RELATÓRIO Nº 10/00*
CASO 11.599
MARCOS AURÉLIO DE OLIVEIRA
BRASIL
24 de fevereiro de 2000

 

 

I. RESUMO

1.    Em 7 de dezembro de 1995, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (daqui por diante, a "Comissão") recebeu uma petição do Centro de Defesa e Garantia dos Direitos Humanos/Projeto Legal do Instituto Brasileiro de Inovações em Saúde Social (IBISS) contra a República Federativa do Brasil (daqui por diante, "o Brasil" ou "o Estado brasileiro"), com a denúncia do homicídio do menor Marcos Aurélio de Oliveira, no Rio de Janeiro, em 25 de setembro de 1993, supostamente por um policial civil do estado do Rio de Janeiro, conhecido como achacador de crianças de rua. Alegadamente, a vítima estava tentando roubar o condutor de um automóvel quando ocorreu a ataque; e outro menor, que foi testemunha ocular e depôs sobre a responsabilidade do policial, sofreu depois ameaças e mudou o seu depoimento. Quatro meses depois, o mesmo policial acusado descobriu o local onde esta testemunha se encontrava e tentou matá-la.

2.    Transcorridos mais de dois anos, na data da denúncia em dezembro de 1995 a investigação policial ainda não tinha sido concluída. De acordo com a denúncia, os fatos configuram graves violações por parte do Brasil dos direitos garantidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (daqui por diante, a "Convenção"), nos artigos 4 (direito à vida), 8 (direito às garantias judiciais), 19 (direitos da criança), 22 (direito de circulação e residência) e 25 (direito à proteção judicial). A Comissão conclui que o menor Marcos Aurélio de Oliveira foi executado extrajudicialmente pelo policial e que não se realizou a investigação necessária em cumprimento dos deveres e das garantias judiciais que o Estado deve fornecer. A Comissão considera que o caso é admissível e que os fatos constituem violações aos citados artigos da Convenção, e recomenda que os responsáveis pelas diversas violações sejam processados e punidos e que os familiares das vítimas sejam indenizados.

 

II. TRAMITAÇÃO NA COMISSÃO

3. A denúncia foi recebida em 7 de dezembro de 1995, durante a visita da Comissão ao Brasil, e transmitida ao Estado em 22 de março de 1996, para que esse apresentasse suas alegações dentro de um prazo de 90 dias. Cinco meses depois, em 28 de agosto de 1996, o Estado solicitou que o prazo fixado fosse estendido, dada a complexidade e amplitude das consultas em curso, o que foi atendido com a sua prorrogação por quinze dias.

4. Em 28 de outubro de 1996, a Comissão reiterou o seu pedido ao Estado, havendo aventado a possibilidade de aplicação do artigo 42 de seu Regulamento, segundo o qual se presumem como verdadeiros os fatos relatados na petição se no prazo máximo regulamentar o Estado não proporcionar a informação respectiva, desde que, de outros elementos de convicção, não resultar conclusão diferente.

5. Em 5 de agosto de 1997, os peticionários informaram à Comissão que até aquela data não haviam recebido nenhuma manifestação das autoridades brasileiras responsáveis pelo andamento da investigação policial e solicitaram que se elaborasse o relatório correspondente. A Comissão reiterou o seu pedido de informações ao Governo em 10 de setembro de 1998, sem que qualquer resposta fosse recebida.

 

Tramitação de solução amistosa

6. Em 13 de outubro de 1998, a Comissão colocou-se à disposição das partes por 60 dias a fim de iniciar um procedimento de solução amistosa, sem ter recebido uma resposta positiva a respeito desse oferecimento, razão pela qual considerou encerrada esta etapa do procedimento.

 

III. POSIÇÃO DAS PARTES

A. Posição dos peticionários

7. Os peticionários apresentam o caso do homicídio de Marcos Aurelio de Oliveira Santana, de 17 anos de idade, ocorrido em 24 de setembro de 1993, às 18 horas aproximadamente, na esquina de duas importantes avenidas do bairro do Castelo, no Rio de Janeiro, por disparos de arma de fogo (Registro de Óbito 56, Ministério da Saúde, Instituto Médico Legal, doravante denominado "Anexo 4"), os quais, segundo várias testemunhas, foram feitos por um homem baixo, entre 25 e 30 anos de idade, moreno, supostamente um policial civil conhecido como "Robocop".

8. Uma das testemunhas chave do caso, o adolescente Mario de Souza Godinho, de 17 anos de idade, relatou que pouco antes do homicídio a vítima Marcos havia ameaçado com um pedaço de vidro uma mulher que se encontrava em um automóvel Escort de cor bege, com a provável intenção de praticar roubo. Mario afirmou que, pouco antes, um homem com os mesmos traços físicos do que fez os disparos contra Marcos havia passado a seu lado e o olhado fixamente. Quando essa testemunha já se encontrava do outro lado da rua, outra testemunha, conhecida como "Fufu", deu um grito de advertência para Marcos. Quando este olhou para trás, sem ter tempo de fugir, foi atingido por tiros de arma de fogo (notícia publicada no Jornal do Brasil de 26-9-93, doravante denominada "Anexo 5").

9. A referida notícia de jornal (Anexo 5) assinala que Marcos integrava um grupo de 50 menores que vivem e dormem na área da Cinelândia. Marcos, entretanto, estava sendo orientado pelo IBISS com vistas ao seu alistamento no Exército. A notícia indica que, segundo depoimentos desses menores, o homem que atirara contra Marcos os estava seguindo desde o Museu de Arte Moderna onde eles haviam ido buscar os cobertores que usavam para abrigar-se à noite, ao dormir na rua, e que escondiam em um buraco do edifício a que chamavam de seu "guarda-roupa".

