RELATÓRIO Nº 63/09[1]

PETIÇÃO 544-03

INADMISSIBILIDADE

ALBERTO NÉSTOR VIZENTAL

BRASIL

7 de agosto de 2009

 

 

I.          RESUMO

 

1.       Em 23 de julho de 2003, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante “CIDH” ou “Comissão Interamericana”) recebeu uma denúncia apresentada por Alberto Néstor Vizental (“peticionário” ou “suposta vítima”), alegando violação dos direitos protegidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos (“Convenção Americana”) por parte da República Federativa do Brasil (“Brasil” ou “Estado”) no tocante à suposta negação de justiça em prejuízo do peticionário por órgãos do Poder Judiciário do Brasil num caso de execução hipotecária.

 

2.       O peticionário alega violações dos artigos 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial) da Convenção Americana, em relação às obrigações gerais estipuladas no artigo 1.1 desse instrumento.

 

3.       O Estado argumenta que a petição não preenche os requisitos de admissibilidade da Convenção Americana, primeiro porque os fatos alegados ocorreram antes de 25 de setembro de 1992, data em que o Brasil depositou seu instrumento de ratificação da Convenção Americana, e segundo porque o processo de execução hipotecária informado pela suposta vítima ainda está pendente nos órgãos judiciários internos.

 

4.        Após analisar a informação apresentada pelas duas partes, e verificar o cumprimento dos requisitos de admissibilidade estabelecidos nos artigos 46 e 47 da Convenção Americana, a Comissão declara a presente petição inadmissível porque, na informação fornecida não foram identificados elementos que tendam a caracterizar uma violação de direitos nos termos da Convenção Americana.  Portanto, com base no artigo 47.b da Convenção Americana, a CIDH determina que a petição é inadmissível e também decide comunicar o presente relatório às partes, publicá-lo e incluí-lo em seu Relatório Anual.

 

II.         TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO INTERAMERICANA

 

5.         A petição foi recebida pela Comissão Interamericana em 23 de julho de 2003. Em 4 de novembro de 2003, 5 de março e 25 de outubro de 2004, o peticionário submeteu informações adicionais.

 

6.          Em 17 de fevereiro de 2005, a CIDH transmitiu as partes relevantes da petição ao Estado e concedeu ao Brasil um período de dois meses para fornecer informações sobre a questão, conforme estipulado no artigo 30.3 do seu Regulamento.

 

7.          Em 18 de março de 2005, o Estado solicitou que a CIDH enviasse uma tradução em português da petição e seus anexos.  Em 31 de março de 2005, o pedido do Estado foi encaminhado ao peticionário, junto com um prazo de 30 dias para envio da tradução ao português do material apresentado à Comissão Interamericana. Em 5 de maio de 2005, a informação traduzida foi recebida pela CIDH, e em 11 de maio de 2005 a informação em questão foi transmitida ao Estado.

 

8.          Em 13 de julho de 2005, o Estado solicitou à Comissão Interamericana uma prorrogação até 1º de agosto de 2005 para apresentar sua resposta. Em 1º de agosto de 2005, o Estado apresentou sua resposta à queixa, e em 5 de agosto de 2005, a resposta foi transmitida ao peticionário.

 

9.          O peticionário também apresentou informações adicionais em 13 de julho de 2005, 20 de outubro de 2005, 28 de dezembro de 2005, 21 de setembro de 2006, 27 de fevereiro de 2007, 7 de maio de 2007, 5 de dezembro de 2007, 30 de maio de 2008, 29 de julho de 2008, 11 de agosto de 2008, 21 de novembro de 2008 e 4 de maio de 2009. Essas comunicações foram devidamente transmitidas ao Estado.

 

10.         O Estado apresentou informações adicionais em 22 de fevereiro de 2006, 7 de março de 2006, 19 de dezembro de 2006, 29 de dezembro de 2006, 10 de janeiro de 2008, 22 de janeiro de 2008, 7 de abril de 2008, 3 de março de 2009 e 1º de julho de 2009. Essas comunicações foram devidamente transmitidas ao peticionário.

