RELATÓRIO No. 41/10[1]

PETIÇÃO 999-06

ADMISSIBILIDADE

ADÃO PEREIRA DE SOUZA e CLOTILDE DE SOUZA ROCHA

BRASIL

17 de março de 2010

 

 

I.          RESUMO

 

1.         Em 19 de setembro de 2006, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante a “Comissão Interamericana” ou a “CIDH”) recebeu uma petição alegando responsabilidade internacional da República Federativa do Brasil (doravante o “Estado” ou o “Brasil”) pela presumida detenção arbitrária e tortura seguidas da morte de Adão Pereira de Souza (doravante a “suposta vítima”) nas mãos de oficiais da polícia civil e militar do estado do Pará.  A petição foi apresentada pela Comissão Pastoral da Terra de Xinguara – CPT/Xinguara, Centro de Justiça e Direito Internacional (CEJIL) e Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (DDH) (doravante os “peticionários”).

 

2.         Os peticionários afirmam que, em 26 de maio de 1993, oficiais da polícia civil prenderam a suposta vítima e o levaram à Delegacia de Polícia de São Félix do Xingu, estado do Pará.  Segundo alegam os peticionários, depois que a suposta vítima estava na Delegacia de Polícia, oficiais da polícia civil e militar, inclusive o Delegado de Polícia, o espancaram violentamente, socando, chutando e asfixiando com um cinto enquanto estava algemado. De acordo com os peticionários, como resultado desse tratamento, a suposta vítima, indefesa, morreu na Delegacia de Polícia.  Os peticionários acrescentaram que estes fatos foram deixados impunes pelas autoridades brasileiras até esta data devido a uma demora injustificada nas ações judiciais internas.  Portanto, os peticionários afirmam que o Estado é responsável pela violação dos artigos 4, 5, 7, 8 e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante a “Convenção Americana”), em conjunto com o artigo 1.1 do mesmo instrumento, bem como dos artigos 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura.

 

3.         O Estado afirma que a petição é inadmissível porque não foram esgotados os recursos internos, segundo requerido pelo artigo 46.1 da Convenção Americana.  Além disso, o Estado assevera que não houve demora injustificada nas ações penais aplicadas à matéria. Por último, o Estado sustenta que os peticionários não interpuseram uma ação civil por danos compensatórios.

 

4.         Sem prejulgar os méritos do caso e em conformidade com as disposições dos artigos 46 e 47 da Convenção Americana, a Comissão Interamericana decide: determinar a petição admissível no tocante à suposta violação dos artigos 1, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura e, em conformidade com o princípio iura novit curia, a CIDH também determina a petição admissível no tocante a possíveis violações do artigo 7 do mesmo instrumento, bem como no que diz respeito a violações potenciais dos artigos 4, 5, 7, 8 e 25 da Convenção Americana, em conjunto com a obrigação geral estabelecida no artigo 1.1 da mesma. A Comissão também decide publicar este relatório e incluí-lo em seu Relatório Anual à Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos.

 

            II.         TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO INTERAMERICANA

 

5.         A petição foi recebida em 19 de setembro de 2006.  Em 30 de novembro de 2006 e 4 de setembro de 2007, a CIDH remeteu as partes pertinentes da queixa ao Estado, estabelecendo um prazo de dois meses para apresentação de comentários.  O Estado enviou sua resposta a esta petição em 25 de junho de 2008. Esta comunicação foi devidamente transmitida aos peticionários.

 

6.         A Comissão Interamericana recebeu informação adicional dos peticionários em 22 de agosto de 2008, a qual foi devidamente transmitida ao Estado.  O Estado, por sua vez, enviou informação adicional à CIDH em 5 de novembro de 2008. Esta comunicação foi devidamente transmitida aos peticionários.

