RELATÓRIO Nº 41/08

PETIÇÃO 478-07

ADMISSIBILIDADE

PESSOAS PRIVADAS DE LIBERDADE

NA CADEIA PÚBLICA DO GUARUJÁ, SÃO PAULO

BRASIL[1]

23 de julho de 2008

 

 

I.          RESUMO

 

1.        Em 18 de abril de 2007, a Associação Conectas Direitos Humanos, o Instituto Pro Bono e o Conselho Comunitário Penitenciário de Guarujá e Vicente de Carvalho (doravante, “os Peticionários”) apresentaram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante, a “CIDH” ou “a Comissão”) uma petição contra a República Federativa do Brasil (doravante, “Brasil” ou “o Estado”), que compreendia também um pedido de medidas cautelares. Esta petição denuncia a situação de superpopulação carcerária, condições degradantes de detenção, maus-tratos e conseqüentes violações aos direitos humanos dos adultos, jovens e crianças[2] privados de liberdade na Cadeia Pública[3] do Município de Guarujá, estado de São Paulo, Brasil. Os peticionários afirmaram que os fatos caracterizavam violações do direito à vida (artigo 4) e à integridade pessoal (artigo 5), dos direitos da criança (artigo 19) e do direito à proteção judicial (artigo 25), bem como o descumprimento das obrigações do Estado de respeitar e garantir os direitos das pessoas que estão sob sua jurisdição da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante, “a Convenção Americana”) (artigo 1.1).

 

2.        O Estado afirma que não estão esgotados os recursos internos, uma vez que estão em tramitação perante o Poder Judiciário do Brasil quatro ações civis públicas que têm por objetivo tutelar diversos aspectos relacionados com a Cadeia Pública do Guarujá. Expressa também que o prazo de tramitação dessas ações não excede o razoável, motivo pelo qual tampouco se poderia fundamentar uma exceção ao requisito estabelecido pelo artigo 46(2) da Convenção Americana.

 

3.        Depois de analisar a petição, e de acordo com o disposto nos artigos 46 e 47 da Convenção Americana, a Comissão decide declarar admissível a petição com respeito a supostas violações dos direitos reconhecidos nos artigos 5, 19 e 25(1), em relação com as obrigações derivadas do artigo 1(1), todos da Convenção Americana, bem como, com base no princípio iura novit curia, os artigos 2 e 8(1) da Convenção Americana e 7 da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (doravante, “Convenção de Belém do Pará”). Tudo isso diz respeito às crianças privadas de liberdade na Cadeia Pública do Guarujá de 1999 até esta data, bem como aos jovens e adultos privados de liberdade nesse centro de 2004 até esta data. Com relação à suposta violação do artigo 4 da Convenção Americana, a Comissão considera que a petição é inadmissível. A Comissão decide, igualmente, notificar esta decisão às partes, publicá-la e incluí-la em seu Relatório Anual à Assembléia Geral da OEA. 

 

II.         TRAMITAÇÃO JUNTO À COMISSÃO E MEDIDAS CAUTELARES

 

4.         Em 18 de abril de 2007, junto com a petição apresentada à Comissão, os peticionários formularam um pedido de medidas cautelares destinada a proteger a vida e a integridade física de 14 crianças privadas de liberdade na Cadeia Pública do Município de Guarujá.

 

5.         Em 27 de abril de 2007, a CIDH solicitou informações adicionais aos peticionários sobre a petição de medidas cautelares. Em 8 de maio de 2007, a Comissão recebeu cópia da comunicação de 18 de abril de 2007, acompanhada dos respectivos anexos.

 

6.         Em 25 de maio de 2007, os peticionários encaminharam à Comissão Interamericana informações adicionais, dando conta da realização de uma visita de inspeção levada a cabo pelos mesmos em 9 de maio de 2007 à Cadeia Pública do Guarujá.

 

7.         Em 19 de junho de 2007, no âmbito da petição de medidas cautelares formulada pelos peticionários e sem prejulgar sobre a eventual abertura de um processo de medidas cautelares, a Comissão solicitou ao Estado informações sobre as medidas de controle e proteção judicial relacionadas com as condições de detenção que teriam sido adotadas na Cadeia Pública do Guarujá.[4] Na mesma data e no contexto da petição 478-07, a Comissão decidiu transmitir ao Estado as partes pertinentes da petição apresentada, dando-lhe, no uso da faculdade prevista no artigo 30.4 do Regulamento, o prazo de um mês para sua contestação.

 

8.        Em 6 de julho de 2007, o Estado encaminhou à Comissão Interamericana as informações requeridas no âmbito da tramitação da petição de medidas cautelares, que foram encaminhadas aos peticionários em 15 de agosto de 2007, os quais deveriam apresentar suas observações ao documento do Estado no prazo de 15 dias.

 

9.         Em 18 de julho de 2007, no âmbito da tramitação da petição 478-07, a Comissão recebeu a resposta do Estado à petição de referência, cujas partes pertinentes foram encaminhadas aos peticionários em 24 de julho de 2007, para que apresentassem suas observações ao documento do Estado no prazo de um mês.

 

10.        Em 23 de agosto de 2007 os peticionários apresentaram suas observações à resposta do Estado referida supra. Da mesma forma, em 27 de agosto de 2007 os peticionários enviaram suas observações às informações enviadas pelo Estado em 6 de julho, no âmbito da petição de medidas cautelares.

 

11.        Em 4 de setembro de 2007, a Comissão recebeu novas informações enviadas pelos peticionários, relatando o agravamento da situação de perigo para a vida e a integridade física das crianças privadas de liberdade na Cadeia Pública do Guarujá, como também a suposta incapacidade do Estado brasileiro de resolver a situação de grave violação dos direitos humanos desses presos, informações que foram enviadas ao Estado em 11 de setembro de 2007.

 

12.        Em 21 de setembro de 2007, o Estado, no âmbito do pedido de medidas cautelares, informou que a reforma da cadeia de Vicente de Carvalho, anexa ao 1º Distrito Policial de Guarujá, foi concluída, de maneira que todos os presos sob custódia na Cadeia Pública do Guarujá – Anexo 1 – poderiam ser transferidos para a prisão de Vicente de Carvalho a fim de que o Anexo 1 seja devidamente desativado. Em virtude disso, o Estado solicita que a petição de medidas cautelares seja arquivada.

 

13.        Em 17 de outubro de 2007, no âmbito do 130º Período Ordinário de Sessões, a Comissão decidiu conceder as medidas solicitadas em favor das crianças sob custódia na Cadeia Pública do Guarujá.[5]

 

14.         Em 20 de novembro de 2007, o Estado solicitou uma prorrogação de 15 dias para submeter à CIDH informações sobre o cumprimento das medidas cautelares outorgadas. Esse pedido foi concedido pela Comissão em 29 de novembro de 2007.

 

15.         Em 27 de novembro de 2007, os peticionários informaram sobre a morte de três presos adultos da Cadeia Pública do Guarujá, durante uma tentativa de fuga; descreveram as condições de detenção dos presos maiores de 18 anos nessa prisão; e solicitaram a ampliação das medidas cautelares em favor deles.

 

16.         Em 30 de novembro de 2007, a Comissão solicitou aos peticionários que apresentassem, no prazo de 15 dias, informações adicionais sobre a alegada situação de risco que ameaçaria os detidos adultos na Cadeia Pública do Guarujá.

 

17.         Em 12 de dezembro de 2007, o Estado solicitou à Comissão uma nova prorrogação de 15 dias para enviar informações sobre o cumprimento das medidas cautelares outorgadas em favor dos menores. Em 17 de dezembro de 2007, a Comissão atendeu a esse pedido, estendendo o prazo até 3 de janeiro de 2008.

 

18.         Em 18 de dezembro de 2007, os peticionários apresentaram as informações adicionais solicitadas pela CIDH sobre as condições de detenção dos presos adultos e sua alegada situação de risco.

 

19.         Em 3 de janeiro de 2008, o Estado apresentou informações no contexto das medidas cautelares outorgadas em favor das crianças sob custódia na Cadeia Pública.

 

20.         Em 15 de janeiro de 2008, foi comunicada ao Estado a decisão da Comissão de ampliar as medida cautelares em favor dos detidos adultos na Cadeia Pública do Guarujá.[6]

21.         Em 29 de janeiro de 2008, o Estado enviou uma comunicação informando que, em 30 de janeiro de 2008, seria realizada uma reunião entre representantes dos governos federal e estadual e os beneficiários para se avaliar as condições reais da Cadeia Pública do Guarujá. Em 4 de fevereiro de 2008, acusou-se recebimento dessa comunicação.