 

III.        POSIÇÕES DAS PARTES

 

A.         O peticionário

 

11.       O peticionário e suposta vítima é um cidadão argentino que alega sistemática negação de justiça pelas autoridades judiciárias brasileiras. O peticionário afirma que, em 1987, realizou operações comerciais que consistiam da exportação de bananas do Brasil para a Argentina, pelas quais recebeu cartas de crédito relativas a um empréstimo feito por uma companhia de propriedade do Sr. Lidney Castro Vallejo, de nacionalidade brasileira (o devedor).  A garantia oferecida pelo devedor para o empréstimo foi uma hipoteca a favor do credor (o peticionário) sobre um imóvel de propriedade dos pais do Sr. Vallejo no município de Santos, Estado de São Paulo. O peticionário alega que iniciou dois processos de execução hipotecária perante a 5ª Vara Cível de Santos em 1987, com os números 1915/87 e 2262/87, já que o devedor não pagou o empréstimo. Esses processos foram acumulados para processamento.

 

12.        O peticionário afirma que, durante o processo de execução hipotecária, faleceram os proprietários do imóvel, ou seja, os pais do Sr. Vallejo, Luciano Castro González e Laura Vallejo de Castro.  Portanto, durante o processo de inventário para liquidar o espólio, os advogados da suposta vítima apareceram para afirmar seus direitos, já que o Sr. Vallejo era o beneficiário da herança.  Além do mais, o peticionário argumenta que durante a execução hipotecária o devedor tentou vários recursos judiciais, todos rejeitados, e o Tribunal de Justiça de São Paulo emitiu uma decisão acerca da “liquidez e certeza do respectivo título executivo extrajudicial”.  Em seguida, teve início a fase judicial da execução hipotecária, e o devedor novamente impetrou várias moções incidentais e recursos judiciais.

 

13.        O peticionário afirma que em 19 de agosto de 1992 apresentou uma petição ao tribunal solicitando a fixação de uma data para leilão do imóvel executado, e indicou que a liquidação da dívida ascendia a sete milhões, sessenta e cinco mil, seiscentos e sessenta e três reais e trinta e sete centavos (R$ 7.065.663,37). Depois disso, ele afirma que os autos desapareceram, o que indica que as autoridades judiciárias do Estado foram diretamente responsáveis in vigilando. O peticionário alega que tramitou várias formalidades para tentar localizar o processo, e mesmo uma investigação criminal foi instituída sem resultado.  Então, o peticionário observa que as autoridades procederam a restaurar o processo, o que levou cerca de oito meses.

 

14.        Além disso, o peticionário afirma que também aparece como terceiro interessado numa ação de execução hipotecária impetrada contra o devedor pelo Banco Itaú perante a 4ª Vara Cível de Santos, sob o número 2728/87.  Esse processo também foi iniciado em 1987.  Segundo o peticionário, os autos dessa ação também desapareceram, mas ninguém foi responsabilizado.

 

15.         Segundo o peticionário, no contexto da ação nº 2728/87, o devedor novamente impetrou várias moções incidentais e recursos judiciais, todos rejeitados, e em duas ocasiões o juiz ordenou uma avaliação monetária do imóvel em questão.  O peticionário observa, em suma, que, quando apresentou  sua petição, o processo judicial já levava 15 anos sem uma decisão final.

 

16.         Portanto, o peticionário e suposta vítima alega que seus direitos à proteção judicial e às garantias judiciais foram violados, pois houve um atraso indevido nos processos de execução hipotecária nº 1915/87 e 2262/87 (perante a 5ª Vara Cível de Santos) e nº 2728/87 (perante a 4ª Vara Cível de Santos).  Ele argumenta que, além da estratégia de atraso adotada pelo devedor, as falhas do sistema judicial brasileiro também constituem um fator decisivo dessas violações.  Nesse sentido, o peticionário menciona, entre outras, a ocorrência de greves, substituição de juízes, decisões ambíguas e arbitrárias que resultaram em novos recursos e medidas, duplicação de medidas investigativas, períodos prolongados sem atividade judicial e desaparecimento dos autos, que contribuíram para o atraso na execução hipotecária.