10. Cita ainda que várias testemunhas assistiram ao ataque contra Marcos Aurelio de Oliveira. Uma passageira de um ônibus depôs sob sigilo que o homem que havia disparado parecia "uma pessoa acostumada a matar". Disse que, depois de haver disparado, esse homem seguira tranqüilamente a pé para um automóvel branco que o aguardava, tendo outro homem ao volante.

11. Em 28 de setembro de 1993 iniciou-se a investigação policial a cargo da Delegacia do Terceiro Distrito Policial do Rio de Janeiro. Consta da investigação a declaração de outro menor, Alexandre Oliveira da Silva, que afirmou haver visto um homem de estatura baixa e vestido de preto - cuja cor da pele não pudera reparar – rondando o local do crime momentos antes de ser este praticado. Afirmou ainda que, embora não houvesse percebido se o homem empunhava um revólver, recordava haver escutado o barulho de um disparo, que havia atingido Marcos Aurelio. Na opinião de Alexandre e de outros menores seus companheiros, as circunstâncias do crime levam a crer que o assassino chegou ao local onde o mesmo foi praticado com o propósito de matar Marcos Aurelio (o depoimento prestado à Polícia por Alexandre Oliveira da Silva, de 15 anos de idade, figura como Anexo 6).

12. A testemunha chave Mario de Souza Godinho, pouco após o crime e no próprio local deste, declarou a membros do IBISS e jornalistas que o assassino era o policial civil "Robocop", conhecido por praticar extorsão de menores. Também identificou o matador com traços físicos coincidentes com os descritos por outra testemunha e confirmou que o agressor, após matar a vítima, deixara o local do crime e se dirigira para um estacionamento próximo onde o aguardava um cúmplice encostado a um carro branco (Petição e notícia do Jornal do Brasil de 26-9-93, Anexo 5).

13. Sustentam os peticionários que um "educador de rua" declarou que a testemunha Mario havia posteriormente sofrido pressão do seu grupo de amigos para mudar a sua versão do crime. O referido educador acredita que esses amigos estavam amedrontados e temerosos de uma vingança e que, por medo, Mario havia mudado o depoimento que prestara na delegacia de polícia. Na petição não se inclui cópia da declaração prestada por Mario na delegacia.

14. A primeira versão do depoimento da testemunha Mario adquiriu força, segundo os peticionários, em virtude de um atentado contra a sua vida praticado poucos meses depois. De acordo com outra notícia de jornal (O Dia de 9 de fevereiro de 1994, Anexo 7), a referida testemunha, Mario de Souza Godinho, fora vítima de um atentado na madrugada de 9-2-94 numa rua da Cinelândia e havia reconhecido o homem que tentara matá-lo como sendo a mesma pessoa que matara Marcos. Diz a testemunha que esse homem, "Robocop", havia descoberto o cobertor de seu rosto enquanto dormia na calçada, à porta da lanchonete Bob’s, às três horas da madrugada. Ao dar-se conta de que o homem era o assassino de Marcos, Mario correu para o posto da Polícia Militar situado na Cinelândia, sob a mira do homem que o perseguia, o qual fez dois disparos contra ele. Outro homem, que Mario reconheceu como cúmplice de "Robocop", saiu de um hotel, tentou pará-lo e disparou outro tiro contra ele, sem o atingir. Chegando ao posto da Polícia Militar, Mario ali se refugiou. Neste posto viu o homem que tentara matá-lo conversando com os policiais e procurou ocultar-se. Pouco depois os policiais o fizeram retirar-se do posto policial, porém Mario, por precaução, permaneceu nas suas imediações o resto da noite.

15. Os peticionários informam que no dia seguinte ao do assassinato, em setembro de 1993, solicitaram à Delegacia da Infância e da Adolescência do Rio de Janeiro proteção para a testemunha Mario, a qual foi concedida, porém não foi efetivada, apesar de seu caráter urgente (Anexos 8 e 9). Em 9 de fevereiro de 1994, após o atentado, os advogados do IBISS reiteraram a sua solicitação de medidas de segurança para essa testemunha e para a tomada de seu depoimento, além de requererem uma perícia do atentado cometido. Só então, em 9 de fevereiro de 1994, efetivou-se a medida de segurança e a testemunha foi acautelada na casa de segurança para testemunhas.

16. Os peticionários alegam a dupla omissão por parte das autoridades brasileiras na instrução da investigação policial. A primeira omissão refere-se à paralisação das investigações policiais que, conforme determina o Código Penal, têm que estar concluídas dentro de um prazo de 30 dias, e à data da denúncia dois anos haviam transcorrido sem que chegassem a seu termo, fato que, alegam os peticionários, justifica o acatamento da exceção prevista no artigo 46(2)(c), da Convenção, ao requisito de esgotamento dos recursos internos. A segunda omissão refere-se ao Ministério Público, que deveria ter atuado como fiscal e exigido o cumprimento dos prazos legais e não se havia pronunciado no caso.

17. Os peticionários solicitam que se declare que houve violação de direitos, em virtude tanto da ocorrência de morte como da falta do devido processo e das garantias judiciais, e que a Comissão recomende ao Estado brasileiro que conclua a investigação e processe os responsáveis pela violação de direitos de Marcos Aurelio de Oliveira Santana, bem como dê à família da vítima uma indenização.