 

22.         Em 15 de fevereiro de 2008, os peticionários enviaram informações sobre as medidas cautelares, observando que teria sido constatada a presença de duas crianças na Cadeia Pública. Em 21 de fevereiro de 2008, a CIDH acusou recebimento das informações enviadas pelos peticionários e encaminhou-as ao Estado, solicitando-lhe que, no prazo de 7 dias, enviasse informações sobre o cumprimento das medidas cautelares outorgadas. Em 28 de fevereiro de 2008, o Estado enviou suas observações à Comissão, cujos anexos foram recebidos em 4 de março de 2008. Nessa mesma data, o Estado encaminhou informações adicionais sobre o cumprimento das medidas cautelares em referência, particularmente a respeito da reunião de trabalho realizada em 30 de janeiro de 2008 entre representantes dos governos federal e estadual e os peticionários, com o propósito de coordenar atividades para resolver os problemas da Cadeia Pública do Guarujá.

 

23.         Em 5 de março de 2008, a Comissão acusou recebimento das comunicações do Estado datadas de 28 de fevereiro e 4 de março de 2008 e as encaminhou aos peticionários, solicitando-lhes que apresentassem suas observações a estes documentos no prazo de 15 dias. Conforme lhes fora solicitado, em 18 de março de 2008 os peticionários apresentaram à Comissão suas observações às comunicações do Estado. Em 28 de março de 2008, a Comissão encaminhou o documento dos peticionários ao Estado, solicitando-lhe que apresentasse suas observações a respeito no prazo de 15 dias.

 

24.         Em 23 de abril de 2008, o Estado apresentou suas observações conforme lhe fora solicitado pela Comissão. Esta encaminhou os referidos documentos aos peticionários em 23 de abril de 2008, dando-lhes o prazo de 15 dias para apresentar seus comentários sobre as informações remetidas pelo Estado.

 

III.        POSIÇÃO DAS PARTES

 

A.         Posição dos peticionários

 

25.         Os peticionários alegam que o Estado do Brasil violou as disposições da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, uma vez que não observou a obrigação de respeitar e garantir os direitos nela estabelecidos, ou seja, o direito à vida (artigo 4), o direito à integridade pessoal (artigo 5), os direitos da criança (artigo 19) e o direito à proteção judicial (artigo 25.1) em relação com o descumprimento das obrigações de respeitar e garantir os direitos humanos (artigo 1.1).

 

26.         Os peticionários sustentam que existe um quadro de condições degradantes na Cadeia Pública do Guarujá. Segundo os peticionários, o referido estabelecimento, construído na década dos 70, funciona anexo à Delegacia de Polícia dessa localidade. Afirmam que o centro de detenção tem 10 celas, projetadas inicialmente para 60 pessoas. Cada cela tem 2,70 m de comprimento por 4,50 m de largura, tendo cada uma delas um chuveiro e uma privada. Além dessas 10 celas, o estabelecimento possui outras três, sendo uma delas destinada a presos ameaçados de morte por outros presos, de 1,50 m de comprimento por 3,0 m de largura, e as outras duas à custódia de menores, com medidas de 1,30 m por 4,20 m e de 1,20 m por 3 m, respectivamente.

 

27.         Os peticionários informam que, apesar da prisão ter capacidade para 60 presos, tem existido superpopulação, que gera degradação das condições do estabelecimento carcerário. Essas condições foram levadas em conta no relatório de 2005 do Conselho Comunitário Penitenciário, do qual constou que as instalações teriam chegado a abrigar 350 pessoas. Relatam que, posteriormente, a superpopulação teria diminuído progressivamente chegando a 64 internos em abril de 2007. Mas, em informações enviadas em 31 de maio de 2007, os peticionários afirmam que 12 crianças se encontravam então alojados em uma única cela com capacidade para seis pessoas. Alegam que, em 6 de dezembro de 2007, a prisão novamente apresentava um quadro de superpopulação, com 147 detidos.[7] Segundo os peticionários, em 10 de março de 2008, a população da prisão era de 19 presos adultos e um menino, mas que este número não era constante, porque o fluxo de entrada de presos é irregular, com o que a situação da prisão pode mudar em poucos dias.[8]

 

28.         Quanto à superpopulação, os peticionários afirmaram que a sua principal causa é o atraso processual na concessão do benefício de progressão do regime de detenção. Desse modo, mencionam que, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, cerca de 30% dos presos da Cadeia Pública teriam direito à progressão do regime para o sistema aberto ou semi-aberto ou para a liberdade condicional.[9]

 

29.         Os peticionários afirmam que, em outubro de 2005, laudos oficiais de perícia de engenharia determinaram que a superpopulação era um fator gerador de diversos problemas e violações na Cadeia Pública do Guarujá. Inspeções realizadas em 2006, bem como laudos periciais da Divisão de Vigilância Sanitária e do Instituto de Criminalística feitas em dezembro de 2007, indicaram que essas condições persistiamm até a data de sua realização.[10] Nesse sentido, acrescentam que o relatório do delegado de polícia encarregado dessa prisão, elaborado em 7 de dezembro de 2007, indica que “os presos estão sujeitos a condições de sobrevivência limitadas, com a propagação de doenças e exposição a riscos incalculáveis”.[11]

 

30.         Neste sentido, afirma-se que nesse estabelecimento estão detidos criminosos de facções rivais, o que gera um clima de permanente tensão e insegurança. Os detidos da facção minoritária são colocados em outra cela, separada somente por uma porta de ferro, e recebem ameaças de morte. Os peticionários indicam que essa situação foi informada pelo Juiz Corregedor Permanente de Presídios e pela Polícia Judicial, bem como o risco de uma tentativa de resgate de detidos da prisão por parte da facção criminosa majoritária – o Primeiro Comando da Capital.[12]

 

31.        Além disso, e em razão das péssimas condições sanitárias e de higiene, as instalações estão infestadas por ratos e todo tipo de insetos. Segundo informações obtidas, os peticionários alegam que, no âmbito da petição de medidas cautelares, as crianças precisaram tapar um vaso sanitário com uma garrafa para evitar a entrada de todo tipo de insetos e utilizavam para higienizar-se água fria de uma mangueira colocada na cela. Acrescentam que, nessas condições de detenção, as crianças apresentavam problemas estomacais e doenças, além do risco de contrair leptospirose.

 

32.         Os peticionários observam que não existem as condições de segurança mínimas, como equipamentos para combater incêndios, e que as instalações elétricas foram deterioradas em razão da citada superpopulação. Ainda segundo eles, a ventilação e iluminação das celas são inadequadas, e as camas de concreto armado são a fonte para a obtenção de peças de ferro, utilizadas para a confecção de instrumentos cortantes. Acrescentam que tampouco existe equipamento sanitário suficiente para todos os detidos, o que gera problemas na cloaca e contaminação do ambiente. Alegam também que a ausência de pessoal de enfermagem seria decorrência da inexistência de atendimento médico. Afirmam ainda que existe, em geral, um quadro de tratamentos cruéis e desumanos contra os presos, quer se trate de adultos ou de menores e jovens, sem mencionar fatos específicos de violência. Assinalam igualmente que a superpopulação e as péssimas condições físicas da prisão geram um ambiente propício a desastres e à propagação de doenças infecto-contagiosas.

 

33.         Os peticionários alegam a posse de armas pelos detidos. Indicam que, no período de 9 de fevereiro de 2007 a 26 de novembro de 2007, mediante apreensões realizadas na prisão, foram apreendidas em poder dos presos da Cadeia Pública do Guarujá facas artesanais de tamanhos variados, hélices de ventiladores, serras, tesouras, barras de ferro e madeira, um artefato de madeira com ponta de ferro, correntes, pedras de concreto e outros instrumentos perfurantes e cortantes. Em 12 e 26 de novembro de 2007, foram encontradas em poder dos detidos quatro armas de fogo e cartuchos intatos.[13]

 

34.         Os peticionários observam que, em 5 de abril de 2007, ocorreu a fuga de 16 detentos da prisão. Em informações remetidas pelos peticionários faz-se constar que, durante essa fuga, os presos portavam armas de fogo.

 

35.         Os peticionários indicam que, em 26 de novembro de 2007, houve um novo episódio de fuga, do qual resultou a morte de três detidos adultos, depois de um suposto tiroteio com os policiais. Os exemplos anteriores são utilizados pelos peticionários para indicar a existência de armas de fogo em poder de pessoas privadas de liberdade, o que resultaria em uma situação de insegurança no centro de detenção.

 

36.         Os peticionários observam que não se efetuou nenhuma reforma nas instalações penitenciárias, apesar do grande número de denúncias e ações judiciais destinadas a sanar o problema.