 

17.         Segundo o peticionário, o Estado reconheceu suas falhas, o que supostamente pode ser inferido da comunicação enviada em julho de 2005 pela Advocacia-Geral da União aos órgãos judiciais, na qual essa autoridade solicita que a ação judicial seja processada com a maior prioridade. Além disso, o peticionário menciona a sentença proferida em 9 de agosto de 2005, no contexto do processo nº 1915/87, a qual afirma que “devido a todos os incidentes extremamente graves relativos a esse processo, e visando a compensar o tempo transcorrido, todos os atos judiciais devem ser realizados com a maior urgência”. O peticionário também afirma que o Estado reconheceu as falhas do sistema judicial, ao reconhecer que elas eram o motivo para a adoção das Leis Nº 11.232/2005 e 11.382/2006, que reformaram o Código de Processo Civil.

 

18.         Em considerações subseqüentes acerca da competência ratione temporis da CIDH, o peticionário afirma que a Comissão Interamericana tem essa competência porque os eventos são questões a serem julgadas como parte de um ato contínuo no qual a violação se consuma a cada momento.

 

19.         Quanto à suposta falta de esgotamento dos recursos internos, o peticionário afirma que não se trata mais de recursos adequados para o gozo dos direitos; a situação atual transformou o processo judicial num instrumento de dilação e destituição, o que viola o artigo 1º da Convenção Americana.  Portanto, aplica-se a exceção estipulada no artigo 46.2.c da Convenção, porque, segundo a comunicação enviada pelo peticionário em 11 de agosto de 2008, já se passaram 21 anos desde que a execução hipotecária teve início, e não há uma sentença final.

 

20.         O peticionário enfatiza que seu comportamento como parte na execução hipotecária foi impecável, enquanto o comportamento das autoridades foi negligente na melhor das hipóteses. Ele também alega que as ações do advogado do autor da ação foram extremamente competentes, e que a importância do litígio para as finanças do autor da ação é substancial.

 

21.         Segundo o peticionário, ele sofre essa negação de justiça há mais de 21 anos, o que o deixou sem proteção judicial para seus direitos, e o processo se converteu num instrumento constantemente dirigido contra ele. Portanto, solicita que a petição seja declarada admissível.

 

B.         O Estado

 

22.        O Estado argumenta que a petição não preenche os requisitos de admissibilidade da Convenção Americana. Primeiro, o Estado explica que os atos judiciais que teriam prejudicado a suposta vítima ocorreram em 1987, antes da ratificação da Convenção Americana pelo Brasil, que ocorreu em 25 de setembro de 1992.  Portanto, a CIDH não tem competência rationae temporis, e, se declarasse a petição admissível, estaria violando o artigo 74 da Convenção.

 

23.        Segundo, o Estado afirma que os recursos internos não foram esgotados nessa questão.  Segundo o Estado, a petição não pode ser declarada admissível porque os tribunais brasileiros ainda estão processando a execução hipotecária instituída pelo peticionário.  Já que os recursos internos não foram esgotados, não é apropriado que o Estado brasileiro se submeta a mecanismos de controle internacional, pois estes só devem ser acessados de maneira subsidiária, se o autor da ação não encontra solução mediante recursos internos.

 

24.        Terceiro, o Estado também argumenta que a petição pode constituir um caso de uso da Comissão Interamericana como quarta instância.

 

25.        Especificamente com respeito aos recursos internos relevantes à presente petição, o Estado menciona que em julho de 1987 o peticionário iniciou duas ações judiciais para executar um título extrajudicial perante a 5ª Vara Cível de Santos, com os números 1915/87 e 2262/87, que foram juntadas num só processo.  Em 1987, o devedor impetrou embargos do devedor[2] questionando a execução hipotecária.  Em novembro de 1991, a ação judicial foi suspensa devido à morte de Laura Castro Vallejo, uma das proprietárias do imóvel hipotecado, e a lista de devedores foi modificada para incluir “o espólio de Laura Vallejo”.  Em setembro de 1992, Luciano de Castro González, o outro proprietário do imóvel, também faleceu, de modo que seu “espólio” também foi incluído como um dos devedores nesse processo de execução judicial.

