RELATÓRIO Nº 12/09

PETIÇÃO 4643-02

ADMISSIBILIDADE

ARMAND LERCO E ALAIN ROULAUD

BRASIL[1]

19 de março de 2009

 

 

I.          RESUMO

 

1.                  Em 18 de dezembro de 2002 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante a “Comissão Interamericana” ou a “CIDH”) recebeu uma denúncia apresentada por Armando Lerco e Alain Roulaud (doravante “os peticionários”) contra a República Federativa do Brasil (doravante o “Estado" ou o “Brasil”), em que se alegam supostas violações dos direitos humanos dessas pessoas (doravante as “supostas vítimas”). As supostas violações consistiriam nas sucessivas invasões e ataques, danos e tentativas de expropriação da fazenda de propriedade das supostas vítimas; ameaças e atos de instigação perpetrados contra Armand Lerco; e a falta de diligência do Estado em prevenir esses atos e responder aos mesmos, bem como de investigar e punir seus responsáveis.

 

2.                  Embora os peticionários não tenham citado normas específicas, a Comissão Interamericana estima que os fatos alegados a respeito das duas supostas vítimas poderiam corresponder a violações dos direitos consagrados nos artigos 5 (integridade pessoal), 8 (devido processo), 21 (direito à propriedade) e 25 (proteção judicial) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante a Convenção Americana"), em relação com a obrigação geral de respeitar os direitos, prevista no artigo 1.1 do mesmo Tratado.

 

3.                  O Estado não contestou a denúncia, embora tenha sido notificado de acordo com as disposições regulamentares e convencionais.

 

4.                  Após examinar a posição de cada uma das partes, a CIDH conclui que tem competência para examinar a petição e que o caso é admissível de acordo com os artigos 46 e 47 da Convenção Americana. Por conseguinte, a Comissão Interamericana decide informar às partes sobre a sua decisão de divulgar este relatório sobre admissibilidade e incluí-lo em seu Relatório Anual à Assembléia Geral da OEA.

 

II.         TRÂMITE PERANTE A CIDH

 

5.                  Em 18 de dezembro de 2002 a Comissão Interamericana recebeu uma denúncia apresentada por Armand Lerco e Alain Roulaud sobre supostas violações de seus direitos humanos. A CIDH transmitiu ao Estado as partes pertinentes da denúncia em 20 de maio de 2003 e lhe solicitou que apresentasse suas observações no prazo de dois meses. Em 21 de abril de 2004 a Comissão Interamericana recebeu informação adicional dos peticionários, comunicação que foi encaminhada ao Estado.

 

6.                  De 20 de maio de 2003 até a data de adoção deste relatório o Estado não contestou a petição. Em 30 de julho de 2008 o Estado solicitou à CIDH uma prorrogação de 30 dias para apresentar sua resposta à petição em virtude de que teriam “ocorrido problemas na tramitação dos documentos relacionados aos fatos descritos na petição, o que impossibilitou a finalização da resposta do Governo no prazo inicialmente concedido”.

 

7.                  Mediante comunicação de 11 de agosto de 2008 a CIDH informou ao Estado que não era possível conceder a prorrogação solicitada, em virtude do disposto no artigo 30.3 do Regulamento da CIDH.

 

III.        POSIÇÕES DAS PARTES

 

A.         Posição dos peticionários

 

8.                  Os peticionários alegam que em maio de 1992 as supostas vítimas, Armand Lerco, de nacionalidade franco-brasileira e Alain Roulaud, francês, adquiriram em sociedade uma propriedade rural no município de São José dos Quatro Marcos, no estado de Mato Grosso, denominada Fazenda Nazaré. Afirmam que a propriedade de 1.224.65 hectares foi recebida por eles em estado bruto e que de 1992 a 2000 teriam investido aproximadamente US$ 500.000 (quinhentos mil dólares americanos) para a implantação e manutenção de atividades agropecuárias. Alguns anos após a compra pelas supostas vítimas, a Fazenda Nazaré teria sido considerada pela imprensa como uma “fazenda-modelo” na região oeste do estado de Mato Grosso. Segundo os peticionários, a fazenda empregava de 20 a 30 trabalhadores rurais.

