RELATÓRIO Nº 62/09[1]

PETIÇÃO 1173-05

ADMISSIBILIDADE

SILAS ABEL DA CONCEIÇÃO E AUGUSTA TOMÁZIA INÁCIA

BRASIL

4 de agosto de 2009

 

I.          RESUMO

 

1.                  Em 19 de outubro de 2005, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante “Comissão Interamericana” ou “CIDH”) recebeu uma petição apresentada por Augusta Tomázia Inácia, Elcio Pacheco e Dionara Amparo dos Anjos (“peticionários”)[2] contra a República Federativa do Brasil (“Estado” ou “Brasil”).  A petição alega violações dos artigos I (direito à vida, liberdade e segurança pessoal), II (direito de igualdade perante a lei) e XVIII (direito à justiça) da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (“Declaração Americana”), bem como violações dos artigos 1.1 (obrigação de respeitar os direitos) e 25 (direito a proteção judicial) da Convenção Americana de Direitos Humanos (“Convenção Americana”), em detrimento de Silas Abel da Conceição e sua mãe, Augusta Tomázia Inácia (“supostas vítimas”).

 

2.                  A petição denuncia a tortura e subseqüente execução sumária da suposta vítima,[3] então com 18 anos, por três membros da Polícia Civil de Minas Gerais, começando com sua detenção em meados de setembro de 1988, quando se alega que ele foi arbitrariamente preso e torturado junto com Pedro de Almeida, então com 20 anos.  Alega-se que este último foi morto sob tortura na Delegacia de Polícia de Cachoeirinha, em Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais, em 22 de setembro de 1988.  Depois disso, alega-se que os policiais Onofre Maurício Vasconcelos, Fernando Costa de Souza e Álvaro José Viana colocaram o corpo de Pedro de Almeida num saco e levaram a suposta vítima para um lugar desconhecido no mato, onde supostamente forçaram-no a enterrar o corpo.  Segundo os peticionários, a suposta vítima era a única testemunha ocular desse crime.  Alegam também que em 7 de outubro de 1988 os policiais Onofre Maurício de Vasconcelos e Fernando Costa de Souza seqüestraram a suposta vítima e o executaram com um tiro na nuca.  Os peticionários indicam que não houve decisão definitiva sobre esse crime mais de 20 anos depois da execução da suposta vítima.

 

3.                  O Estado argumenta que a petição é inadmissível devido à falta de esgotamento dos recursos internos.  Nesse sentido, o Estado enfatiza que, em conformidade com o artigo 46.1.a da Convenção Americana, o mecanismo de petição do sistema interamericano tem caráter subsidiário; portanto, os Estados devem ter a oportunidade de resolver as questões em seus próprios tribunais.  Segundo o Brasil, as autoridades nacionais efetivamente buscaram justiça e reparação com relação à morte da suposta vítima por meio da correspondente ação criminal; assim, em 12 de setembro de 2007 o réu Onofre Maurício Vasconcelos foi condenado por um júri a 12 anos de prisão por esse crime.  Na comunicação de abril de 2008, o Estado alega que esse réu apresentou um recurso que estava pendente de decisão no tribunal de 2ª instância.  Quanto ao outro réu, Fernando Costa de Souza, o Estado alega que seu julgamento por júri deveria ocorrer no segundo semestre de 2006.

 

4.                  Após examinar as posições das partes com respeito aos requisitos estipulados nos artigos 46 e 47 da Convenção Americana, a Comissão decide declarar a presente petição admissível no que se refere aos artigos I e XVIII da Declaração Americana, bem como o artigo 25.1 da Convenção Americana, em relação ao artigo 1.1.   Em virtude do princípio de iura novit curia, também declara a presente petição admissível com respeito a uma possível violação dos artigos XXV e XXVI da Declaração Americana e artigos 5.1 e 8.1 da Convenção Americana.  A CIDH declara a presente petição inadmissível no tocante à suposta violação do artigo II da Declaração Americana, em conformidade com o artigo 47.b da Convenção Americana. Portanto, a Comissão Interamericana decide notificar esta decisão às partes e publicar e incluir este relatório em seu Relatório Anual à Assembléia Geral da OEA.