 

B. Posição do Estado

18. O Estado brasileiro não respondeu às reiteradas solicitações da Comissão de alegações sobre a admissibilidade e o mérito da petição. A Comissão também comprova que o Estado brasileiro não havia até então contestado os fatos expostos na denúncia, não obstante as várias notas da Comissão que assim o solicitavam, e que foram amplamente esgotados os prazos fixados na Convenção e no Regulamento da Comissão para tal contestação.

 

IV. ANÁLISE DA ADMISSIBILIDADE

A. Competência ratione materiae, personae e temporis

19. A Comissão é competente para considerar deste caso, por se tratar de alegações a respeito da violação dos direitos humanos reconhecidos na Convenção, a saber: artigo 4 (direito à vida) artigo 8 (direito às garantias judiciais), artigo 19 (direitos da criança), artigo 22 (direito de circulação e de residência) e artigo 25 (direito à proteção judicial), conforme o disposto no artigo 44 da citada Convenção, na qual o Brasil é parte deste 25 de setembro de 1992. Os fatos ocorreram durante a vigência da Convenção para o Estado e alega-se que seus responsáveis são agentes do mesmo, tanto policiais como do Ministério Público; a vítima é uma pessoa física.

 

B. Responsabilidade do Estado em relação aos atos ou omissões de seus órgãos e agentes, e dos de seus Estados federais

20. O artigo 1(1) da Convenção estabelece claramente a obrigação do Estado de respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e de garantir o pleno exercício dos mesmos, de tal modo que toda violação dos direitos reconhecidos na Convenção que possa ser atribuída, segundo as normas do direito internacional, à ação ou omissão de qualquer autoridade pública, constitui um ato de responsabilidade do Estado.1

21. Nos termos do artigo 28 da Convenção, quando se tratar de um Estado parte constituído como Estado federal, como o Brasil, o governo nacional responderá na esfera internacional por atos praticados pelas entidades que compõem a federação. O presente caso trata de alegações de violações dos direitos humanos praticadas por um policial civil do Estado do Rio de Janeiro.

 

C. Esgotamento dos recursos internos

22. De conformidade com o disposto no artigo 46,1,a, da Convenção, para que uma petição seja admitida pela Comissão, é necessário que hajam sido esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de direito internacional geralmente reconhecidos. No mesmo artigo estabelece-se, entretanto, que essas disposições não se aplicarão quando:

a) não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados;

b) não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; e

c) houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.

23. Os peticionários informaram que, não obstante a investigação policial haver sido iniciada em 28 de setembro de 1993, transcorridos mais de dois anos da data da petição ela continuava aberta e inconclusa. A legislação penal brasileira fixa o prazo de 30 dias para a conclusão de toda investigação policial. Este prazo pode ser prorrogado mediante autorização do juiz, o que não ocorreu no presente caso. Tampouco o Ministério Público, ao qual cabe fiscalizar o cumprimento dos prazos, interveio para torná-los efetivos.

24. O transcurso de dois anos, à data da denúncia, desde a ocorrência dos fatos sem que a investigação fosse concluída implica uma demora injustificada, segundo o artigo 46(2), no tocante ao esgotamento dos recursos internos. Ao impedir o devido processo dos responsáveis e negar aos familiares a possibilidade de ações judiciais de indenização, essa demora obsta o acesso dos presumidos prejudicados aos recursos da jurisdição interna e constitui, nos termos do artigo 46(2)(b), outra das exceções previstas ao mencionado requisito de esgotamento.

25. O Estado brasileiro não deu até a presente data resposta à petição, embora a Comissão haja reiterado as solicitações feitas e os prazos convencionais estipulados no Regulamento da Comissão tenham vencido. Esta Comissão entende que tal silêncio implica uma renúncia tácita ao direito de alegar a falta de esgotamento prévio dos recursos internos estabelecido no artigo 46 da Convenção.2

 

D. Pontualidade da apresentação

26. Existindo demora injustificada na administração de justiça, aplica-se a exceção prevista no artigo 46(2)(c) da Convenção e no artigo 37(2)(c) do Regulamento da Comissão ao prazo de seis meses para a apresentação de petições à Comissão, o qual é contado a partir da data em que o lesado em seus direitos houver sido notificado da decisão definitiva. Uma vez que a denúncia foi apresentada dois anos depois da alegada violação de direitos, a Comissão entende que a petição foi apresentada dentro de um prazo razoável, de conformidade com o disposto no artigo 38(2) de seu Regulamento.

 

E. Litispendência ou coisa julgada internacional

27. A Comissão não tem conhecimento de que a matéria da petição se encontre pendente de processo de solução perante outra instância internacional ou haja sido por esta julgada.

 

V. ANÁLISE DO MÉRITO DO CASO

28. O silêncio processual do Estado em relação a esta petição contradiz a sua obrigação como Estado parte na Convenção Americana no que se refere à faculdade da Comissão de "atuar, no que respeita às petições e outras comunicações, no exercício de sua autoridade, de conformidade com o disposto nos artigos 44 a 51 da Convenção...". A análise que se segue tem por base os elementos em poder da Comissão e, levando em consideração o artigo 42 do Regulamento da Comissão, faz notar que no prazo máximo fixado de acordo com o artigo 34.5 desse Regulamento o Estado não proporcionou a informação respectiva solicitada. A juízo da Comissão, não surgiram da análise de todos os elementos de convicção disponíveis outros que permitissem chegar, no tocante aos temas analisados, a conclusões distintas das que são apresentadas a seguir.