 

9.                  Em 1996 Armand Lerco passou a residir definitivamente em Mato Grosso, enquanto Alain Roulaud continuou vivendo na França.

 

10.              Aduzem os peticionários que a partir de 9 de maio de 1996 ocorreu mais de uma dezena de ataques e/ou invasões à Fazenda Nazaré por parte de um grupo armado de grileiros[2], comandados supostamente por autoridades estatais locais, como o Prefeito da cidade de Jauru, funcionários públicos da Empresa Mato-Grossense de Pesquisa, Assistência e Extensão Rural (doravante a “EMPAER”)[3] e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)[4], entre outros. Os peticionários indicam que esses ataques e as invasões foram devidamente denunciados à Polícia e a outras altas autoridades competentes, mas não foram tomadas as medidas necessárias para prevenir novos ataques nem investigados diligentemente os fatos denunciados que poderiam configurar delitos.

 

11.              A primeira invasão teria ocorrido em 9 de maio de 1996, quando um grupo de trinta homens armados e encapuzados dispararam contra as casas dos trabalhadores e, em seguida, tomaram seis reféns. Os criminosos teriam dito que traziam cordas para “enforcar o francês [Armand Lerco] e acabar com ele”[5]. Além disso, supostamente ameaçaram os trabalhadores de matá-los, apoderaram-se dos bens da fazenda e os destruíram. Após essa invasão os criminosos teriam ocupado ilegalmente a propriedade dos peticionários durante aproximadamente um mês.

 

12.              Em conformidade com os peticionários, os fatos descritos foram imediatamente denunciados ao INCRA e em 14 de maio de 1996 também foi apresentada uma denúncia à Polícia Civil do município de São José dos Quatro Marcos pela invasão violenta da fazenda, maus-tratos sofridos pelos trabalhadores, roubo e destruição de seus bens. Em conseqüência, instaurou-se o Inquérito Policial Nº 522/96. Além disso, os peticionários proprietários da Fazenda Nazaré teriam interposto uma Ação Judicial de Reintegração de Posse perante o Tribunal de São José dos Quatro Marcos.

 

13.              Além disso, os peticionários afirmam que solicitaram a intervenção da Polícia Civil diversas vezes, em 27 de maio e em 30 de maio de 1996 para que constatassem a invasão de sua propriedade (esbulho possessório)[6] e que os invasores de sua propriedade fossem detidos e retirados da mesma, bem como que fosse feita uma perícia sobre os danos causados à sua propriedade. Além disso, solicitou-se ao Chefe de Polícia que adotasse medidas de proteção para combater a situação de violência e insegurança. A Polícia não teria levado a cabo essas diligências, supostamente por “falta de recursos materiais e humanos”[7]. Em conseqüência, os peticionários também teriam solicitado a intervenção da Polícia Militar da cidade vizinha de Mirassol D’Oeste, sem êxito.

 

14.              Em 30 de maio de 1996 o Juiz de São José dos Quatro Marcos declarou extinta a ação possessória tentada, com fundamento na suposta impossibilidade jurídica da petição dos autores. Essa decisão foi recorrida pelos peticionários.

 

15.              Segundo indicam os peticionários, a partir desse momento Armand Lerco começou a receber ameaças telefônicas, nas quais se recomendava que não fosse obstinado e deixasse o país, do contrário seria privado de sua vida. Informam os peticionários que nos anos seguintes a suposta vítima recebeu mais de cinqüenta telefonemas de ameaças contra a sua pessoa e a de seu filho, então com dois anos de idade.

 

16.              Em 13 de junho de 1996 a Polícia teria finalmente comparecido à Fazenda Nazaré e nessa oportunidade detiveram sete dos invasores, todos eles armados. Segundo os peticionários, entre os detidos estavam Aldo Pérez, Diretor da EMPAER, e Carlos Domingos da Costa. Outros participantes da ação criminosa conseguiram fugir. Em uma das casas da fazenda foi encontrada uma bolsa com documentos de identidade de José Maria Gomes (de apelido Massa Bruta). O mesmo dia, Aldo Pérez declarou à Polícia Civil e confessou que tinha organizado a invasão à fazenda e que negociava a expropriação da mesma com o INCRA. Por sua vez, Carlos Domingos da Costa declarou que o revólver que portava no dia em que foi detido na Fazenda Nazaré pertencia a um soldado de sobrenome Dias, membro da Polícia Militar.

