RELATÓRIO Nº 61/09[1]

PETIÇÃO 373-03

ADMISSIBILIDADE

JOSENILDO JOÃO DE FREITAS JÚNIOR E OUTROS

BRASIL

22 de julho de 2009

 

I.          RESUM0

 

1.         Em 17 de maio de 2003 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante a "Comissão Interamericana” ou a "CIDH”) recebeu uma petição na qual se alega a responsabilidade internacional da República Federativa do Brasil (doravante o ”Estado” ou o “Brasil”) pelo suposto assassinato de Josenildo João de Freitas Júnior (doravante ”a suposta vítima”), que teria sido executado por um esquadrão da morte formado por policiais militares do estado de Pernambuco; e na qual também se alega o efeito das violações sobre seus familiares, Elma Soraia Souza Novais (mãe) e seus irmãos Jefferson José de Freitas, Jeizon Eric Novais de Freitas e Roxana Novais Rodrigues (doravante, em conjunto, “as supostas vítimas”). Alega-se que o Estado é responsável por violações dos direitos à vida, à igualdade perante a lei, às garantias e à proteção judiciais em prejuízo das supostas vítimas. A petição foi apresentada pelo DHInternacional (doravante “o peticionario”).

 

2.         O peticionário alega que a suposta vítima teria sido executada em 15 de dezembro de 1999 com 16 tiros de armas de fogo por policiais pertencentes ao chamado “Serviço de Inteligência da Polícia Militar de Pernambuco”. O peticionário informa que a investigação policial a respeito do caso teve início em 16 de dezembro de 1999; que o Ministério Público apresentou a denúncia penal contra quatro policiais militares em 9 de abril de 2001; e que entre dezembro de 2004 e dezembro de 2005 os quatro acusados foram julgados em primeira instância e três deles foram condenados. Segundo o peticionário, o recurso de apelação apresentado segue pendente até esta data. Portanto, o peticionário argumenta que já transcorreram mais de 9 anos desde a execução da suposta vítima, sem que até o momento o Estado haja punido devidamente aos responsáveis por meio de uma decisão judicial definitiva. Em conseqüência, afirma que o Estado brasileiro violou os artigos 4 (direito à vida), 24 (igualdade perante a lei), 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante a "Convenção Americana” ou a "Convenção”); e que não cumpriu igualmente suas obrigações gerais previstas nos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento.

 

3.         O Estado respondeu à petição em 24 de março de 2009, oportunidade em que alegou ser a mesma inadmissível em virtude da falta de esgotamento dos recursos internos, em conformidade com o artigo 46.1.a da Convenção Americana. Além disso, o Estado afirma que os recursos internos foram eficazes para investigar séria e exaustivamente os fatos referentes ao assassinato da suposta vítima e que, além disso, cumpre levar em conta que essa investigação revestia complexidade.

 

4.         Sem prejulgar sobre o mérito do assunto e de acordo com o disposto nos artigos 46 e 47 da Convenção Americana, a Comissão Interamericana decide declarar a petição admissível no tocante à suposta violação dos artigos 4.1, 24, 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, todos eles em concordância com as obrigações gerais previstas nos artigos 1.1 e 2 desse instrumento internacional. Além disso, em conformidade com o princípio iura novit curia, a CIDH declara admissível a petição no tocante à suposta violação do artigo 5.1 da Convenção Americana com relação à mãe e aos irmãos da suposta vítima. A Comissão decide também publicar este relatório e incluí-lo em seu Relatório Anual à Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos.

 

II.         TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

5.         A denúncia foi recebida em 17 de maio de 2003. Em 7 de julho de 2003 a CIDH transmitiu as partes pertinentes da petição ao Estado e fixou um prazo de dois meses para que apresentasse suas observações. A Comissão Interamericana recebeu informações adicionais do peticionário em 3 de dezembro de 2004, 22 de dezembro de 2004 e 26 de abril de 2005. Essas comunicações foram devidamente transmitidas ao Estado.