 

26.        Segundo o Estado, em fevereiro de 1993, por meio de uma sentença conjunta, os embargos do devedor relativos às ações 1915/87 e 2262/87 foram rejeitados em primeira instância, afirmando-se a “liquidez e certeza do respectivo título extrajudicial”.  Em setembro de 1995, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo manteve essa sentença em segunda instância. O devedor então impetrou um recurso especial em 24 de outubro de 1995, que foi declarado inadmissível em 17 de abril de 1997.  Em 16 de maio de 1997 o devedor interpôs um agravo de instrumento[3] perante o Superior Tribunal de Justiça.  Sete meses depois, esse recurso foi rejeitado e os autos voltaram à 5ª Vara Cível para proceder com a execução, que havia sido suspensa durante o exame deste último recurso pelo Tribunal Superior de Justiça.

 

27.         O Estado informa que, em abril de 1998, o peticionário solicitou que a execução prosseguisse e avaliou o imóvel hipotecado em três milhões, oitocentos e noventa e cinco mil, oitocentos e sessenta e quatro reais e dezessete centavos (R$ 3.895.864,17). Depois disso, a 5ª Vara Cível determinou a realização de uma avaliação judicial por um perito designado pelo tribunal para determinar o valor do imóvel em questão.  Essa avaliação foi concluída em 25 de outubro de 2000 e depois reformada em 13 de fevereiro de 2001.  Embora ambas as partes tenham contestado o valor, o juiz o confirmou em 13 de julho de 2001.  O devedor impetrou um agravo de instrumento contra a decisão para rejeitar a impugnação.  O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu em favor desse recurso em 25 de setembro de 2001, e ordenou que o tribunal inferior emitisse nova sentença sobre o valor do imóvel, com base nas respostas do perito a novas perguntas.  Essa sentença foi proferida em 18 de julho de 2002, e a 5ª Vara Cível também ordenou a fixação de uma data para o leilão público do imóvel.  Em 3 de outubro de 2002, foi publicada uma decisão acerca desse processo.

 

28.         Contudo, o Estado sustenta que em 16 de outubro de 2002, os autos da execução desapareceram após terem sido retirados da 5ª Vara Cível pelo advogado do devedor.  O Estado enfatiza que, embora os tribunais brasileiros tenham emitido uma ordem de busca e apreensão dos documentos, o advogado que requereu a retirada dos autos nunca foi localizado. O Estado também afirma que foi instaurada uma ação criminal para determinar a responsabilidade pelo desaparecimento dos autos, sem resultado; após este incidente, teve início a restauração dos autos, concluída em setembro de 2003.

 

29.        Após a restauração dos autos, o Estado observa que as partes debateram sobre o valor da dívida e sua atualização, sendo realizada uma série de estimativas.  Em julho de 2005, a 5ª Vara Cível intimou o peticionário a apresentar um modelo de notificação de leilão público para efetuar a venda do imóvel.

 

30.        O Estado informa que o peticionário (e credor), Alberto Néstor Vizental, adquiriu o imóvel hipotecado no leilão realizado em 19 de outubro de 2005. O devedor então alegou a nulidade do leilão por meio de embargos à arrematação”,[4] que foram rejeitados em 11 de abril de 2006 porque o devedor não depositou as custas judiciais correspondentes. Essa decisão foi contestada por dois recursos: embargos de declaração[5] e apelação.  Os dois recursos foram rejeitados. A rejeição da apelação foi questionada por meio de um agravo de instrumento, decidido em favor do devedor.  Depois, a apelação foi submetida à análise do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, e suspendeu-se a execução judicial da dívida. O peticionário contestou o efeito suspensivo decorrente da apelação, e teve ganho de causa.  Por sua vez, o devedor decidiu impetrar outro agravo de instrumento perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo contestando a decisão para retirar da apelação seu efeito suspensivo.  Portanto, segundo comunicação enviada pelo Estado em 22 de janeiro de 2008, esses processos judiciais ainda estão pendentes.

 

31.         Por outro lado, no tocante à ação judicial 2728/1987, ingressada em 10 de julho de 1987 perante a 4ª Vara Cível de Santos pelo Banco Itaú contra o espólio de Luciano Castro Gonzales e Laura Castro Vallejo, na qual o Sr. Alberto Néstor Vizental interveio em 25 de julho de 2001 como terceiro com interesse privilegiado no imóvel hipotecado, o Estado argumenta que também está pendente e procedendo normalmente. O Estado observa que os autos desapareceram em outubro de 2003, e tiveram que ser restaurados; a restauração foi concluída em maio de 2004.  Segundo comunicação enviada pelo Estado em 22 de janeiro de 2008, esses processos judiciais também estavam pendentes. O Estado menciona que desde 2005 um recurso conexo está sendo examinado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

 

32.         Finalmente, em sua comunicação de 7 de abril de 2008, o Estado indica que, em resposta a um pedido específico da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu o processo 2008.1000000.4436.  Esse processo foi iniciado para determinar as possíveis responsabilidades pelo atraso nas ações judiciais relativas a essa questão, e o Estado considera que isso reforça seu argumento de que os recursos internos não foram esgotados.