 

17.              Asseveram os peticionários que em 3 de julho de 1996 foi interposta uma nova ação judicial para reintegrar a posse da fazenda perante o Juiz de São José dos Quatro Marcos (Ação Nº 1.398/96). Esse juiz concedeu uma liminar de reintegração de posse, a qual foi executada pela Polícia em 11 de julho de 1996. Os peticionários alegam que, ao retornarem à fazenda em julho, observaram que os grileiros tinham destruído construções e roubado equipamentos da fazenda, além de prejudicar, roubar e abandonar as plantações.

 

18.              Em conformidade com os peticionários, em 13 de julho de 1996 ocorreu a segunda invasão da fazenda e, a partir desse momento, esta permaneceu ocupada pelos invasores por mais de dois meses, apesar da ação judicial pendente e das denúncias apresentadas à Polícia sobre os fatos.

 

19.              Segundo as informações, em 16 de setembro de 1996, as supostas vítimas recuperaram a posse da Fazenda Nazaré. Nesta oportunidade, a Polícia Militar teria detido em flagrante três invasores, entre eles Massa Bruta. Os peticionários indicam que posteriormente, durante 12 dias, policiais militares permaneceram na fazenda, mediante o pagamento de uma quantia diária por parte de Armand Lerco.

 

20.              Os peticionários informam que na madrugada de 26 de outubro de 1996 ocorreu a terceira invasão da fazenda por 11 homens armados. Alegam que os invasores tomaram dois trabalhadores como reféns, apoderaram-se dos bens encontrados e expulsaram as pessoas que ali viviam, ordenando-lhes que informassem Armand Lerco que iam matá-lo. O relato dos peticionários indica que, em 29 de outubro de 1996, os peticionários denunciaram à Polícia esse ataque e esta interveio em 31 de outubro de 1996, prendendo em flagrante três invasores, entre os quais estava Massa Bruta.. Segundo as alegações, os três detidos declararam ter retornado à propriedade rural instigados pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais de Jauru.

 

21.              Segundo as informações, em 8 de novembro de 1996 ocorreu um novo ataque à fazenda. A partir dessa data, os peticionários indicam que já não houve novas invasões nem ocupações da fazenda pelo grupo criminoso de grileiros, mas somente ataques à propriedade com a finalidade de causar danos materiais e aterrorizar os trabalhadores.

 

22.              Os peticionários alegam que novos ataques violentos contra sua propriedade rural ocorreram nas seguintes datas: 18 de novembro de 1996, 1º de dezembro de 1996, 26 de dezembro de 1996, 4 de janeiro de 1997, 27 de janeiro de 1998 e 12 de setembro de 1998. Esses ataques teriam sido realizados de maneira violenta e com tiros de armas de fogo contra os trabalhadores da fazenda. Em particular, indicam que houve uma tentativa de homicídio das famílias de Gesso G. de Matos e Romildo de Morais, dois trabalhadores da fazenda, atos de violência física contra diversos trabalhadores rurais da Fazenda Nazaré e roubo de bens. No tocante a esses ataques, os peticionários alegam ter apresentado denúncias à Polícia de São José dos Quatro Marcos, ao Secretário de Segurança Pública do estado de Mato Grosso e ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) sobre os danos ambientais causados pelos ataques, mas essas denúncias não tiveram efeito algum. Os peticionários indicam que em 18 de janeiro de 1997 foi realizada uma reunião entre o Cônsul Geral da França no Brasil, o Governador do estado de Mato Grosso e o Secretário de Segurança Pública sobre a situação de insegurança das supostas vítimas e sua propriedade. Segundo o alegado pelos peticionários, nessa reunião o Secretário de Segurança Pública informou que não poderia oferecer proteção às supostas vítimas e sugeriu a Armand Lerco que contratasse uma empresa privada de segurança.

 

23.              Além disso, os peticionários indicam que solicitaram diversas vezes a prisão preventiva de diversos invasores já identificados por trabalhadores rurais, mas que o Poder Judicial não lhes atendeu de maneira favorável.