 

Direito à vida (artigo 4)

29. O artigo 4 da Convenção estabelece que ninguém pode ser arbitrariamente privado da vida. A vítima, Marcos Aurelio de Oliveira Santana, de 17 anos de idade, era um "menino de rua" que integrava um grupo de jovens que viviam nas vizinhanças da Cinelândia e mantinham contato com a organização de proteção e defesa de menores IBISS, peticionária do caso. Marcos recebia orientação da entidade peticionária IBISS com vistas ao seu alistamento no Exército (Petição e Anexo 4). Segundo vários menores que fizeram declarações à imprensa e a membros do IBISS, e em particular a testemunha ocular Mario de Souza Godinho, a vítima, Marco Aurelio de Oliveira Santana, foi morta por um policial civil do Estado do Rio de Janeiro conhecido como "Robocop" e acusado de extorquir meninos de rua.

30. Outros depoimentos sustentam que a pessoa que atirou em Marcos "parecia alguém acostumado a matar e que deixou tranqüilamente o local da ocorrência, tomando um carro no qual outra pessoa o aguardava". O mesmo policial foi posteriormente identificado pela testemunha Mario como a pessoa que o havia encontrado dormindo na rua quatro meses depois e disparara contra ele com a intenção de matá-lo. Ademais, quando Mario finalmente chegou ao posto próximo da PM (Polícia Militar do Rio de Janeiro), a mesma pessoa ali se encontrava conversando com os policiais. Esta testemunha foi objeto de medidas cautelares decretadas por juiz competente, à vista desse atentado praticado por quem a testemunha identificara como sendo a mesma pessoa que havia atacado a vítima Marcos Aurelio e que afirmou tratar-se de um policial que extorque os meninos de rua.

31. Durante a fase de inquérito policial, tomou-se o depoimento do menor Alexandre Oliveira da Silva, que afirma haver visto um homem com os mesmos traços físicos descritos por Mario rondando o local do crime momentos antes de ser este praticado. Alexandre também declarou que, no seu entender, o assassino havia premeditado sua ação, com a expressa intenção de matar o menor Marcos Aurelio.

32. A Comissão comprovou, ademais, que naqueles anos a perseguição e o extermínio de meninos e jovens de rua era um meio utilizado com freqüência no Rio de Janeiro por agentes da segurança pública ou da segurança privada por razões de ordem pessoal ou da presumida "limpeza social". A Comissão pronunciou-se contra essa prática, que constitui uma das violações sistemáticas do direito à vida e à integridade pessoal mais abomináveis e implica a renúncia do Estado à sua obrigação de garantir os direitos de todas as pessoas e, em particular, os das crianças e menores.3 A Comissão, ao analisar o caso, considera como elementos centrais de convicção os depoimentos e evidências emanados do respectivo expediente. É de opinião, porém, que cabe fazer referência a esse quadro geral a fim de deixar claro que este não é um caso isolado e anômalo, mas, antes, o exemplo de uma atitude sistemática adotada na época por alguns agentes da polícia.

33 A Comissão deve considerar se o disparo feito pelo agente da segurança pública que custou a vida da vítima atendia à necessidade de evitar um crime maior ou de praticar um ato de legítima defesa. Leva em consideração, a esse respeito, os "Princípios básicos sobre o uso de força e de armas de fogo por agentes da lei" que definem claramente os casos em que seu uso é legítimo4. Embora o Estado não tenha invocado tal defesa, a Comissão entende que cabe fazer referência a esse ponto. Não há, no caso, evidência que sustente qualquer dessas situações, e tampouco que o jovem estivesse armado ou ameaçando de morte tanto o policial como outras pessoas. Tirar a vida de uma pessoa que presumidamente está cometendo um roubo na rua não é a forma legal de reagir por parte das forças encarregadas da segurança pública. Mais ainda, há testemunho de que esse policial havia perseguido antes esses jovens e os vinha seguindo desde a área do Museu de Arte Moderna. Há igualmente testemunho de que ele, após tirar a vida da vítima, se fora tranqüilamente, com a cooperação de um indivíduo que o aguardava em um automóvel. Não há informação de que tenham sido cumpridos os procedimentos de investigação regulamentares no tocante ao arrolamento de evidências e à tomada de depoimentos que devem ser levados a cabo imediatamente após um homicídio. Neste caso concreto, outras circunstâncias tornam ainda mais ilegalmente aberrante o homicídio praticado, já que há claros indícios de perseguição prévia e de desprezo pelos direitos desse menor e de seus companheiros.

34. Com base nos depoimentos e evidências que constam do expediente do caso e foram acima apresentados, a Comissão considera que existem evidências claras e contundentes que levam à plena convicção de que agentes da Polícia do Rio de Janeiro violaram o direito à vida de parte de Marcos Aurelio de Oliveira Santana no dia 25 de setembro de 1993, nessa cidade.

 

B. Direitos da criança (artigo 19)

35. A Convenção, em seu artigo 19, dispõe o seguinte:

Toda criança tem direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer por parte de sua família, da sociedade e do Estado.

36. A Constituição Federal do Brasil de 1988 estabelece em seu artigo 227 o seguinte: "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida ..., além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação e exploração, violência, crueldade e opressão". O Estatuto da Criança e do Adolescente que vige no Brasil reitera as garantias estipuladas na Constituição. Quer isso dizer que a legislação sobre os direitos do menor no Brasil compõe um quadro normativo adequado para proteger a vida do menor, à luz das obrigações derivadas da Convenção.

