RELATÓRIO Nº 93/09

ADMISSIBILIDADE

PETIÇÃO 337-03

SAMANTA NUNES DA SILVA[1]

BRASIL*

7 de setembro de 2009

 

 

I.          RESUMO

 

1.         Em 25 de abril de 2003, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante a “Comissão Interamericana” ou a “CIDH”) recebeu uma denúncia por correio em que se alega a responsabilidade internacional do Estado Brasileiro por irregularidades e violações ao devido processo, supostamente cometidas no marco da investigação penal da agressão sexual denunciada por Samanta Nunes da Silva, uma criança de 16 anos de idade. A petição foi apresentada pela organização Themis (doravante “a peticionária”).

 

2.         A peticionária alega que os fatos configuram a violação dos seguintes direitos garantidos pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos (a “Convenção Americana”), em prejuízo de Samanta Nunes da Silva; o direito à integridade pessoal (artigo 5.1); o direito à liberdade pessoal (artigo 7); a proteção da honra e da dignidade (artigo 11.1); os direitos da criança (artigo 19); a igualdade perante a lei (artigo 24); e o direito à proteção judicial (artigo 25), conjuntamente com a violação das obrigações de respeitar os direitos e adotar medidas consagradas no artigo 1.1 da Convenção Americana.  A peticionária igualmente sustenta a violação dos artigos 1, 2, 3, 4 e 7 da Convenção Interamericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra a Mulher, (a “Convenção de Belém do Pará”).

 

3.        O Estado, por sua parte, solicita que se declare inadmissível a petição, uma vez que não cumpre com os requisitos mínimos de admissibilidade presentes na Convenção Americana.  Especificamente considera que, se admitir esta petição, CIDH estaria obrigada a atuar como um tribunal de “quarta instância” para reexaminar o acervo probatório dos procedimentos judiciais internos, relacionado com os fatos do presente caso.  

 

4.        Sem pré-julgar o mérito do assunto, a CIDH conclui neste relatório que a petição é admissível, à luz dos artigos 46 e 47 da Convenção Americana.   Portanto, a Comissão Interamericana decide notificar a decisão às partes e continuar com a análise do mérito relativo à suposta violação dos artigos 8.1, 19, 24 e 25 da Convenção Americana, todos em concordância com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos prevista no artigo 1.1 deste instrumento internacional, e do artigo 7 da Convenção do Belém do Pará em prejuízo de Samanta Nunes da Silva.  A respeito da suposta violação dos artigos 5.1, 7 e 11.1 da Convenção Americana, a Comissão considera que a petição é inadmissível. Com respeito aos artigos 1, 2, 3 e 4 da Convenção de Belém do Pará, a Comissão os levará em conta, na medida em que forem relevantes, em sua interpretação do artigo 7 da mesma Convenção, durante a etapa de mérito.  Ademais, decide notificar as partes e ordenar a publicação de sua decisão em seu Relatório Anual.

 

II.          TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

5.           A petição foi recebida via correio pela CIDH em 25 de abril de 2003 e foi registrada sob o número P 337-03.  Em 22 de março de 2005, a CIDH transmitiu cópia das partes pertinentes da petição ao Estado, com um prazo de dois meses para apresentar informações, de acordo com o artigo 30 (incisos 2 e 3) do Regulamento.  Em 12 de julho de 2005, o Estado solicitou uma prorrogação para apresentar suas observações até o dia 1º de agosto de 2005.  A CIDH notificou ao Estado, em 4 de agosto de 2005, sua impossibilidade de conceder a prorrogação, de acordo com o artigo 30 (inciso 3) do Regulamento.  As observações do Estado foram apresentadas em 18 de janeiro de 2006, as quais foram devidamente transmitidas à peticionária em 1º de fevereiro de 2006. 

 

6.          Em 16 de março de 2006, a CIDH recebeu observações adicionais da peticionária, as quais foram transmitidas ao Estado em 19 de abril de 2006.  A CIDH recebeu observações adicionais do Estado em 7 de julho de 2006, as quais foram transmitidas à peticionária em 26 de julho de 2006.

 

7.          Em 15 de agosto de 2008, a Comissão solicitou ao Estado que apresentasse, dentro do prazo de um mês, cópia do processo penal relacionado aos fatos.   Em 16 de setembro de 2008, o Estado solicitou à CIDH, uma prorrogação de um mês para apresentar cópia completa do processo penal, a qual foi concedida pela CIDH em 22 de setembro de 2008.  Em 26 de setembro de 2008, o Estado apresentou perante a CIDH cópias da ação penal, do recurso de apelação e do recurso extraordinário referentes a esta petição, informação que foi transmitida à peticionária em 7 de outubro de 2008 com um prazo de um mês para apresentar suas observações.  Em 7 de novembro de 2008, o Estado apresentou perante a CIDH cópia do Agravo de Instrumento referente à petição, o qual foi transmitido à peticionária em 17 de novembro de 2008.  A peticionária apresentou suas observações em 3 de dezembro de 2008, as quais foram transmitidas ao Estado em 9 de dezembro de 2008.  O Estado apresentou observações adicionais perante a CIDH em 24 de dezembro de 2008, as quais foram transmitidas aos peticionários em 13 de janeiro de 2009.

 

III.         POSIÇÃO DAS PARTES

 

A.          Antecedentes

 

8.          No presente caso, as partes sustentam uma controvérsia sobre a existência de irregularidades e violações ao devido processo, que supostamente foram cometidas no marco da investigação penal da agressão sexual denunciada por Samanta Nunes da Silva, uma criança de 16 anos de idade.  Considerando que não há controvérsia entre as partes a respeito das etapas do processo criminal interno impulsionado pelo Ministério Público contra o médico, a Comissão resume o mesmo antes de fazer referência às posições das partes.