 

24.              Em 28 de novembro de 1998, segundo o alegado pelos peticionários, trinta homens encapuzados e armados voltaram a atacar e, em seguida, ocupar a Fazenda Nazaré. Durante esse ataque, os invasores teriam incendiado cinco das oito casas da fazenda.

 

25.              Em conformidade com os peticionários, nessa data, Armand Lerco estava em Cuiabá, capital de Mato Grosso, fazendo gestões junto à Secretaria de Segurança Pública para que tomasse as medidas pertinentes. Além disso, esse ataque teria sido denunciado formalmente à Polícia de São José dos Quatro Marcos em 7 de dezembro de 1998 e novamente em 15 de dezembro de 1998, sem que as autoridades do Estado tomassem medida alguma. Os peticionários relatam que foi iniciado o Inquérito Policial Nº 033/99) para investigação dos fatos.

 

26.              Posteriormente, o advogado de Armand Lerco solicitou ao Tribunal de São José dos Quatro Marcos que requeresse a intervenção da Polícia Federal, uma vez que as polícias (civil e militar) estaduais não demonstravam interesse em resolver o problema das supostas vítimas. Segundo o alegado, essa solicitação foi concedida pelo juiz competente, mediante decisão que reconhecia e acusava a omissão da Polícia Militar do estado de Mato Grosso, ordenava a reintegração da posse do imóvel e ofício à Polícia Federal para fazer cumprir esta ordem.

 

27.              Em 12 de fevereiro de 1999, segundo os peticionários, foi cumprida a ordem de reintegração com a participação exclusiva da Polícia Federal. Os invasores teriam deixado a fazenda antes de chegarem os policiais federais.

 

28.              Os peticionários informam que em 18 de março de 1999, homens armados assaltaram novamente a fazenda, ameaçando funcionários e roubando cabeças de gado. A respeito dessa última ocorrência, que seria o décimo quarto incidente, Armand Lerco registrou uma denúncia em 22 de março de 1999 junto à Delegacia de Polícia de São José dos Quatro Marcos[8].

 

29.              Em conformidade com o alegado, em 30 de março de 1999 ocorreu outro ataque à fazenda. Oito homens armados e encapuzados teriam ordenado aos funcionários que retirassem todo o gado da propriedade no prazo de cinco dias, do contrário os matariam. Desse modo, os empregados apressaram-se em recolher o gado que restava e foram expulsos da fazenda em 5 de abril de 1999.

 

30.              Os peticionários alegam que, em 4 de agosto de 1999, o Senhor Bangoura Mohamed, empregado da Fazenda Nazaré, prestou depoimento junto ao Ministério Público de Araputanga. Em sua declaração indicou que, a partir de 16 de junho de 1999, ocorreram diversas tentativas de roubo de 50 cabeças de gado e que tinha recorrido a todas as instâncias e instituições policiais – militares e civis – sem conseguir que fossem tomadas medidas a respeito dos fatos.

 

31.              Os peticionários concluem afirmando que depois destas últimas tentativas cessaram os ataques. No entanto, destacam que durante as invasões de 28 de novembro de 1998 e início de 1999, a Fazenda Nazaré foi completamente destruída. Todas as construções foram incendiadas; os equipamentos foram destruídos ou roubados; as plantações foram depredadas ou abandonadas; as árvores arrancadas e vendidas ilegalmente; e 250 cabeças de gado foram roubadas ou mortas. Em princípios de 2000, por conseguinte, a fazenda foi alugada por um preço ínfimo e Armando Lerco se mudou com sua família para Curitiba, estado do Paraná.

 

32.              Por último, os peticionários indicam que, em 28 de novembro de 2003, as supostas vítimas apresentaram uma ação ordinária contra o estado de Mato Grosso perante o Tribunal da Fazenda Pública[9] de Cuiabá, mediante a qual solicitaram uma indenização pelos danos materiais e imateriais sofridos. Até esta data, esse procedimento não teve decisão definitiva.

 

B.         Posição do Estado

 

33.              O Estado não contestou a denúncia, embora tenha sido devidamente notificado em 20 de maio de 2003, em comunicação que fixou o prazo de dois meses para que apresentasse suas observações sobre a petição.