 

            III.        POSIÇÕES DAS PARTES

 

A.         Peticionários

 

7.         Os peticionários alegam que o presente caso não se trata de um caso isolado, mas faz parte de um contexto de impunidade generalizada a respeito de violações de direitos humanos, incluindo a tortura, freqüentemente perpetrada ou tolerada por oficiais da polícia na região sudeste do estado do Pará.  De acordo com os peticionários, o supramencionado foi comprovado pela própria Comissão Interamericana em seu Relatório de 1997 sobre a Situação dos Direitos Humanos no Brasil, bem como por outras autoridades internacionais, tais como o Senhor Nigel Rodley, Relator Especial das Nações Unidas sobre Tortura, em sua visita ao Brasil (e ao Pará) em 2000, bem como pela Amnesty International.  Os peticionários acrescentam que, em casos como este, mesmo com a intervenção política e com apelos por escrito de autoridades locais e nacionais, o Ministério Público e o Judiciário no sudeste do Pará não atuam com a devida diligência na investigação e ação judicial em casos de violência policial.

 

8.         Os peticionários afirmam que a suposta vítima, Adão Pereira de Souza, era trabalhador rural na cidade de São Félix do Xingu. De acordo com os peticionários, em 26 de maio de 1993, oficiais da polícia civil confundiram a suposta vítima com um pistoleiro que supostamente teria ameaçado o sobrinho do Delegado de Polícia local.  Como resultado, os peticionários mantêm que a prisão da suposta vítima não foi feita por esses oficiais da polícia in flagranti delicto nem em conformidade com uma ordem de prisão.  Portanto, a suposta vítima foi arbitrariamente detida e levada à delegação de polícia local.

 

9.         Segundo os peticionários, ao chegar à delegacia de polícia, a suposta vítima foi sujeita à tortura nas mãos de oficiais da polícia civil e militar.  Com efeito, os peticionários alegam que cinco oficiais da política civil e oficiais não-indentificados da polícia militar espancaram brutalmente a suposta vítima.  Os peticionários acrescentam que o Delegado de Polícia espancou e ameaçou a suposta vítima com um revólver e presenciou a tortura por parte dos oficiais. Os peticionários descrevem como os oficiais da polícia esmurraram, chutaram e asfixiaram a suposta vítima com um cinto enquanto ele estava algemado e indefeso. Por fim, afirmam os peticionários, a suposta vítima morreu dentro da delegacia de polícia como conseqüência da agressão e tortura sofridas nas mãos de oficiais da polícia em algum momento entre 26 e 27 de maio de 1993.

 

10.       Os peticionários mantêm que a investigação da polícia somente foi iniciada em 2 de junho de 1993 pelo Superintendente Regional da Polícia Civil depois da intervenção do Prefeito, de uma deputada estadual, do Secretário de Segurança Pública do Pará e do Ministério Público.  De acordo com os peticionários, todas estas autoridades intervieram para fazer abrir o inquérito em tempo oportuno e assegurar que o mesmo não fosse conduzido pelo próprio Delegado que poderia estar implicado na tortura e morte da suposta vítima.

 

11.       Os peticionários ressaltam que a necrópsia confirma que a causa da morte da suposta vítima foi a tortura.  Os peticionários acrescentam também que todas as declarações de testemunhas oculares confirmam que a suposta vítima foi espancada até morrer por oficiais da polícia civil e militar.  Os peticionários indicam que o inquérito policial foi concluído em 20 de julho de 1993 e enviado à autoridade judicial naquele mesmo dia. Apesar do acima exposto, os peticionários ressaltam que o Juiz de São Félix do Xingu não tomou nenhuma medida a respeito do caso nem enviou os autos ao Ministério Público para fins de apresentar a denúncia criminal apropriada.  Segundo os peticionários, isso causou uma demora de quatro meses até o Promotor Público finalmente receber os autos e apresentar a denúncia em 12 de julho de 1993. No entanto, os peticionários afirmam que o Promotor Público somente acusou dois dos oficiais da polícia de crimes contra a suposta vítima.

 

12.       Os peticionários argumentam que, a partir daquele momento, ocorreu uma série de irregularidades e demoras injustificáveis atribuídas às autoridades judiciais do Estado e, que por fim, resultaram em impunidade no tocante à morte da suposta vítima. Neste sentido, os peticionários afirmam que, apesar de reiterados esforços da mãe da vítima, Clotilde de Souza Rocha, e de organizações da sociedade civil, o Gabinete do Promotor Público não emendou a denúncia até 21 de maio de 1994 para acusar também o Delegado de Polícia e outros três oficiais da polícia civil pela morte da suposta vítima.