 

37.         Eles alegam que as crianças alojadas na Cadeia Pública do Guarujá estavam nas instalações há cerca de 4 meses em péssimas condições, com graves ameaças a sua vida e integridade pessoal. Observam também que o relatório do Conselho Comunitário Penitenciário (CCP), datado de 12 de setembro de 2006, informa que, após uma visita realizada em 27 de junho de 2006, verificou-se que as crianças chegavam a permanecer até 120 dias no centro, todos em uma única cela destinada a seis pessoas. Segundo os peticionários, o CCP indica em seu relatório, sem apresentar maiores detalhes, que anteriormente se constatara “a prisão de duas meninas[14] por dois dias em uma cela improvisada [na Cadeia Pública do Guarujá] destinada à detenção de presos em delito flagrante”.[15] Os peticionários acrescentam que o CCP atendeu, em maio de 2006, a uma menina que estava detida na mencionada prisão há três dias “em total estado de desespero”.[16] Os peticionários afirmam que o Conselho destaca a existência de um sério problema com relação à detenção de meninas na Cadeia Pública do Guarujá, posto que não existe um lugar adequado para abrigá-las nesta prisão.[17]

 

38.         Em dezembro de 2007, os peticionários indicaram que as crianças continuam ingressando na Cadeia Pública do Guarujá, permanecendo na prisão até sua transferência para as unidades de internação da Fundação CASA.[18] Desse modo, como a instituição não recebe novos internos nos fins de semana e feriados, se a entrada na Cadeia Pública do Guarujá ocorrer nessas ocasiões, as crianças precisarão aguardar cerca de três dias ou até que o fim do feriado para ser transferidas para a Fundação CASA. Essa situação foi reiterada na comunicação dos peticionários de 18 de março de 2008, na qual expuseram que uma criança permaneceu nessa prisão de 29 de janeiro a 13 de fevereiro de 2008, aguardando a transferência para um centro de detenção adequado à sua idade.

 

39.         Os peticionários afirmam que as crianças não são separadas dos presos adultos e que são impedidas de sair de sua cela, mesmo que seja para satisfazer a suas necessidades fisiológicas, alimentar-se, tomar ar ou ter acesso a educação. São obrigados a defecar e urinar em garrafas de plástico que são em seguida recolhidas pelo pessoal penitenciário, tudo isso na mesma cela em que se alojam e recebem alimentação.

 

40.          Os peticionários observam que desde 1999 foram interpostas diversas medidas judiciais para reverter as condições da prisão, como as Ações Civis Públicas ACP Nº 2250/1999, Nº 518/2002, Nº 551/2003 e Nº 843/2004. Embora algumas tenham sido julgadas procedentes, segundo os peticionários não foram adotadas medidas para sua execução.

 

41.          Os peticionários relatam que, neste sentido, o Ministério Público promoveu contra o estado de São Paulo e a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor de São Paulo (doravante FEBEM), junto ao Juizado de Menores de Santos, a Ação Civil Pública ACP Nº 2250 de 1999, para obter do estado a implementação de medidas para municipalizar o atendimento aos menores com a adoção de diretrizes para construir unidades de atendimento na região, com o que se evitaria a retenção das crianças na Cadeia Pública do Guarujá por um prazo maior que 5 dias. Esta ação foi julgada procedente em 29 de julho de 2004, mas o estado apelou da decisão, que até a data de aprovação deste relatório estava aguardando julgamento.

 

42.          O Ministério Público também promoveu a Ação Civil Pública ACP Nº 518, de 2002, contra o estado de São Paulo e a FEBEM, junto ao Juizado de Menores de Guarujá. A ação, cujo objetivo era obter a transferência das crianças sob custódia na Cadeia Pública do Guarujá após 5 dias de permanência nesse estabelecimento, foi julgada procedente em 9 de agosto de 2006, encontrando-se até esta data pendente de resolução o recurso de apelação interposto pelo estado.

 

43.          Os peticionários indicam que a Ação Civil Pública ACP Nº 551 de 2003, interposta pelo Ministério Público contra o estado de São Paulo e a FEBEM, visando também a transferência das crianças detidas nas instalações por mais de 5 dias para um local adequado, foi julgada procedente em 9 de agosto de 2006, sendo que julgamento do recurso de apelação interposto pelo estado se encontra pendente até esta data.

 

44.          Também acrescentam que a Ação Civil Pública ACP Nº 843 de 2004, foi proposta pelo Ministério Público contra o estado de São Paulo com o objetivo de reduzir o número da população de internos da cadeia para 120, o dobro de sua capacidade. A ação foi julgada procedente em 22 de dezembro de 2006, aguardando-se até esta data o resultado do recurso de apelação interposto pelo estado.

 

45.          Em suas observações à resposta do Estado, datada de 27 de agosto de 2007, os peticionários esclareceram que as referidas ações estão em tramitação há mais de oito anos. Os peticionários acrescentam que, nesse período, o Estado teve conhecimento suficiente das violações aos direitos humanos ocorridas na Cadeia Pública do Guarujá, inclusive mediante as referida ações judiciais, sem que tenham sido tomadas medidas efetivas a respeito, o que, segundo eles, demonstra a ineficácia da proteção judicial na presente petição.

 

46.          Da mesma forma, e com referência às alegações do Estado relativas à intervenção da Fundação CASA para supostamente solucionar a situação de superpopulação, os peticionários observam que a participação dessa instituição se limitou à assinatura de um protocolo de intenções com a Prefeitura de Guarujá para a construção de uma unidade de atendimento inicial. Acrescentam ainda que o Ministério Público teria indicado que esse protocolo encontraria problemas em sua implementação, uma vez que a área destinada à construção da unidade era objeto da tramitação de um processo de tombamento pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAT). Informam ainda que o Secretário de Ação Social teria manifestado que a construção da referida unidade de atendimento inicial teria início em 2008.[19]

 

47.          Em sua comunicação de 18 de março de 2008, no âmbito das medidas cautelares, os peticionários manifestaram que a primeira reunião de trabalho com o Estado se realizou três meses depois da adoção das medidas e que a maioria das autoridades presentes tomou conhecimento do conteúdo delas na reunião. Os peticionários também observaram que esses agentes públicos não tinham poder de decisão para determinar o cumprimento das ações sugeridas pelos peticionários, o que dificultou o objetivo da reunião. Nesta, de acordo com os peticionários, os representantes do Estado teriam concluído ser impossível a transferência dos presos da Cadeia Pública do Guarujá para prisões de outras cidades da região, que também estavam superlotadas. Na mesma comunicação, os peticionários alegam que, apesar dos esforços do Estado para cumprir as medidas cautelares outorgadas, seu efetivo cumprimento ainda não tinha sido alcançado, persistindo a necessidade de que sejam mantidas. Com relação ao atendimento médico, os peticionários indicaram que essa medida foi integralmente descumprida pelo Estado. Nesse sentido, relataram que durante uma visita realizada em 28 de fevereiro de 2008, constataram a ausência de infra-estrutura para o atendimento médico e a ausência de profissionais da área de saúde na prisão.

 

48.          Os peticionários sustentam que todos os requisitos de admissibilidade foram cumpridos, procedendo a exceção prevista para o esgotamento dos recursos internos diante da demora injustificada no resultado que eles poderiam alcançar. Afirmam que existem méritos suficientes para se determinar a configuração de violações dos direitos consagrados nos artigos 4, 5, 19 e 25 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1(1) do mesmo Instrumento.

 

B.         Posição do Estado

 

49.       O Estado, em sua comunicação datada de 18 de julho de 2007, questionou, em primeiro lugar, o prazo que a Comissão lhe concedera para apresentar sua resposta. Fundamentou essa posição no caráter unilateral das reformas no Regulamento da Comissão sobre as quais se apoiaria a sumarização do processo, carecendo de aprovação da Assembléia Geral. Acrescenta também que a abreviação dessas tramitações comprometeria os princípios da contestação e do direito de defesa, posto que a via adequada para a tramitação de casos urgentes e em que poderia existir risco de violações dos direitos humanos seria o mecanismo de medidas cautelares, e não o adotado pela Comissão na presente situação.

 

50.       Em relação com a petição sub examine, o Estado considerou que não se devia prosseguir com a tramitação da petição referenciada, dado que as instâncias domésticas não tinham sido esgotadas, encontrando-se pendentes quatro ações civis públicas, que têm por objetivo oferecer solução aos conflitos existentes na Cadeia Pública do Guarujá. Esses processos foram julgados procedentes e submetidos ao duplo grau de jurisdição, princípio básico do Estado Democrático de Direito, estando sob a análise do Tribunal de Justiça de São Paulo.

 

51.       O Estado manifesta que não existe razão alguma para se considerar que houve atraso injustificado na tramitação das ações referidas, pois não se pode pretender que processos dessa magnitude sejam resolvidos de modo excessivamente acelerado.

 

52.        O Estado considera ainda que os requisitos dos peticionários estão compreendidos no escopo do objetivo das ações instauradas no direito interno, não obstante o que os presos da Cadeia Pública do Guarujá teriam optado por recorrer imediatamente ao Sistema Interamericano em vez de aguardar a resolução da controvérsia no âmbito interno, estratégia que, acrescenta, tem sido reiteradamente repelida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante, “a Corte”, “a Corte Interamericana” ou “o Tribunal”).