 

IV.        ANÁLISE DE ADMISSIBILIDADE

 

A.       Competência da Comissão Interamericana ratione personae, ratione temporis, ratione materiae e ratione loci

 

34.              Quanto ao disposto pelo artigo 44 da Convenção Americana, a CIDH considera que a petição indica como vítimas duas pessoas individuais, Armand Lerco e Alain Roulaud, cujos direitos consagrados nesse tratado o Estado brasileiro se comprometeu a respeitar e garantir. Por outro lado, o Brasil é um Estado-Parte da Convenção Americana desde 25 de setembro de 1992, data em que depositou seu instrumento de ratificação. Portanto, a CIDH tem competência ratione personae para examinar a denúncia.

 

35.              Além disso, a Comissão Interamericana tem competência ratione loci para conhecer a petição, porquanto nela se alegam violações de direitos protegidos na Convenção Americana, as quais teriam ocorrido no território do Brasil, Estado Parte nesse tratado. A CIDH tem competência ratione temporis, porquanto a obrigação de respeitar e garantir os direitos protegidos na Convenção Americana já estava em vigor para o Estado na data em que teriam ocorrido os fatos alegados na petição. Finalmente, a Comissão Interamericana tem competência ratione materiae, porque na petição se denunciam possíveis violações de direitos humanos protegidos pela Convenção Americana.

 

B.         Outros requisitos de admissibilidade da petição

 

1.         Esgotamento de recursos internos

 

36.              O artigo 46.1 da Convenção Americana estabelece como requisito de admissibilidade de uma reclamação o esgotamento prévio dos recursos disponíveis na jurisdição interna do Estado.

 

37.              O parágrafo 2 desse artigo estabelece que as disposições em relação ao esgotamento de recursos da jurisdição interna não se aplicarão quando:

 

           a)    não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados;

 

           b)    não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; e

 

           c)    houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.

 

38.              Em conformidade com a comunicação inicial dos peticionários, recebida em 18 de dezembro de 2002, apesar da insistente busca de justiça por parte das supostas vítimas, as autoridades do Estado supostamente não fizeram uma investigação séria e diligente dos fatos, nem a conseqüente punição dos responsáveis. Segundo o informado, os fatos objeto desta petição foram denunciados à polícia e às autoridades administrativas e judiciais, supostamente sem que hajam sido feitas as diligências necessárias para resolver a questão.

 

39.              O Estado, por sua parte, não contestou a petição, embora tenha sido notificado regularmente, não apresentando a exceção de falta de esgotamento de recursos internos.

 

40.              Neste sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante a “Corte Interamericana” ou a “Corte”) tem sustentado que “o Estado demandado pode renunciar de forma expressa ou tácita à invocação da falta de esgotamento dos recursos internos”[10]. Além disso, a CIDH reitera que o requisito de prévio esgotamento dos recursos internos foi estabelecido para garantir ao Estado a possibilidade de resolver controvérsias dentro de seu próprio âmbito jurídico. O requisito pressupõe, não obstante, que exista no nível interno o devido processo judicial para investigar essas violações e que essa investigação seja eficaz, caso contrário a Comissão Interamericana, em conformidade com o artigo 46.2.a da Convenção Americana, pode conhecer do caso antes de esgotados os recursos de jurisdição interna[11].

 

41.              As exceções previstas no artigo 46.2 da Convenção Americana têm por objetivo garantir a ação internacional quando os recursos da jurisdição interna e o próprio sistema jurídico interno não são eficazes para assegurar o respeito aos direitos humanos das vítimas. Assim, o requisito formal relativo à inexistência de recursos internos que garantam o princípio do devido processo (artigo 46.2.a da Convenção Americana) não se refere somente à ausência formal de recursos na jurisdição interna, mas também no caso de serem ineficazes[12].

 

42.              A CIDH observa que os fatos matéria da reclamação foram objeto de três categorias de recursos judiciais domésticos. Em primeiro lugar, a maneira violenta com que teriam sido feitos esses ataques, o dano à propriedade, os roubos de bens e as ameaças aos trabalhadores rurais e ao proprietário Armand Lerco teriam sido objeto de diversas denúncias deste perante as autoridades policiais desde 1996 (Inquérito Policial 522/96, supra pár. 12) até 1999 (IPL 033/99, supra pár. 25). No expediente do assunto na CIDH não consta que esses procedimentos tenham sido finalizados ou produzido resultado, por exemplo, com a abertura de um processo penal a respeito dos fatos que pudessem constituir delitos.