 

13.       A partir dessa data, ressaltam os peticionários que não houve atividade processual devido à falta de diligência das autoridades estaduais durante vários períodos prolongados. Por exemplo, os peticionários indicam que durante cerca de um ano, até 1995, São Félix do Xingu não tinha juiz nem promotor público; levou três anos (1997-2000) até serem ouvidas as testemunhas da acusação; e levou três anos (1997-2000) para ouvir as testemunhas da defesa.  Os peticionários acrescentam que, como nem todas as testemunhas foram ouvidas, a ação judicial ficou praticamente paralisada por cerca de seis anos, de 2000 até eles apresentarem a petição à CIDH em 2006. Por último, destacam que de 2005 a 2008 as autoridades judiciais não realizaram nenhuma atividade processual de substância. Portanto, 15 anos após a suposta morte por tortura de Adão Pereira de Souza, ninguém foi condenado pelos crimes e a ação judicial penal permanece na fase de instrução processual.

 

14.       Portanto, os peticionários afirmam que houve uma demora injustificada no proferimento da decisão definitiva no âmbito de recursos internos e solicitam à CIDH que declare esta petição admissível, em conformidade com o artigo 46.2 da Convenção Americana. Afirmam também que o Estado é responsável pela violação dos artigos 4, 5, 7, 8 e 25 da Convenção Americana, em conjunto com o artigo 1.1 do mesmo instrumento, bem como dos artigos 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura.

 

B.         Estado

 

15.       O Estado afirma que a petição é inadmissível porque não foram esgotados os recursos internos, conforme requerido pelo artigo 46.1 da Convenção Americana.  Além disso, o Brasil nega que tenha havido demora injustificada no proferimento da decisão definitiva e, portanto, considera inaplicável a exceção estipulada no artigo 46.2.c da Convenção.  Adicionalmente, o Estado sustenta que nem a família da suposta vítima nem os peticionários interpuseram uma ação civil por danos compensatórios, o que confirma novamente que os recursos internos não foram esgotados.

 

16.       De acordo com o Estado, o fato de não ter sido proferida uma decisão definitiva 15 anos após a morte da suposta vítima não indica que tenha havido demora injustificada na ação judicial interna.  O Estado acrescenta que o tempo transcorrido não é o único elemento a ser levado em conta pela Comissão Interamericana para determinar se houve ou não demora injustificada. Portanto, o Estado solicita que a CIDH examine a ação judicial penal como um todo, levando em conta a complexidade do caso, a atividade processual dos peticionários e a conduta das autoridades judiciais.

 

17.       Com base nessas considerações, o Estado solicita à CIDH que declare esta petição inadmissível, em virtude de não cumprir o artigo 46.1.a da Convenção Americana.

 

            IV.        ANÁLISE DE ADMISSIBILIDADE

 

A.         Competência ratione personae, ratione materiae, ratione loci e ratione temporis

 

18.       Os peticionários apresentaram uma petição à Comissão Interamericana em conformidade com o artigo 44 da Convenção. A petição identifica como suposta vítima Adão Pereira de Souza, cujos direitos consagrados na Convenção Americana o Estado brasileiro concordou em respeitar e garantir.  No tocante ao Estado, a República Federativa do Brasil ratificou a Convenção Americana em 25 de setembro de 1992. Portanto, a Comissão Interamericana tem competência ratione personae para examinar a petição.

 

19.       Nos termos do artigo 23 do Regulamento da CIDH, a Comissão Interamericana tem competência ratione materiae para examinar esta petição, uma vez que se refere a supostas violações de direitos humanos reconhecidos na Convenção Americana e na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, tratados a respeito dos quais a CIDH tem competência ratione materiae.  As violações potenciais descritas nesta petição presumivelmente ocorreram sob a jurisdição do Brasil, Estado Parte tanto da Convenção Americana como da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Portanto, a CIDH tem competência ratione loci.

 

20.       Finalmente, a Comissão Interamericana também tem competência ratione temporis, uma vez que a petição descreve violações potenciais que presumivelmente ocorreram depois que a Convenção Americana[2] e a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura[3] entraram em vigor para o Brasil.