 

9.          A peticionária denunciou os supostos fatos de violência sexual no mesmo dia em que supostamente ocorreram, em 15 de outubro de 1997.  O Ministério Público apresentou denúncia em 16 de dezembro de 1997 contra o médico por atentado contra o pudor mediante fraude, baseado em um ato libidinoso distinto da conjunção carnal, delito sancionado pelo artigo 216 do Código Penal Brasileiro vigente na época dos fatos.  Durante o processo em primeira instância, os interesses de Samanta Nunes da Silva foram representados pelo Ministério Público e seu assistente de acusação.  O tribunal de primeira instância condenou inicialmente ao médico a dois anos e seis meses de prisão, pena que foi substituída por uma multa e a prestação de serviços comunitários.  O acusado apelou desta decisão em 19 de janeiro de 2001. 

 

10.       Em segunda instância, a 7ª Câmara do Tribunal de Justiça do Estado de Rio Grande do Sul solicitou o parecer do acusado e do Ministério Público.  Em uma sessão realizada no dia 24 de setembro de 2001, os juízes integrantes da 7ª Câmara do Tribunal de Justiça do Estado de Rio Grande do Sul absolveram o acusado por unanimidade.  

 

11.       Samanta Nunes da Silva apresentou dois recursos perante os tribunais internos para denunciar violações a garantias constitucionais que ocorreram durante o processo criminal.  A vítima apresentou primeiramente um Recurso Extraordinário perante o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em 5 de novembro de 2001, o qual foi declarado inadmissível pelo mesmo tribunal em 17 de abril de 2002.  Posteriormente, a vítima interpôs um Agravo de Instrumento perante o Supremo Tribunal Federal, que foi declarado improcedente em 3 de outubro de 2002. 

 

B.         Posição da peticionária

 

12.        A peticionária sustenta que Samanta Nunes da Silva marcou uma consulta médica com um médico ortopedista privado em 15 de outubro de 1997, para tratar de dores que sofria em sua coluna.   Sustenta que durante a consulta o doutor abusou sexualmente de Samanta mediante “fraude e ameaças” [2].  Aduz que o doutor ordenou a Samanta que tirasse a roupa e acariciou seus seios e partes íntimas – incluindo o ânus e a vagina – fazendo-lhe elogios e perguntas absurdas.

 

13.        A peticionária enfoca suas alegações perante a CIDH na falta de um devido acesso à justiça e na desigual proteção da lei por sua condição de gênero, sua raça, idade e situação econômica. Nesse marco, a peticionária sustenta que durante a ação penal empreendida contra o médico ortopedista, não se respeitaram parâmetros mínimos de devido processo e houve discriminação contra ela.  Estas falhas foram particularmente graves, considerando o sexo, a raça, a menoridade e a situação econômica de Samanta Nunes da Silva, o que demandava do Estado uma proteção especial e um dever reforçado de atuar com a devida diligência requerida para julgar e sancionar os fatos.  Segundo a peticionária, várias falhas no processo resultaram na absolvição do médico, mediante uma decisão infundada e parcial a favor do suposto agressor por parte da 7ª Câmara do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.  Entre as falhas que a peticionária identifica durante o processo estão: que Samanta Nunes da Silva não foi devidamente escutada como vítima; que os operadores judiciais – incluindo o Ministério Público e juízes – em segunda instância não foram imparciais, sendo influenciados por preconceitos discriminatórios contra as mulheres vítimas de violência sexual; que o sistema judicial brasileiro não está devidamente preparado para coletar as provas necessárias em casos de violência sexual, o que afetou a formação da prova necessária neste caso e que as deficiências mencionadas formam parte de um padrão discriminatório na investigação e julgamento de crimes sexuais.

 

14.         A peticionária afirma que não pretende que a CIDH reexamine as provas consideradas no processo penal como um tribunal de quarta instância, como sugere o Estado brasileiro.  Ao contrário, a peticionária busca um reconhecimento de que o Estado Brasileiro, por meio de seus agentes públicos, o Ministério Público e o Supremo Tribunal Federal, violou os princípios da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a Convenção de Belém do Pará e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (doravante “CEDAW”).  A peticionária sustenta que não se pode confundir a autonomia de decisões judiciais com a total liberdade para reafirmar tratamentos discriminatórios e violadores de direitos humanos das mulheres, baseados em papéis sociais e comportamentos morais e sexuais das mesmas.

 

15.        A peticionária sustenta que vários padrões sócio-culturais discriminatórios contra as mulheres vítimas de violência sexual influíram negativamente nas atuações judiciais e no processo penal empreendido contra o médico.  A peticionária considera que esse caso é um paradigma do tratamento diferenciado que os funcionários judiciais prestam aos casos de mulheres vítimas de violência sexual no Brasil, em comparação com outros delitos, como resultado da discriminação histórica que as mulheres tem sofrido e a percepção de que esses crimes pertencem ao âmbito privado.[3].   A peticionária, outrossim, identifica uma série de fatores que tornavam Samanta Nunes da Silva mais vulnerável à violação de seus direitos, que não foram considerados pelos funcionários judiciais durante o processo.  Samanta era uma criança, afrodescendente e de baixos recursos econômicos, enquanto o agressor era homem, branco e de consideráveis recursos econômicos, o que os colocava em uma situação de desigualdade perante as autoridades o que, portanto, ameritava que Samanta gozasse de uma proteção especial durante o processo penal.

 

16.        Quanto a exemplos concretos, a peticionária aduz que como ocorre frequentemente em processos penais relacionados a delitos sexuais contra as mulheres, a palavra de Samanta Nunes da Silva foi desacreditada durante o processo penal e sua credibilidade valorada com base a seu comportamento sexual.   Como parte de sua petição, a peticionária apresenta a denúncia interposta pelo Ministério Público, onde se especifica que a vítima era virgem, não tinha namorado e que era uma mulher honesta com vistas a fundamentar o delito[4].  Durante o interrogatório de Samanta Nunes da Silva pelo tribunal de primeira instância, fizeram-lhe uma série de perguntas, entre outras, se tinha experiência sexual, se tinha namorado e se se recordava da roupa que usava durante a consulta médica[5].  