 

43.              Por outro lado, a ocupação da Fazenda Nazaré pelos grileiros supostamente resultou na interposição de, no mínimo, duas ações de reintegração da posse: uma após a primeira ocupação em maio de 1996 (supra par. 12), que teria sido declarada extinta sem decisão sobre o mérito (supra par. 14); e outra em julho de 1996 (Ação 1.398/96, supra par. 17). Não obstante a interposição dessas ações pelas supostas vítimas, supostamente haveria ocorrido mais de uma dezena de ataques e/ou invasões da referida fazenda, o que leva a Comissão Interamericana a concluir – para fins da admissibilidade da petição – que tais ações judiciais tampouco serviram para resolver a situação denunciada.

 

44.              Por último, em 28 de novembro de 2003, as supostas vítimas apresentaram uma ação ordinária contra o estado do Mato Grosso, mediante a qual solicitaram uma indenização pelos danos materiais e imateriais causados durante os ataques e invasões denunciados de 1996 a 2000 (supra par. 32). A informação disponível no expediente perante a CIDH não indica que essa ação judicial tenha finalizado ou produzido resultados.

 

45.              Dadas as características deste caso, a CIDH decide aplicar a exceção do artigo 46.2.a da Convenção Americana a respeito da ineficácia de todos os recursos internos tentados pelas supostas vítimas. Esses recursos referem-se às diversas categorias de fatos, tanto os constituintes de delitos (investigações policiais) e a proteção de sua propriedade (ações de reintegração de posse), como a indenização pelos danos sofridos (ação de indenização).

 

46.              A Comissão Interamericana observa, além disso, que a invocação das exceções à regra de esgotamento dos recursos internos previstas no artigo 46.2 da Convenção Americana está estreitamente ligada à determinação de possíveis violações de certos direitos ali consagrados, tais como as garantias de acesso à justiça. No entanto, o artigo 46.2, por sua natureza e objeto, é uma norma com teor autônomo face às normas substantivas da Convenção Americana. Portanto, a determinação se as exceções à regra de esgotamento dos recursos internos previstas nessa norma se aplicam ao caso em questão deve ser feita de maneira prévia e separada da análise do mérito do assunto, uma vez que depende de um parâmetro de apreciação diverso do utilizado para determinar a violação dos artigos 8 e 25 da Convenção Americana. Cabe esclarecer que as causas e os efeitos que têm impedido o esgotamento dos recursos internos neste caso serão analisados, nos aspectos pertinentes, no Relatório que adotar a CIDH sobre o mérito da controvérsia, a fim de constatar se efetivamente configuram violações da Convenção Americana[13].

 

2.         Prazo para a apresentação da petição

 

47.              O artigo 32.2 do Regulamento da CIDH dispõe:

 

Nos casos em que sejam aplicáveis as exceções ao requisito de esgotamento prévio dos recursos internos, a petição deverá ser apresentada dentro de um prazo razoável, a critério da Comissão.  Para tanto a Comissão considerará a data em que haja ocorrido a presumida violação dos direitos e as circunstâncias de cada caso.

 

48.              No presente caso, a Comissão Interamericana pronunciou-se supra (pár. 46) sobre a aplicabilidade de uma exceção à norma do esgotamento dos recursos internos. Por conseguinte, a CIDH deve determinar se a petição foi apresentada dentro de um prazo razoável, em conformidade com o artigo 32.2 de seu Regulamento. A este respeito, a Comissão Interamericana observa que os fatos denunciados, fundamentalmente os ataques à Fazenda Nazaré e/ou invasões da mesma, teriam ocorrido de 1996 a 2000 e que a petição foi apresentada à CIDH em 18 de dezembro de 2002. Nesta data, segundo o alegado pelos peticionários, ainda havia investigações policiais inconclusas, por exemplo, o Inquérito Policial 033/99 (supra pár. 43), e os peticionários ainda não tinham recorrido à via civil, o que fizeram a seguir por meio da ação por danos interposta em 28 de novembro de 2003. Portanto, ante todo o exposto, a CIDH conclui que a presente petição foi apresentada dentro de um prazo razoável.