 

6.         Embora o Estado tenha apresentado informações sobre as medidas cautelares concedidas (ver infra), em virtude da ausência de resposta do Estado a respeito da petição, em 11 de fevereiro de 2009 a CIDH reiterou o pedido de observações e, ao mesmo tempo, solicitou ao peticionário informações atualizadas. Em 24 de março de 2009 o Estado apresentou suas observações, ao passo que o peticionário apresentou informações atualizadas em 2 de abril de 2009.

 

            Medidas cautelares

 

7.         Em 5 de novembro de 2002 o peticionário solicitou medidas cautelares a fim de garantir a vida e a integridade da mãe da suposta vítima, Elma Soraia Souza Novais. Em 21 de novembro de 2002, a Comissão Interamericana decidiu conceder medidas cautelares em favor de Elma Soraia Souza Novais e solicitou ao Estado que adotasse todas as medidas necessárias para proteger a integridade pessoal e a vida da beneficiária. Com base em uma solicitação do peticionário justificada por fatos novos, em 14 de março de 2003 a CIDH ampliou as medidas cautelares aos filhos de Elma Soraia Souza Novais: Jefferson José de Freitas, Jeizon Eric Novais de Freitas e Roxana Novais Rodrigues.

 

8.         O peticionário enviou informações adicionais nas seguintes datas: 6 de dezembro de 2002, 16 de janeiro de 2003, 30 de janeiro de 2003, 31 de março de 2003, 7 de abril de 2003, 16 de abril de 2003, 14 de maio de 2003, 16 de maio de 2003, 30 de junho de 2003, 21 de agosto de 2003, 18 de novembro de 2003, 7 de janeiro de 2004, 13 de janeiro de 2004, 14 abril de 2004, 31 de maio de 2004, 16 de agosto de 2004, 3 de dezembro de 2004, 22 de dezembro de 2004, 25 de abril de 2005, 17 de maio de 2005, 3 de junho de 2005, 19 de setembro de 2005, 5 de dezembro de 2005, 26 de dezembro de 2005 e 28 de junho de 2006. Essas comunicações foram devidamente transmitidas ao Estado.

 

9.         No tocante às medidas cautelares concedidas pela CIDH, o Estado submeteu informações em 22 de janeiro de 2003, 20 de janeiro de 2004, 14 de setembro de 2004 e 28 de dezembro de 2004. Essas comunicações também foram devidamente transmitidas ao peticionário.

 

10.       Em 27 de fevereiro de 2003, a CIDH realizou uma audiência pública em seu 117º Período Ordinário de Sessões sobre a implementação dessas medidas cautelares. Posteriormente, em 1º de março de 2004, a CIDH realizou uma reunião de trabalho de acompanhamento dessas medidas cautelares em seu 119º Período Ordinário de Sessões.

 

11.       Com base nessas informações proporcionadas por ambas as partes, a CIDH decidiu prorrogar as referidas medidas cautelares nas seguintes datas: 20 de maio de 2003, 3 de dezembro de 2003, 7 de junho de 2004, 7 de dezembro de 2004, 20 de junho de 2005, 28 de dezembro de 2005 e 27 de julho de 2006. 

 

III.        POSIÇÃO DAS PARTES

 

A.         O peticionário

 

12.       O peticionário afirma que na época da execução da suposta vítima era freqüente na cidade de Caruaru, estado de Pernambuco, que a imprensa denunciasse casos de mortes, ameaças e torturas à população em geral, praticados por policiais do Serviço de Inteligência (“SEI”) da Polícia Militar desse estado. Alega-se que em tais casos não havia uma investigação judicial rigorosa sobre os fatos, predominando a violência e a impunidade. O peticionário informa que esse órgão foi criado em 1997, inicialmente para a investigação dos crimes praticados pelos agentes da própria Polícia Militar. Posteriormente, porém – afirmam os peticionários – os agentes desse órgão de segurança teriam abusado de seu poder e realizado atividades alheias à sua função. Após o assassinato da suposta vítima, o Governador de Pernambuco desativou o SEI, supostamente pela pressão popular e repercussão do caso.

