conclui que, ao violar em prejuízo da vítima mencionada neste relatório, o direito à liberdade pessoal, à integridade pessoal, às garantias judiciais e à proteção judicial, o Estado brasileiro não cumpriu a obrigação de garantir o exercício livre e pleno dos direitos a toda pessoa que sujeita à sua jurisdição.

 

127.          Por outro lado, o artigo 2 da Convenção Americana explicita e desenvolve um âmbito da obrigação geral de respeito e garantia constante de artigo 1(1)[84]. De fato, o dever de adotar disposições de direito interno exige dos Estados Partes não só a proferição e a implementação de medidas de caráter legislativo, mas também de todas as medidas necessárias para assegurar o pleno e efetivo gozo dos direitos e das liberdades garantidos pela Convenção Americana a todas as pessoas sujeitas à sua jurisdição (princípio do effet utile)[85].

 

128.          O Estado Federal deveria ter adotado medidas adequadas para que Antônio Ferreira Braga não fosse torturado por agentes de polícia da Delegacia de Furtos e Roubos de Fortaleza, Estado do Ceará, que o detiveram ao ter supostamente cometido um furto.  Além disso, era imperativo que o Estado proporcionasse ao afetado uma investigação rápida e eficaz dos fatos, com o conseqüente julgamento e punição dos responsáveis, a que deveria seguir uma adequada indenização civil.

 

129.          Independentemente da distribuição interna de competências, o Estado Federal devia ter adotado medidas eficazes tendentes a evitar que agentes de polícia a seu serviço levassem a cabo práticas de tortura com o objetivo de obter uma confissão de um detido.  Da mesma forma, devia ter adotado outras medidas que levassem a uma investigação eficaz, julgamento e punição dos fatos particulares, bem como a uma indenização do afetado, de um modo tal que o sistema de justiça fosse eficaz.  Somente mediante a maneira de atuar descrita, o Estado teria cumprido cabalmente o dever de adotar as medidas internas tendentes a tornar eficazes os direitos e as liberdades reconhecidos pela Convenção Americana.

 

130.          A vinculação das entidades federativas em um Estado federal aos direitos humanos de fonte internacional está apoiada sob o ponto de vista jurídico-internacional no disposto pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (artigos 27[86] e 29[87]) e nas chamadas cláusulas federais. Nessa teleologia, a Convenção Americana em seu artigo 28 prevê a chamada cláusula federal, da qual se deriva a obrigação do Governo Federal de tomar as medidas pertinentes a fim de que as autoridades competentes dos Estados da Federação ou União, como é denominada no caso do Brasil, possam adotar as disposições para o cumprimento desse tratado internacional.

 

131.          A fim de determinar as obrigações decorrentes da Convenção Americana para os Estados com estrutura federal é fundamental interpretar em conjunto os artigos 28 e 1.1[88] da Convenção Americana.  Assim, o artigo 1.1 estabelece para os Estados, independentemente da estrutura que adotarem, o dever genérico de respeito e garantia dos direitos estabelecidos no Tratado. A cláusula federal precisa o alcance das obrigações gerais, mas não as limita.

 

132.          Dessa feita, a finalidade de salvaguarda dos direitos humanos imposta pela Convenção Americana em geral e pelas mencionadas disposições em particular, prescindem de qualquer referência à distribuição interna de competências ou organização das entidades componentes de uma federação[89].

 

133.          Essa colocação é plenamente aplicável ao artigo 28 da Convenção Americana, cujo sentido coerente prescreve aos Estados federais o cumprimento de suas obrigações internacionais em todo o seu território.  A esse respeito, não se pode esquecer que os Estados da federação, enquanto parte do Estado, estão igualmente vinculados pelo disposto nos tratados internacionais ratificados pelo governo federal.

 

134.          O Estado Federal deveria ter levado em conta que as "medidas pertinentes" de que trata o artigo 28 da Convenção Americana devem produzir resultados coerentes com o pleno cumprimento das obrigações pelo Estado Parte.

 

135.          A Comissão faz presente que é esse o entendimento do artigo 28 da Convenção Americana que melhor condiz com os artigos 27 e 31 da Convenção de Viena e com o artigo 29 (a) da Convenção Americana.  Uma interpretação diversa da obrigação constante da cláusula federal levaria ao absurdo de transformar a proteção dos Direitos Humanos em uma decisão meramente discricionária, sujeita ao arbítrio de cada um dos Estados Parte.