 

17.        Igualmente, a peticionária aduz que o Estado Brasileiro não está devidamente preparado para compilar as provas necessárias em casos de violência sexual, sobretudo em casos como este, onde não há evidência de resistência física, o que impede a sanção devida aos vitimadores e promove a tolerância social desses atos.  A peticionária sustenta que, em primeira instância, isso ficou ilustrado por não existir um exame psiquiátrico centralizado em analisar as seqüelas de atos de violência sexual. Portanto, Samanta Nunes da Silva foi supostamente submetida a um exame que só verificou que não padecia de problemas mentais.

 

18.         No marco do processo penal em segunda instância, a peticionária refere-se também a uma opinião do Ministério Público[6], apresentada tanto por ela como pelo Estado, onde conclui que a vítima “aponta para um transtorno histriônico de personalidade ainda em formação. Justamente, a patologia mais associada às falsas imputações de abusos sexuais[7]”.   Segundo a peticionária, à diferença da postura no processo de primeira instância, o Ministério Público inclusive questionou, em sua opinião, a motivação de uma menina em denunciar atos de violência sexual: “Qual a razão para que uma jovem que se dizia tão traumatizada com o ocorrido, desejar a revivência que o processo haveria de trazer-lhe?  Seria o estrépito do processo um desejo (in)consciente?”[8].

 

19.         A peticionária aduz que o Ministério Público finalmente conclui que, pese a que o agressor cometeu uma série de erros na consulta médica com Samanta Nunes da Silva, isso não significa que deve ser sancionado criminalmente:

 

Sem dúvida [o doutor] cometeu seus erros.  Aceitou trabalhar em uma clínica que não punha à disposição enfermeiras, jalecos e biombos para preservar o pudor dos pacientes.  Foi excessivamente auto-confiante em receber uma adolescente desacompanhada dos pais e levar a efeito um exame invasivo desprezando o pudor da moça.  Mais ainda, ao notar o seu nervosismo, dar-lhe seguimento e tentar acalmá-la com observações sobre o seu profissionalismo, quiçá afagando-a.  Talvez haja sido incauto ao ponto de elogiar sua beleza antes de ela despir-se para o exame.  E não é de todo improvável que sua libido tenha sido despertada pela presença da menina-moça na flor da idade.  Daí a dizer que satisfez sua lascívia mediante fraude e por aqueles modos imputados vai uma larga distância.   Se cometeu todos ou apenas algum desses erros, já pagou com sobras pela só existência do processo e superveniência da condenação, e continuará a pagar ainda por longo tempo, porque nesses crimes, ainda que absolvidos os seus imputados ou autores, sempre sobram fiapos de suspeita, olhares de esguelha e sorrisos de canto de boca.   Aquele que tende a crer nos maiores absurdos da conduta sexual é justamente o que se faz capaz de os praticar, e quem se condena mais apaixonadamente trata de fechar a sete chaves os gigantes que atormentam a própria alma.  Convém ter muito cuidado, então, no julgar os outros, seja no plano moral, seja no plano jurídico”[9]

 

20.         A peticionária indica que o Ministério Público não avaliou o testemunho do acusado com os mesmos critérios com os quais avaliou o da vítima.  Por exemplo, a capacidade do agressor de inventar ou se contradizer não foi avaliada, mas a da vítima sim.  Entende que os critérios empregados pelo Ministério Público para avaliar a prova foram distintos para Samanta Nunes da Silva que para o médico, por ser uma mulher, vítima de violência sexual e ademais menina, afrodescendente e de baixos recursos econômicos, enquanto que o agressor era homem, branco e com posses:

 

De um lado, esse depoimento, de outro, a negativa do recorrente. Médico relativamente jovem e muito bem sucedido, sendo casado, porque haveria o recorrente de necessitar satisfazer sua luxúria de modo tão tolo e inconsequente? Nunca fora antes envolvido em qualquer reclamação de abuso.  Poria em risco o seu nome e respeitabilidade para “roçar bigodes” nas costas de uma adolescente? Não vemos como possa ter sido proclamada uma certeza incriminatória[10]

 

21.        Referindo-se à opinião do Ministério Público, os juízes integrantes da 7ª Câmara do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul consideraram, ao emitir sentença absolutória, o fato de que a vítima havia visto reportagens fictícias sobre fatos semelhantes, a falta de testemunhas e que a declaração da vítima perante a polícia havia sido menos detalhada que a tomada durante o julgamento.

 

22.        Segundo a petição, Samanta Nunes da Silva apresentou dois recursos perante os tribunais internos para denunciar atos de discriminação, a falta de medidas de proteção especial e falhas no devido processo durante a ação penal contra o médico ortopedista.   Primeiramente, apresentou um Recurso Extraordinário[11] em 5 de novembro de 2001, o qual foi declarado inadmissível pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em 17 de abril de 2002.  A peticionária aduz que Samanta baseou o recurso nos artigos 1 (III e IV)[12] e 5 (I, X, XLI, parágrafos 1 e 2[13] da Constituição Federal do Brasil, os artigos 2, 3, e 5 da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (a “CEDAW”) e os artigos 1, 2, 3, 4 e 6 da Convenção de Belém do Pará.

 

23.        A petição indica que Samanta Nunes Da Silva alegou no Recurso Extraordinário que preconceitos discriminatórios contra vítimas de violência sexual afetaram as atuações judiciais durante o processo, incluindo a ausência de um exame psiquiátrico que demonstrasse as sequelas psicológicas dos delitos sexuais.  Indicou, mais especificamente no texto do recurso, que o Tribunal de segunda instância somente considerou em sua decisão o parecer do suposto agressor e do Ministério Público, mas não o de seu assistente de acusação, já que não foi convidada a apresentar seus contra-argumentos.  Sobre a opinião do Ministério Público, Samanta destacou que: 

 

a divergência de concepções dentro do próprio Ministério Público entre a primeira e a segunda instância, já que na primeira se opina a favor da condenação e na segunda pela absolvição.  Será este um critério legal ou ideológico?  É realmente impressionante o rumo que pode tomar uma decisão judicial de acordo com concepções e ideologias dos operadores do direito, especialmente quando são crimes sexuais. Quando uma mulher não dá margem, usando roupas provocantes ou tendo um comportamento provocante ou não sendo honesta, ela inventa ou confunde porque viu algo fictício[14].  

