RELATÓRIO No. 7/10[1]

PETIÇÃO 12.378

ADMISSIBILIDADE

FÁTIMA REGINA NASCIMENTO DE OLIVEIRA E MAURA TATIANE FERREIRA ALVES

BRASIL

15 de março de 2010

 

 

 

I.       RESUMO

 

1.       Em 22 de março de 2001 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante, “a Comissão Interamericana” ou “a CIDH”) recebeu uma petição na qual se alega a responsabilidade internacional da República Federativa do Brasil (“o Estado” ou “Brasil”) pela suposta discriminação contra a mãe adotiva Fátima Regina Nascimento de Oliveira e sua filha adotiva Maura Tatiane Ferreira Alves (“as supostas vítimas”), em razão da denegação de seu direito à licença maternidade.  Alega-se que o Estado é responsável pelas violações do direito às garantias judiciais, da proteção à família, dos direitos da criança e da igualdade perante a lei.  A petição foi apresentada por THEMIS – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero; Justiça Global; Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul; Subcomissão da Criança e do Adolescente da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul; e Instituto Amigos de Luca (em adiante “os peticionários”).

 

2.       Os peticionários alegam que a funcionária pública Fátima Regina Nascimento de Oliveira adotou a sua filha Maura Tatiane Ferreira Alves, nascida em 23 de julho de 1989, nesse mesmo dia, conforme a decisão do Juiz de Menores da Comarca de Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul.  Imediatamente, a senhora Oliveira teria solicitado por via administrativa sua licença maternidade ao Hospital Militar de Santa Maria, um estabelecimento de saúde público; contudo, segundo os peticionários, sua solicitação foi denegada por referida instituição do Estado.  Os peticionários informam que a senhora Oliveira interpôs uma ação cautelar perante a Justiça do Trabalho e que após várias decisões a seu favor emitidas pelos juízes e tribunais trabalhistas a partir do ano de 1990, o Supremo Tribunal Federal haveria estabelecido que ela não teria direito à licença maternidade através de uma decisão emitida em 30 de maio de 2000.  Conseqüentemente, sustentam que o Estado brasileiro violou os artigos 8 (garantias judiciais), 17 (proteção à família), 19 (direitos da criança) e 24 (igualdade perante a lei) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (“a Convenção Americana”); e que igualmente descumpriu sua obrigação geral prevista no artigo 1.1 do mesmo instrumento.

 

3.       O Estado não contestou a denúncia, apesar de ter sido notificado de acordo com as disposições regulamentárias e convencionais.

 

4.       Sem pré-julgar o mérito do assunto e, de acordo com o disposto nos artigos 46 e 47 da Convenção Americana, a Comissão Interamericana decide declarar a petição admissível com respeito à suposta violação aos artigos 8.1, 17, 19 e 24 de mencionado instrumento internacional, todos em concordância com a obrigação geral prevista em seu artigo 1.1.  Adicionalmente, conforme o princípio iura novit curia, a CIDH declara admissível a petição a respeito da suposta violação do artigo 25.1 da Convenção Americana.  A Comissão Interamericana decide, ainda, publicar o presente relatório e incluí-lo em seu Relatório Anual para a Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos.

 

II.        TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO INTERAMERICANA

 

5.       A denúncia foi recebida em 22 de março de 2001.  Em 24 de abril de 2001 a CIDH transmitiu as partes pertinentes da petição ao Estado e fixou um prazo de três meses[2] para que este apresentasse suas observações.  Desde 24 de abril de 2001 até a data de adoção do presente relatório, o Estado não apresentou uma resposta por escrito à petição.

 

6.       Em 15 de outubro de 2002, durante o 116° período ordinário de sessões da Comissão Interamericana, foi realizada uma reunião de trabalho sobre o presente assunto com a participação de ambas as partes.

 

III.      POSIÇÃO DAS PARTES

 

A.        Os peticionários

 

7.       Os peticionários alegam que a funcionária pública Fátima Regina Nascimento de Oliveira adotou sua filha Maura Tatiane Ferreira Alves, nascida em 23 de julho de 1989, nesse mesmo dia, conforme decisão do Juiz de Menores da Comarca de Porto Alegre, estado de Rio Grande do Sul.  Ato contínuo, a senhora Oliveira teria solicitado administrativamente sua licença à gestante ao Hospital Militar de Santa Maria, estabelecimento público de saúde, de conformidade com o artigo 7, XVIII da Constituição brasileira, que estabelece que “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias”.[3]  Contudo, sua solicitação foi negada por referida instituição estatal.  Ainda, segundo os peticionários, foi ameaçada de demissão por justa causa caso não retornasse ao trabalho dentro de trinta dias.