 

13.       O peticionário afirma que a suposta vítima, de 24 anos de idade, tinha recebido diversas ameaças de morte dos mesmos policiais acusados de seu assassinato. Segundo as informações, a suposta vítima tinha sido indicada como responsável pela morte de um indivíduo chamado Arnaldo, irmão do policial de apelido Esquerdinha e, desde então, começou a receber ameaças de diversos policiais. Em virtude do anterior, o peticionário observa que a suposta vítima apresentou uma queixa ao Comandante do 4° Batalhão da Polícia Militar, denunciando os fatos e solicitando ajuda às autoridades de segurança. Além disso, a suposta vítima teria escrito uma carta a grupos de direitos humanos, na qual afirmou que os possíveis ou eventuais autores da sua morte seriam os policiais militares Marcos José Rolim, José Arimatéia Brazão, Erivaldo Gonçalves dos Santos e Gilson Barbosa dos Santos, com o apoio de Esquerdinha e do Cabo Numeriano.

 

14.       Segundo a petição, essas ameaças finalmente se concretizaram em 15 de dezembro de 1999, quando a suposta vítima foi perseguida e executada em plena praça pública por 16 balas. O peticionário informa que, após a morte da suposta vítima, seus familiares continuam a receber ameaças de morte, em virtude da luta da mãe da suposta vítima contra a impunidade e sua atuação como advogada coadjuvante da acusação no processo penal interno.

 

15.       O peticionário alega que foram instaurados dois procedimentos para a investigação dos fatos: um civil (o inquérito policial sobre o crime) e outro administrativo na Polícia Militar para investigar possíveis irregularidades na conduta de seus agentes. Segundo o peticionário, o Inquérito Policial Civil teve início em 16 de dezembro de 1999. Foram recebidas as declarações de algumas testemunhas presenciais e recolhidas outras provas; no entanto, a investigação foi supostamente obstaculizada pelos policiais indiciados, o que determinou o atraso na mesma. O peticionário observa que a investigação policial tardou 14 meses, até ser concluída em 16 de fevereiro de 2001. Essa investigação concluiu que os policiais Marcos José Rolim, Gilson Barbosa dois Santos, José Arimatéia Brazão e Erivaldo Gonçalves dos Santos eram os responsáveis pelo homicídio da suposta vítima. Por outro lado, o procedimento administrativo teria tido início em 18 de fevereiro de 2000 e em 17 de maio de 2008 concluiu que nenhum dos policiais tinha qualquer responsabilidade.

 

16.       O peticionário informa que pouco depois o Ministério Público apresentou sua denúncia em 9 de abril de 2001. No fim da etapa de instrução, porém, o juiz decidiu em 15 de outubro de 2002 não apresentar o libelo acusatório (Sentença de Impronúncia)[2] ao Tribunal do Júri. A mãe da suposta vítima apresentou um recurso em sentido estrito contra essa decisão. Segundo o informado pelo peticionário, o Tribunal de Justiça de Pernambuco reverteu essa decisão mediante sentença publicada em 21 de julho de 2003.

 

17.       Em virtude da qualidade de policiais militares dos acusados e sua suposta participação em um grupo de extermínio, em 1º de outubro de 2003 a mãe da suposta vítima solicitou o desaforamento do julgamento da Comarca de Caruaru para Recife, capital de Pernambuco; e em 14 de fevereiro de 2004 foi adotada uma decisão favorável a essa solicitação. Posteriormente, por decisões separadas adotadas em 18 de dezembro de 2004, 28 de abril de 2005 e 6 de dezembro de 2005, os réus Marcos José Rolim, José Arimatéia Brazão e Gilson Barbosa dos Santos, respectivamente, foram condenados a 14 anos de reclusão pelo homicídio duplamente qualificado da suposta vítima. O policial Erivaldo Gonçalves dos Santos, por sua parte, foi absolvido na julgamento realizado em 28 de abril de 2005.

 

18.       Segundo o peticionário, a defesa dos réus e a acusação apresentaram apelação a respeito das sentenças de primeira instância, recurso que continua pendente até esta data.