 

VIII.      RECOMENDAÇÕES

 

136.          Com base na análise e nas conclusões deste relatório, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recomenda ao Estado brasileiro:

 

1.         Adotar as medidas necessárias a fim de que se dê efeito jurídico à obrigação de investigar e punir efetivamente os autores da detenção ilegal e as torturas infligidas a Antônio Ferreira Braga; nesse sentido, o Estado deve assegurar um devido processo penal com vistas a evitar que a prescrição seja invocada como causa da extinção da punibilidade penal a respeito de delitos como a tortura e ocorram demoras injustificadas na tramitação da mesma.

 

2.         Investigar as responsabilidades civis e administrativas pelo atraso irrazoável no processo penal no tocante às torturas infligidas a Antônio Ferreira Braga, especialmente das autoridades judiciais que tiveram conhecimento do expediente, para fins de punir adequadamente a quem for responsável, a fim de estabelecer se houve negligência na atuação dessas autoridades.

 

3.         Reparar adequadamente a Antônio Ferreira Braga pelas violações de seus direitos humanos estabelecidas supra, incluindo uma indenização.

 

            4.         Capacitar os oficiais da polícia civil a fim de lhes proporcionar conhecimentos básicos sobre o respeito aos direitos fundamentais previstos na Convenção Americana, especialmente no que se refere ao devido tratamento.

 

IX.        ATUAÇÕES POSTERIORES AO RELATÓRIO Nº 84/07

 

137.          Em 16 de outubro de 2007, no marco do 130º período de sessões, a CIDH aprovou o Relatório Nº 84/07, em conformidade com o artigo 50 da Convenção Americana, o qual foi notificado ao Estado em 19 de novembro de 2007, concedendo-lhe um prazo de dois meses para informar sobre o cumprimento das recomendações dele constantes.

 

138.          Na mesma data, de acordo com o disposto no artigo 43(3) de seu Regulamento, a Comissão notificou os peticionários sobre a adoção do relatório de mérito e sua transmissão ao Estado e solicitou-lhes que indicassem sua posição a respeito da apresentação do caso à Corte Interamericana.  Além disso, em 10 de dezembro de 2007 foram transmitidas aos peticionários, em caráter confidencial, certas considerações formuladas pela Comissão no relatório.

 

139.          Em 20 de dezembro de 2007, os peticionários remeteram um documento expressando que, como era de conhecimento da Comissão, Antônio Ferreira Braga foi vítima de constantes ameaças por parte dos acusados, especialmente depois que o Senhor Ferreira Braga realizou o reconhecimento formal dos mesmos.  O documento indica que, temendo por sua segurança e a de sua família, o Senhor Ferreira Braga e sua família se mudaram para o Estado de Rondônia, onde permaneceram sob a proteção de um abrigo não especificado.  Os peticionários assinalam que Antonio Ferreira Braga fugiu do referido abrigo e durante os últimos anos se mudou para vários estados da federação com vistas a proteger-se.  Afirmam também os peticionários que o último contato com a vítima ocorreu em 2003, quando foram elaboradas as alegações finais do presente caso.  Em 2003, Antônio Ferreira Braga tinha informado o Centro de Defesa e Promoção dois Direitos Humanos da Arquidiocese de Fortaleza que pretendia retornar ao Estado do Ceará.  No entanto, desde então não voltou a contatar a referida organização, razão pela qual se desconhece seu paradeiro.  Em 4 de dezembro de 2007, iniciou-se um processo de busca da vítima, sem que se tenha conseguido encontrá-lo.  Diante disso, os peticionários, no mesmo documento de 20 de dezembro de 2007, solicitaram uma prorrogação de 30 dias para apresentar sua posição sobre o envio do caso à Corte e a informação sobre a vítima e os beneficiários.  A Comissão informou aos peticionários que poderiam apresentar sua posição quanto ao envio do caso ao conhecimento da Corte Interamericana, além da individualização dos familiares da vítima e seu endereço, até 31 de janeiro de 2008.