 

53.       Por outro lado, em comunicação de 18 de julho de 2007, o Estado indica que, apesar da inexistência de julgamento definitivo sobre o tema em referência e conforme já tinha exposto na tramitação das medidas cautelares vinculadas à petição, estariam em andamento diversas tentativas de solução dos problemas existentes na detenção das crianças mantidas na Cadeia Pública do Guarujá. Nesse sentido, afirma-se que foi assinado o protocolo de intenções entre a Fundação CASA, responsável pela aplicação das medidas socioeducativas orientadas para as crianças, e a Prefeitura do Município de Guarujá, fruto de reuniões acompanhadas também pelo Ministério Público que trataram da construção de uma unidade de atendimento inicial na região, a fim de solucionar os problemas existentes na custódia das crianças.

 

54.        O Estado, nas informações enviadas no contexto da tramitação da petição de medidas cautelares, datada de 6 de julho de 2007, indica, entre outras dificuldades encontradas para a implementação de uma unidade de atendimento inicial, as seguintes: 1) a necessidade de coordenação de esforços entre os poderes públicos estadual e municipal para a construção da unidade; 2) a falta de apoio da comunidade local, particularmente dos municípios; 3) a limitação de recursos orçamentários dos poderes públicos estadual e municipal; e 4) a necessidade de obter uma licença ambiental para a instalação da unidade, a qual, por sua vez, requer a prévia elaboração de um estudo de impacto ambiental. Na mesma oportunidade, o Estado afirma que estão sendo realizados esforços conjuntos com entidades do estado de São Paulo e do município de Guarujá, além da efetiva participação do Ministério Público e do Poder Judiciário, no que se refere à custódia dos menores infratores. Acrescenta ainda que a competência da Fundação CASA se restringe à execução das medidas socioeducativas ordenadas pelo Poder Judiciário, não se estendendo à custódia provisória dos menores acusados de infrações à lei. Não obstante, o Estado alega que essa instituição teria intervindo a fim de buscar uma solução para o problema de superpopulação carcerária no tocante às crianças.

 

55.        Finalmente, o Estado considera que, com base nas alegações referidas, a petição formulada deve ser declarada inadmissível, uma vez que não foram esgotados os recursos internos nos termos estabelecidos pelo artigo 46(a) da Convenção Americana.

 

56.        Em sua comunicação de 20 de setembro de 2007, no âmbito da petição de medidas cautelares, o Estado informa sobre a conclusão de reformas na Prisão Vicente de Carvalho, anexa ao 1º Distrito Policial do Guarujá, para a qual deverão ser transferidos todos os presos sob custódia na Cadeia Pública do Guarujá, que será oportunamente desativado. Apesar de compreender a preocupação dos peticionários, refletida nas medidas cautelares relativas às condições da Cadeia Pública do Guarujá, o Estado sustenta que não há urgência nem risco iminente de dano pessoal e irreparável que fundamentem o pedido de medidas cautelares.

 

57.        Em 3 de janeiro de 2008, no contexto das medidas cautelares outorgadas em favor das crianças sob custódia na Cadeia Pública, o Estado observa que a cela que abriga as crianças, apesar de estar localizada no edifício da Delegacia de Polícia do Guarujá, está separada das áreas destinadas ao encarceramento dos adultos. Portanto, a separação entre presos adultos e menores está sendo cumprida rigorosamente pelas autoridades estatais. Além disso, o Estado reitera que concluiu a reforma de quatro celas da Prisão Vicente de Carvalho, anexa à Cadeia Pública do Guarujá, que passariam a ser ocupadas pelas crianças detidas até sua transferência para uma unidade da Fundação CASA.

 

58.        Em sua comunicação de 28 de fevereiro de 2008, o Estado reafirmou que os crianças detidas na Cadeia Pública eram mantidas em celas separadas e não conviviam com os presos adultos. O Estado acrescentou que foi oferecido atendimento médico regular às pessoas privadas de liberdade nessa prisão mediante duas visitas semanais de um médico e três visitas de um enfermeiro, no mesmo período.

 

59.        Finalmente, em seu documento de 14 de abril de 2008, o Estado informou que, por ordem do Secretário de Segurança Pública do estado de São Paulo, a Cadeia Pública do Guarujá não abrigava mais detidos desde 12 de março de 2008. Os presos provisórios que anteriormente eram detidos na referida prisão tinham sido levados para a cadeia pública do 5º Distrito Policial de Santos.

 

IV.        ANÁLISE DE ADMISSIBILIDADE

 

A.         Competência ratione pessoae, ratione materiae, ratione temporis,
                         ratione loci

 

60.      Em conformidade com o artigo 44 da Convenção Americana e o artigo 23 do Regulamento da CIDH, os peticionários, na qualidade de entidades não-governamentais legalmente reconhecidas, são partes legitimadas para a apresentação de petições junto à Comissão em relação com possíveis violações de direitos consagrados na Convenção Americana. Por outro lado, a República Federativa do Brasil é parte da Convenção Americana desde 25 de setembro de 1992.

 

61.        A Comissão considera como supostas vítimas as crianças[20] afetadas pelas condições de reclusão existentes na Cadeia Pública do Guarujá, estado de São Paulo, desde a interposição da primeira ação civil pública relativa a elas (ACP N° 2250) (supra, parágrafo 41) em 1999 até esta data. Além disso, a Comissão considera como supostas vítimas os jovens e adultos compreendidos nas condições de reclusão do referido centro de detenção desde a interposição do primeiro recurso no âmbito da jurisdição interna, em 2004, ou seja, a Ação Civil Pública ACP N° 843 (supra párr. 44), sobre as condições de detenção no cadeia, até esta data.

 

62.       Das informações entregues pelos peticionários, a Comissão conseguiu individualizar as seguintes crianças internas: A.P.B.N., A.V., A.G.S., A.N.R., A.A.S.R., A.C.O., A.S.B., A.A.F., A.P.B.F., B.G.S., B.S.L., B.F.S., B.N.G., C.J.F., C.M.F., D.S.J., D.C.C., D.G.S., D.B.S., D.S.N., D.F.B., D.M.P., D.S.S., E.T., E.B.A, E.F.M., F.C.C., F.F.S.S., F.G.A., F.S.B., G.S., H.C.A., H.B.O., J.B.O.C., J.L., J.S.M., J.V.S.J., J.M.R., J.L.N.V., J.M.P.S., J.R.R.S., J.B.C.S., J.L., L.F.S., L.A.E.S., L.O.F., L.G.L., L.C.S., L.L.O., L.P.V.A., L.C.S.C., L.F.P.P., L.G.C.B., L.F.P.P., M.S.C.P., M.P.B.S., O.B.M.S., P.R.S.S., P.M.M., R.T.R., R.N.B., R.J.S., R.S.S., R.S.S.M., R.M.P., R.S.P., V.R.C., W.O.F., W.A.A., W.R.J., W.N.M., W.A.Q., W.N.R., W.B.F., W.M.P. e W.S.C.[21]

 