 

19.       Portanto, o peticionário afirma que há um atraso injustificado na decisão definitiva sobre os recursos judiciais internos, em conformidade com o previsto no artigo 46.2.c da Convenção Americana. Além disso, o peticionário afirma que a legislação interna do Brasil, ao conceder à própria Polícia Militar a competência para investigar violações de direitos humanos perpetradas por seus agentes, não garante o devido processo legal para esses crimes, pelo que caberia aplicar também a exceção prevista no artigo 46.2.a da Convenção.

 

B.         O Estado

 

20.       Em sua primeira resposta, apresentada em 24 de março de 2009, o Brasil alega que a petição é inadmissível em virtude da falta de esgotamento dos recursos internos, em conformidade com o exigido pelo artigo 46.1.a da Convenção Americana. Além disso, o Estado observa que os recursos internos foram eficazes para de investigar séria e exaustivamente os fatos referentes ao assassinato da suposta vítima e que, além disso, cumpre levar em conta que essa investigação era complexa.

 

21.       Segundo o Estado, a denúncia penal sobre a morte da suposta vítima, ocorrida em 15 de dezembro de 1999, foi apresentada pelo Ministério Público em 9 de abril de 2001. O Estado confirma também as datas em que foram condenados Marcos José Rolim, José Arimatéia Brazão e Gilson Barbosa dos Santos, bem como a absolvição de Erivaldo Gonçalves dos Santos.

 

22.       O Estado ressalta que a família da suposta vítima esteve sob proteção policial durante seis anos em virtude das medidas cautelares concedidas pela CIDH. Além disso, o Estado observa que, na época de apresentação da petição à Comissão Interamericana, as autoridades estavam adotando todas as medidas necessárias para impedir a impunidade no presente caso e conseguir a condenação dos policiais acusados. Portanto, o Brasil ressalta que a ação penal referente ao caso segue seu trâmite regular junto ao Poder Judicial Nacional, demonstrando com isso que o Estado é plenamente capaz de proporcionar a solução adequada e eficaz ao assassinato da suposta vítima.

 

23.       Ante o exposto, o Estado solicita que a CIDH declare que a presente petição é inadmissível, em conformidade com o artigo 47.a da Convenção Americana.

 

IV.        ANÁLISE DE ADMISSIBILIDADE

 

A.         Competência da Comissão ratione personae, ratione materiae, ratione temporis e ratione loci

 

24.       O peticionário tem locus standi para apresentar denúncias perante a Comissão, em conformidade com o artigo 44 da Convenção. A petição indica como supostas vítimas Josenildo João de Freitas Júnior e seus familiares (mãe e irmãos), com relação aos quais o Estado brasileiro se comprometeu a respeitar e garantir os direitos consagrados na Convenção Americana. No tocante ao Estado, a República Federativa do Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos em 25 de setembro de 1992; portanto a Comissão tem competência ratione personae para examinar a petição.

 

25.       A CIDH tem competência ratione loci para examinar a petição, porquanto nela se alegam violações de direitos humanos protegidos na Convenção Americana que teriam ocorrido dentro da jurisdição do Brasil, Estado parte nesse tratado.

 

26.       Além disso, a Comissão Interamericana tem competência ratione temporis, posto que se denunciam violações a direitos protegidos na Convenção Americana ocorridas a partir da morte da suposta vítima em 15 de dezembro de 1999, data em que a Convenção Americana já estava vigente para o Brasil. Por último, a CIDH também tem competência ratione materiae, uma vez que os peticionários denunciam supostas violações aos direitos protegidos pela Convenção Americana.

 

B.         Outros requisitos para a admissibilidade da petição

 

1.         Esgotamento dos recursos internos

 

27.       Em conformidade com o artigo 46.1 da Convenção Americana, para que uma petição seja admitida pela Comissão é necessário que tenham sido esgotados os recursos da jurisdição interna de acordo com os princípios do direito internacional geralmente reconhecidos. Na alínea 2 dessa norma estabelece-se que essas disposições não serão aplicadas quando não existir na legislação interna o devido processo legal para a proteção do direito em questão ou se a suposta vítima não tiver acesso aos recursos da jurisdição interna ou se houve demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.