 

140.          Em 24 de janeiro de 2008, o Estado solicitou uma prorrogação de dois meses para apresentar informação sobre o cumprimento das recomendações do Relatório No. 84/07, em razão de que “o Governo Federal realizar[ia], em 25 de janeiro [de 2008], uma reunião com as autoridades estaduais responsáveis, ocasião em que reiterar[ia] pedido de informação sobre as medidas já implementadas, com vistas ao cumprimento das mencionadas recomendações”.  Nesse documento, o Estado manifestou seu entendimento de que a concessão da prorrogação suspenderia o prazo previsto no artigo 51.1 da Convenção Americana, para a apresentação do caso à Corte Interamericana.  Não obstante, o Estado não apresentou informação alguma sobre o cumprimento das recomendações estabelecidas no Relatório No 84/07.  Essa comunicação foi transmitida aos peticionários em 25 de janeiro de 2008, concedendo-lhes um prazo de 7 dias para manifestar-se sobre a solicitação de prorrogação.  Em 1º de fevereiro de 2008 os peticionários enviaram comunicação indicando que apoiavam a solicitação de prorrogação apresentada pelo Estado do Brasil.

 

141.          Em 8 de fevereiro de 2008, os peticionários apresentaram comunicação indicando sua posição favorável ao envio do caso ao conhecimento da Corte Interamericana.  Nesse sentido, os peticionários reiteraram as violações sofridas por Antônio Ferreira Braga, a impunidade dos agentes responsáveis por essas violações e os efeitos que os fatos tiveram sobre sua família.  Os peticionários também argumentaram que, apesar da tipificação do crime de tortura prevista pela Lei No 9.455/97, os órgãos judiciais têm insistido em não aplicar as disposições de tal norma, valendo-se de noções tradicionais como “abuso de autoridade” e “lesão corporal” para caracterizar ações que, por suas características, configurariam o crime de tortura.  Além disso, destacaram que o Tribunal poderia analisar a legalidade da prescrição do crime de tortura, aplicada ao processo criminal iniciado pelos crimes cometidos contra a vítima, bem como a atual falta de investigação, processo e sanção dos responsáveis em casos de tortura no Brasil.

 

142.          Em 13 de fevereiro de 2008, a Comissão notificou as partes sobre sua decisão de não submeter o presente caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos.  Na mesma data, requereu ao Estado que apresentasse no prazo de um mês, ou seja, até 13 de março de 2008, um relatório sobre as medidas adotadas para cumprir as recomendações do Relatório 84/07.

 

143.          Em 6 de junho de 2008, os peticionários apresentaram suas observações sobre o cumprimento das recomendações da CIDH referentes ao presente caso, observando que “a omissão do Estado brasileiro em tomar um posicionamento político mais firme em relação ao combate à tortura no país tem permitido sua persistência, bem como a aplicação não-efetiva de instrumentos importantes como a Lei 9.455/97 que tipifica o crime de tortura.

 

144.          Em 1 de abril e 13 de junho de 2008, o Estado apresentou suas observações sobre o cumprimento das recomendações da Comissão referentes ao presente caso. Nesse sentido, o Estado brasileiro indicou que “tem envidado esforços para o cumprimento das recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no Caso em epígrafe. Deve ser levado em consideração, portanto, a boa-fé do Estado brasileiro, ainda que se verifique que não foi possível satisfazer, plenamente, todas as recomendações, até o momento.” O Estado também mencionou a realização de uma reunião sobre o cumprimento das recomendações, em 25 de janeiro de 2008, com a participação dos peticionários e de representantes da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, Ministério das Relações Exteriores, Secretaria de Justiça e Cidadania do Ceará, Ministério Público Estadual, Tribunal de Justiça do Ceará e Procuradoria-Geral do Estado do Ceará.