 

33.         Em conclusão, o Estado afirma que a expropriação judicial de bens geralmente é um processo tortuoso em todos os países, no qual os devedores, em geral insolventes, usam todos os meios disponíveis para impedir a execução do imóvel.  No presente caso, segundo o Estado, estão envolvidas questões complexas, incluindo títulos extrajudiciais, execução hipotecária, multiplicidade de apelações e recursos, desaparecimento dos autos, etc. Tudo isso revela que o atraso processual observado é justificado pela necessidade de assegurar garantias de devido processo para ambas as partes envolvidas.  Portanto, segundo o Estado, não é apropriado falar de atraso indevido.  Além disso, o Estado sustenta que a responsabilidade pelo suposto atraso excessivo na administração da justiça cabe exclusivamente ao devedor, que usou várias manobras processuais para adiar a transferência do título de propriedade que ele ofereceu como garantia de um empréstimo.

 

34.        Em virtude dessas considerações, o Estado solicita que a petição seja declarada inadmissível segundo o artigo 47 da Convenção Americana.

 

IV.        ANÁLISE DE ADMISSIBILIDADE

 

A.         Competência ratione personae, ratione temporis, ratione materiae e ratione loci

 

35.         A Comissão Interamericana tem competência ratione personae para analisar a petição porque indica que a suposta vítima é uma pessoa cujos direitos o Estado deveria respeitar e garantir nos termos da Convenção.

 

36.         Com respeito aos fatos descritos anteriormente, a Comissão Interamericana tem competência ratione temporis nos termos da Declaração Americana e também no âmbito da Convenção Americana, ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992.  A CIDH enfatiza que, no tocante aos fatos que ocorreram antes de o Brasil ratificar a Convenção Americana, a Declaração Americana é fonte de obrigação internacional para todos os Estados membros da OEA, segundo a jurisprudência da Corte e a doutrina da Comissão Interamericana.[6]

 

37.         Nesse sentido, a CIDH assinala que os eventos que ocorreram depois de 25 de setembro de 1992, data em que o Brasil ratificou a Convenção Americana, ou eventos iniciados anteriormente mas cujos efeitos continuaram após essa data, deveriam ser analisados à luz da Convenção Americana.  A CIDH confirmou “sua prática de ampliar o âmbito de aplicação da Convenção Americana a fatos de caráter contínuo que violam direitos humanos antes de sua ratificação, mas cujos efeitos continuam após sua entrada em vigor."[7]

 

38.         A Comissão Interamericana tem competência ratione materiae, já que as violações alegadas se referem a direitos protegidos pela Declaração Americana e pela Convenção Americana.

 

39.         A CIDH tem competência ratione loci porque os fatos alegados ocorreram no Estado de São Paulo, território da República Federativa do Brasil, um Estado que ratificou a Convenção Americana.

 

B.         Caracterização dos fatos alegados

 

40.         O artigo 47.b da Convenção estabelece que a CIDH declarará inadmissível qualquer petição que “não expuser fatos que caracterizem violação dos direitos garantidos por esta Convenção”.  Tendo isso em vista, a Comissão Interamericana deve examinar se os fatos alegados tendem a caracterizar uma violação dos artigos 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial) da Convenção Americana que possa implicar a responsabilidade internacional do Brasil.

 

41.         Nesse sentido, a CIDH assinala que a negação de justiça alegada na petição supostamente ocorreu no contexto dos processos de execução hipotecária 1.915/87 e 2262/87 iniciados pelo peticionário em 10 de julho de 1987 perante a 5ª Vara Cível de Santos, e processo de execução hipotecária 2728/87, ajuizado pelo Banco Itaú perante a 4ª Vara Cível de Santos, no qual o peticionário interveio como terceira parte, credor com garantia real, em 25 de julho de 2001.