 

II.         TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

5.                  Em 19 de outubro de 2005 a Comissão recebeu a queixa apresentada pelos peticionários.  Em 16 de maio de 2006 a CIDH submeteu as partes relevantes da petição ao Estado, solicitando que apresentasse suas observações dentro de dois meses.  Mediante nota recebida em 25 de julho de 2006, o Estado submeteu suas observações sobre a presente petição.

 

6.                  Os peticionários apresentaram informação adicional em 28 de agosto de 2006, 31 de maio de 2007, 18 de outubro de 2007, 20 de fevereiro de 2008 e 15 de maio de 2008.  As comunicações com informações ou argumentos adicionais foram devidamente transmitidas ao Estado.

 

7.                  Do mesmo modo, o Estado apresentou informações adicionais em 17 de novembro de 2006, 23 de junho de 2007, 3 de janeiro de 2008 e 9 de abril de 2008, as quais foram devidamente transmitidas aos peticionários.

 

III.        POSIÇÕES DAS PARTES

 

A.         Posição dos peticionários

 

8.                  Os peticionários alegam que, em 22 de setembro de 1988, os policiais Onofre Maurício Vasconcelos, Fernando Costa de Souza e Álvaro José Viana prenderam a suposta vítima, então com 18 anos, e Pedro de Almeida, então com 20 anos, em Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais.  Argumentam que os dois indivíduos foram submetidos a sessões de tortura usando a técnica conhecida no Brasil como “pau-de-arara”.[4]  Segundo os peticionários, os policiais também espancaram violentamente Pedro de Almeida, que sangrou pela boca, nariz e ouvidos.  Alega-se que a suposta vítima testemunhou tudo enquanto era submetida a torturas e espancamentos semelhantes.

 

9.                  Os peticionários afirmam que a suposta vítima sobreviveu à tortura e espancamento, mas o corpo sem vida de Pedro de Almeida foi colocado num saco plástico preto.  Alega-se que os policiais levaram o corpo de Pedro de Almeida e a suposta vítima a um local desconhecido no mato, onde forçaram a suposta vítima a cavar um buraco para enterrar o corpo de Pedro de Almeida. Segundo os peticionários, enquanto enterrava o corpo, a suposta vítima percebeu que Pedro de Almeida ainda estava vivo, se mexendo e respirando; contudo, seu corpo foi jogado na cova e enterrado.

 

10.              Os peticionários afirmam que a suposta vítima é a única testemunha ocular da tortura, morte e ocultação do cadáver de Pedro de Almeida, e que foi ameaçado para manter silêncio sobre esses fatos.  Segundo os peticionários, alguns dias depois a suposta vítima foi libertada da prisão por meio de um habeas corpus.  A mãe de Pedro de Almeida, vizinha da suposta vítima, insistentemente lhe perguntou sobre o destino de seu filho, mas a suposta vítima primeiro permaneceu em silêncio, devido ao medo de represálias.  Todavia, depois a suposta vítima acabou contando à sua própria mãe, Augusta Tomázia Inácia, tudo o que foi descrito supra.

 

11.              Os peticionários alegam que, em 7 de outubro de 1988, os policiais Onofre Maurício Vasconcelos e Fernando Costa de Souza seqüestraram a suposta vítima e o levaram à rodovia BR-262, onde um dos policiais o executou com um tiro na nuca.

 

12.              Os peticionários observam que em 3 de abril de 1989 o Ministério Público acusou os policiais Onofre Maurício Vasconcelos e Fernando Costa de Souza de prisão arbitrária, tortura e homicídio da suposta vítima.  No entanto, mais de 20 anos depois do crime ocorrido em 1988, não há decisão definitiva, o que na opinião deles demonstra que houve atraso injustificado de uma sentença final no âmbito dos recursos internos.  Segundo os peticionários, desde a morte de seu filho em 1988, Augusta Tomázia Inácia clamou por justiça até morrer de câncer no fim de 2006, após sofrer por 18 anos devido à execução de seu filho e ao fato de as autoridades não terem punido os responsáveis.

