RELATÓRIO
ANUAL 1998 RELATÓRIO
Nº77/98*
CASO
Nº11.556
CORUMBIARÁ BRASIL 25
de setembro de 1998
I.
INTRODUÇÃO
1.
Em 10 de outubro de 1995, os peticionários, perante a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada Comissão),
denunciaram a República Federativa do Brasil (doravante denominado Estado
ou Brasil) por alegadas violações dos artigos 4, 5,11 e l.1 da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada Convenção)
decorrentes de uma operação da Polícia Militar do Estado de Rondônia
que resultou, segundo a denúncia, em 13 mortes e detenção de 355
pessoas. O Estado alegou que não se haviam esgotado os recursos internos.
II.
ANTECEDENTES
A.
Contexto
2.
Segundo a petição, a Fazenda Santa Elina, situada perto da cidade
de Corumbiará, cuja titularidade se achava em litígio, foi objeto de
disputa judicial em virtude
da qual 540 famílias, de maneira organizada e pacífica, ocuparam a
fazenda em 15 de junho de 1995. A
titularidade do domínio era questionada pelo Instituto de Reforma e
Colonização Agrária, que teria emitido parecer favorável à colonização
do mesmo. A despeito disso, o
juiz da causa ordenou a devolução da fazenda ao proprietário.
B.
Fatos objeto da denúncia
3.
Segundo a petição, a negociação entre a Polícia do Estado de
Rondônia e os camponeses sobre o desalojamento foi complexa.
Depois de diálogo em que se intimou os camponeses a que
desocupassem a fazenda, os policiais se retiraram do local.
Horas mais tarde, na madrugada de 9 de agosto de 1995, regressaram
e procuraram forçar o desalojamento das famílias ocupantes.
Houve então um enfrentamento armado e a alegada repressão
policial. Essa operação
teve um saldo de 11 trabalhadores rurais e dois policiais mortos, 53
feridos e 355 pessoas detidas. Também
foram denunciados maus-tratos e torturas por parte da Polícia após o
incidente. Posteriormente, em
18 de dezembro de 1995, foi apresentado um aditamento à denúncia
referente ao assassinato de um síndico de Corumbiará, que teria relação
com os direitos anteriormente denunciados.
III.
POSIÇÕES DAS PARTES SOBRE ADMISSIBILIDADE
Posição do peticionário
4.
Os denunciantes alegam que houve atraso injustificado no
esgotamento dos recursos internos, já que o processo de investigação
dos fatos foi sumamente lento e arrastado.
Alegam também que teriam transcorrido dois anos e meio sem que o
Governo brasileiro tivesse punido os responsáveis do massacre.
Solicitam a exceção por demora injustificada e ineficácia dos
processos de investigação e tramitação, com base no artigo 37.1, alínea
c, do Regulamento da Comissão.
Especificam que somente duas pessoas foram investigadas, que as
armas utilizadas pelos agentes policiais não foram apreendidas
judicialmente e que o Tenente Coronel responsável pela investigação
policial considerou, apesar de todas as provas acumuladas, que era
prematuro decretar qualquer prisão preventiva.
Posição do Estado
5.
Em sua primeira exposição, o Estado admitiu que, em virtude da
operação policial, haviam morrido 12 camponeses e haviam sido efetuadas
353 detenções. Em 27 de
julho de 1996, o Estado também informou que se havia procedido a
investigações, que o processo se achava em andamento e que haviam sido
afastados de seus cargos, por sua responsabilidade nos fatos, o Secretário
de Segurança Pública e o Comandante Policial de Corumbiara, e que havia
sido constituída uma comissão
especial de investigação. Alegou,
ademais, que não haviam sido esgotados os recursos internos, sem
especificar quais seriam efetivamente os recursos não esgotados no caso
de que se trata.
IV.
TRAMITAÇÃO NA COMISSÃO
6.
A denúncia recebida na Comissão em 6 de outubro de 1995 foi
enviada ao Governo brasileiro, com suas partes pertinentes, em 28 de março
de 1996. Concedida a prorrogação
solicitada pelo Governo, apresentou este comentários em 28 de junho de
1996, que foram transmitidos ao peticionário.
7.
O peticionário apresentou sua réplica em 16 de setembro de 1996,
a qual foi transmitida ao Governo. O
Governo não apresentou contra-réplica, apesar de reiteração do pedido
pela Comissão em 23 de janeiro de 1997.
8.
Realizaram-se duas audiências, em 7 de outubro de 1996 e em 24 de
fevereiro de 1997, nas quais as partes declararam suas posições.
Na primeira delas, a Comissão ofereceu a possibilidade de abertura
de um processo de solução amistosa do caso, sem que tenha recebido
resposta afirmativa do Governo. Na
segunda, reiterou-se o oferecimento e recebeu-se informação adicional do
peticionário, que foi nesse mesmo ato entregue ao Governo e uma vez mais
a ele remetida em 11 de março de 1998, solicitando-lhe que formulasse
comentários dentro de 60 dias, sem que até este momento se tenha
recebido resposta.
V.
ADMISSIBILIDADE
Requisitos de admissibilidade
9.
Em conformidade com o disposto no artigo 44 da Convenção, da qual
o Brasil é Estado Parte, a Comissão é competente prima
facie para considerar esse caso por se tratar de reclamação que
alega violações de direitos que a Convenção assegura. O peticionário tem locus
standi para comparecer e apresentou agravantes quanto ao não-cumprimento
de normas estabelecidas na Convenção por parte dos agentes do Estado de
Rondônia, com a conseqüente responsabilidade internacional da República
Federativa do Brasil.