 

8.       Em razão disso, os peticionários informam que a Sra. Oliveira interpôs uma ação cautelar em seu próprio favor e de sua filha perante a Justiça do Trabalho (Ação Cautelar 4056/89), e que em 15 de junho de 1990 obteve uma liminar e uma decisão favorável de primeira instância no processo correspondente (Processo 4405/89).  De acordo com os peticionários, em virtude de que a parte reclamada (Hospital Público Santa Maria) era uma instituição do Estado, o caso foi submetido automaticamente ao duplo grau de jurisdição.  O Tribunal Regional do Trabalho confirmou a decisão anterior em favor das supostas vítimas em 19 de novembro de 1991.  Os peticionários alegam que o Governo do Rio Grande do Sul recorreu dessa decisão através de um Agravo Regimental (AC. 5ª T – 4628/93) perante o Tribunal Superior do Trabalho, que não obstante confirmou a decisão favorável às supostas vítimas em 2 de novembro de 1993.  Segundo os peticionários, o Governo do Rio Grande do Sul interpôs um recurso de Embargos de Declaração (AC. 5ª T – 953/94), que foi rejeitado em 24 de março de 1994.

 

9.       Finalmente, informam os peticionários que o Governo do Rio Grande do Sul interpôs recurso extraordinário (TST – RE – ED – AG – AI – 53.462/92.4), que foi rejeitado pelo Tribunal Superior do Trabalho em 20 de julho de 1994; não obstante, o recurso extraordinário interposto perante o Supremo Tribunal Federal (RE 197.807-04, RS) --última instância do país—resultou em uma sentença contrária às supostas vítimas, emitida em 30 de maio de 2000.  Os peticionários assinalam que o Supremo Tribunal Federal negou o direito às supostas vítimas à licença maternidade, em virtude de que a senhora Oliveira era mãe adotiva, e que a referida sentencia expressou que “não se estende à mãe adotiva o direito à licença, instituído em favor da empregada gestante pelo inciso XVIII do art. 7, da Constituição Federal, ficando sujeito ao legislador ordinário o tratamento da matéria.”.  Segundo os peticionários, tal decisão fez coisa julgada e foi publicada em 24 de setembro de 2000, isto é, que se transformou em uma decisão definitiva sem possibilidade de recurso algum, com o que se esgotaram os recursos da jurisdição interna.

 

10.     Em relação à decisão do Supremo Tribunal Federal, os peticionários alegam, primeiramente, que por haver sido emitida mais de 10 anos depois da adoção de Maura Tatiane Ferreira Alves, efetivamente denegou às supostas vítimas o acesso à justiça e o direito às garantias judiciais dentro de um prazo razoável.  Ainda, os peticionários argumentam que a decisão do Supremo Tribunal Federal violou o direito à igualdade perante a lei.  Alegam a respeito que a distinção feita pelo Tribunal entre mães adotivas e mães naturais é substancialmente discriminatória.  Os peticionários sustentam que tal decisão judicial descumpre o dever de proteção da maternidade, da família e, particularmente, dos direitos da criança, e que, portanto, viola a Convenção Americana.

 

11.     Segundo os peticionários, a expressão “licença à gestante” contida na Constituição brasileira não pode ser entendida de maneira abstrata, mas deve corresponder ao objetivo da norma, que é a proteção do desenvolvimento saudável dos infantes.  Portanto, não deveria ser interpretada restritivamente em relação à maternidade biológica, em violação às disposições da Convenção Americana sobre a proteção da família e das crianças.

 

12.     Portanto, os peticionários sustentam que o Estado brasileiro violou os artigos 8 (garantias judiciais), 17 (proteção da família),[4] 19 (direitos da criança)[5] e 24 (igualdade perante a lei)[6] da Convenção Americana; e que descumpriu igualmente sua obrigação geral prevista no artigo 1.1 do mesmo instrumento.