 

X.         ANÁLISE DO CUMPRIMENTO DAS RECOMENDAÇÕES:

 

A.         Em relação com a adoção de medidas necessárias a fim de que se dê efeito jurídico à obrigação de investigar e punir efetivamente os autores da detenção ilegal e as torturas infligidas a Antônio Ferreira Braga, e evitar que a prescrição seja invocada a respeito de delitos como a tortura

 

145.          As observações apresentadas pelas partes indicam que os agentes policiais José Sérgio Andrade da Silva e Valderi Almeida da Silva foram condenados a nove meses de prisão pelos crimes de lesões corporais e constrangimento ilegal, em segunda instância em 12 de maio de 1999. No entanto, foi decretada a extinção da punibilidade dos dois acusados condenados, em 10 de junho do mesmo ano, aplicando-se a prescrição ao presente caso. A decisão de segunda instância também manteve a sentença absolutória em relação ao Inspetor de Polícia Francisco Girolando Batalha e à Delegada de Polícia Sônia Maria Gurgel Matos. Além disso, a promulgação da Lei 9.455/97, posterior aos fatos do presente caso, aumentou a pena prevista para o crime de tortura, em reclusão de 2 a 8 anos; porém, não eliminou a possibilidade da aplicação da prescrição ao delito de tortura no Brasil. Até o momento, portanto, continua sendo permitido no Brasil a aplicação da prescrição como causa de extinção da punibilidade em casos de tortura, similarmente ao que ocorreu em relação com a tortura sofrida por Antônio Ferreira Braga. A Comissão conclui, portanto, que o Estado não cumpriu com esta recomendação.

 

B.         Em relação com a investigação civil e administrativa das autoridades que poderiam haver atuado de maneira negligente resultando no prazo irrazoável do processo penal referente ao presente caso

 

146.          Com respeito a esta recomendação, os peticionários alegaram desconhecer qualquer iniciativa do Estado de iniciar procedimentos de averiguação das responsabilidades pela demora no processo penal relativo ao caso. O Estado não apresentou informação sobre o cumprimento desta recomendação, senão que alegou que o processo penal transcorreu em prazo razoável. Conseqüentemente, a CIDH considera que esta recomendação encontra-se pendente de cumprimento.

 

C.         Sobre a reparação adequada a Antônio Ferreira Braga

 

147.      Os peticionários indicaram que o Recurso Especial interposto pelo Estado do Ceará no contexto da ação indenizatória em trâmite na justiça interna encontra-se há quase dois anos no Superior Tribunal de Justiça, sem qualquer movimentação processual.  Adicionaram que o valor desta indenização, caso a mesma seja concretizada, limitar-se-á a danos morais, uma vez que o Judiciário excluiu os danos materiais e lucros cessantes por falta de provas.  O Estado, por sua vez, reconheceu que a referida ação encontra-se pendente de decisão, e observou que o Estado do Ceará envidará esforços com vistas a finalizar o processo cível junto ao Superior Tribunal de Justiça e entrar em acordo com Antônio Ferreira Braga.  Portanto, a Comissão conclui que o Estado não cumpriu sua recomendação relativa à reparação adequada à vítima. A esse respeito, a Comissão ressalta a necessidade de promover uma reparação integral (restitutio in integrum) à vítima de tortura Antônio Ferreira Braga, em conformidade com a recomendação emitida pela Comissão. Além disso, esta reparação à vítima não deveria estar condicionada a esforços pessoais da mesma no sentido de obter a reparação pelas violações de direitos humanos indicadas no presente relatório.

 

D.         Em relação com a capacitação de oficiais da Polícia Civil sobre direitos fundamentais, especialmente no que se refere ao tratamento humano e a proibição da tortura

 

148.          Sobre esta recomendação, os peticionários reconheceram que o Estado tem promovido experiências pontuais, porém exitosas, no combate à prática da tortura no Brasil.  No entanto, ressaltam a continuidade de tortura institucional no Brasil como uma prática sistemática que deve ser combatida através de uma série de medidas e políticas públicas. Da mesma forma, o Estado mencionou que a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará inclui nos cursos de formação da Polícia Civil módulos sobre ética e cidadania, direitos humanos, relações humanas, Estatuto da Criança e do Adolescente, uso legal da força, e sobre a Lei 9.455/97.  A Comissão reconhece os esforços do Estado neste sentido, e insta que iniciativas como as mencionadas sejam continuadas e reforçadas a fim de prevenir e combater a tortura em todo o país, a través de políticas públicas coordenadas e permanentes que permitam ao Estado, por exemplo, implementar integralmente o Plano de Ações Integradas para a Prevenção e Controle da Tortura no Brasil.