63.        Também individualizou os seguintes jovens e adultos presos na Cadeia Pública: Adalberto Neto, Adalton (Adauton) de Oliveira Pereira, Ademir Rodrigues, Adenilton Souza de Araújo, Adilson Peixoto da Silva, Adonildo Araújo dos Santos, Adriano Evandro Fernandes, Adriano Pinto de Andrade, Alex dos Santos Gomes, Alex Santana da Silva, Alessandro Almeida Lima, Alessandro de Jesus Santana, Alexandre Barros Neves, Alexandre José da Silva, Alexandre Tomaz Firmino, Alexandre de Lima Silva, Alexandre Rodrigues de Araújo, Alexandre Mendes Duarte, Alexsandro Silva Santos, Anderson de Jesus Gonçalves, Anderson da Silva Santos, Anderson Neres Borges, André Bispo dos Santos, André Lorenço dos Santos de Jong, André Luiz Fernandes Romano, André Luis Ferreira Estácio, André Rubens dos Santos, Adriano da Silva, Ari Santos da Silva, Aurélio Pedro dos Santos, Avenicio de Oliviera Marcos, Bruno de Freitas, Bruno Eduardo Santos Campos, Bruno Luiz Zaparoli, Bruno de Oliveira Candido, Bruno Francisco da Silva, Bruno Santos Andrade, Camilo de Souza Lima, Carlos Alberto de Lima, Carlos Alberto Souza Oliveira, Carlos Alberto Sittino dos Santos, Carlos André Batista, Carlos Eduardo Dias, Cláudio Roberto Possidonio da Silva, Cleber Fernando Lopes de Souza, Cristiano da Silva, Cristiano Pinheiro Machado, Daniel da Silva, Daniel Silva de Oliveira, Danilo Barbosa Moreira, Danilson Aparecido Gama dos Santos, David Alexandre de Jesus Martins, David de Souza, Dener Furtado Portela, Denis Manoel Xamber, Deigo Oliveira de Souza, Diego Pinheiro Brasseroto, Diogo Antonio Moreira do Amaral, Diogo Aparecido dos Passos Tomaz, Diogo Felipe, Diogo Henrique de Souza, Diogo Santana Rocha, Dionísio Alves Albino, Domingos Silva do Nascimento, Douglas Santos Barros, Douglas Henrique Silva Brito, Edcarlos Morais, Eder Luiz Batista Candido, Éderson Leandro Nascimento, Éderson Passos dos Santos, Edílson Alves dos Santos, Edílson dos Santos, Edinaelto José dos Santos, Ednaldo Alves da Silva, Ednaldo Nascimento, Ednaldo Rodrigues Santos, Edson Prieto Mota, Eduardo Barbosa Nazareth, Eduardo de Almeida Fortes Junior, Eduardo Souza Oliveira, Eduardo Oliveira Costa, Edvaldo Santana Lima, Elias Brito de Andrade, Elidio Nascimento Apolinário, Emanuel Julio Cabral, Ercilas Gonçalves Prieto, Elizeu de Lima, Estefano da Silva Nascimento, Evandro da Silva Batista, Evandro Luiz de Campos Santana, Everson Ferreira Santiago, Ewerton dos Santos Luiz, Ezequias Rocha Santana, Fabiano Justino Borges, Fabio da Silva Amaral, Fabio dos Santos Paixão, Fabrício Assis Santos, Fabrício de Jesus Andrade, Fabrício Pereira dos Santos, Fabrício Ribeiro dos Santos Santana, Fausto Anacleto da Silva, Felipe (Fernando) Gouveia Moura, Fernando Almeida de Lima, Fernando Francisco Ambrosio, Flavio Anacleto dos Santos, Flavio Antonio Rocha Pio, Flavio Henrique de Medeiros, Flavio Silva dos Santos, Francisco Clodoaldo de Oliveira Ramalho O., Francisco José Santos de Andrade, Francisco Sales Xavier, Franklin Barbosa Germano, Gabriel G. Saldanha Fonseca, Geciberto Antonio Valério dos Santos, Geovane Wagmaker (Wagmacker) de Almeida, Gilberto de Andrade, Giovani Alves de Almeida, Gilson Viana dos Santos, Humberto dos Santos Barbosa, Hudo Marcio Monteiro Silva, Isaac da Silva Santos, Israel de Oliveira Rodrigues, Ivanildo Araújo de Souza, Ítalo Rodrigues de Souza, Jean Paulo da Silva, Jean Magno Dantas (Jonata Marconde), Jefferson Barbosa Campos, Jefferson Santos Souza, Jensler Artumduaga Ruiz Gardino, João Luiz de Souza, Jocivaldo Reis Pereira de Souza, Joelson Belmiro dos Santos, Joelson Modesto, Joie de Souza, Jonathan Ludini Barbosa Silva, Jonathan Rodrigues de Oliveira, Jonas de Souza Ângelo, José Andrade de Oliveira Silva, José André Guimarães, José Carlos Alves (Medeiros), José Carlos Firmino Varela, José Carlos Nixford dos Santos, José Carlos dos Santos, José Cristiano de Barros, José Cristiano de Melo, José da Silva, José de Souza Ferreira, José Eliomar Tabosa, José Flávio Eleutério da Silva, José Joaquim da Silva, José Maria de Oliveira Almeida, José Raimundo Rabelo, José Ricardo de Oliveira, José Roberto Evangelista da Silva, Josemir Santana, Josivan da Costa Moreira, Juarez Rabelo, Kleber Augusto Rodrigues Natalli, Leandro Henrique dos Santos, Leandro Oliveira Ferreira, Leonardo Augusto Silva Jorge, Leonardo Pimenta de Oliveira, Leonildo Luiz Barbosa, Liverio dos Santos, Lourenço Serafim da Silva, Lucas Fernandes Arias, Lucas Nogueira de Freitas, Luciano Costa Alves, Luciano Trajano, Luiz Alberto Coccinelo, Luiz Antonio Francisco Menezes, Luiz Carlos da Silva, Luiz Felipe Santos Bento, Luti Francisco da Cruz, Maicon Almeida Azevedo, Maicon Michel Barbosa Fernandes, Marcelo Correia da Rocha, Marcelo de Oliveira Santos (Luciano), Marcelo Renato Campos, Marcilio Marcos da Silva Mariano, Marcio Gomes dos Santos, Marcio Messias dos Santos, Marcio Nunes Silva, Marcio R. Campelo, Marcos Antonio Tochi, Marco Aurelio de Souza, Marcos Vinicius Fonciano, Marcus Vinicios Nunes Pereira, Mario José de Freitas Junior, Mauricio Vilela dos Santos, Maxwell Ferreira de Lima, Michael Gomes, Michael Alves da Silva, Michael dos Santos Mazan, Milton Boaventura Gomes, Milton Thimoteo de Oliveira, Moacir Gomes, Natanael da Conceição, Nelson da Costa, Nilson Neres de Jesus Santana, Nilton Bispo dos Santos, Nilton Rosa dos Santos, Odenivaldo dos Santos, Osvaldo Cruz, Osvaldo Fermoselli Rodrigues Junior, Otavio dos Santos Silva, Paulo Diniz Batista, Paulo Rodrigues Bartorillo, Paulo Rogério da Silva Peres, Paulo Roberto Furini, Paulo Roberto Marques Valente, Paulo Sergio Silveira, Paulo Sergio Teixeira da Silva, Paulo Vitor Coelho Chaves, Rafael Barbosa Campos, Rafael da Silva, Rafael Domingos (Domingues) Souza, Rafael Gomes Uchoa, Rafael Leonardo dos Santos, Rafael Machado Malaquias, Rafael Mauricio Modesto Lima, Rafael Moreira da Silva, Rafael Santos de Almeida, Raul Assumpção da Cruz, Reinaldo Antonio do Nascimento, Renato Arias Figueiredo, Renato da Silva Pinto, Renato Gutierrez Lopes (Junior), Ricardo Barbosa de Aguiar, Ricardo de Oliveira Santana, Ricardo do Nascimento Batalha, Ricardo Lima, Robson Pérez Reis, Robson da Silva Nascimento, Robson Santana Andrade, Rodrigo Carrara Silveira Luciano, Rodrigo da Silva Nascimento, Rodrigo Martins dos Santos, Rodrigo Menezes Vieira, Rodrigo do Nascimento, Rodrigo Santos do Nascimento, Rodrigo Sutil Costa, Rogério de Jesus Martins, Rogério Batista Sales, Rogério Carmelito dos Santos, Rogério Santos Silva, Ronaldo da Silva, Ronaldo dos Santos, Roniel da Silva Cerqueira, Rudenis dos Santos, Samuel Albuquerque Junior (Nunes), Sandro Carlos Oliveira, Sebastião Mendes de Aquino, Sergio Ribeiro Leal Junior, Sergio Ricardo da Cruz Borba, Silvio Luiz Pereira, Silvio Nascimento dos Santos, Sival Pereira de Jesus (Leandro), Theylor Ramos, Thiago Camargo Batista, Thiago Moura de Souza, Thiago de Jesus Paiva, Tiago Aparecido Rolins, Tiago da Silva Paulino, Ubirajara Lopes dos Santos, Valdeci Teixeira, Valter de Oliveira Junior, Valter Silveira, Vitor dos Reis, Wagner Alberto Abdalla Camargo, Wagner Aparecido Andrade, Wagner Francisco, Wagner Gomes Santos, Wagner Santana Rafael, Wellington Ribeiro da Silva, Wellington (da) Silva Sampaio, Wellington Thiago da Silva Veleda, Willian de Oliveira Costa, William de Souza, Willians Santos do Rosário e Wilson de Melo Santos.

 

64.         Esta listagem foi elaborada para fins de admissibilidade da petição e poderá ser ampliada para incluir outras pessoas que tiverem as características indicadas nesta petição.

 

65.         A competência ratione materiae surge como conseqüência de que os fatos denunciados correspondem à suposta violação de direitos humanos protegidos pela Convenção Americana e, com base no princípio iura novit curia, pela Convenção de Belém do Pará. A competência ratione temporis é estabelecida pelo fato de as violações alegadas terem ocorrido quando a obrigação do Estado de respeitar e garantir os direitos consagrados na Convenção Americana já se encontrava em vigor, isto é, depois de 25 de setembro de 1992, bem como na Convenção de Belém do Pará, ratificada pelo Estado em 27 de novembro de 1995. Finalmente, a Comissão tem competência ratione loci porque os fatos alegados ocorreram no território da República Federativa do Brasil, país que ratificou a Convenção Americana.