 

24.        O Tribunal de Justiça do Estado de Rio Grande do Sul declarou inadmissível o recurso interposto por Samanta Nunes da Silva por supostamente não indicar com “precisão e objetividade”[15] quais eram os dispositivos constitucionais que haviam sido violados durante o processo penal e sem ser fundamentado adequadamente.  Adicionalmente, o Tribunal estimou que as alegações se centravam em um mero reexame da prova, para o qual o recurso extraordinário não era o adequado.  Portanto, o Tribunal decidiu que o recurso não reunia as condições mínimas para ser admitido.

 

25.        Em resposta a esta decisão, a vítima interpôs um Agravo de Instrumento[16] perante o Supremo Tribunal Federal, o qual foi declarado improcedente em 3 de outubro de 2002.  No Agravo de Instrumento, Samanta Nunes da Silva reiterou as alegações que fundamentaram o recurso extraordinário e aclarou que o objetivo de interpor um recurso extraordinário não foi o de solicitar um reexame da prova ou de obter uma decisão em nível de terceira instância.  O Supremo Tribunal Federal concordou com o Tribunal do Estado de Rio Grande do Sul e declarou o Agravo de Instrumento improcedente.

 

26.        Sobre os requisitos de admissibilidade, a peticionária alega que apresentou a petição dentro de um prazo razoável de acordo com o artigo 46.1.b da Convenção Americana de Direitos Humanos e do artigo 32.1 do Regulamento da CIDH.  A peticionária alega que enviou sua denúncia por correio exatamente no final do prazo de seis meses que expirava em 18 de abril de 2003, o que se pode comprovar pelo selo do correio.  Entende que o prazo vencia em 18 de abril de 2003, dado que a decisão de declarar improcedente o Agravo de Instrumento do Supremo Tribunal Federal foi publicada em 18 de outubro de 2002.  A petição foi enviada por correio, de acordo com a prática de processamento estabelecida pela Secretaria Executiva o que resultou que a petição fosse registrada em 25 de abril de 2003.  Aduz que a interpretação dos prazos deve ser sempre a mais favorável para a efetividade dos direitos humanos, ou seja, que o registro de recepção não necessariamente significa a data que marca o fim do prazo, porque diversos problemas podem ocorrer com os envios internacionais.  Sobre o esgotamento dos recursos internos, a peticionária aduz que com a interposição do Recurso Extraordinário e do Agravo de Instrumento e sua denegação, a vítima esgotou todos os recursos disponíveis no sistema judicial do Brasil para obter um remédio judicial diante dos fatos.

 

C.         Posição do Estado

 

27.        O Estado solicita que a denúncia seja declarada inadmissível uma vez que não cumpre com os requisitos mínimos de admissibilidade presentes na Convenção Americana sobre Direitos Humanos.  O Estado igualmente considera que admitir esta petição obrigaria a CIDH a atuar como um tribunal de “quarta instância” para reexaminar o acervo probatório dos procedimentos judiciais internos relacionados à presente petição.  O Estado aduz que, devido ao caráter subsidiário dos órgãos do sistema interamericano, tanto a Corte como a Comissão, tem adotado jurisprudência onde indicam que tais órgãos somente poderão dedicar-se a revisar as decisões judiciais internas quando a petição se fundamente em uma sentença que haja sido emitida à margem do devido processo ou que viole aparentemente qualquer outro direito garantido na Convenção, situação que não ocorreu no presente caso.

 

28.        O Estado aduz, especificamente, que a petição foi apresentada de modo extemporâneo e que, portanto, deve ser declarada inadmissível.   Indica que a denúncia foi apresentada em 25 de abril de 2003 às 2:40 p.m. da tarde, de acordo com o registro da CIDH, uma semana depois do vencimento do prazo.   O Estado sustenta que a data da publicação da decisão definitiva de declarar o Agravo de Instrumento improcedente foi em 18 de outubro de 2002, portanto, o período para apresentar a petição perante a CIDH se encerrou em 18 de abril de 2003, de acordo com o artigo 46.1.b da Convenção  Americana de Direitos Humanos e o 32.1 do Regulamento da Comissão.

 

29.        O Estado estima que o Regulamento da CIDH em seu artigo 29.1.a prevê que a data determinante para contar o prazo do artigo 46.1.b da Convenção Americana é a data em que a petição foi apresentada perante a CIDH, data que é confirmada pelo selo de recebimento.  O Estado, assim, não tem acesso ao selo postal que provaria que a denúncia foi enviada em 18 de abril de 2003, como os peticionários alegam.  O requisito presente no artigo 29.1.a do Regulamento da Comissão existe justamente para garantir aos Estados certeza e segurança jurídica sobre o cumprimento ou não do prazo estabelecido pela Convenção Americana[17].

 

30.       Sobre o esgotamento de recursos internos, o Estado entende que a vítima é em parte responsável pela decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o Agravo de Instrumento que esgotou os recursos internos, porque não fundamentou adequadamente seu pedido e se baseou somente em solicitar um mero reexame da prova.  No Agravo de Instrumento o Supremo Tribunal Federal determinou que a vítima não indicou quais disposições constitucionais estimava que haveriam sido violadas ou qual tratado ou lei federal haviam sido declaradas inconstitucionais pela decisão impugnada.  A fundamentação deficiente da vítima do Recurso Extraordinário e a apresentação extemporânea da vítima da petição perante a CIDH devem servir “para que essa Comissão demonstre claramente que as elevadas finalidades do sistema interamericano de direitos humanos de direitos humanos não afastam o velho adágio, corolário da segurança jurídica, pelo qual DORMIENTIBUS NON SUCURRIT JUS[18].