 

XI.        CONCLUSÕES E PUBLICAÇÃO

 

149.     Ante todo o exposto, a Comissão conclui que o Estado brasileiro violou, em prejuízo do Senhor Antônio Ferreira Braga, os direitos consagrados nos artigos 5, 7, 8.1 e 25 da Convenção Americana, descumprindo ao mesmo tempo a obrigação geral imposta pelo artigo 1.1 da Convenção, bem como as obrigações constantes dos artigos 1, 6, 7 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Sancionar a Tortura.  A violação dos direitos consagrados nos artigos 8.1 e 25 da Convenção Americana foi incluída pela Comissão em virtude do princípio iura novit curia.

 

150.          Em 13 de março de 2008, a Comissão aprovou o Relatório Nº 1/08 – cujo texto é o que antecede – conforme o artigo 51 da Convenção Americana.  Em 31 de março de 2008, a CIDH transmitiu o relatório ao Estado brasileiro e aos peticionários, de conformidade com o artigo 51.1 da Convenção Americana. Com base na análise anterior, a Comissão considera que o Estado não cumpriu com as suas recomendações.

 

151.          Em virtude do anterior, a CIDH decide reiterar as recomendações contidas no parágrafo 136 supra e decide publicar este relatório e incluí-lo no seu Relatório Anual à Assembléia Geral da OEA.  Em cumprimento do seu mandato, a Comissão continuará avaliando as medidas tomadas pelo Estado brasileiro até que as recomendações hajam sido integralmente cumpridas.

 

Dado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., aos dezoito dias do mês de julho de 2008. (Assinado: Paolo G. Carozza, Presidente; Luz Patrícia Mejía Guerrero Primeira Vice-Presidente; Felipe González, Segundo Vice-Presidente; Sir Clare K. Roberts, Florentín Meléndez e Victor E. Abramovich, membros da Comissão).


ANTERIOR


[52] Cfr. Petição original apresentada pelos peticionários em 11 de junho de 1998, pág. 8.

[53] Cfr. Sentença do juiz da 4ª. Vara Criminal com data de 29 de julho de 1996 e Denúncia do Ministério Público de 26 de maio de 1993 (anexos Nº 1 e 2 da petição original que apresentaram os peticionários em 11 de junho de 1998, pág. 5).

[54] Cfr. Sentença do juiz da 4ª. Vara Criminal com data de 29 de julho de 1996 (anexo Nº 1 da petição original que apresentaram os peticionários em 11 de junho de 1998, pág. 5)

[55] Cfr. Sentença do juiz da 4ª. Vara Criminal de 12 de maio de 1999 (anexo XIX da comunicação dos peticionários sobre o mérito da causa datada de 19 de fevereiro de 2003, pág. 4).

[56] Cfr. Decisão da 4ª. Vara Criminal de 10 de junho de 1999 (anexo XX da comunicação dos peticionários sobre o mérito da causa datada de 19 de fevereiro de 2003).

[57] Cfr. Processo administrativo-disciplinar Nº 69/93. Estado do Ceará, Procuradoria-Geral do Estado, Velatório Procuradoria de Processo Administrativo-Disciplinar, 29 de novembro de 1994 (anexo IV da comunicação dos peticionários sobre o mérito da causa datada de 19 de fevereiro de 2003).

[58] Cfr. Sentença do juiz da 4ª. Vara Criminal de 12 de maio de 1999 (anexo XIX da comunicação dos peticionários sobre o mérito da causa datada de 19 de fevereiro de 2003).

[59] Cfr. Decisão da 4ª. Vara Criminal de 10 de junho de 1999 (anexo XX da comunicação dos peticionários sobre o mérito da causa datada de 19 de fevereiro de 2003).

[60] Ibidem.

[61] Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: IV - não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal;

[62] Cfr. Corte I.D.H., El Hábeas Corpus Bajo Suspensión de Garantías (arts. 27.2, 25.1 e 7.6 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Opinião Consultiva OC-8/87 de 30 de janeiro de 1987. Série A No. 8; par.25.