 

B.         Posição do Estado

 

13.              O Estado argumenta que a petição é inadmissível devido à falta de esgotamento dos recursos internos.  Nesse sentido, o Estado enfatiza que, em conformidade com o artigo 46.1.a da Convenção Americana, o mecanismo de petição do sistema interamericano tem caráter subsidiário; portanto, os Estados devem ter a oportunidade de resolver as questões em seus próprios tribunais.  Segundo o Brasil, as autoridades nacionais efetivamente buscaram justiça e reparação com relação à morte da suposta vítima por meio da correspondente ação criminal.

 

14.              De fato, o Estado enfatiza que, em 25 de novembro de 2005, o réu Onofre Maurício Vasconcelos foi condenado por um júri a 14 anos em prisão pela morte da suposta vítima. Segundo o Estado, o réu apelou dessa decisão. Em abril de 2008, o Estado informou que em 12 de setembro de 2007 o policial Onofre Maurício Vasconcelos foi condenado por outro júri a 12 anos de prisão pela morte da suposta vítima.  Segundo o Estado, esse réu apresentou um recurso que estava pendente de decisão no tribunal de 2ª instância.

 

15.              Quanto ao outro réu, Fernando Costa de Souza, o Estado alega que seu julgamento por júri deveria ocorrer em 14 de dezembro de 2006.  Em suas comunicações mais recentes, o Estado não menciona o processo criminal contra o segundo réu.

 

16.              Tendo em vista o exposto, o Estado argumenta que os recursos internos relacionados à morte da suposta vítima não foram esgotados, e que a ação criminal seguiu seu curso normal com o devido respeito ao direito dos réus de recorrer da sentença a um tribunal superior, conforme reconhecido no artigo 8.2.h da Convenção Americana.  Portanto, o Estado solicita que a Comissão Interamericana declare a presente petição inadmissível, em conformidade com os artigos 46.1.a e 47.a da Convenção Americana. 

 

IV.        ANÁLISE DE ADMISSIBILIDADE

 

A.                 Competência ratione personae, ratione materiae, ratione temporis e ratione loci

 

17.              Nos termos do artigo 44 da Convenção Americana e artigo 23 do Regulamento da Comissão Interamericana, os peticionários têm locus standi para apresentar uma petição à CIDH.  O Brasil, como Estado Membro da Organização dos Estados Americanos,[5] tem as obrigações e deveres estipulados na Declaração Americana e na Carta da OEA.  O Brasil também é um Estado Parte da Convenção Americana, a qual ratificou em 25 de setembro de 1992.  A Comissão Interamericana considera que as supostas vítimas indicadas na petição são Silas Abel da Conceição e Augusta Tomázia Inácia, indivíduos cujos direitos no âmbito da Declaração Americana e da Convenção Americana o Estado se comprometeu a respeitar e garantir.  A Comissão, portanto, tem competência ratione personae para examinar a presente petição.

 

18.              Nos termos dos artigos 1.2.b e 20 de seu Estatuto, a CIDH tem competência ratione temporis para examinar possíveis violações de direitos humanos protegidos pela Declaração Americana e pela Convenção Americana.  A Comissão toma nota de que os fatos descritos na petição tiveram início em 1988, quando o Estado ainda não tinha ratificado a Convenção Americana.  A Comissão tem competência ratione temporis para determinar se, no período anterior a 25 de setembro de 1992, houve alguma violação dos direitos protegidos pela Declaração Americana.  A Corte Interamericana de Direitos Humanos (“Corte Interamericana”) explicitamente reconheceu a obrigatoriedade da Declaração Americana quando estabeleceu que “os artigos 1.2.b e 20 do Estatuto da Comissão definem a competência desse órgão com relação aos direitos humanos enunciados na Declaração, resultando que, a esse respeito, Declaração Americana é para esses Estados uma fonte de obrigações internacionais relativas à Carta da Organização.”[6]

 

19.              Do mesmo modo, a Comissão tem competência ratione temporis no tocante às supostas violações de direitos protegidos pela Convenção Americana, com respeito aos eventos que ocorreram após a sua ratificação pelo Estado.