 

31.      O Estado, outrossim, aduz que a peticionária objetiva que a Comissão outorgue um valor superior a certos elementos de prova, aqueles que beneficiam à suposta vítima, em contraste com a leitura dos órgãos judiciais internos competentes ao examinar todo o acervo probatório em segunda instância.  O Estado também aduz que a Comissão não deve funcionar como um tribunal de alçada para examinar erros de direito ou de fato que possam haver sido cometidos por tribunais nacionais dentro dos limites de sua competência. As decisões desfavoráveis, mas fundamentadas de maneira justa, não podem ser consideradas como violatórias dos direitos humanos. 

 

32.       O Estado alega que a autonomia dos órgãos judiciais na adequada apreciação da prova é um princípio geral de direito de todos os Estados Americanos, ademais de ser expressamente reconhecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no exercício de sua própria função contenciosa[19].  O Estado aduz que a decisão da 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por unanimidade de seus membros, representou unicamente um exercício de autonomia dos órgãos jurisdicionais na apreciação das provas, com base em um exame do acervo probatório com base no marco legal pertinente, de acordo com os princípios do devido processo legal e da presunção de inocência. 

 

IV.       ANÁLISE SOBRE ADMISSIBILIDADE

 

A.       Competêcia ratione personae, ratione loci, ratione temporis e ratione materiae da  Comissão

 

33.        A peticionária encontra-se facultada pelo artigo 44 da Convenção Americana para apresentar denúncias perante a Comissão.  A petição assinala como suposta vítima a Samanta Nunes da Silva, a respeito de quem o Brasil se comprometeu a respeitar e garantir os direitos consagrados na Convenção Americana.  No que concerne ao Estado, a Comissão assinala que o Brasil é um Estado parte da Convenção Americana desde 25 de novembro de 1992, data em que depositou o respectivo instrumento de ratificação e é igualmente parte da Convenção de Belém do Pará desde 27 de novembro de 1995.  Portanto, a Comissão tem competência ratione personae para examinar a petição.

 

34.        A Comissão tem competência ratione loci para examinar a petição, uma vez que nela se alegam violações de direitos protegidos na Convenção Americana e na Convenção de Belém do Pará que haveriam ocorrido dentro do território do Brasil, Estado parte do referido tratado.

 

35.        A Comissão tem competência ratione temporis pois a obrigação de respeitar e garantir os direitos protegidos na Convenção Americana e na Convenção de Belém do Pará já se encontrava em vigor para o Estado na data em que teriam ocorrido os fatos alegados na petição.  A Comissão tem competência ratione materiae, porque na petição se denunciam violações de direitos humanos protegidos pela Convenção Americana e pela Convenção de Belém do Pará.  A Comissão não tem competência ratione materiae para examinar as violações aos artigos da Convenção para Eliminar Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW). Contudo, de acordo com os termos do artigo 29 da Convenção Americana, assim como a Convenção de Viena sobre o direito dos tratados[20], em determinadas circunstâncias, a Comissão deve fazer referência a outras obrigações de direito internacional com o fim de interpretar e aplicar disposições dos tratados do sistema interamericano de direitos humanos.  

 

B.        Outros requisitos de admissibilidade da petição

 

1.        Esgotamento dos recursos internos

 

36.       O artigo 46.1.a da Convenção Americana estabelece que, para que uma petição possa ser admitida, se requererá “que se tenham interpostos e esgotados todos os recursos de jurisdição interna, conforme os princípios do Direito Internacional geralmente reconhecidos”.  Esse requisito se estabeleceu para garantir ao Estado em questão a possibilidade de resolver controvérsias dentro de seu próprio marco jurídico.

 

37.       As partes sustentam uma controvérsia sobre o devido esgotamento dos recursos internos. A peticionária alega que diante da sentença absolutória de segunda instância, Samanta Nunes da Silva interpôs um Recurso Extraordinário perante o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em 5 de novembro de 2001, devidamente fundamentado, sustentando a violação de várias garantias constitucionais com base em atos discriminatórios, a carência de medidas de proteção especial, e falhas processuais durante a ação penal que resultaram na absolvição do agressor pelo mesmo tribunal.  Contudo, tal recurso foi declarado inadmissível pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em 17 de abril de 2002.  Em resposta, Samanta apresentou um Agravo de Instrumento perante o Supremo Tribunal Federal reiterando suas alegações e este foi declarado improcedente pelo mesmo tribunal em 3 de outubro de 2002.   

 

38.       O Estado, por sua parte, sustenta que a vítima é em parte responsável pela decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou improcedente o Agravo de Instrumento, que esgotou os recursos internos, porque Samanta Nunes da Silva não fundamentou adequadamente seu pedido e se baseou somente em solicitar um mero reexame da prova.  O Estado também aduz que tanto no Recurso Extraordinário como no Agravo de Instrumento os tribunais determinaram que a vítima não identificou as disposições constitucionais que haviam sido violadas e tampouco fez referência a qual tratado ou lei federal haviam sido declaradas inconstitucionais pela decisão emitida.  

 

39.       As partes concordam que a suposta vítima invocou os recursos disponíveis em nível nacional e que estes recursos eram os apropriados para suas alegações e o processo judicial em questão.  O Estado não alega que Samanta Nunes da Silva invocou recursos que não eram apropriados, mas que ela interpôs os recursos disponíveis com fundamentação deficiente.  Nesta fase processual, a Comissão deve determinar se a vítima interpôs os recursos adequados e apropriados e se o Estado foi devidamente notificado dos pedidos, para ter a oportunidade de resolvê-las em nível nacional na medida pertinente.

 

40.       O Supremo Tribunal Federal considerou em sua análise do recurso extraordinário e do Agravo de Instrumento que Samanta Nunes da Silva solicitava meramente um reexame da prova.  Das apresentações da partes se depreende que Samanta Nunes da Silva, no texto dos recursos, invocou as disposições constitucionais que considera terem sido violadas, descrevendo e fundamentando em detalhe atos de discriminação, a falta de medidas de proteção especial, e falhas no devido processo que supostamente ocorreram durante a ação penal.  Portanto, a Comissão considera que a suposta vítima invocou os recursos disponíveis e que o Estado foi notificado da substância de suas alegações.