 

B.         Requisitos de admissibilidade

 

1.         Esgotamento dos recursos internos

 

66.        Em conformidade com o artigo 46(1) da Convenção, para que uma petição seja admitida pela Comissão é necessário que tenham sido esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios do direito internacional geralmente reconhecidos. No inciso 2 dessa norma, estabelece-se que essas disposições não se aplicarão quando não existir na legislação interna o devido processo legal para a proteção do direito em questão, ou quando a suposta vítima não tiver tido acesso aos recursos da jurisdição interna, ou tiver existido atraso injustificado na decisão sobre os mencionados recursos.

 

67.       Os peticionários afirmam que existem ineficácia e atraso injustificados na tramitação dos recursos internos, pois desde a primeira ação civil pública (ACP Nº 2250) iniciada para separar crianças e adultos transcorreram mais de oito anos (supra, parágrafo 38). E até a data da elaboração deste relatório transcorreram mais de três anos desde a interposição do recurso de apelação pelo estado de São Paulo contra a primeira resolução judicial no âmbito da ACP Nº 2250, em 29 de julho 2004, que dispôs que fossem tomadas medidas para a construção de unidades de atendimento a crianças na região da Baixada Santista, em número suficiente e respeitando-se o princípio da dignidade humana. As outras duas ações civis públicas (ACP Nº 518 e ACP Nº 551) (supra, parágrafos 42 e 43), relacionadas com as crianças privadas de liberdade na Cadeia Pública do Guarujá, aguardam decisão sobre os recursos de apelação interpostos pelos demandados desde setembro de 2006, sem que até esta data tenham sido adotadas medidas para sanar as alegadas violações dos direitos humanos.

 

68.       Além disso, os peticionários observam que, em relação às condições em que se encontram as pessoas privadas de liberdade na Cadeia Pública do Guarujá, a ação civil pública (ACP Nº 843) proposta pelo Ministério Público está pendente de solução definitiva desde 2004 (supra, parágrafo 44). Essa ação tem por objetivo reduzir o número de internos da referida prisão para o máximo de 120 pessoas, ou seja, o dobro da sua suposta capacidade. Por isso, os peticionários alegam que o recurso é ineficaz e inadequado para reparar as condições existentes no penal. Da mesma forma, após a sentença inicial favorável que determina a redução da quantidade de presos, os recursos de apelação interpostos pelo estado de São Paulo e pela Fundação CASA ainda não foram resolvidos. 

 

69.       O Estado, por sua parte, argumenta que não existe demora injustificada na tramitação das referidas ações, devendo-se levar em conta a complexidade da matéria sobre a qual versam (supra, parágrafo 51). Considera também que estão sendo feitos esforços para solucionar o problema, como a assinatura do referido protocolo de intenções entre a Fundação CASA e a Prefeitura do Município de Guarujá (supra, parágrafos 53, 54 e 56).

 

70.       Quanto à exceção do esgotamento dos recursos internos, cabe destacar que, de acordo com o ônus da prova aplicável à matéria, o Estado, que alega o não esgotamento, deve demonstrar que recursos internos devem ser esgotados e fornecer provas relativas a sua efetividade.[22] No caso sub examine, o Estado não aporta elementos suficientes sobre a efetividade dos recursos interpostos, limitando-se a indicar que a demora justificar-se-ia pela magnitude dos procedimentos em referência.

 

71.        A Comissão observa que o requisito do esgotamento prévio dos recursos internos se relaciona com a possibilidade que o Estado tem de investigar, julgar e punir possíveis violações de direitos humanos, por intermédio de seus órgãos judiciais internos, bem como – particularmente em casos como o presente, relacionados com condições de detenção – de oferecer mecanismos de controle cautelar das condições de detenção das pessoas privadas de liberdade, antes de ser exposto a um processo internacional. O requisito do esgotamento prévio pressupõe, não obstante, que exista no nível interno o devido processo judicial e que os recursos internos sejam eficazes, pois, caso contrário, a Comissão Interamericana, em conformidade com o artigo 46(2)(a) da Convenção, pode examinar o caso antes de esgotados os recursos da jurisdição interna.

 

72.       As exceções previstas no artigo 46(2) da Convenção procuram garantir a ação internacional quando os recursos da jurisdição interna e o próprio sistema jurídico interno não são efetivos ou não estão disponíveis para assegurar o respeito pelos direitos humanos das vítimas.

 

73.        A Corte Interamericana tem observado que os princípios do direito internacional geralmente reconhecidos se referem tanto à existência formal dos recursos internos como à sua adequação para reparar a situação jurídica infringida, devendo ser eficazes para produzir o resultado para o qual foram concebidos.[23] Por esses motivos, seu esgotamento não deve ser entendido como a necessidade de realizar mecanicamente tramitações de natureza formal, devendo-se analisar em cada caso a possibilidade razoável de se obter uma reparação.[24]

 

74.        A Corte tem também observado que os recursos são ilusórios quando se demonstra sua inutilidade na prática, o Poder Judiciário carece da independência necessária para decidir com imparcialidade ou faltam meios para a execução das decisões neles ditadas. A isso é possível acrescentar ainda a negação da justiça, o atraso injustificado na decisão e o impedimento do acesso do suposto lesionado ao recurso judicial.[25]

 

75.        Os órgãos do sistema não podem permitir que a demora sirva para obstaculizar o acesso à prestação do sistema interamericano de proteção de direitos humanos com vistas a proteger os direitos consagrados na Convenção.[26] É nesta instância que devem ser aplicados os mecanismos de proteção internacional, entre os quais as exceções previstas no artigo 46(2) da Convenção.

 

76.       Em conformidade com os fatos denunciados e os recursos judiciais (ações civis públicas) impetrados em seu âmbito, sobretudo considerando-se o período transcorrido desde a interposição das ações civis públicas e o agravamento da situação das pessoas privadas de liberdade na Cadeia Pública do Guarujá, a Comissão conclui que a denúncia sub judice é admissível com base nas exceções estabelecidas no artigo 46(2), alíneas (a) e (c), da Convenção Americana. Nesse sentido, a Comissão reitera o já estabelecido em casos semelhantes a respeito dos mesmos recursos no Brasil, particularmente a ação civil pública (ações interpostas em 1999, 2002, 2003 e 2004), ou seja, que o tempo transcorrido desde que os fatos começaram a ser denunciados sem que nenhum recurso disponível efetivo tenha sido aplicado até esta data, encontrando-se essas ações pendentes de resolução, indica que nesta situação se configura um atraso injustificado. Também não se demonstrou neste caso que a ação civil pública foi um recurso efetivo na prática para remediar condições de detenção supostamente inadequadas e prevenir supostas violações de direitos humanos relacionadas com condições desumanas de detenção; portanto, parecem ser escassas as perspectivas de efetividade dos recursos existentes na jurisdição interna.[27]

 

77.        Finalmente, a Comissão reitera que a invocação das exceções à regra de esgotamento dos recursos internos previstas no artigo 46(2) da Convenção está estreitamente ligada com a determinação de possíveis violações de certos direitos ali consagrados, como as garantias de acesso à justiça. No entanto, o artigo 46(2), por sua natureza e objeto, é uma norma com teor autônomo vis-à-vis das normas substantivas da Convenção. Portanto, a determinação de as exceções à regra de esgotamento dos recursos internos previstas nessa norma resultarem aplicáveis ou não ao caso em questão deve ser feita previamente e separadamente da análise do fundo do assunto, pois depende de um padrão de avaliação distinto daquele utilizado para determinar a violação dos artigos 8 e 25 da Convenção.[28] Cabe esclarecer que as causas e os efeitos que impediram o esgotamento dos recursos internos neste caso serão analisados, nos aspectos pertinentes, no Relatório adotado pela CIDH sobre o mérito da controvérsia, a fim de constatar se efetivamente configuram violações da Convenção Americana.[29]

 

2.         Prazo para a apresentação da petição

 

78.       Em conformidade com o artigo 46(1)(b), da Convenção Americana, constitui requisito de admissibilidade a apresentação das petições no prazo de seis meses, a partir da notificação ao suposto lesionado da sentença sobre o esgotamento dos recursos internos. O artigo 32 do Regulamento da Comissão consagra que, “nos casos em que sejam aplicáveis as exceções ao requisito de esgotamento prévio dos recursos internos, a petição deverá ser apresentada dentro de um prazo razoável, a critério da Comissão. Para tanto a Comissão considerará a data em que haja ocorrido a presumida violação dos direitos e as circunstâncias de cada caso”.