Caracterização da alegada violação
10.
A Comissão considera que, em princípio, a exposição do peticionário
refere-se a fatos que poderiam caracterizar uma violação de direitos
assegurados na Convenção Americana, motivo por que a Comissão considera
satisfeitos os requisitos do artigo 47(b) da Convenção.
Litispendência
internacional
11.
A Comissão entende que, em matéria de reclamação, a petição não
se encontra pendente de outro procedimento nem é uma repetição de petição
anterior já examinada por este órgão ou outro organismo internacional.
Esgotamento dos recursos internos
12.
O requisito de esgotamento dos recursos internos para que uma petição
seja aceita pela Comissão é estabelecido no artigo 46(l), a e b da
Convenção, com as seguintes exceções estabelecidas no artigo 46(2): a)
não
existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido
processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue
tenham sido violados; b)
não se houver permitido ao
presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição
interna, ou houver sido impedido de esgotá-los; e c)
se houver atraso injustificado na decisão sobre os mencionados
recursos.
13.
O artigo 37 do Regulamento da Comissão acrescenta que, se o
peticionário alegar a impossibilidade de cumprir o requisito a que se
refere esse artigo, caberá ao Governo contra o qual for dirigida a petição
demonstrar à Comissão que os recursos internos não foram previamente
esgotados, a menos que isso se deduza claramente dos antecedentes
constantes da petição. Nesse sentido, a Corte Interamericana estabeleceu que cabe ao
Estado que alegue o não-esgotamento assinalar os recursos internos que
devem ser esgotados e sua efetividade.[1]
Desse modo, obedecendo ao princípio do onus
probandis incumbit actoris, o Estado tem a obrigação de provar que
tais recursos não foram esgotados e, se não o foram, assinalar os
recursos que devem ser esgotados ou por que motivo não surtiram efeito.
14.
Nesse caso, o Estado brasileiro limitou-se a alegar a falta de
esgotamento dos mencionados recursos, sem enumerar quais deles são
finalmente utilizáveis ou quais seriam efetivos neste caso particular.
Além disso, não se desvirtuaram as alegações relacionadas com a
falta de eficácia dos recursos tentados, nem apresentou prova documental
alguma a esse respeito.
15.
Também se considera que o peticionário alega demora injustificada
e que transcorreram quase três anos desde o massacre denunciado sem que
se tenha concluído a investigação, nem pessoa alguma responsável haja
sido detida por tais ocorrências.
16.
A Comissão, neste caso específico, considera aplicável o parágrafo
2 do artigo 46 da Convenção, uma vez que não houve esclarecimento por
parte do Estado quanto aos recursos judiciais efetivos que não foram
esgotados, e uma vez que, decorridos três anos dos fatos, não se
instaurou processo - segundo a informação em poder da Comissão -
contra nenhum suposto responsável.[2]
Oportunidade da apresentação
17.
No que se refere a prazos (ratione
tempore), a Comissão considera que, no caso de que se trata, não
cabe a exigência do prazo de seis meses para a apresentação da petição
estabelecida no artigo 46.1,b e no artigo 38 do Regulamento da
Comissão, porquanto, conforme estabelece o artigo 46.2, esse requisito não
será exigido quando houver demora injustificada na decisão quanto aos
recursos da jurisdição interna.
18.
A fundamentação da proteção internacional dos direitos humanos
a que faz referência o artigo 46(1) da Convenção reside na necessidade
de salvaguardar a vítima do exercício arbitrário do poder público. É por esse motivo que se estabelecem exceções ao artigo
46(1), a fim de garantir o respeito aos direitos humanos das vítimas
quando os recursos internos não forem efetivos.[3]
Ante o exposto, tanto o requisito de esgotamento dos recursos
internos como de que a petição seja apresentada dentro dos primeiros
seis meses a partir da notificação da solução definitiva não se
aplicam neste caso.
VI.
CONCLUSÃO
19.
Em virtude do exposto, A
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
DECIDE
a) Declarar
a admissibilidade do caso de que se trata.
b)
Enviar este relatório
sobre admissibilidade ao Estado brasileiro e aos peticionários.
c)
Prosseguir a análise das questões pertinentes definidas neste
relatório a fim de solucionar o caso.
d) Publicar
este relatório no Relatório Anual à Assembléia Geral da OEA.
Passado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, na cidade de Washington, D.C., aos 25 dias do mês de setembro de
1998. (Assinado):
Carlos Ayala, Presidente; Robert K. Goldman, Primeiro Vice-Presidente;
Jean Joseph Exumé, Segundo Vice-Presidente; Comissionados Alvaro Tirado
Mejía, Claudio Grossman e Henry Forde.
*
O
membro da Comissão Hélio Bicudo, de nacionalidade brasileira, não
participou do debate nem da adopción deste caso em cumprimento ao
artigo 19(2)(a) do Regulamento da Comissão. [1]
Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velázquez Rodrígues,
exceções preliminares, sentença de 26 de junho de 1987. [2]
Em primeiro lugar, a Corte leva em conta que, na jurisdição
internacional, a inobservância de certas formalidades nem sempre são
relevantes, pois o essencial é que se alcancem os fins para os quais
foram estabelecidos os diferentes procedimentos.
(Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Godinez Cruz,
exceções preliminares, sentença de 26 de junho de 1987, parágrafo
36). [3]
Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Godinez Cruz , sentença
de 26 de junho de 1987. |