 

41.        Com base nos fatores assinalados, a Comissão conclui que os recursos relativos aos pedidos da peticionária foram devidamente esgotados, conforme o artigo 46(1)(a) da Convenção Americana.

 

2.          Prazo de apresentação da petição

 

42.        O artigo 46.1.b da Convenção Americana estabelece que toda petição deve ser apresentada dentro de um prazo de seis meses contado a partir da data em que tenham sido os peticionários notificados da sentença definitiva que esgota os recursos internos. 

 

43.        As partes sustentam uma controvérsia sobre o cumprimento desse requisito.  A peticionária alega que a petição foi apresentada por correio postal dentro do prazo de seis meses requerido, do qual existe constância nos autos.  Indica que a vítima tomou conhecimento da resolução do Supremo Tribunal Federal sobre o Agravo de Instrumento em 18 de outubro de 2002, mediante a publicação da decisão e, por conseguinte, enviaram a petição por correio postal à Comissão em 18 de abril de 2003.  O Estado, em contraposição, alega que a petição foi recebida de maneira extemporânea já que foi registrada pela CIDH como recebida em 25 de abril de 2003, uma semana depois do fechamento do prazo e que não existe constância nos autos de que haja sido enviada pela peticionária em 18 de abril de 2003.

 

44.       No presente caso, a petição data de 18 de abril de 2003 e foi registrada como recebida na Comissão por correio postal em 25 de abril de 2003.  De acordo com a prática da CIDH na matéria[21], presumindo os dias que transcorreram enquanto a petição esteve no correio postal, a Comissão considera que a petição foi apresentada de forma oportuna.

 

3.         Duplicação de procedimentos e coisa julgada internacionais

 

45.       Não surge dos autos que a matéria da petição esteja pendente de outro procedimento de solução internacional, nem que reproduza uma petição já examinada por este ou órgão internacional.  Portanto corresponde dar por cumpridos os requisitos estabelecidos no artigo 46.1.c da Convenção Americana.

 

4.         Caracterização dos fatos alegados

 

46.        A peticionária alega que uma série de direitos de Samanta Nunes da Silva foram infringidos durante a ação penal empreendida contra um médico ortopedista que supostamente abusou sexualmente dela durante uma consulta médica.  A peticionária aduz, especificamente, a violação dos direitos de Samanta Nunes da Silva à integridade pessoal, à liberdade pessoal, à proteção da honra e da dignidade, à igualdade perante a lei, aos direitos da criança, à proteção judicial e a viver livre de violência.  O Estado, por sua parte, aduz que a petição não cumpre com os requisitos mínimos de admissibilidade.

 

47.        O Estado considera, mais especificamente, que a petição é inadmissível porque a peticionária solicita que a Comissão atue como um tribunal de “quarta instância”, para o que não é competente, já que a peticionária pretende que a CIDH reexamine o acervo probatório dos procedimentos judiciais internos que resultaram na absolvição do suposto agressor. Com respeito a esta alegação, a Comissão reitera o estabelecido em sua jurisprudência, afirmando que não é competente para revisar as sentenças ditadas por tribunais nacionais que atuem dentro da sua esfera de competência e apliquem o devido processo e as garantias judiciais[22].   A Comissão não pode atuar como um tribunal de alçada para examinar supostos erros de direito ou de fato que possam haver cometido os tribunais nacionais.   Não obstante, dentro do marco de seu mandato de garantir a observância dos direitos consagrados na Convenção Americana e em outros instrumentos interamericanos de direitos humanos, a Comissão é competente para declarar admissível uma petição e sentenciar sobre o mérito quando essa se refira a processos internos que poderiam ser violatórios de direitos garantidos pela Convenção Americana e pela Convenção de Belém do Pará[23].

 

48.        De acordo com esta doutrina, a Comissão observa que, ao admitir esta petição não pretende suplantar a competência das autoridades judiciais domésticas para apreciar a prova em casos de violência sexual e examinar erros de apreciação que pudessem ter sido cometidos pelos tribunais nacionais; questões que correspondem, em princípio, aos tribunais domésticos.  A Comissão, na etapa de mérito, determinará se o processo judicial interno[24] cumpriu com as garantias do devido processo e o direito das mulheres a viver livres de discriminação e violência, em concordância com os direitos protegidos pela Convenção Americana e pela Convenção de Belém do Pará. 

 

49.        Nesta etapa de admissibilidade, a Comissão considera que não corresponde determinar se ocorreram ou não as violações alegadas.  Para efeitos de admissibilidade, a CIDH deve resolver se os fatos expostos tendem a caracterizar possíveis violações à Convenção Americana, como estipula o artigo 47.b da mesma Convenção.  O critério de apreciação desses elementos é distinto do requerido para decidir sobre o mérito de uma denúncia.  A Comissão Interamericana deve realizar uma avaliação prima facie para examinar se a denúncia fundamenta a aparente ou potencial violação a um direito garantido na Convenção Americana[25].  Esta análise tem caráter sumário e não implica um pré-julgamento ou avanço de opinião sobre o mérito da controvérsia.  A distinção entre o estudo correspondente à declaração sobre a admissibilidade e o requerido para determinar uma violação está refletido no próprio Regulamento da CIDH, que estabelece de maneira claramente diferenciada as etapas de admissibilidade e mérito[26].

 

50.        Os argumentos da peticionária referem-se a fatos que, se comprovados poderiam caracterizar violações de vários direitos protegidos pela Convenção Americana nos artigos 19, 24, e 25, em conexão com o artigo 1.1 de tal instrumento, em prejuízo de Samanta Nunes da Silva, e o artigo 7 da Convenção de Belém do Pará.