 

B.         Outros requisitos de admissibilidade

 

1.         Esgotamento de recursos internos

 

21.       De acordo com o artigo 46.1 da Convenção Americana, para uma petição ser admitida pela Comissão Interamericana é necessário que os recursos oferecidos pela jurisdição interna tenham sido esgotados, de acordo com os princípios de direito internacional geralmente reconhecidos. O segundo parágrafo desse artigo declara que essas disposições não se aplicarão quando não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito em questão ou houver demora injustificada na decisão definitiva sobre os mencionados recursos.

 

22.       A CIDH observa o seguinte: nos casos que envolvem tortura, crime de ação pública processável de ofício no Brasil, o recurso adequado e eficaz é normalmente investigação penal e julgamento. É fato indiscutível no caso presente que, até esta data, não foi proferida decisão definitiva sobre os fatos aqui alegados nem houve uma decisão de primeira instância.

 

23.       Na realidade, nada nos autos perante a CIDH indica que a fase de instrução processual do processo penal sobre a morte da suposta vítima tenha sido concluída até esta data.  Além disso, a Comissão Interamericana observa de modo especial que, uma vez que a denúncia e sua emenda foram apresentadas pelo Promotor Público em 12 de novembro de 1993 e em 21 de maio de 1994, respectivamente, passaram quase 16 anos e as autoridades judiciais do Estado ainda não puderam ouvir todas as testemunhas relevantes e subseqüentemente concluir a fase instrutória.

 

24.       O Estado argumentou que, ao examinar se houve ou não demora injustificada em conformidade com o artigo 45.2.c da Convenção Americana, a Comissão Interamericana deve levar em conta a complexidade do caso, a atividade processual dos peticionários e a conduta das autoridades judiciais.  Neste sentido, a Comissão Interamericana primeiramente ressalta que o Estado não apresentou nenhuma informação que pudesse levar a CIDH a concluir que este caso é especialmente complexo ou que os peticionários e os parentes próximos da suposta vítima tenham interferido de maneira imprópria na investigação e nos processos penais a ponto de causar uma demora de quase 16 anos no proferimento de uma decisão definitiva. Além disso, a Comissão Interamericana observa que os peticionários alegaram e o Estado não refutou o fato de ter havido vários períodos sem qualquer atividade processual por parte das autoridades judiciais, o que, de acordo com os peticionários, confirma que as autoridades judiciais foram negligentes em investigar e processa a morte da suposta vítima.

 

25.       A Comissão Interamericana nota que a regra do esgotamento prévio nunca deve “levar a uma parada ou retardamento que torne ineficaz uma ação internacional em apoio à vítima indefesa.”[4]/ No caso em questão, como não houve nenhum julgamento de primeira instância quase 16 anos após a suposta morte por tortura, o requisito prévio de esgotamento não pode ser interpretado de forma a causar um obstáculo prolongado ou injustificado ao acesso ao Sistema Interamericano.  Portanto, a CIDH determina que a exceção estipulada no artigo 46.2.c da Convenção Americana é aplicável.

 

26.       Finalmente, cumpre assinalar que a invocação das exceções à regra que requer o esgotamento de recursos internos tem uma estreita relação com a possível violação de certos direitos protegidos pela Convenção Americana, tais como a garantia do acesso à justiça. No entanto, o artigo 46.2 da Convenção Americana é, por sua própria natureza e propósito, uma disposição com conteúdo autônomo no que diz respeito a preceitos substantivos desse instrumento internacional.  Conseqüentemente, se as exceções à regra que requer o esgotamento prévio de recursos internos são ou não aplicáveis ao caso em questão é algo a ser decidido antes da análise dos méritos do caso ou independentemente da mesma, uma vez que depende de um critério de apreciação diferente do usado para determinar se os artigos 8 e 25 da Convenção Americana foram ou não violados[5]/.  Por conseguinte, a Comissão Interamericana observa que as causas e os efeitos da demora injustificada dos recursos internos no caso em questão serão analisados, conforme apropriado, no futuro relatório da Comissão sobre os méritos da questão, a fim de verificar se constituem ou não possíveis violações da Convenção Americana.