 

3.                  Duplicação de procedimentos e coisa julgada

 

49.              Não se desprende dos autos que a petição interposta perante a CIDH esteja atualmente pendente de outro procedimento de acordo internacional, nem que reproduza substancialmente alguma petição ou comunicação anterior já examinada pela Comissão Interamericana ou outro organismo internacional, conforme estabelecem os artigos 46.1.c e 47.d, respectivamente.

 

4.         Caracterização dos fatos alegados

 

50.              O artigo 47.b da Convenção Americana estabelece que a CIDH irá declarar inadmissível toda petição ou comunicação apresentada quando “não expuser fatos que caracterizem violação dos direitos garantidos por esta Convenção". O critério de avaliação desses requisitos difere do que se utiliza para pronunciar-se sobre o mérito de uma petição. De fato, a avaliação da Comissão Interamericana visa a determinar, prima facie, se a petição compreende o fundamento da violação, possível ou potencial, de um direito garantido pela Convenção Americana e não a estabelecer a existência efetiva de uma violação de direitos. Em outros termos, esta determinação constitui uma análise primária que não implica prejulgar sobre o fundo do assunto.

 

51.              No tocante aos fatos alegados pelos peticionários, referentes às ameaças contra a integridade pessoal da suposta vítima Armand Lerco, os ataques e danos causados à fazenda das duas supostas vítimas, bem como a suposta participação direta e cumplicidade de agentes estatais nos fatos e a suposta negligência das autoridades competentes que teria resultado na ineficácia dos recursos tentados, a CIDH considera que estes poderiam caracterizar violações dos direitos à integridade pessoal, à proteção judicial, às garantias judiciais e à propriedade privada, reconhecidos na Convenção Americana (respectivamente, nos artigos 5, 8, 25 e 21), em relação com a obrigação geral imposta pelo artigo 1.1 do mesmo instrumento.

 

52.              Por outro lado, os fatos descritos pelos peticionários indicam que o filho de Armand Lerco também teria sido objeto de ameaças (supra par. 15) e que, durante as diversas invasões da Fazenda Nazaré e ataques à mesma, teria sido afetada a integridade pessoal dos trabalhadores rurais dessa fazenda (supra, par. 11, 20, 21, 22 e 24). Apesar disso, a CIDH observa que os peticionários identificaram como supostas vítimas unicamente aos senhores Armand Lerco e Alain Roulaud. Além disso, não apresentaram informações concretas suficientes a respeito dos fatos referentes a outras pessoas.  Portanto, a análise sobre o mérito do assunto referir-se-á somente às supostas violações dos artigos da Convenção Americana mencionados supra (par. 51), em prejuízo destas duas pessoas.

 

53.              Ante o exposto, a CIDH conclui que a petição é admissível de acordo com o disposto no artigo 47.b da Convenção Americana.

 

V.         CONCLUSÕES

 

54.              A Comissão Interamericana conclui que tem competência para tomar conhecimento da petição e que esta cumpre os requisitos de admissibilidade, de acordo com os artigos 46 e 47 da Convenção Americana.

 

55.              Em função dos argumentos de fato e de direito expostos anteriormente e sem prejulgar sobre o mérito da questão,

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.         Declarar admissível a petição em estudo, no tocante às supostas violações dos artigos 5.1, 8.1, 21 e 25 da Convenção Americana em conformidade com o artigo 1.1 do mesmo instrumento.

 

2.         Notificar esta decisão ao Estado e ao peticionário.

 

3.         Iniciar a tramitação sobre o mérito da questão.

 

4.         Publicar esta decisão e incluí-la no Relatório Anual a ser apresentado à Assembléia Geral da OEA.

 

Dado e assinado na cidade de Washington, D.C., aos 19 dias do mês de março de 2009. (Assinado): Luz Patricia Mejía Guerrero, Presidente; Victor Abramovich, Primeiro Vice-Presidente; Felipe González, Segundo Vice-Presidente; Sir Clare K. Roberts, Florentín Meléndez e Paolo G. Carozza, Membros da Comissão.