 

28.       A CIDH observa que, em casos como o presente, de crimes de ação penal pública, o recurso idôneo é normalmente o inquérito policial e o processo penal. Neste sentido, a Comissão Interamericana constata que o inquérito policial a cargo da Polícia Civil foi iniciado em 16 de dezembro de 1999 e que a respectiva ação penal seguida perante os tribunais nacionais foi iniciada em 9 de abril de 2001. Além disso, a partir dos autos verifica-se que foram pronunciadas sentenças de primeira instância no processo penal por homicídio duplamente qualificado, com as quais foram condenados três dos acusados e absolvido um deles, com datas de 18 de dezembro de 2004, 28 de abril de 2005 e 6 de dezembro de 2005, respectivamente. Essas decisões foram apeladas e, segundo as informações apresentadas por ambas as partes, esse recurso ainda não foi decidido.

 

29.       A Comissão Interamericana deve levar em conta que a execução da suposta vítima ocorreu em 15 de dezembro de 1999, ou seja, há mais de nove anos, sem que os processos criminais contra todos os supostos autores tenham finalizado. Por sua vez, o Estado não apresentou informações específicas a respeito de circunstâncias especiais aplicáveis ao presente caso que pudessem justificar, para fins de uma decisão sobre admissibilidade, o lapso transcorrido desde o assassinato da suposta vítima, sem os tribunais nacionais hajam chegado a uma decisão definitiva.

 

30.       Com efeito, a regra do prévio esgotamento não pode resultar em que “se detenha ou se demore até a inutilidade a atuação internacional em auxílio da vítima indefesa”[3]. No presente caso, pelo fato de o processo penal continuar pendente sem decisão definitiva há mais de nove anos desde a execução da suposta vítima e levando em conta que o requisito de esgotamento prévio não pode ser interpretado de maneira que impeça prolongada e injustificadamente o acesso ao Sistema Interamericano, a Comissão Interamericana considera que se aplica a exceção prevista no artigo 46.2.c da Convenção Americana.

 

31.       Por último, resta apenas indicar que a invocação das exceções à regra do esgotamento dos recursos internos está estreitamente ligada à determinação de possíveis violações a certos direitos consagrados na Convenção Americana, tais como as garantias de acesso à justiça. Não obstante, o artigo 46.2 da Convenção Americana, por sua natureza e objetivo, é uma norma com teor autônomo face às normas substantivas desse instrumento internacional. Portanto, a determinação de se as exceções à regra do esgotamento dos recursos internos previstas nessa norma são aplicáveis ao caso em questão deve ser tomada de maneira prévia e separada da análise do fundo do assunto, uma vez que depende de um padrão de apreciação diverso daquele utilizado para determinar a violação dos artigos 8 e 25 da Convenção Americana[4]. Portanto, a Comissão Interamericana esclarece que as causas e os efeitos resultantes no atraso injustificado dos recursos internos no presente caso serão analisados, no que for pertinente, no relatório que adotar a Comissão sobre o fundo da controvérsia, a fim de constatar se efetivamente ocorreram possíveis violações da Convenção Americana

 

2.         Prazo de apresentação

 

32.       O artigo 46.1.b da Convenção exige que as petições sejam apresentadas dentro do prazo de seis meses, a partir da data de notificação da decisão definitiva. Por sua vez, o artigo 32.2 do Regulamento da Comissão dispõe o seguinte:

 

“Nos casos em que sejam aplicáveis as exceções ao requisito de esgotamento prévio dos recursos internos, a petição deverá ser apresentada dentro de um prazo razoável, a critério da Comissão.  Para tanto a Comissão considerará a data em que haja ocorrido a presumida violação dos direitos e as circunstâncias de cada caso.”