[63] Cfr. Corte I.D.H., Garantias Judiciales en Estados de Emergencia (arts. 27.2, 25 e 8 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Opinião Consultiva OC-9/87 de 6 de outubro de 1987. Série A Nº 9, par. 28; e El Derecho a la Información sobre la Asistencia Consular en el Marco de las Garantías del Debido Proceso Legal. Opinião Consultiva OC-16/99 de 1º de outubro de 1999. Série A Nº 16, par. 118.

[64] Cfr. Corte I.D.H, Caso Hilaire, Constantine y Benjamin e Otros. Sentença de 21 de junho de 2002. Série C Nº 94, par. 142; e Caso Suárez Rosero. Sentença de 12 de novembro de 1997. Série C Nº 35, par. 71 .

[65] Cfr. Corte I.D.H., Caso Hilaire, Constantine y Benjamin e Otros, supra nota 65, par. 143; Caso Suárez Rosero, supra nota 65, par.72; Caso Genie Lacaio. Sentença de 29 de janeiro de 1997. Série C Nº 30, par. 77; Corte Européia de Direitos Humanos, Motta v. Italy. Sentença de 19 de fevereiro de 1991, Série A Nº 195-A, par. 30; Corte Européia de Direitos Humanos, Ruiz-Mateos v. Spain. Sentença de 23 de junho de 1993, Série A Nº 262, par. 30.

[66] Cfr. Corte I.D.H., Caso Hilaire, Constantine y Benjamin e Otros, supra nota 65, par. 145.

[67] Cfr. Corte I.D.H. Caso Cesti Hurtado, supra nota 11, par. 125; Caso Paniagua Morales y otros. Sentença de 8 de março de 1998. Série C No. 37, par. 164; Caso Suárez Rosero, supra nota 65, par. 37; Caso Godínez Cruz. Sentença de 20 de janeiro de 1989. Série C No. 5, pars. 66, 71 e 88; e Caso Velásquez Rodríguez, supra nota 5, pars. 63, 68 e 81.

[68] Cfr. Corte I.D.H., Caso Cantoral Benavides, supra nota 35, par. 163; Caso Durand y Ugarte, supra nota 33, par. 101; Caso Cesti Hurtado, supra nota 11, par. 121; Caso Castillo Petruzzi y otros, supra nota 35, par 185; e Garantías judiciales en Estados de Emergencia (arts.27.2, 25 e 8 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), supra nota 64, par. 24.

[69] Cfr. Corte I.D.H., Caso Cantoral Benavides, supra nota 35, par. 163; Caso Durand y Ugarte, supra nota 33, par 101; Caso Villagrán Morales y otros (Caso de los “Niños de la Calle”). Sentença de 19 de novembro de 1999. Série C No. 63, par. 234; Caso Cesti Hurtado, supra nota 11, par. 121; Caso Castillo Petruzzi y otros, supra nota 35, par. 184; Caso Paniagua Morales y otros, supra nota 68, par. 164; Caso Blake. Sentença de 24 de janeiro de 1998. Série C No. 36, par. 102; Caso Suárez Rosero, supra nota 65, par. 65; e Caso Castillo Páez. Sentença de 3 de novembro de 1997. Série C No. 34, par. 82.

[70] Cfr. Corte I.D.H., Garantias Judiciales en Estados de Emergencia (arts. 27.2, 25 e 8 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Opinião Consultiva OC-9/87 de 6 de outubro de 1987. Série A Nº 9, par. 24.

[71] Cfr. Corte I.D.H. Caso Bámaca Velásquez, supra nota 33, par. 194 .

[72] Cfr. Corte I.D.H. Excepciones al Agotamiento de los Recursos Internos (arts. 46.1, 46.2.a e 46.2.b, Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Opinião Consultiva OC-11/90 de 10 de agosto de 1990. Série A Nº 11, par. 34;  Caso Velásquez Rodríguez, supra nota 5, par. 68; Caso Godínez Cruz, supra nota 68, par. 71; e Caso Fairén Garbi y Solís Corrales, supra nota 50, par. 93.

[73] Cfr. Corte I.D.H. Caso Bulacio, supra nota 29, par. 116; Caso Trujillo Oroza, Sentença de 27 de fevereiro de 2002. Série C No. 92, par. 106;  e Caso Barrios Altos. Interpretação da Sentença de Mérito (art. 67 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Sentença de 3 de setembro de 2001. Série C Nº 83, par. 15.