 

2.         Prazo de apresentação da petição

 

27.       O artigo 46.1.b da Convenção Americana requer que as petições sejam apresentadas no prazo de seis meses contados a partir da data de notificação da decisão definitiva.  Por outro lado, o artigo 32.2 do Regulamento da Comissão Interamericana dispõe o seguinte:

 

Nos casos em que sejam aplicáveis as exceções ao requisito de esgotamento prévio dos recursos internos, a petição deverá ser apresentada dentro de um prazo razoável, a critério da Comissão. Para tanto a Comissão considerará a data em que haja ocorrido a presumida violação dos direitos e as circunstâncias de cada caso.

 

28.       A CIDH já determinou acima que uma exceção à regra que requer o esgotamento de recursos internos é aplicável e, portanto, deve agora determinar se a petição foi apresentada dentro de um prazo razoável.  A petição foi interposta em 19 de setembro de 2006, 13 anos após a morte da suposta vítima e enquanto a ação judicial ainda estava pendente de uma decisão de primeira instância.  Tendo em mente as circunstâncias do caso em questão, especialmente o curso das ações judiciais internas e as queixas apresentadas referentes a uma demora injustificada e à negação de justiça, a Comissão Interamericana conclui que a petição foi apresentada dentro de um prazo razoável e que, por conseguinte, o requisito estipulado pelo artigo 32.2 do Regulamento da CIDH foi cumprido.

 

3.         Duplicação de procedimentos e res judicata internacional

 

29.       Nada nos autos desta petição indica que o objeto desta petição esteja pendente da decisão de qualquer outra ação judicial internacional ou que seja substancialmente idêntico ao de outra petição previamente estudada pela Comissão Interamericana ou por qualquer outra organização internacional. Portanto, os requisitos estabelecidos nos artigos 46.1.c e 47.d da Convenção Americana foram atendidos.

 

4.         Caracterização dos fatos alegados

 

30.       Para fins de admissibilidade, a Comissão Interamericana deve determinar se os fatos alegados na petição tendem a caracterizar uma violação dos direitos garantidos pela Convenção Interamericana, conforme requerido pelo artigo 47.b da mesma ou se a petição deve ser rejeitada como “manifestamente infundada” ou se “for evidente sua total improcedência”, nos termos do artigo 47.c da Convenção Americana.  Os critérios para avaliar esses pontos diferem dos aplicados para determinar os méritos de uma petição. Nesta fase do processo, a CIDH deve fazer uma avaliação prima facie, não para estabelecer a existência de uma violação de direitos, mas, ao contrário, a fim de examinar se a petição apresenta fatos que poderiam caracterizar uma possível violação de um direito garantido pela Convenção Americana.  Este exame não constitui de forma alguma um pré-julgamento ou uma opinião preliminar sobre os méritos do caso.[6]/

 

31.       A Comissão Interamericana observa que, se comprovadas, as alegações dos peticionários a respeito da responsabilidade direta dos agentes do Estado pertencentes à Polícia Civil e Militar do Pará pela tortura até a morte da suposta vítima poderiam caracterizar violações da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. No entanto, a CIDH tem presente que os artigos 2, 3, 4 e 5 desse instrumento são disposições que meramente definem o conceito de tortura, indicam quem pode ser considerado perpetrador da mesma e estabelecem que não há isenções da proibição de tortura. Ante o exposto, a Comissão Interamericana decide que as alegações dos peticionários a respeito dos atos intencionalmente realizados pelos funcionários públicos atuando nessa capacidade que potencialmente equivalem à tortura e resultaram na morte da suposta vítima tendem a estabelecer uma possível violação dos direitos garantidos pelos artigos 1, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura e, em conformidade com o princípio iura novit curia, pelo artigo 7 do mesmo instrumento.

 

32.       Com base nas mesmas alegações, se comprovadas, bem como nas queixas relacionadas com a detenção arbitrária da suposta vítima, a Comissão Interamericana considera que poderiam caracterizar violações dos artigos 4, 5 e 7 da Convenção Americana, em conjunto com a obrigação de respeitar os direitos nela garantidos, segundo disposto em seu artigo 1.1.