37. Outra era, entretanto, a realidade brasileira à época dos fatos denunciados. A Comissão, em seu relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, assinalou que "um percentual importante de meninos de rua vive na delinqüência e em situações familiares críticas, subsistindo do produto de pequenos roubos ou da prestação de serviços (inclusive o tráfico de drogas). Suas vidas são em geral curtas, e eles muitas vezes morrem vítimas de grupos de extermínio, da própria polícia e até mesmo da violência a que sua situação os expõe".5 O relatório mencionado sublinha o seguinte: "As cifras relativas à violência policial diminuíram sensivelmente desde 1993 em São Paulo e aumentaram desde maio de 1995 no Rio de Janeiro".6 A situação de Marcos Aurelio insere-se perfeitamente neste contexto, pois o menor vivia nas ruas do Rio de Janeiro, sobrevivendo de pequenos roubos, e terminou sendo vítima da arbitrariedade policial.

38. Verifica-se, por conseguinte, que enquanto a legislação interna e a Convenção ratificada pelo Brasil reconhecem a obrigação primordial do Estado de dispensar à criança cuidados e atenções especiais em virtude de sua condição vulnerável,7 no presente caso as instituições estatais não só não ofereceram as condições básicas para o cumprimento de sua obrigação de proteger o menor Marcos Aurelio da violência como infringiram o artigo 19 da Convenção.

 

C. Direitos de circulação e de residência (artigo 22)

39. Os peticionários também alegam a violação dos direitos de circulação e de residência. O artigo 22 da Convenção estabelece a respeito o seguinte:

1. Toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado tem direito de circular nele e de nele residir em conformidade com as disposições legais.

2. O exercício dos direitos acima mencionados não pode ser restringido senão em virtude de lei, na medida indispensável, numa sociedade democrática, para prevenir infrações penais ou para proteger a segurança nacional, a segurança ou a ordem públicas, a moral ou a saúde públicas, ou os direitos e liberdades das demais pessoas.

40. Ao considerar este ponto, a Comissão comprova que a aparente liberdade que têm esses meninos e jovens de circular, procurar formas de sobrevivência e pernoitar nas ruas, não é a mesma liberdade acima prevista. São impelidos a fazê-lo pelas condições sociais de suas famílias e também pela falta de medidas adequadas, de parte do Estado, para prover-lhes uma estrutura de educação, saúde, casa e apoio. Os meninos e jovens como Marcos Aurelio vivem na rua, em que pese à sua vontade, pela falta de opções e de salvaguardas mínimas que lhes dêem oportunidade e meios de ter uma vida com os padrões mínimos que lhes são garantidos pela Constituição nacional e pelos compromissos internacionais do Brasil.

41. Essas garantias, no que se refere às crianças e menores de 18 anos, são ampliadas nas "Diretrizes das Nações Unidas sobre regras e padrões mínimos para a administração de justiça juvenil" (Regras de Beijing) que estabelecem garantias especiais para o tratamento policial e judicial das alegadas infrações cometidas pelos menores. Tais regras, em seu item 5(1), assim rezam:

O sistema de justiça para jovens deve enfatizar o bem-estar do jovem e assegurar que toda reação contra infratores juvenis deve ser sempre proporcional às circunstâncias, tanto do ofensor como da ofensa.8

42. Mais ainda, essa resignação do Estado ao seu dever de proporcionar proteção e assistência é agravada pela perseguição e a violência praticadas por agentes das forças de segurança pública e pela falta de respeito de parte dos mesmos tanto às garantias judiciais como à presunção de inocência. Esse círculo vicioso de marginalidade, falta de oportunidades, perseguição e convivência com a ilegalidade em que se encontram os menores como Marcos Aurelio, o qual se completa com a desconfiança que gera em setores da sociedade, facilita a corrupção de agentes das forças de segurança pública no seu trato com esses menores e, por sua vez, gera maior marginalidade e violência. Esforços de instituições como o IBISS, que procuram oferecer saídas honrosas dessa vida marginalizada, vêem-se frustrados. E toda ocorrência como a que levou aos fatos denunciados torna mais difícil a solução do problema e agrava o círculo vicioso.

43. Em conseqüência, o direito dos menores de circulação e de residência, e no presente caso especialmente da vítima e da testemunha ocular ameaçada, foi violado pelo Estado mediante a perseguição e ataque por parte de um agente da polícia, bem como pela negligência de outros agentes em proporcionar as condições necessárias a que seu direito de circulação e de residência se tornasse efetivo sob condições razoáveis de segurança.

 

D. Garantias e proteção judiciais (artigos 8 e 25)

44. Os artigos 8 e 25 da Convenção outorgam a toda pessoa o direito de acesso a recursos judiciais quando seus direitos forem violados e a ser ouvida por uma autoridade ou tribunal competente. O artigo 25 da Convenção assim dispõe:

Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.