[74] Cfr. Corte I.D.H. Caso Barrios Altos. Sentença de 14 de março de 2001. Série C No. 75, par. 43.

[75] Cfr. Corte I.D.H. Caso Almonacid Arellano y otros. Sentença de 26 de setembro de 2006. Série C No. 154, par. 110; Caso Velásquez Rodríguez, supra nota 5, par. 166; e Caso Godínez Cruz, supra nota 68, par. 175.

[76] Cfr. Corte I.D.H. Caso Almonacid Arellano y otros, supra nota 76, par. 111; Caso Ximenes Lopes. Sentença de 4 de julho de 2006. Série C No. 149, par. 148; Caso Baldeón García, supra nota 49, par. 94; e Caso de la Masacre de Pueblo Bello, Sentença de 31 de janeiro de 2006. Série C No. 140, par. 143.

[77] Cfr. Corte I.D.H. Caso Almonacid Arellano y otros, supra nota 76, parr. 112; e Caso Barrios Altos, supra nota 75, par. 41.

[78] Cfr. Corte I.D.H. Caso Baldeón García, supra nota 49, par. 117; Caso García Asto y Ramírez Rojas. Sentença de 25 de novembro de 2005. Série C Nº 137, par. 222; Caso Caesar. Sentença 11 de março 2005. Série C Nº 123, par. 59; e Caso Lori Berenson Mejia. Sentença de 25 de novembro de 2004. Série C Nº 119, par. 100.

[79] Cfr. Corte I.D.H. Caso Baldeón García, supra nota 49, par. 117; e Caso García Asto y Ramírez Rojas. Sentença de 25 de novembro de 2005. Série C Nº 137, par. 118.

[80] Cfr. Corte I.D.H., Caso do Penal Miguel Castro Castro. Sentença de 25 de novembro de 2006. Série C Nº 160, par. 273; e Caso López Álvarez. Sentença de 1º de fevereiro de 2006. Série C Nº 141, par. 104 a 106.

[81] Cfr. Corte I.D.H., Caso del Penal Miguel Castro Castro, supra nota 81, par. 273; Caso López Álvarez, supra nota 81, par. 273; e Caso de los “Niños de la Calle” (Villagrán Morales y otros), supra nota 70, par. 47.

[82] Cfr. Corte I.D.H., Caso del Penal Miguel Castro Castro, supra nota 81, par. 273; Caso López Álvarez, supra nota 81, par. 273; e Caso Juan Humberto Sánchez, supra nota 29, par. 111.

[83] Cfr. Corte I.D.H., Caso Velásquez Rodríguez, supra nota 5, par. 169.

[84] Cfr. Corte I.D.H., Opinião Consultiva OC- 7/86, Exigibilidad del Derecho de Rectificación o Respuesta, 29 de agosto de 1986, Opinião Separada do Juiz Gros Espiell, par. 6; e Caso Caballero Delgado y Santana, Reparaciones. Sentença de 29 de janeiro de 1997, Voto dissidente do Juiz Cançado Trindade, par. 9.

[85] Cfr. Corte I.D.H., Caso Bulacio, supra nota 29, par. 140; Caso Cinco Pensionistas. Sentença de 28 de fevereiro de 2003, par. 164; Caso Instituto de Reeducación del Menor, supra nota 29, pars. 205 e 206; e Caso Gómez Palomino. Sentença de 22 de novembro de 2005, par. 91.

[86] Artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados: “O direito interno e a observância dos tratados. Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado. Esta regra não prejudica o artigo 46.”

[87] Artigo 29 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados: “Aplicação territorial dos tratados. A não ser que uma intenção diferente se evidencie do tratado, ou seja estabelecida de outra forma, um tratado obriga cada uma da partes em relação a todo o seu território.”

[88] Cfr. Corte I.D.H., Caso Velásquez Rodríguez, supra nota 5, pars. 164 a 167.

[89] Cfr. Comitê de Direitos Humanos. Godfried and Ingrid Pohl v. Austria, Communication. No. 1160/2003, U.N. Doc. CCPR/C/81/D/1160/2003 (2004). par. 9.2.