 

51.        As alegações da peticionária se referem a assuntos relacionados à falta de proteção judicial e à discriminação que supostamente sofreu Samanta Nunes da Silva durante o processo penal,  baseado em seu sexo, raça e classe social, que, se forem comprovados, poderiam caracterizar violações dos artigos 24 e 25 da Convenção Americana. De igual forma, a peticionária alega uma suposta falta de imparcialidade das instâncias judiciais, assim como uma falta de acesso à justiça em condições de igualdade, o que pode caracterizar violações desses artigos.  A peticionária, outrossim, alega que Samanta Nunes da Silva careceu de uma proteção especial como criança durante o processo penal, o que poderia configurar una violação do artigo 19 da Convenção Americana.

 

52.       A Comissão, também considera que os fatos possam caracterizar uma violação do artigo 7 da Convenção de Belém do Pará, dado que a peticionária sustenta que o sistema judicial brasileiro cometeu irregularidades e falhas no devido processo em um caso de violência sexual, portanto, alegações pertinentes ao dever do Estado de atuar com a devida diligência requerida para devidamente julgar e sancionar atos de violência contra as mulheres.   Com respeito aos artigos 1, 2, 3 e 4 da Convenção de Belém do Pará, esses não constituem fundamentos jurídicos para admitir a petição, mas a Comissão os terá em conta, na medida em que sejam relevantes, durante sua interpretação do artigo 7 da Convenção de Belém do Pará na etapa de mérito.  A Comissão aclara que sua revisão na etapa de mérito não tem como objetivo revisar questões de interpretação ou aplicação do direito interno, mas sim de analisar se Samanta Nunes da Silva teve um devido acesso à justiça em condições de igualdade e livre de todas as formas de discriminação.

 

53.       Por outro lado, ainda que a peticionária não tenha invocado o artigo 8.1 da Convenção Americana, em virtude do principio iure novit curia a Comissão analisará alegações e supostas violações ao referido artigo. 

 

54.       Na opinião da Comissão, as alegações na petição não aportam suficientes fundamentos tendentes a estabelecer a violação dos direitos protegidos pelo artigo 5.1 sobre a integridade pessoal, o artigo 11.1 sobre a honra e a dignidade e o artigo 7 sobre a liberdade pessoal.

 

V.         CONCLUSÕES

 

55.       A Comissão Interamericana conclui que tem competência para analisar o mérito deste caso e que a petição é admissível de acordo com os artigos 46 e 47 da Convenção Americana. Com fundamento nos argumentos fáticos e jurídicos expostos no presente relatório e, sem pré-julgar o mérito do assunto,

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.         Declarar admissível a presente petição, no que se refere às supostas violações dos direitos reconhecidos pelos artigos 8.1, 19, 24 e 25 da Convenção Americana, em conexão com artigo 1.1 do mencionado instrumento, e o artigo 7 da Convenção de Belém do Pará, interpretado à luz dos artigos 1, 2, 3 e 4 da mesma Convenção, em prejuízo de Samanta Nunes da Silva,

 

2.         Declarar inadmissível a presente petição, no que se refere à suposta violação dos artigos 5.1, 7 e 11.1 da Convenção Americana.

 

3.         Notificar esta decisão às partes.

 

4.         Continuar com a análise do mérito do assunto; e

 

5.         Publicar esta decisão e incluí-la em seu Relatório Anual para a Assembléia Geral da OEA.

 

Dado e assinado na cidade de Buenos Aires, Argentina., aos 7 dias do mês de setembro de 2009. (Firmado): Luz Patricia Mejía Guerrero, Presidenta; Víctor E. Abramovich, Primeiro Vice-Presidente; Felipe González, Segundo Vice-Presidente; Sir Clare K. Roberts, Florentín Meléndez e Paolo Carozza, Membros da Comissão.


 


* Conforme o estabelecido no artigo 17.2.a do Regulamento da CIDH, o Comissionado Paulo Sérgio Pinheiro, de nacionalidade brasileira, não participou na discussão sobre esta petição.

[1] A Comissão utiliza o nome completo da suposta vítima por solicitação expressa da peticionária, de acordo com a carta recebida em 16 de outubro que denota a autorização da suposta vítima a respeito.

[2] Petição original datada de 25 de abril de 2003.

[3] Como parte de sua denúncia, a peticionária apresenta os resultados de investigações do processamento de casos de violência sexual no Brasil que supostamente ilustram como a grande maioria dos agressores tem uma posição de autoridade em relação à vítima em tribunais de segunda instância, diferentemente da primeira instância.  A peticionária apresenta os resultados de uma pesquisa realizada pelo Programa da Fundação Carlos Chagas - Gênero, Reprodução, Ação e liderança - para o ano 2001-2002, relacionada a processos criminais de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil.  Em tal pesquisa, 10 processos sobre violência sexual foram analisados, onde somente um teve condenação em segunda instância e a vítima era do sexo masculino (o único menino incluído na pesquisa).   Em sete processos os agressores foram absolvidos, sendo as vítimas meninas entre 11 e 14 anos. A peticionária apresenta uma pesquisa onde se analisaram 24 processos criminais de violência sexual e a relação da prova pericial com a condenação e a absolvição, demonstrando que em 58% dos processos o acusado conhecia a  vítima, em 42.9% as vítimas eram meninas e em 60% os agressores tinham uma posição de autoridade sobre a vítima e/ou o delito havia ocorrido em um lugar público.  

[4] A peticionária apresenta com a sua petição original, cópia da denúncia interposta pelo Ministério Público em 16 de dezembro de 1997.

[5] Interrogatório de Samanta Nunes da Silva pelo juiz da causa perante a 7ª Câmara Criminal, Poder Judicial, Estado do Rio Grande do Sul, 29 de abril de 1999.

[6] Parecer do Ministério Público, Tribunal de Justiça, Câmara Especial Criminal, Apelação de Delito Nº 70-002-059-764, Porto Alegre, 23 de março de 2001.  

[7] Parecer do Ministério Público, Tribunal de Justiça, Câmara Especial Criminal, Apelação de Delito Nº 70-002-059-764, Porto Alegre, 23 de março de 2001, parágrafo. 5.1. 

[8] Parecer do Ministério Público, Tribunal de Justiça, Câmara Especial Criminal, Apelação de Delito Nº 70-002-059-764, Porto Alegre, 23 de março de 2001, parágrafo. 9. 