 

20.              A petição denuncia violações de direitos protegidos pela Declaração Americana e pela Convenção Americana.  A Comissão, portanto, tem competência ratione materiae para examinar a petição.  Por último, a CIDH tem competência ratione loci para examinar a presente petição na medida em que alega violações de direitos protegidos pela Declaração Americana e pela Convenção Americana, que supostamente ocorreram no território de um Estado Parte desses instrumentos.

 

B.         Admissibilidade da petição

 

1.         Esgotamento dos recursos internos

 

21.              Nos termos do artigo 46.1.a da Convenção Americana, os recursos de direito interno devem ter sido empregados e esgotados para que uma petição seja admissível.  Nos termos do artigo 46.2.c do mesmo instrumento, a norma que requer o esgotamento dos recursos de direito interno não se aplica quando “houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.”

 

22.              Nesse sentido, a Comissão Interamericana enfatiza que a norma que exige o esgotamento prévio dos recursos internos foi estabelecida para assegurar ao Estado a oportunidade de resolver disputas dentro de seu próprio sistema legal.  Por outro lado, as exceções estipuladas no artigo 46.2 da Convenção Americana procuram assegurar que o sistema interamericano possa intervir quando os recursos da jurisdição interna e o próprio sistema judicial não garantem efetivamente o respeito aos direitos humanos da vítima.

 

23.              A CIDH observa que recebeu a queixa em 19 de outubro de 2005, antes do esgotamento dos recursos do sistema legal interno.  Os peticionários sustentaram, em todo o trâmite junto à CIDH, que houve demora injustificada na decisão definitiva dos recursos internos. Por outro lado, o Estado alega que a petição é inadmissível devido à falta de esgotamento dos recursos internos.

 

24.              A informação e os documentos apresentados pelas partes mostram que, com relação à morte da suposta vítima, em 7 de outubro de 1988 foi instaurada uma ação criminal por meio de acusações apresentadas contra dois policiais em 3 de abril de 1989, por prisão arbitrária, tortura e homicídio.  O Estado alega que um dos réus foi condenado em 12 de setembro de 2007 a 12 anos de prisão pela morte da suposta vítima, mas há um recurso pendente de decisão no tribunal de segunda instância.  O Estado também indicou que o segundo réu teria sido submetido a julgamento por júri em 14 de dezembro de 2006.

 

25.              Os peticionários, por sua vez, apresentaram documentos que indicam que a ação criminal referente aos dois réus está pendente de recurso no tribunal de segunda instância.  De fato, segundo um documento apresentado pelos peticionários em 20 de fevereiro de 2008, o processo referente ao réu Onofre Maurício de Vasconcelos foi submetido ao tribunal de segunda instância em 20 de dezembro de 2007 e estava pendente de decisão.  Do mesmo modo, o processo referente ao réu Fernando Costa de Souza foi submetido ao tribunal de segunda instância em 20 de abril de 2007 e estava pendente de decisão.

 

26.               Em conclusão, a Comissão Interamericana observa que é incontroverso que não houve decisão definitiva sobre os crimes supostamente cometidos contra a suposta vítima, apesar de haver passado mais de 20 anos desde a sua morte.  A CIDH enfatiza que o Estado não apresentou informações detalhadas que possam justificar o atraso de mais de 20 anos na decisão definitiva dos recursos internos.  Portanto, a Comissão Interamericana decide que a presente petição é admissível, em conformidade com o artigo 46.2.c da Convenção Americana.

 

2.         Prazo para apresentar a petição

 

27.              O artigo 32.2 do Regulamento da CIDH estipula:

 

Nos casos em que sejam aplicáveis as exceções ao requisito de esgotamento prévio dos recursos internos, a petição deverá ser apresentada dentro de um prazo razoável, a critério da Comissão. Para tanto a Comissão considerará a data em que haja ocorrido a presumida violação dos direitos e as circunstâncias de cada caso.