 

33.       Nas circunstâncias deste caso, a CIDH pronunciou-se supra sobre a aplicabilidade a estes fatos de uma exceção à regra do esgotamento dos recursos internos, cabendo determinar se a petição foi apresentada dentro de um prazo razoável. A petição foi apresentada em 17 de maio de 2003, quatro anos depois da morte da suposta vítima, vários anos depois da investigação dos fatos, mas antes de terem sido proferidas as sentenças de primeira instância de 2004 e 2005. A esse respeito, a Comissão Interamericana observa que, em princípio, é no momento da aprovação do relatório sobre admissibilidade quando se deve constatar se estão reunidos os requisitos correspondentes a tal etapa.

 

34.       Levando em conta as circunstâncias deste caso, particularmente a data da morte da suposta vítima, a tramitação do processo penal interno descrito supra e as alegações apresentadas com relação a uma suposta demora injustificada e negação de justiça, a Comissão Interamericana conclui que a mesma foi apresentada dentro de um prazo razoável. Portanto, foi cumprido o requisito do artigo 32.2 do Regulamento da CIDH.

 

3.         Duplicação de procedimentos e coisa julgada

 

35.       Não decorre do expediente que a matéria da petição esteja pendente de outro procedimento internacional, nem que reproduza uma petição já examinada por este ou outro órgão internacional. Por isso, corresponde dar por cumpridos os requisitos estabelecidos nos artigos 46.1.c e 47.d da Convenção Americana.

 

4.         Caracterização dos fatos alegados

 

36.       Compete à Comissão Interamericana determinar se os fatos descritos na petição caracterizam violações dos direitos consagrados na Convenção Americana, em conformidade com os requisitos do artigo 47.b, ou se a petição, em conformidade com o artigo 47.c, deve ser rejeitada por ser “manifestamente infundada” ou por resultar “evidente sua total improcedência”. Nesta etapa processual compete à CIDH fazer uma avaliação prima facie, não com o objetivo de estabelecer supostas violações à Convenção Americana, mas para examinar se a petição denuncia fatos que potencialmente poderiam configurar violações a direitos garantidos na Convenção Americana. Este exame não implica prejulgamento nem antecipação do parecer sobre o mérito do assunto[5].

 

37.       Neste sentido, a Comissão observa que, caso forem comprovadas as alegações do peticionário em relação à suposta falta de prevenção da morte da suposta vítima apesar de suas denúncias sobre ameaças recebidas junto ao Comando da Polícia Militar, bem como a suposta responsabilidade direta de agentes estatais da Polícia Militar em sua execução atuando como um grupo de extermínio, poderiam caracterizar violações ao artigo 4.1 da Convenção Americana, em prejuízo da suposta vítima. Além disso, se forem comprovados os supostos fatos a respeito da falta de devida diligência na investigação e no processo penal, em particular com relação ao direito a dispor de decisões das autoridades competentes em um prazo razoável e com as devidas garantias e proteção judiciais, bem como a suposta impunidade resultante de um tratamento diferenciado e privilegiado aos policiais militares envolvidos, poderiam caracterizar violações aos artigos 24, 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em prejuízo das supostas vítimas. Todos os anteriores artigos da Convenção, em relação com a obrigação de respeitar os direitos e o dever de adotar as medidas legislativas ou de outra natureza, a fim de assegurar o exercício dos direitos consagrados na Convenção, previstos nos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento internacional. No tocante a esses artigos, portanto, a Comissão considera esta petição admissível no que se refere ao artigo 47.b da Convenção.

 

38.       Por último, em aplicação do princípio iura novit curia, a CIDH estima que os fatos alegados pelo peticionário, em particular as supostas ameaças sofridas pela mãe e pelos irmãos da suposta vítima, bem como o tratamento que receberam em sua busca por justiça, poderiam caracterizar violações ao artigo 5.1 da Convenção Americana, em prejuízo de Elma Soraia Souza Novais, Jefferson José de Freitas, Jeizon Eric Novais de Freitas e Roxana Novais Rodrigues.