 

13.     Por último, durante a reunião de trabalho realizada em 15 de outubro de 2002, os peticionários reconheceram que houve avanço na legislação brasileira a respeito da licença maternidade, com a aprovação da Lei No. 10.421 de 15 de abril de 2002, que estendeu às mães adotivas o direito à licença maternidade.  Sem prejuízo do anterior, os peticionários ressaltaram que a reforma legislativa não alcançava retroativamente às supostas vítimas, nem significava uma reparação às mesmas.

 

B.        O Estado

 

14.     O Estado não contestou a denúncia por escrito até a data de adoção do presente relatório, apesar de ter sido notificado devidamente, e ter-lhe sido fixado prazo de três meses, previsto no Regulamento então vigente, para que apresentasse suas observações sobre a petição.

 

15.     Durante a reunião de trabalho realizada em 15 de outubro de 2002, o Estado solicitou que a CIDH arquivasse a presente petição, em razão da legislação interna já haver sido modificada; e devido ao fato de que a nova lei não pode ser aplicada retroativamente para beneficiar as supostas vítimas.

 

IV.       ANÁLISE DE ADMISSIBILIDADE

 

A.        Competência ratione personae, ratione materiae, ratione temporis e ratione loci

 

16.     Os peticionários têm locus standi para apresentar denúncias perante a CIDH, conforme o artigo 44 da Convenção Americana.  A petição indica como supostas vítimas a Fátima Regina Nascimento de Oliveira e Maura Tatiane Ferreira Alves, a respeito de quem o Estado brasileiro se comprometeu a respeitar e garantir os direitos consagrados pelo mencionado instrumento internacional.  No que concerne ao Estado, a República Federativa do Brasil ratificou a Convenção Americana em 25 de setembro de 1992, portanto a Comissão Interamericana tem competência ratione personae para examinar a petição.

 

17.     A CIDH tem competência ratione loci para examinar a petição, pois nela alegam-se violações de direitos humanos protegidos na Convenção Americana que haveriam ocorrido sob a jurisdição do Brasil, Estado parte do referido tratado.

 

18.     Ainda, a Comissão Interamericana tem competência ratione temporis posto que se denunciam violações a direitos protegidos pela Convenção Americana ocorridas em virtude da decisão do Supremo Tribunal Federal de 30 de maio de 2000, data em que a Convenção Americana já se encontrava vigente para o Brasil.  Por último, a CIDH também tem competência ratione materiae, uma vez que os peticionários denunciam supostas violações a direitos protegidos pela Convenção Americana.

 

B.        Outros requisitos para a admissibilidade da petição

 

1.       Esgotamento dos recursos internos

 

19.     Conforme o artigo 46.1 da Convenção Americana, para que una petição seja admitida pela Comissão Interamericana, é necessário que se tenham esgotado os recursos da jurisdição interna de acordo com os princípios de direito internacional geralmente reconhecidos.

 

20.     A CIDH observa que é fato incontroverso que em 30 de maio de 2000 foi denegado, em última instância, o reclamo das supostas vítimas sobre a licença maternidade, através da decisão emitida pelo Supremo Tribunal Federal.  Igualmente, é um fato incontroverso que tal decisão fez coisa julgada e que foi notificada em 24 de setembro de 2000.

 

2.         Prazo de apresentação

 

21.     O artigo 46.1.b da Convenção Americana exige que as petições sejam apresentadas dentro do prazo de seis meses a partir da notificação da decisão definitiva.  De acordo com o mencionado supra, a decisão definitiva foi notificada em 24 de setembro de 2000.  A petição foi recebida pela CIDH em 22 de março de 2001, dentro do prazo de seis meses ao qual se refere o artigo 46.1.b da Convenção Americana.

 

3.         Duplicidade de procedimentos e coisa julgada

 

22.     Não surge dos autos que a matéria da petição encontre-se pendente de outro procedimento internacional, tampouco que reproduza uma petição já examinada por este ou outro órgão internacional.  Portanto, corresponde dar por cumpridos os requisitos estabelecidos nos artigos 46.1.c e 47.d da Convenção Americana.

 

4.         Caracterização dos fatos alegados

 

23.     O artigo 47.b da Convenção Americana estabelece que a CIDH declarará inadmissível toda petição ou comunicação apresentada quando não exponha fatos que caracterizem uma violação dos direitos garantidos por esta Convenção.  O critério de avaliação desses requisitos difere do que a Comissão Interamericana utiliza para se pronunciar sobre o mérito de um caso.  Com efeito, a avaliação se encontra dirigida a determinar, prima facie, se a petição proporciona o fundamento da violação, possível ou potencial, de um direito garantido pela Convenção Americana, e não a estabelecer a existência efetiva de uma violação de direitos.  Em outras palavras, esta determinação constitui uma análise primária que não implica em pré-julgar sobre o mérito do assunto[7].