45. Conforme antes assinalou a Comissão, quando, como neste caso, a vítima não se encontre em condições de buscar uma reparação judicial, o direito de recorrer a esse meio transfere-se necessariamente aos seus familiares. A Comissão chegou à conclusão de que as vítimas e/ou seus parentes têm direito a uma investigação judicial, a cargo de uma corte de justiça criminal, destinada a estabelecer e punir responsabilidades em casos de violações de direitos humanos.9 Tal direito emana da obrigação do Estado de "investigar seriamente, com os meios ao seu alcance, as violações cometidas no âmbito de sua jurisdição, a fim de identificar os responsáveis, impor-lhes as sanções pertinentes e assegurar à vítima uma adequada reparação".10 11

46. A Corte Interamericana de Direitos Humanos assim se pronunciou a respeito da obrigação do Estado de investigar os fatos violatórios dos direitos humanos protegidos pela Convenção:

[A obrigação de] investigar é, como a de prevenir, uma obrigação de meio ou comportamento que não é incumprida apenas pelo fato de que a investigação não produza um resultado satisfatório. Cumpre, entretanto, que ela seja empreendida com seriedade e não como mera formalidade condenada de antemão a ser infrutífera. Deve ter um sentido e ser assumida pelo Estado como um dever jurídico próprio e não como uma simples gestão de interesses particulares, que dependa da iniciativa processual da vítima ou de seus familiares ou da contribuição privada de elementos probatórios, sem que a autoridade pública busque efetivamente a verdade.12

47. Os peticionários informaram à delegacia responsável pelo inquérito policial que possuíam dados de outra testemunha, a qual dispunha de informações que facilitariam as investigações. As autoridades policiais, por falta de diligência, não tomaram providências para prosseguir com as investigações a fim de determinar a autoria do crime, apesar das evidências claras que constavam do depoimento do menor Alexandre, das informações importantes de outra testemunha potencial (passageira de ônibus) e do atentado contra a vida do menor Mario alegadamente cometido pelo mesmo homem que matou o menor Marcos Aurelio.

48. Neste caso, a investigação não compreendeu vários procedimentos regulamentares essenciais. Não se tomou o depoimento de outras testemunhas que presenciaram o ataque e a fuga do perpetrador do crime; não se investigou se a vítima estava armada, nem as circunstâncias de sua suposta conduta delituosa (tentativa de roubo segundo os peticionários), não se inquiriu acerca da segunda pessoa que esperava pelo policial em um automóvel branco e que alegadamente também apareceu, de forma ameaçadora, em seguida ao ataque contra a testemunha quatro meses depois. Não se investigou a relação entre o atacante e os policiais de guarda no posto da Polícia Militar, onde os viu a testemunha Mario, nem se procurou saber por que esses policiais de guarda se recusaram a dar refúgio a Mario quando este o solicitou, uma vez que havia sido vítima de tentativa de morte e de ameaça. Tampouco se investigaram os antecedentes do policial, que fora acusado de perseguir esses menores e de extorqui-los. Estes elementos levam a Comissão a concluir que a investigação não foi levada a efeito com as garantias de seriedade que o artigo 25 da Convenção exige.

49. Essas garantias judiciais também devem ser analisadas à luz da alegada demora na investigação dos fatos. Para determinar a razoabilidade do prazo13 a que se referem os artigos 8 e 25 da Convenção, a Comissão deve proceder à análise global da aludida investigação policial.

50. No sistema interamericano de proteção dos direitos humanos existem disposições relativas ao prazo razoável em que um caso de violação dos direitos humanos deve ser resolvido. De fato, a Convenção Americana estipula uma série de garantias que devem estar presentes em todo processo de investigação judicial, a fim de que seja substanciado dentro de um prazo razoável. O artigo 8.1 assinala que:

Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial.

Ademais, o artigo 25 estabelece que:

Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido (...) perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais.

51. Tanto a Comissão e a Corte Européia de Direitos Humanos como a Comissão Interamericana estabeleceram uma série de critérios ou considerações que devem ser levados em conta para determinar se no caso de que se trate houve ou não atraso injustificado na administração de justiça, "o que não impedirá que, se cabível, um só deles pese decisivamente" (a ênfase foi acrescentada).14 São estes os critérios estabelecidos pela doutrina para determinar a razoabilidade do prazo: 1. A complexidade do caso. 2. A conduta da parte prejudicada com relação à sua cooperação no andamento do processo. 3. A forma pela qual tramitou a etapa de instrução do processo. 4. A atuação das autoridades judiciais.

52. Para uma análise apropriada da complexidade do caso, é necessário que nos refiramos aos antecedentes do mesmo: a violação do direito à vida. Em conseqüência, cumpre avaliar objetivamente as características do delito cometido e as condições pessoais de seus presumidos autores. Em primeiro lugar, estamos diante de dois supostos delitos, um de homicídio e outro de tentativa de homicídio, ambos praticados em circunstâncias definidas e simples. Essas características tornam o presente caso não complexo e de fácil investigação. A doutrina que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos adotou no Caso N° 10.037 (Firmenich) é ilustrativa, posto que declarou inadmissível a denúncia pelo fato de que as características próprias do caso e a complexidade das causas envolvidas em seu desenrolar não constituíam um atraso injustificado da administração de justiça.

53. Em outro caso perante a Comissão, um Estado invocou a complexidade do litígio e alegou que o fato de a investigação não estar concluída obedecia à extrema gravidade dos atos denunciados, à complexidade da situação de que se tratava e à seriedade com que as autoridades competentes haviam empreendido seu exame e esclarecimento. Nesse caso, a Comissão considerou que, transcorridos mais de dois anos desde a ocorrência dos fatos sem que até a data da denúncia se movesse a competente ação penal e que tampouco existiam indícios de que a mesma seria proposta, estava claramente demonstrado que as investigações não haviam sido levadas a efeito com seriedade e eficácia (Relatório 48/97, Caso 11.411, "Ejido Morelia", parágrafos 46 a 48).15

54. Segundo a informação em poder da Comissão, o inquérito policial foi instaurado em setembro de 1993 e permanece aberto até a presente data. Mais de cinco anos transcorreram sem que fosse concluído, embora a legislação brasileira fixe o prazo de 30 dias para a conclusão de inquéritos policiais.