 

33.       A CIDH também é de opinião que, caso as alegações de falta de devida diligência nas investigações criminais, apesar de reiterados esforços da mãe da vítima em busca de justiça, sejam comprovadas; e dada a natureza das supostas violações descritas na referida petição, estas poderiam caracterizar violações dos artigos 5, 8 e 25 da Convenção Americana, em conjunto com o artigo 1.1 do mesmo instrumento, em detrimento de Clotilde Souza Rocha, mãe da suposta vítima.

 

            34.       Em conclusão, a CIDH decide que a petição não é “manifestamente infundada” nem “evidente sua total improcedência” e, por conseguinte, declara que os peticionários atenderam prima facie aos requisitos estabelecidos pelo artigo 47.b da Convenção Americana no tocante a violações potenciais dos artigos 1, 6, 7 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, bem como dos artigos 4, 5, 7, 8 e 25 da Convenção Americana, em conjunto com o artigo 1.1 do mesmo instrumento internacional.

 

            V.         CONCLUSÕES

 

35.       A Comissão Interamericana conclui que é competente para examinar os méritos deste caso e que a petição é admissível nos termos dos artigos 46 e 47 da Convenção Americana. Com base nas considerações acima a respeito dos fatos e do direito e sem prejulgar os méritos do caso,

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

 

DECIDE:

 

1.         Determinar a presente petição admissível no tocante à suposta violação dos direitos protegidos nos artigos 1, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura.

 

2.         Determinar a presente petição admissível, em virtude do princípio iura novit curia, no tocante a violações potenciais dos direitos protegidos no artigo 7 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura.

 

3.         Determinar a presente petição admissível no tocante a violações potenciais dos artigos 4, 5, 7, 8 e 25 da Convenção Americana, em conjunto com o artigo 1.1 da mesma.

 

4.         Notificar ambas as partes a respeito desta decisão.

 

5.         Continuar a análise dos méritos deste caso.

 

6.         Publicar esta decisão e incluí-la em seu Relatório Anual à Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos.

 

Dado e assinado na cidade de Washington, D.C. aos 17 de março de 2010. (Assinado):  Felipe González, Presidente; Dinah Shelton, Segunda Vice-Presidenta; María Silvia Guillén, José de Jesús Orozco Henríquez e Rodrigo Escobar Gil, Comissários.


 


[1].O Comissário Paulo Sérgio Pinheiro, cidadão brasileiro, não participou da discussão ou decisão desta petição, em conformidade com o artigo 17.2 do Regulamento da CIDH.

[2] O Brasil ratificou a Convenção Americana em 25 de setembro de 1992.

[3] O Brasil ratificou a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura em 20 de julho de 1989.

[4].Corte Interamericana de Direitos Humanos, H. R., Caso Velásquez Rodríguez, Exceções Preliminares, Sentença de 26 de junho de 1987, Série C Nº 1, parágrafo 93.

[5].CIDH, Relatório Nº 61/09, Petição 373-03, Admissibilidade, Josenildo João de Freitas Jr. e outos. (Brasil), 22 de julho de 2009, parágrafo 31; CIDH, Relatório Nº 72/08, Petição 1342-04, Admissibilidade, Márcio Lapoente da Silveira (Brasil), 16 de outubro de 2008, parágrafo 75;  Relatório Nº 23/07, Petição 435-2006, Admissibilidade, Eduardo José Landaeta Mejía e outros, Venezuela, 9 de março de 2007, parágrafo 47; Relatório Nº 40/07, Petição 665-05, Admissibilidade, Alan Felipe da Silva, Leonardo Santos da Silva, Rodrigo da Guia Martins Figueiro Tavares e outros., Brasil, 23 de julho de 2007, parágrafo 55.

[6].CIDH, Relatório N° 21/04, Petição 12,190, Admissibilidade, José Luis Tapia González e outros, Chile, 24 de fevereiro de 2004, parágrafo 33; e Relatório Nº 61/09, Petição 373-03, Admissibilidade, Josenildo João de Freitas Jr. e outros, Brasil, 22 de julho de 2009, parágrafo 36.