 

79.        Neste caso, como existe aparente ineficácia dos recursos existentes e possível demora indevida na prestação de justiça, consideram-se aplicáveis as exceções contempladas nos artigos 46(2)(a) e (c) da Convenção e 37(2)(c) do Regulamento da Comissão. Com efeito, as primeiras denúncias de violações de direitos humanos na Cadeia Pública foram apresentadas há mais de oito anos, sendo reiteradas diversas petições em anos posteriores. Existindo, portanto, uma séria possibilidade de que as demoras judiciais continuem se multiplicando, considera-se que a petição foi apresentada dentro de um prazo razoável de acordo com o artigo 38(2) do Regulamento, tendo, conseqüentemente, sido cumpridos os termos exigidos pela Convenção para a tramitação da petição.

 

3.         Duplicação de procedimentos e coisa julgada

 

80.         Com relação ao requisito de que a petição não se encontre pendente de decisão por outro organismo internacional, estabelecido no artigo 46(1)(c) da Convenção, a Comissão não recebeu informações que indiquem que esta circunstância esteja presente. Portanto, a Comissão considera que ele foi atendido. Por outro lado, a Comissão também concluiu que foi atendido o requisito estabelecido no artigo 47(d), porquanto esta petição não é a reprodução de uma petição já examinada pela Comissão nem foi decidida por outro organismo internacional.

 

4.         Caracterização dos fatos

 

81.        A Comissão deve analisar, para decidir sobre a admissibilidade de uma petição, se os fatos alegados podem caracterizar uma violação de direitos consagrados na Convenção Americana, segundo o estipulado no artigo 47(b) desse instrumento, ou se a petição resulta "manifestamente infundada" ou é "evidente sua total improcedência”, em conformidade com o inciso (c) da norma referida. O critério de avaliação desses requisitos difere daquele utilizado para se pronunciar sobre o mérito de uma petição. Com efeito, a avaliação da Comissão destina-se a determinar, prima facie, se a petição compreende o fundamento da violação, possível ou potencial, de um direito garantido pela Convenção e não a estabelecer a existência efetiva de uma violação de direitos. Em outros termos, esta determinação constitui uma análise primária, que não implica prejulgamento sobre o fundo do assunto.

 

82.       Quanto aos deveres que recaem sobre os Estados com relação às pessoas sob sua custódia, a Corte Interamericana estabeleceu que:

 

Nos termos do artigo 5(2) da Convenção, toda pessoa privada de liberdade tem direito a viver em condições de detenção compatíveis com sua dignidade pessoal e o Estado deve garantir-lhe o direito à vida e à integridade pessoal. Em conseqüência, o Estado, como responsável pelos estabelecimentos de detenção, é o avalista destes direitos dos detidos.[30]

 

83.       Com base nessas considerações, estima-se que, prima facie, os fatos alegados pelos peticionários poderiam caracterizar a violação do artigo 5 da Convenção Americana, no tocante às condições de detenção em que se encontram as pessoas privadas de liberdade na Cadeia Pública do Guarujá.

 

84.       Com relação às crianças privadas de liberdade, a CIDH considera que os fatos denunciados em conexão com as condições de detenção descritas poderiam caracterizar o descumprimento das obrigações do Estado em conformidade com os artigos 5 e 19 da Convenção Americana. A respeito, em conformidade com as normas de interpretação estabelecidas na Convenção Americana sobre Direitos Humanos,[31] bem como com os critérios estabelecidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos com relação à tendência de integrar o sistema regional e o sistema universal[32] e com relação à noção de corpus juris em matéria de infância,[33] a Comissão observa que interpretará o alcance e o conteúdo dos direitos que se alega teriam sido violados em prejuízo das crianças declaradas supostas vítimas neste relatório à luz do disposto na Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas.[34]

 

85.       Por outro lado, em aplicação do princípio iura novit curia, a Comissão Interamericana analisará alegações referentes ao artigo 7 da Convenção de Belém do Pará. Das alegações trazidas pelos peticionários, apreende-se que meninas teriam sido detidas na Cadeia Pública do Guarujá nas mesmas condições estruturais e insegurança que as outras supostas vítimas. A Comissão considera que o dano físico e psicológico que a detenção poderia ter causado às meninas, que por sua idade e sexo correm o risco particular de sofrer atos de violência e atentados contra sua integridade física e psicológica, poderia configurar uma violação do artigo 7 da Convenção de Belém do Pará. A CIDH é da opinião que esses fatos merecem um exame mais preciso e completo na etapa de mérito.

 

86.       Em conformidade com os fatos denunciados e os recursos judiciais impetrados em seu âmbito e em virtude da suposta ineficácia e da demora indevida na resolução dos recursos indicada supra, a Comissão considera que eles poderiam materializar a alegada violação do direito à proteção judicial consagrado no artigo 25 da Convenção Americana. Também baseada no princípio iura novit curia, a Comissão considera que os fatos do caso poderiam implicar uma violação do artigo 8(1) do mesmo Tratado. Além disso, a CIDH observa que se alega que no Brasil não existe um recurso efetivo para conseguir que os presos do sistema penitenciário sejam mantidos e tratados em condições dignas, o que poderia materializar um potencial descumprimento da obrigação exigida pelo artigo 2 da Convenção. Em resumo, atendendo aos fatos denunciados e aos recursos judiciais interpostos em seu âmbito, a Comissão considera que eles poderiam configurar violações dos direitos consagrados nos artigos 8.1 e 25 da Convenção Americana, em conjunto com as obrigações gerais constantes dos artigos 1.1 e 2 do mesmo Tratado.

 

87.        Finalmente, diante da falta de elementos e informações sobre as circunstâncias nas quais morreram três dos detidos na Cadeia Pública em novembro de 2007, a Comissão considera que a petição não é admissível com relação ao artigo 4 da Convenção Americana. 

 

V.         CONCLUSÃO

 

88.       A Comissão conclui que tem competência para examinar a petição e que esta atende aos requisitos de admissibilidade, de acordo com os artigos 46 e 47 da Convenção Americana.

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.        Declarar, sem prejulgar sobre o mérito desta denúncia, que a petição é inadmissível em relação ao artigo 4 da Convenção Americana e admissível em relação às supostas violações dos artigos 5, 19 e 25(1) e em relação às obrigações derivadas do artigo 1(1), todos da Convenção Americana.

 

2.       Em virtude do princípio iura novit cúria, a CIDH declara admissível a presente petição com relação à suposta violação dos artigos 2 e 8(1) da Convenção Americana, bem como do artigo 7 da Convenção de Belém do Pará.

 

3.       Notificar ao Estado e aos peticionários esta decisão.

 

4.       Continuar com a análise de mérito do caso.

 

5.      Publicar este relatório e incluí-lo em seu Relatório Anual à Assembléia Geral da OEA.

 

Dado e assinado na cidade de Washington, D.C., aos 23 dias do mês de julho de 2008. (Assinado): Paolo G. Carozza, Presidente; Luz Patricia Mejía, Primeira Vice-Presidenta; Felipe González, Segundo Vice-Presidente; Clare K. Roberts e Víctor Abramovich, Membros da Comissão.


 


[1] O Membro da Comissão Doutor Paulo Sérgio Pinheiro, cidadão brasileiro, não participou da consideração e adoção deste Relatório, em conformidade com o artigo 17(2)(a) do Regulamento da CIDH.

[2] Neste relatório, a Comissão utiliza a expressão “jovem” para referir-se às supostas vítimas homens e mulheres que tinham entre 18 e 21 anos no momento de sua entrada no referido centro de detenção. Ver nota de rodapé 20.

[3] Segundo o artigo 102 da Lei de Execução Penal brasileira, “A Cadeia Pública destina-se ao recolhimento de presos provisórios”.

[4] A respeito, a CIDH solicitou informações sobre as decisões relacionadas com as condições de detenção nessa prisão e os tribunais ou juízes que as emitiram, o alcance e o teor das medidas judiciais de controle e proteção adotadas, os resultados concretos obtidos em cumprimento das medidas judiciais de controle e proteção ordenadas, eventuais dificuldades de implementação das referidas medidas judiciais e da coordenação entre as autoridades federais e estaduais na implementação das medidas judiciais de controle e proteção, bem como sobre a adoção de qualquer outra medida relacionada com essa situação.

[5] Nesse sentido, em 26 de outubro de 2007, a CIDH solicitou ao Estado brasileiro:

1.       Adotar todas as medidas necessárias para garantir a vida e a integridade pessoal das crianças sob custódia na Cadeia Pública do Guarujá.

2.       Transferir prontamente as crianças para um centro de detenção para menores, em conformidade com a garantia estabelecida na legislação brasileira, no artigo 5(5) da Convenção Americana e no artigo 37.c da Convenção sobre os Direitos da Criança.

3.       Prestar imediatamente atendimento médico e psicológico aos beneficiários das medidas.

4.       Proibir imediatamente o ingresso de crianças na Cadeia Pública do Guarujá.

A Comissão também solicitou ao Estado que apresentasse informações sobre o cumprimento dessas medidas no prazo de 15 dias.