55. Cabe neste caso ao Ministério Público, que tem competência para fiscalizar a aplicação da lei no que respeita aos atos e prazos judiciais, exigir da dependência policial responsável a realização do inquérito, o que não fez. Depreende-se do expediente do caso que mais de cinco anos transcorreram desde a data dos fatos denunciados sem que até o momento fosse encerrado o inquérito e instaurada a correspondente ação penal.

56. Por tudo isso, a Comissão considera que a ineficiência, negligência ou omissão nas investigações de parte das autoridades, que culminou em demora injustificada na conclusão do inquérito policial, não só eximiu os peticionários da obrigação de esgotar os recursos da jurisdição interna, conforme consta da parte relativa à admissibilidade, como também infringe os artigos 8 e 25 da Convenção, ao privar os familiares da vítima do direito de obter justiça dentro de um prazo razoável pela via de um recurso simples e rápido. O artigo 1(1) da Convenção estabelece que os Estados partes nessa Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição.16

 

    1. Ações posteriores ao Relatório 23/99

A Comissão transmitiu o Relatório anterior ao Estado em 24 de março de 1999, concedendo-lhe o prazo de dois meses para dar cumprimento às recomendações formuladas e informou os peticionários sobre a aprovação do relatório previsto no artigo 50 da Convenção. O prazo concedido transcorreu sem que a Comissão recebesse qualquer resposta do Estado sobre essas recomendações.

 

VII. CONCLUSÕES

1. A Comissão reitera a sua conclusão de que tem competência para conhecer deste caso e que a petição é admissível, em conformidade com os artigos 46 e 47 da Convenção Americana.

2. Com fundamento nos fatos e na análise expostos anteriormente, a Comissão reitera a sua conclusão de que a República Federativa do Brasil é responsável pela violação do direito à vida (artigo 4), dos direitos da criança (artigo 19), do direito às garantias e proteção judiciais (artigo 8 e 25) e da obrigação do Estado de garantir e respeitar os direitos (artigo 1(1)) da Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos, em relação com o homicídio de Marcos Aurélio de Oliveira por um policial civil do Estado do Rio de Janeiro, bem como pela falta de investigação e punição efetiva dos responsáveis.

 

VIII. RECOMENDAÇÕES

Com base na análise e nas conclusões precedentes, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos reitera ao Estado do Brasil as seguintes recomendações:

1. Que leve a cabo uma investigação oficial completa, imparcial e efetiva para determinar as circunstâncias em que ocorreu a morte de Marcos Aurélio de Oliveira e o atentado contra Mário de Souza Godinho, bem como a demora injustificada na investigação policial desses fatos; e para punir os responsáveis em conformidade com a legislação brasileira;

2. Que adote as medidas necessárias para que os familiares da vítima recebam a reparação adequada e oportuna pelas violações aqui estabelecidas.

3. Adotar as medidas necessárias para assegurar o cumprimento dos compromissos do Estado em relação aos "meninos da rua" na cidade do Rio de Janeiro, em conformidade com os compromissos internacionais do Estado brasileiro e, em especial, com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos a Convenção das Nações Unidas sobre Direitos da Criança e instrumentos correlatos em vigor.

 

IX.    PUBLICAÇÃO

A Comissão decidiu, em 06 de outubro de 1999, remeter o presente Relatório ao Estado brasileiro, o que levou a cabo em 15 de outubro do mesmo ano, de acordo com o disposto no artigo 51 da Convenção. Foi concedido um prazo de um mês à partir do envio para o cumprimento das recomendações acima indicadas. Vencido tal prazo, a Comissão não recebeu qualquer resposta do Estado brasileiro a este respeito.

Em razão das considerações anteriores e em conformidade com os artigos 51(3) da Convenção Americana e 48 de seu Regulamento, a Comissão decide reiterar as conclusões e recomendações do parágrafos 1 e 2 e fazer público este relatório, incluindo-o em seu Relatório Anual à Assembléia Geral da OEA: A Comissão, no cumprimento de seu mandato, continuará avaliando as medidas tomadas pelo Estado brasileiro em relação às recomendações mencionadas, até que tenham sido cumpridas por completo.

Dado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, DC, aos 24 de fevereiro de 2000.  (Firmado): Cláudio Grossman, Primeiro Vice-Presidente; Juan Méndez, Segundo Vice-Presidente; Robert Goldman, Julio Prado Vallejo, Marta Altolaguirre e Peter Laurie, Membros.

* O membro da Comissão Hélio Bicudo, de nacionalidade brasileira, não participou do debate nem da votação deste caso em cumprimento do artigo 19(2)(a) do Regulamento da Comissão.

1 Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velázquez Rodríguez, sentença de 29 de junho de 1988, par. 164.

2 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Viviana Gallardo, 13 de setembro de 1981, par. 16; Velásquez Rodríguez, par. 88; Caballero Delgado y Santana, exceções preliminares, sentença de 21 de janeiro de 1994, par. 66.