 

24.     A CIDH observa que os peticionários denunciam fatos de suposta discriminação, demonstrada através da sentença do Supremo Tribunal Federal, que haveria estabelecido uma distinção substancial e injustificada entre mães naturais e mães adotivas.  Alegam, ainda, que foi denegado à mãe adotiva e a sua filha adotiva o direito à licença maternidade, o que vulneraria o direito à igualdade perante a lei, a proteção da maternidade e a proteção da criança.  Os fatos denunciados, se comprovados na etapa de mérito, poderiam caracterizar violações ao artigo 24 da Convenção Americana em prejuízo das supostas vítimas.

 

25.     Ainda, a respeito da suposta violação da proteção à família e os direitos da criança, a Comissão Interamericana considera que, se comprovados, os fatos referentes à supostamente injustificada distinção realizada entre família adotiva e família natural para a concessão da licença à gestante, assim como entre filhos adotivos e filhos nascidos de uma gestação, poderiam caracterizar violações aos direitos consagrados nos artigos 17 e 19 da Convenção Americana em prejuízo das supostas vítimas.

 

26.     Por último, se comprovado que a referida decisão do Supremo Tribunal Federal denegou às supostas vítimas o direito às garantias judiciais e à proteção judicial, isto é, o direito a um recurso efetivo dentro de um prazo razoável, a CIDH considera que isso poderia caracterizar violações ao artigo 8.1 e --em aplicação do princípio iura novit curia—do artigo 25.1, ambos da Convenção Americana.  Todos os anteriores artigos da Convenção Americana devem ser analisados em relação à obrigação de respeitar os direitos, consagrada no artigo 1.1 do mesmo instrumento internacional.

 

          27.     Portanto, a CIDH decide que os peticionários cumpriram prima facie com os elementos requeridos no artigo 47.b. da Convenção Americana.

 

V.        CONCLUSÕES

 

28.     A Comissão Interamericana conclui que tem competência para analisar o mérito deste caso e que a petição é admissível de acordo com os artigos 46 e 47 da Convenção Americana.  Com fundamento nos argumentos de fato e de direito antes expostos, e sem pré-julgar sobre o méritoda questão,

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.       Declarar admissível a presente petição no que se refere a supostas violações dos direitos protegidos pelos artigos 8.1, 17, 19, 24 e 25.1 da Convenção Americana, em relação à obrigação geral consagrada no artigo 1.1 de referido tratado;

 

2.       Notificar a presente decisão às partes;

 

3.       Continuar com a análise do mérito do assunto; e

 

4.       Publicar esta decisão e incluí-la em seu Relatório Anual para a Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos.

 

Dado e assinado na cidade de Washington, D.C., aos 15 dias do mês de março de 2010.  (Assinado): Felipe González, Presidente; Dinah Shelton, Segunda Vice-presidente; María Silvia Guillén, José de Jesús Orozco Henríquez e Rodrigo Escobar Gil, Membros da Comissão.


 


[1] O Comissionado Paulo Sérgio Pinheiro, de nacionalidade brasileira, não participou nas deliberações nem na decisão da presente petição, em conformidade com o disposto no artigo 17.2.a do Regulamento da Comissão.

[2] Conforme o artigo 34 do Regulamento da CIDH vigente para essa época.

[3] Constituição da República Federativa do Brasil, artigo 7, inciso XVIII.

[4] Os peticionários utilizam também, o disposto no artigo 10 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a fim de interpretar a norma de proteção à família da Convenção Americana (artigo 17).

[5] Os peticionários utilizam também o disposto no artigo 24 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, no artigo 10.3 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e nos artigos 3, 5, 18 e 24 da Convenção sobre os Direitos da Criança, a fim de interpretar a norma de proteção à criança da Convenção Americana (artigo 19).

[6] Os peticionários utilizam também o disposto no artigo 2 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, e no artigo 11 da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, a fim de interpretar as normas de não discriminação da Convenção Americana (artículos 1.1 e 24).

[7] CIDH, Relatório No. 21/04, Petição 12.190, Admissibilidade, José Luís Tapia González e outros (Chile), 24 de fevereiro de 2004, parágrafo. 33.