[6] Nessa comunicação, a CIDH solicita ao Estado que:

1.       Adote todas as medidas necessárias para garantir a vida, a saúde e a integridade pessoal das pessoas privadas de liberdade na Cadeia Pública do Guarujá;

2.       Reduza a superpopulação na Cadeia Pública do Guarujá a um nível que garanta a vida e a integridade pessoal dos presos;

3.       Preste imediatamente atendimento médico a todos os beneficiários;

4.       Coordene medidas tomadas em cumprimento das medidas cautelares em consulta com os representantes dos beneficiários.

[7]Relação de Presos Recolhidos na CP de Guarujá em 06/12/2007 – Quinta”, emitida pela Secretaria de Estado dos Negócios de Segurança Pública, em 6 de dezembro de 2007, Anexo 12 da comunicação dos peticionários de 18 de dezembro de 2007.

[8] Comunicação dos peticionários no âmbito das medidas cautelares, datada de 18 de março de 2008, pp. 5 e 6.

[9] Comunicação dos peticionários no âmbito das medidas cautelares, supra nota 9, p. 4.

[10] Relatório de Inspeção da Divisão de Vigilância Sanitária e Peritagem do Instituto de Criminalística. Anexos 15 e 16 da comunicação dos peticionários de 18 de dezembro de 2007.

[11] Relatório sobre as Condições da Cadeia Pública do Guarujá, elaborado pelo Delegado de Polícia encarregado, em 7 de dezembro de 2007. Anexo 17 à comunicação dos peticionários de 18 de dezembro de 2007.

[12] Decisão do Juiz Corregedor Permanente dos Presídios e da Polícia Judiciária, de 7 de dezembro de 2007, a respeito do Processo Administrativo de Interdição Nº 80/07. Anexo 19 à comunicação dos peticionários de 18 de dezembro de 2007.

[13] Anexos 1 a 13, Comunicação dos peticionários de 18 de dezembro de 2007.

[14] O texto original em português indica a expressão “mulheres adolescentes”. Ver nota de rodapé Nº 20.

[15] Relatório do Conselho Comunitário Penitenciário de Guarujá e Vicente de Carvalho, datado de 12 de setembro de 2006. Comunicação dos peticionários de 8 de maio de 2007, anexo 16.

[16] Ata de Reunião do Conselho Comunitário Penitenciário de Guarujá e Vicente de Carvalho, datada de 23 de maio de 2006. Comunicação dos peticionários de 8 de maio de 2007, anexo 11.

[17] Ata de Reunião do Conselho Comunitário Penitenciário de Guarujá e Vicente de Carvalho, datado de 23 de maio de 2006. Comunicação dos peticionários de 8 de maio de 2007, anexo 11.

[18] A partir da Lei 12.469, de 22 de dezembro de 2006, e conforme seu artigo 1, “a FEBEM [Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor de São Paulo] passa a denominar-se Fundação Centro de Atendimento Sócio-Educativa ao Adolescente – Fundação CASA-SP”. Em http://www.al.sp.gov.br/staticfile/integra_ddilei/lei/2006/lei%20n.12.469,%20de%2022.12.2006.htm o texto da lei está disponível. Neste Relatório, a Comissão utiliza ambas as expressões para referir-se ao órgão encarregado de executar as medidas socioeducativas em conformidade com o “Estatuto da Criança e do Adolescente” (ECA).

[19] Anexa-se nota jornalística da qual constariam as manifestações públicas indicadas.

[20] A Convenção Americana sobre Direitos Humanos não define quem são crianças. Portanto, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos aplica o conceito estabelecido no Direito Internacional, na Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas, que define como criança “todo ser humano com menos de 18 anos de idade, a não ser que, em virtude da lei que lhe seja aplicável, tenha alcançado antes a maioridade”. O Código Penal Brasileiro também estabelece em seu artigo  27 que: “Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial”. O Estatuto da Criança e do Adolescente Brasileiro estabelece em seu artigo 2: “Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos incompletos de idade, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”. A Comissão, seguindo o disposto na Convenção sobre Direitos da Criança, utiliza a expressão “criança” neste relatório para referir-se às supostas vítimas que tinham menos de 18 anos no momento de sua detenção na Cadeia Pública do Guarujá.

[21] Os nomes completos estão disponíveis no Anexo ao presente Relatório.

[22] CIDH, Relatório Nº 69/05, petição 960/03, Admissibilidade, Ivan Eladio Torres, Argentina, 13 de outubro de 2005, parágrafo 42; CIDH, Caso Ximenes Lopes, Sentença de 30 de novembro de 2005. Série C Nº 139, parágrafo 5. Caso da Comunidade Moiwana, Sentença de 15 de julho de 2005. Série C Nº 124, parágrafo 49. Caso das Irmãs Serrano Cruz, Sentença de 23 de novembro de 2004. Série C Nº 118, parágrafo 135.

[23] CIDH, Caso Velásquez Rodríguez. Sentença de 29 de julho de 1988. Série C Nº 4,. 62-66. Caso Fairén Garbi e Solís Corrales, Sentença de 26 de junho de 1987. Série C Nº 2, parágrafos. 86-90. Caso Godínez Cruz parágrafos, Sentença de 20 de janeiro de 1989. Série C Nº 5, parágrafo 65-69.

[24] CIDH, Caso Velásquez Rodríguez, supra nota 23, parágrafo 72. Caso Fairén Garbi e Solís Corrales, supra nota 23, parágrafo 97; Caso Godínez Cruz, supra nota 23, parágrafo 75.

[25] CIDH, Caso Ivcher Bronstein. Sentença de 6 de fevereiro de 2001. Série C Nº 74, parágrafo 137.

[26] CIDH, Caso Godínez Cruz, supra nota 23, parágrafo 95.

[27] CIDH, Relatório Nº 36/07, Petição 1133-06, Admissibilidade, Pessoas privadas de liberdade nas celas da 76ª. Delegacia de Polícia de Niterói, Rio de Janeiro, Brasil, 17 de julho de 2007, parágrafo 108; e CIDH, Relatório Nº 39/02, Caso 12.328, Admissibilidade, Adolescentes em custódia da FEBEM, Brasil, 9 de outubro de 2002, parágrafo 37.

[28] CIDH, Relatório Nº 19/07, Petição 170-02, Admissibilidade, Ariomar Oliveira Rocha, Ademir Federici e Natur de Assis Filho, Brasil, 3 de março de 2007, parágrafo 27; Relatório Nº 23/07, Petição 435-2006, Admissibilidade, Eduardo José Landaeta Mejía e Outros, Venezuela, 9 de março de 2007, parágrafo 47; Relatório Nº 40/07, Petição 665-05, Admissibilidade, Alan Felipe da Silva, Leonardo Santos da Silva, Rodrigo da Guia Martins Figueiro Tavares e Outros, Brasil, 23 de julho de 2007, parágrafo 55.

[29] CIDH, Relatório Nº 19/07, Petição 170-02, Admissibilidade, Ariomar Oliveira Rocha, Ademir Federici e Natur de Assis Filho, Brasil, 3 de março de 2007, parágrafo 27; Relatório Nº 23/07, Petição 435-2006, Admissibilidade, Eduardo José Landaeta Mejía e Outros, Venezuela, 9 de março de 2007, parágrafo 47; Relatório Nº 40/07, Petição 665-05, Admissibilidade, Alan Felipe da Silva, Leonardo Santos da Silva, Rodrigo da Guia Martins Figueiro Tavares e Outros, Brasil, 23 de julho de 2007, parágrafo 55.

[30] CIDH, Caso Neira Alegría, Sentença de 19 de janeiro de 1995, Série C Nº 20, parágrafo 60.

[31] Artigo  29 - Normas de Interpretação - Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de: (…) b) limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados; (…)

[32] CIDH, Parecer Consultivo OC 1/82 de 24 de setembro de 1982 sobre “Outros tratados” objeto da função consultiva da Corte (artigo 64 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), parágrafo 41.

[33] CIDH, Caso Villagrán Morales e outros vs. Guatemala, Fundo, Sentença de 19 de novembro de 1999, Série C N° 63, parágrafo 194. Caso Instituto de Reeducação do Menor vs. Paraguai, Fundo, Sentença de 2 de setembro de 2004, parágrafo 148. Caso dos Irmãos Gómez Paquiyauri vs. Peru, Fundo, Sentença de 8 de julho de 2004, parágrafo. 166. CIDH, Condição Jurídica e Direitos da Criança, Parecer Consultivo OC-17/02 de 28 de agosto de 2002, Série A, número 17, parágrafos 24, 37, 53.

[34] Esta Convenção foi adotada em 20 de novembro de 1989 e entrou em vigor em 2 de setembro de 1990. O Brasil ratificou a Convenção sobre os Direitos da Criança em 24 de setembro de 1990.