 

42.         A CIDH observa que o peticionário não demonstrou que o atraso na execução hipotecária é atribuível ao Estado. Nesse sentido, a Comissão assinala que o processo judicial de execução hipotecária é uma ação civil que normalmente depende da iniciativa das partes; ou seja, do devedor e do credor. Além disso, refere-se a um litígio civil acerca da garantia oferecida para um empréstimo que consiste de um imóvel pertencente a duas pessoas que faleceram durante o processo em questão. Finalmente, a informação indica que os autos que desapareceram foram supostamente retirados pelo advogado do devedor, e as autoridades judiciais do Estado os restauraram devidamente.

 

43.         Tendo em vista a informação apresentada pelas partes, a Comissão considera que não tem os elementos necessários para estabelecer fatos que tendam a constituir uma violação dos direitos garantidos pela Declaração Americana ou pela Convenção Americana que possa ser atribuída ao Estado. O processo em questão refere-se a um litígio entre partes privadas sobre uma execução hipotecária. O peticionário não apresentou informações concretas para substanciar suas alegações sobre o direito a ser ouvido, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável.

 

44.         Portanto, a CIDH considera que a presente petição é inadmissível, em conformidade com o artigo 47.b da Convenção Americana.

 

V.         CONCLUSÕES

 

45.         Com base nessas considerações de fato e de direito, a Comissão Interamericana conclui que a petição é inadmissível segundo o artigo 47.b da Convenção Americana, porque não afirma fatos que tendam a caracterizar uma violação dos direitos garantidos pela Convenção.

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS DECIDE:

 

1.           Declarar a presente petição inadmissível segundo o artigo 47.b da Convenção.

 

2.           Notificar essa decisão às partes.

 

3.           Publicar essa decisão e incluí-la em seu Relatório Anual à Assembléia Geral da OEA.

 

Preparado e assinado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos na sua sede em Washington D.C. no dia 7 de agosto de 2009. (assinaturas):  Luz Patricia Mejía Guerrero, Presidente; Víctor E. Abramovich, Primeiro Vice-Presidente; Felipe González, Segundo Vice-Presidente; e Paolo G. Carozza, Comissários.


[1] De acordo com o artigo 17.2.a do Regulamento da CIDH, o membro da Comissão Paulo Sérgio Pinheiro, de nacionalidade brasileira, não participou da deliberação e decisão do presente Relatório.

[2] Segundo o artigo  736 do Código de Processo Civil: “O executado, independentemente de penhora, depósito ou caução, poderá opor-se à execução por meio de embargos.

[3] Segundo o artigo  544 do Código de Processo Civil : “Não admitido o recurso extraordinário ou o recurso especial, caberá agravo de instrumento, no prazo de 10 (dez) dias, para o Supremo Tribunal Federal ou para o Superior Tribunal de Justiça, conforme o caso.

[4] Segundo o artigo 746 do Código de Processo Civil: “É lícito ao executado, no prazo de 5 (cinco) dias, contados da adjudicação, alienação ou arrematação, oferecer embargos fundados em nulidade da execução, ou em causa extintiva da obrigação, desde que superveniente à penhora.

[5] Segundo o artigo  535 do Código de Processo Civil: “Cabem embargos de declaração quando: I - houver, na sentença ou no acórdão, obscuridade ou contradição; II - for omitido ponto sobre o qual devia pronunciar-se o juiz ou tribunal.

[6] Ver Corte IDH, Interpretação da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem no contexto no artigo 64 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Opinião Consultiva OC-10/89 de 14 de julho de 1989. Série A Nº 10, par. 35-45; CIDH, James Terry Roach e Jay Pinkerton v. Estados Unidos, Resolução 3/87, Caso 9647, 22 de setembro de 1987, CIDH, Relatório Anual 1986-87, par. 46-49, Rafael Ferrer-Mazorra e outros v. Estados Unidos, Relatório Nº 51/01, Caso 9903, 4 de abril de 2001. Ver também Estatuto da CIDH, Artigo 20.

[7] CIDH, Relatório N° 119/01 Caso 11.500, (Uruguai), 16 de outubro de 2001, par. 36. Ver também CIDH, Relatório Nº 95/98 (Chile), 9 de dezembro de 1998, par. 27.