 

28.              A Comissão Interamericana já determinou supra (par. 26) que neste caso se aplica uma exceção à norma que requer o esgotamento prévio de recursos internos. Conseqüentemente, a CIDH deve determinar se a petição foi apresentada dentro de um prazo razoável, conforme estipulado no artigo 32.2 do seu Regulamento. A esse respeito, a Comissão assinala que a petição foi apresentada à CIDH em 19 de outubro de 2005.  É inconteste que nessa data o processo criminal continuava aberto, mas não havia sido proferida uma sentença final. Tendo em vista que esses processos estão pendentes de recurso, e que os peticionários estão reclamando precisamente de demora injustificada e denegação de justiça, a CIDH conclui que a petição foi apresentada dentro de um prazo razoável.

 

3.           Duplicação de procedimentos e coisa julgada

 

29.              Nada nos documentos indica que o assunto da petição esteja pendente de outro processo de solução internacional ou que seja substancialmente reprodução de outra petição anteriormente estudada pela Comissão ou outra organização internacional, conforme estipulado nos artigos 46.1.c e 47.d, respectivamente.

 

4.         Caracterização dos fatos alegados

 

30.              O artigo 47.b da Convenção estipula que a Comissão declarará inadmissível toda petição que “não expuser fatos que caracterizem violação dos direitos garantidos por esta Convenção.”  O padrão para avaliar a admissibilidade é diferente do usado para decidir sobre os méritos de um caso, já que a primeira requer que a Comissão faça uma análise prima facie para determinar se a queixa estabelece a aparente ou potencial violação de um direito garantido pela Declaração ou Convenção. Em outras palavras, o exame da admissibilidade é uma análise sumária que não implica pré-julgamento ou opinião preliminar sobre os méritos

 

31.              Com base nos fatos denunciados pelos peticionários com relação à prisão arbitrária da suposta vítima, em setembro e outubro de 1988, seguida de sua tortura e ameaça à segurança pessoal durante o mesmo período e, finalmente, sua execução supostamente perpetrada por agentes do Estado que eram membros da Polícia Civil de Minas Gerais em 7 de outubro de 1988, a Comissão Interamericana declara a presente petição admissível no tocante aos artigos I (direito à vida, liberdade e segurança pessoal), XXV (direito de proteção contra prisão arbitrária) e XXVI (direito a processo regular e a não receber “penas cruéis, infamantes ou inusitadas”) da Declaração Americana.  A CIDH determina a admissibilidade dos artigos XXV e XXVI com base no princípio iura novit curia, já que não foram invocados pelos peticionários.

 

32.              Com base nos recursos legais tentados nos tribunais nacionais, e nas supostas violações do processo regular e atraso injustificado na decisão definitiva no âmbito desses recursos, em detrimento de Augusta Tomázia Inácia e do parente mais próximo da suposta vítima, a Comissão determina que os fatos denunciados poderiam tender a estabelecer violações dos direitos protegidos pelos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação ao artigo 1.1, por eventos que ocorreram após a ratificação desse instrumento internacional pelo Brasil.  Quanto aos fatos que supostamente ocorreram antes de 25 de setembro de 1992, a CIDH decide que eles poderiam tender a estabelecer violações dos artigos XVIII (direito à justiça) e XXVI (direito a processo regular) da Declaração Americana.  A Comissão Interamericana determina a admissibilidade do artigo 8.1 da Convenção Americana e artigo XXVI da Declaração Americana com base no princípio iura novit curia, já que não foram invocados pelos peticionários.  Do mesmo modo, com base no princípio iura novit curia, a CIDH determina a admissibilidade do artigo 5.1 da Convenção, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, devido ao sofrimento supostamente causado pela suposta denegação de justiça, em detrimento de Augusta Tomázia Inácia e dos familiares diretos da suposta vítima.

 

33.              Finalmente, a petição alega violação do artigo II (direito de igualdade perante a lei). Contudo, a CIDH observa que os peticionários não substanciaram adequadamente por que ou como essa disposição pode ter sido violada, e não está evidente da descrição dos fatos que estes poderiam tender a estabelecer uma violação desse direito. Portanto, com respeito a este argumento, a Comissão Interamericana declara a presente petição inadmissível, em conformidade com o artigo 47.b da Convenção Americana.