[9] Parecer do Ministério Público, Tribunal de Justiça, Câmara Especial Criminal, Apelação de Delito Nº 70-002-059-764, Porto Alegre, 23 de março de 2001, parágrafo. 12. 

[10] Parecer do Ministério Público, Tribunal de Justiça, Câmara Especial Criminal, Apelação de Delito Nº 70-002-059-764, Porto Alegre, 23 de março de 2001, parágrafo. 11. 

[11] De acordo com a Lei 8.038 de 28 de maio de 1990, artigo 26, “Os recursos extraordinário e especial, nos casos previstos na Constituição Federal, serão interpostos no prazo comum de quinze dias, perante o Presidente do Tribunal recorrido, em petições distintas que conterão: I – a exposição do fato e do direito; II - a demonstração do cabimento do recurso interposto; III – as razões do pedido de reforma da decisão recorrida”  De acordo com o artigo 27.1 o Tribunal emitirá a decisão de admitir ou não o recurso.

[12] No recurso extraordinário interposto por Samanta Nunes da Silva cita-se o inciso III do artigo 1 da Constituição Federal do Brasil que protege a dignidade da pessoa e o inciso IV do artigo 3 do mesmo diploma legal o qual promove o bem de todos “ sem preconceitos de origem de raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

[13] No recurso extraordinário interposto por Samanta Nunes da Silva cita-se o artigo 5 da Constituição Federal e os incisos mencionados os quais protegem a igualdade perante a lei, a intimidade e a vida privada das pessoas, e proíbem a discriminação contra todas as pessoas. 

[14] Recurso extraordinário interposto por Samanta Nunes da Silva perante o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em 5 de novembro de 2001.  

[15] A peticionária apresenta com sua petição original a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul de não admitir o Recurso Extraordinário interposto por Samanta Nunes da Silvia, 17 de abril de 2002.

[16] De acordo com a Lei 8.038 de 28 de maio de 1990, artigo 28, “denegado o recurso extraordinário ou o recurso especial, caberá agravo de instrumento para o Supremo Tribunal Federal ou para o Superior Tribunal de Justiça, conforme o caso.”

[17] O Estado cita um número de casos que não foram admitidos pela Comissão por não cumprirem com o requisito do prazo razoável, incluindo, CIDH, Relatório 32/98, Caso 11.507, Anselmo Ríos Aguilar (México), 5 de maio de 1998; CIDH, Relatório 70/00, Caso 11.707, Gladis Cardozo Andrade (Venezuela), 30 de outubro de 2000; CIDH, Relatório 95/01, Caso 12.203, Liliana Zambrano Pacheco, (Peru), 10 de outubro de 2001, entre outros.

[18] Observações do Estado de 18 de janeiro de 2006 (a ênfase está no original).

[19] O Estado assevera que “essa autonomia é garantia indissociável da independência dos órgãos jurisdicionais, cuja prestação jurisdicional, num mundo de provas pré-avaliadas, dissociadas do conjunto probatório, seria reduzida a mero exercício matemático e dificilmente à verdadeira justiça”. Observações do Estado de 18 de janeiro de 2006.

[20] Convenção de Viena sobre o direito dos tratados, U.N. Doc A/CONF.39/27 (1969), 1155 U.N.T.S. 331, que entrou em vigor, 27 de janeiro de 1980, artigo 31.

[21] Ver CIDH, Relatório de Admissibilidade Nº 69/08, Petição 681-00, Guillermo Patricio Lynn, Argentina, 16 de outubro de 2008, parágrafos. 44-46 (Neste caso, a petição era de data de 12 de dezembro de 2000, foi enviada por correio postal e foi recebida na Comissão em 29 de dezembro de 2000.  A Comissão, presumindo os dias em que a petição esteve no  correio postal, considerou que a petição havia sido apresentada de forma oportuna).

[22] Ver CIDH, Relatório No. 52/02, Caso 11.753, Mérito, Ramón Martínez Villareal, Estados Unidos, 10 de outubro de 2002, parágrafo. 53; CIDH, Relatório No. 39/96, Santiago Marzioni (Argentina), Relatório Anual da CIDH 1996, parágrafos. 48 – 51.

[23] Ver CIDH, Relatório Nº 42/08, Petição 1271-04, Karen Atala e Filhas (Chile), 23 de julho de 2008, parágrafo. 59; CIDH, Relatório No. 52/02, Caso 11.753, Mérito, Ramón Martínez Villareal, Estados Unidos, 10 de outubro de 2002, parágrafos. 53; CIDH, Relatório No. 39/96, Caso 11.673, Santiago Marzioni (Argentina), Relatório Anual da CIDH 1996, parágrafos. 48 – 51; CIDH, Relatório Nº 54/01, Caso 12.051, Maria da Penha Maia Fernandes (Brasil), 16 de abril 2001, parágrafos. 28.

[24] A Corte Interamericana estabeleceu que “esclarecimento de se o Estado violou ou não suas obrigações internacionais em virtude das atuações de seus órgãos judiciais, pode conduzir a que o Tribunal deva se ocupar de examinar os respectivos processos internos para estabelecer sua compatibilidade com a Convenção Americana …..À luz do anterior se devem considerar os procedimentos internos como um todo. A função do Tribunal é determinar se o procedimento, considerado integralmente, se ajustou à Convenção”. Corte I.D.H. Caso Escher e outros, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 6 de julho de 2009. Serie C No. 199, parágrafo. 44; Caso dos “Meninos de Rua” (Villagrán Morales e outros). Mérito. Sentença de 19 de novembro de 1999. Serie C No. 63, parágrafo. 222.

[25] Ver CIDH, Relatório No. 128/01, Caso 12.367, Herrera e Vargas (“La Nación”), Costa Rica, 3 de dezembro de 2001, parágrafo. 50.

[26] Ver CIDH, Relatório No. 31/03, Caso 12.195, Mario Alberto Jara Oñate e outros, Chile, 7 de março de 2003.