 


[1] O Comissário Paulo Sérgio Pinheiro, de nacionalidade brasileira, não participou das deliberações nem na decisão deste caso, em conformidade com o disposto no artigo 17(2)(a) do Regulamento da Comissão.

[2] Os peticionários indicam que “grileiros” são pessoas que se apoderam de terras alheias mediante falsas escrituras de propriedade. Essa prática se denomina “grilagem”.

[3] Segundo os peticionários, a EMPAER é o órgão encarregado da assistência técnica rural no estado de Mato Grosso, na cidade de Jauru.

[4] Em conformidade com o artigo 1º. do Decreto 5.735 de 1996, “O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA é uma autarquia federal, vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, criada pelo Decreto-Lei N° 1.110, de 9 de julho de 1970, dotada de personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa e financeira, com sede e foro em Brasília, Distrito Federal, e jurisdição em todo o território nacional”. A missão do INCRA é implementar a política de reforma agrária e realizar o ordenamento agrário nacional, contribuindo para o desenvolvimento rural sustentável. Ver a respeito: http://www.incra.gov.br/.

[5] Comunicação inicial dos peticionários, de 18 de dezembro de 2002, p. 7.

[6] Os peticionários indicam que esbulho possessório é a perda de todos os direitos sobre o bem, que é tirado totalmente da esfera de disponibilidade do possuidor. A respeito, ver o Código Civil brasileiro, artigo 1.210. Além disso, o artigo 161, alínea II, do Código Penal brasileiro, define como crime a “invasão, com violência contra a pessoa ou grave ameaça, ou mediante concurso de mais de duas pessoas, terreno ou edifício alheio, para o fim de “esbulho possessório”.

[7] Comunicação inicial dos peticionários, supra nota 2, p. 8.

[8] Os peticionários acrescentam que, no dia seguinte, também se enviou relatório sobre o assunto da Fazenda Nazaré ao Ministro das Relações Exteriores do Brasil, em conformidade com a solicitação do mesmo durante reunião de trabalho em Brasília.

[9] Entende-se por “Fazenda Pública” o erário ou tesouro público, constituído pelo conjunto de bens patrimoniais, públicos e privados, da União Federal, estado federal ou município e de seus órgãos cobradores, fiscalizadores, administrativos e distribuidores. Desse modo, as ações judiciais interpostas contra um estado da federação, como é o caso de Mato Grosso, que podem gerar conseqüências a seus bens patrimoniais, são conhecidas e julgadas pelo tribunal especializado da Fazenda Pública, órgão da Justiça Estadual.

[10] Corte Interamericana de Direitos Humanos, Asunto de Viviana Gallardo y otras. Série A Nº G 101/81, par. 26; Caso Nogueira de Carvalho e outro. Sentença de 28 de novembro de 2006. Série C Nº 161, par. 51; Caso Chaparro Álvarez y Lapo Íñiguez. Exceções Preliminares, Fundo, Reparações e Costas. Sentença de 21 de novembro de 2007. Série C Nº 170, par. 17.

[11] CIDH. Relatório Nº 34/00, Caso 11.291, Carandiru, Brasil, 13 de abril de 2000, par. 47; Relatório Nº 81/06, Solicitação 394/02, “Pessoas privadas de liberdade no cárcere de Urso Branco”, Brasil, 21 de outubro de 2006, par. 41.

[12] Relatório Nº 34/00, Caso 11.291, Carandiru, Brasil, 13 de abril de 2000, par. 47.

[13] CIDH, Relatório Nº 19/07, Petição 170-02, Admissibilidade, Ariomar Oliveira Rocha, Ademir Federici e Natur de Assis Filho, Brasil, 3 de março de 2007, pár. 27; Relatório Nº 23/07, Petição 435-2006, Admisibilidad, Eduardo José Landaeta Mejía y Otros, Venezuela, 9 de março de 2007, par. 47; Relatório Nº 40/07, Petição 665-05, Admissibilidade, Alan Felipe da Silva, Leonardo Santos da Silva, Rodrigo da Guia Martins Figueiro Tavares e Outros, Brasil, 23 de julho de 2007, par. 55.