Sobre o mesmo assunto, a doutrina assinala o seguinte:

"Tratando-se de um direito a que se pode renunciar, inclusive tacitamente, deve-se supor a existência de oportunidade de exercê-lo e que essa oportunidade não é outra senão a que vige durante a fase da admissibilidade da petição perante a Comissão. Por conseguinte, se por negligência, descuido ou ignorância de seus advogados o Estado denunciado não alegar a falta de esgotamento dos recursos internos nesta etapa do processo, estaria impedido de fazê-lo posteriormente, tanto perante a Comissão como a Corte. Faúndez L. Hector, e El sistema interamericano de protección de los derechos humanos: Aspectos institucionales y procesales, CIDH, San José, 1998, pág. 198.

3 "Os direitos dos menores e das crianças". In Relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil. C.I.D.H., Washington, D.C., setembro de 1997.

4 Nações Unidas: "Princípios básicos..." adotados no Oitavo Congresso sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento de Transgressores, realizado em Havana, Cuba, de 27 de agosto a 7 de setembro de 1990. Aplicam-se, inter alia, as seguintes cláusulas:

Os oficiais da lei não usarão armas de fogo contra pessoas, exceto em defesa própria ou de terceiros contra a ameaça iminente de morte ou de injúria grave, para impedir a execução de um crime particularmente grave que envolva ameaça séria de morte, para deter uma pessoa que represente tal perigo e resista à sua autoridade, ou para prevenir sua fuga, e isso tão-somente quando medidas menos extremas forem insuficientes para a consecução desses objetivos. Em todo caso, o uso intencional e letal de armas de fogo só poderá ser feito quando for absolutamente inevitável à proteção de vidas humanas.

Nas circunstâncias previstas no Princípio 9, os oficiais da lei deverão identificar-se como tais e anunciar de forma clara a sua intenção de usar armas de fogo com tempo suficiente para que tal advertência seja acatada, a menos que ela possa pôr indevidamente em risco o oficial da lei ou gerar risco de morte ou injúria grave para outras pessoas, ou seja nitidamente imprópria ou vã nas circunstâncias do incidente.

5 Relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, CIDH, OEA, Washington, 1997, pág. 80, par. 16.

6 Relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, CIDH, OEA, Washington, 1997, pág. 85, par. 31.

7 A Convenção sobre os Direitos da Criança ratificada pelo Brasil reza, inter alia, o seguinte:

Art. 3. Os Estados Partes tomarão medidas para assegurar à criança a proteção e os cuidados necessários ao seu bem-estar.

Art. 20. A criança temporária ou permanentemente privada de seu ambiente familiar ... tem direito a proteção e assistência especial do Estado.

8 Aprovadas pela Assembléia Geral das Nações Unidas como Resolução 40-33, de 29 de novembro de 1985.

As Regras e Padrões Mínimos para a Administração de Justiça Juvenil (Regras de Beijing) assinalam que os Estados membros devem estabelecer condições que assegurem aos jovens uma vida significativa na comunidade e que, durante o período de sua vida em que são mais suscetíveis a desvios de conduta, apóiem um processo de educação e desenvolvimento pessoal livre tanto quanto possível de crimes e delinqüência.

9 Ver, em geral, os relatórios número 28/92 (Argentina) e 29/92 (Uruguai) no Relatório Anual da CIDH 1992-93, OEA/Ser.L/V/II.83, doc. 14 corr. 1, 12 de março de 1993, págs. 51-53 e 169-174.

10 Caso Velásquez Rodrígues (Fundo), supra, parágrafo 174.

11 Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velásquez Rodríguez, sentença de 29 de julho de 1988, parágrafo 77, páginas 74-75.

12 "O direito a um processo justo previsto na Convenção fundamenta-se, entre outras razões, na necessidade de evitar demoras indevidas que se traduzam em privação e denegação de justiça em prejuízo de pessoas que invocam a violação de direitos protegidos pela citada Convenção" (Relatório 43/96, Caso 11.411, México, pág. 483, par. 30, Relatório anual 1996, CIDH).

13 Ver, por exemplo, CIDH, Resolução N° 17/89, Relatório do Caso N° 10.037 (Mario Eduardo Firmenich). In Relatório Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos 1988-1989, página 38; Tribunal Europeu de Direitos Humanos: Caso "Konig", sentença de 28 de junho de 1978, Série A, N° 27, páginas 34 a 40, parágrafos 99, 102-105 e 107-111; Caso Guincho, sentença de 10 de julho de 1984, Série A, N° 81, página 16, parágrafo 38; Unión Alimentaria Sanders S.A., sentença de 7 de julho de 1989, Série A, N° 157, página 15, parágrafo 40; Caso Buchholz, sentença de 6 de maio de 1981, Série A, N° 42, página 16, parágrafo 51, páginas 20-22, parágrafos 61 e 63; Caso Kemmache, sentença de 27 de novembro de 1991, Série A N° 218, página 27, parágrafo 60.

14 CIDH, Relatório Anual 1997, pág. 655 e ss.

15 Tal dever constitui, conforme o indica a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ... obrigação do Estado de organizar seu aparelho de governo e as estruturas administrativas mediante as quais exerce o poder público de forma que seja possível garantir juridicamente o livre exercício dos direitos humanos. Em conseqüência desta obrigação, os Estados devem prevenir, investigar e punir toda violação dos direitos reconhecidos na Convenção.

16 Esse dever constitui, conforme indica a Corte Interamericana de Direitos Humanos, …obrigação do Estado de organizar o seu aparelho governamental e as estruturas administrativas por meio das quais manifesta o exercício do poder público, de forma que seja possível garantir juridicamente o livre exercício dos direitos humanos. Como conseqüência dessa obrigação, os Estados devem prevenir, investigar e punir toda violação dos direitos reconhecidos pela Convenção.