 

            39.       Em conclusão, a CIDH decide que os peticionários credenciaram prima facie os elementos requeridos no artigo 47.b. da Convenção Americana no que se refere a possíveis violações dos artigos 4.1, 5.1, 24, 8.1 e 25.1 da Convenção, todos em relação aos artigos 1.1 e 2 desse instrumento internacional.

 

V.         CONCLUSÕES

 

40.       A Comissão Interamericana conclui que tem competência para examinar o mérito deste caso e que a petição é admissível em conformidade com os artigos 46 e 47 da Convenção Americana. Com base nos argumentos de fato e de direito antes expostos e sem prejulgar sobre o mérito da questão,

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.         Declarar admissível a presente petição no tocante a supostas violações dos direitos protegidos nos artigos 4.1 da Convenção Americana referentes às obrigações gerais consagradas nos artigos 1.1 e 2 desse tratado, em prejuízo de Josenildo João de Freitas Júnior;

 

2.         Declarar admissível a presente petição no tocante a supostas violações dos direitos protegidos nos artigos 24, 8.1 e 25.1 da Convenção Americana referentes às obrigações gerais consagradas nos artigos 1.1 e 2 desse tratado, em detrimento de Josenildo João de Freitas Júnior, Elma Soraia Souza Novais, Jefferson José de Freitas, Jeizon Eric Novais de Freitas e Roxana Novais Rodrigues;

 

3.         Declarar, em virtude do princípio iura novit curia, admissíveis as alegações sobre a suposta violação do artigo 5.1 da Convenção Americana referentes ao artigo 1.1 desse instrumento internacional, em prejuízo de Elma Soraia Souza Novais, Jefferson José de Freitas, Jeizon Eric Novais de Freitas e Roxana Novais Rodrigues;

 

4.         Notificar esta decisão às partes;

 

5.         Continuar com a análise do mérito do assunto; e

 

6.         Publicar esta decisão e incluí-la em seu Relatório Anual à Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos.

 

Aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, aos 22 dias do mês de julho de 2009. (Assinado ): Luz Patricia Mejía Guerrero, Presidente; Vítor Abramovich, Primeiro Vice-Presidente; Felipe González, Segundo Vice-Presidente e Paolo Carozza, Comissário.


[1] O membro da Comissão Paulo Sérgio Pinheiro, de nacionalidade brasileira, não participou das deliberações nem da decisão a respeito desta petição, em conformidade com o disposto no artigo 17.2.a do Regulamento da Comissão.

[2] Nos crimes de competência do Tribunal do Júri, depois da instrução processual, o juiz deve analisar o acervo probatório operante do processo criminal a fim de verificar se é possível demonstrar a provável existência de um crime doloso contra a vida, bem como a respectiva e suposta autoria. Por conseguinte, o Magistrado elabora a decisão de Pronúncia, na qual afirma a existência de provas que indicam a materialidade e autoria do crime e determina a disposição legal em cuja violação entenda ter incidido o réu. Se esses elementos não estiverem presentes, emite-se uma sentença de Impronúncia. Sobre a Pronúncia e a Impronúncia ver artigos 413 e 414 (e seguintes) do Código de Processo Penal Brasileiro (em conformidade com as modificações introduzidas em 2008, pela Lei nº 11.689).

[3] Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velásquez Rodríguez. Exceções Preliminares. Sentença de 26 de junho de 1987. Série C Nº 1, para. 93.

[4] CIDH, Relatório Nº 72/08, Petição 1342-04, Admissibilidade, Márcio Lapoente da Silveira (Brasil), 16 de outubro de 2008, p.. 75; Relatório Nº 23/07, Solicitação 435-2006; Admissibilidade, Eduardo José Landaeta Mejía e Outros (Venezuela), 9 de março de 2007, p. 47; Relatório Nº 40/07, Petição 665-05, Admissibilidade, Alan Felipe da Silva, Leonardo Santos da Silva, Rodrigo da Guia Martins Figueiro Tavares e Outros (Brasil), 23 de julho de 2007, p. 55.

[5] CIDH, Relatório Nº 21/04, Petición 12.190, Admissibilidade, José Luís Tapia González e outros (Chile), 24 de fevereiro de 2004, p. 33.