 

34.              Assim, a CIDH conclui que a petição é admissível no tocante aos artigos I, XVIII, XXV e XXVI da Declaração Americana, bem como artigos 5.1, 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação ao artigo 1.1, em conformidade com o artigo 47.b do mesmo instrumento.

 

V.         CONCLUSÕES

 

35.              A Comissão Interamericana conclui que tem competência para examinar a presente petição e que preenche os requisitos de admissibilidade estipulados nos artigos 46 e 47 da Convenção Americana.  Portanto, com base nesses argumentos de fato e de direito, e sem prejulgar os méritos do caso,

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS DECIDE:

 

1.         Declarar a presente petição admissível com respeito às supostas violações dos artigos I e XVIII da Declaração Americana, bem como do artigo 25.1 da Convenção Americana, em relação ao artigo 1.1.  Em virtude do princípio iura novit curia, também declara a presente petição admissível pela possível violação dos artigos XXV e XXVI da Declaração e artigos 5.1 e 8.1 da Convenção Americana;

 

2.         Declarar a presente petição inadmissível no tocante à suposta violação do artigo II da Declaração Americana, em conformidade com o artigo 47.b da Convenção Americana;

 

3.         Notificar ao Estado e aos peticionários a presente decisão e continuar a análise dos méritos do caso;

 

4.         Publicar a presente decisão e incluí-la no Relatório Anual da Comissão à Assembléia Geral da OEA.

 

Preparado e assinado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos na sua sede em Washington D.C. no dia 4 de agosto de 2009. (assinaturas):  Luz Patricia Mejía Guerrero, Presidente; Víctor E. Abramovich, Primeiro Vice-Presidente; Felipe González, Segundo Vice-Presidente; Sir Clare K. Roberts, Florentín Meléndez e Paolo G. Carozza, Comissários.


[1] Paulo Sérgio Pinheiro, membro da Comissão de nacionalidade brasileira, não participou das deliberações e voto sobre este relatório, de acordo com o Artigo 17.2.a do Regulamento da Comissão.

[2] Mediante comunicação recebida em 1º de março de 2007, os peticionários indicaram que Augusta Tomázia Inácia faleceu no fim de 2006, sendo substituída como peticionária por sua filha, a irmã da suposta vítima, Salma Luiza da Conceição. Além disso, informaram que a peticionária Dionara Amparo dos Anjos não trabalhava mais neste caso.

[3] Quando se refere somente a Silas Abel da Conceição, a Comissão usa a expressão “suposta vítima” em todo o relatório.

[4] Segundo os peticionários, o pau-de-arara consiste numa barra de ferro que é atravessada entre os punhos amarrados e a dobra do joelho; a barra é colocada entre duas mesas, ficando o corpo da vítima pendurado a cerca de 20 a 30 centímetros do solo.

[5] O Brasil é membro fundador da Organização dos Estados Americanos, tendo assinado a Carta da OEA em 1948 e depositado o instrumento de ratificação em 1950.

[6] I/A Court H.R. Interpretação da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem no Contexto do artigo 64 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Opinião Consultiva OC-10/89 de 14 de julho de 1989, Série A No. 10, par. 45. Ver também CIDH, Relatório Nº 19/98, Admissibilidade, Caso 11.516, Ovelário Tames, Brasil, 21 de fevereiro de 1998, par. 15; Relatório Nº 33/01, Admissibilidade, Caso 11.552, Guerrilha do Araguaia, Julia Gomes Lund e outros, Brasil, 6 de março de 2001, par. 38; Relatório Nº 17/98, Admissibilidade, Casos 11.407 Clarival Xavier Coutrim, 11.406, Celso Bonfim de Lima, 11.416, Marcos Almeida Ferreira, 11.413, Delton Gomes da Mota, 11.417,  Marcos de Assis Ruben, 11.412, Wanderley Galati, 11.414, Ozeas Antônio dos Santos, 11.415, Carlos Eduardo Gomes Ribeiro, 11.286, Aluísio Cavalcanti Júnior e Cláudio Aparecido de Moraes, Brasil, 21 de fevereiro de 1998, par. 163.