RELATÓRIO Nº 37/07[1]

CASO 12.200

ADMISSIBILIDADE

HENRIQUE JOSÉ TRINDADE e JUVENAL FERREIRA TRINDADE

BRASIL

17 de julho de 2007

 

 

I.          RESUMO

 

1.            Em 10 de fevereiro de 1999 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante a “Comissão” ou a “CIDH”) recebeu uma petição apresentada pelo Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL); pelo Centro de Direitos Humanos Enrique Trindade; e pela Comissão Pastoral da Terra (doravante os “peticionários”), na qual se alega a violação, por parte da República Federativa do Brasil (doravante o “Brasil” ou o “Estado”) dos artigos I, IX e XVIII da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (doravante a “Declaração Americana”), bem como dos artigos 8, 24, 25 e 1(1) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante a “Convenção Americana”), em prejuízo dos direitos inerentes a Enrique José Trindade e Juvenal Ferreira Trindade.

 

2.           Segundo as informações, em 4 de novembro de 1982, Henrique Trindade foi assassinado no Município de Alto Paraguai, Brasil, por um grupo de 6 (seis) pessoas, sendo na mesma ocasião ferido, por uma bala disparada da arma de um destes sujeitos, Juvenal Ferreira Trindade, filho do falecido. O inquérito policial a respeito dos fatos teve início em 6 de setembro de 1982, sendo em 6 de setembro de 1983 encaminhado ao Juiz competente, perante o qual o Ministério Público apresentou uma denúncia contra os responsáveis, sem que até esta data se tenha superado a etapa de instrução do processo.

 

3.           O Estado a contestou remetendo um relatório relativo à situação processual da causa penal que envolve os fatos do caso.

 

4.           Após examinar as posições das partes à luz dos requisitos de admissibilidade estabelecidos nos artigos 46 e 47 da Convenção Americana, a Comissão decidiu declarar admissível o caso em relação aos artigos I, IX e XVIII da Declaração Americana, bem como 8.1 e 25 da Convenção Americana em conexão com a obrigação geral estabelecida no artigo 1.1 da mesma. Além disso, a Comissão decidiu declarar inadmissível a petição em relação à presumida violação ao artigo 24 da Convenção Americana. Em conseqüência, a Comissão decidiu notificar às partes e tornar público o presente Relatório de Admissibilidade e incluí-lo em seu Relatório Anual.

 

II.         TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

5.              A petição original foi recebida na Comissão em 10 de fevereiro de 1999, sendo registrada sob o número 12.200.

 

6.                  Em 31 de agosto de 1999, a Comissão transmitiu ao Estado as partes pertinentes da denúncia, segundo o artigo 34 do Regulamento da Comissão vigente no momento de início da mesma, concedendo-se o prazo de 90 (noventa dias) para contestação, acompanhando as informações que considerassem pertinente ao caso.

 

7.                  Mediante a nota de data 2 de dezembro de 1999, recebida pela Comissão em 6 desse mês e ano, o Estado contestou a denúncia.

 

8.                  O fato de o Estado ter contestado a denúncia foi comunicado aos peticionários em 14 de dezembro de 1999, concedendo-lhes o prazo de 45 (quarenta e cinco) dias para apresentarem suas observações.

 

9.                  Mediante nota de 14 de fevereiro de 2000, recebida pela Comissão em 15 desse mês e ano, os peticionários solicitaram uma prorrogação do prazo concedido para apresentação de observações à resposta do Estado, comunicando-se a eles a concessão de quanto pretendiam por um prazo de 30 (trinta) dias, por meio da nota de 24 de fevereiro de 2000.

 

10.              Em 2 de maio de 2000, a Comissão comunicou aos peticionários que, em vista de não se ter recebido a contestação supra requerida, tinham o prazo de 60 (sessenta) dias para responder e, caso contrário, seria suspensa a consideração da questão.

 

11.              Em 30 de junho de 2000, os peticionários apresentaram as observações requeridas pela Comissão sobre a resposta do Estado referente à petição.

 

12.              Em 6 de julho de 2000 comunicou-se aos peticionários o recebimento da informação adicional remetida, transmitindo-se esta na mesma data ao Estado, ao qual se concedeu um prazo de 30 (trinta) dias para apresentar suas observações.

 

13.              Em 7 de setembro de 2006 solicitou-se tanto aos peticionários como ao Estado que remetessem informação atualizada sobre a situação da presumida vítima e sobre seu interesse de prosseguir com o caso, no prazo de 15 (quinze) dias.

 

14.              Em 3 de outubro de 2006, os peticionários apresentaram as informações requeridas.

 

III.        POSIÇÕES DAS PARTES

 

A.         Posição dos peticionários

 

15.              Estes afirmam que a denúncia formulada contra o Estado se baseia no assassinato de Henrique José Trindade e nas lesões sofridas por seu filho, Juvenal Ferreira Trindade, em 4 de setembro de 1982, acontecimentos que ocorreram no Município de Alto Paraguai, Estado de Mato Grosso, Brasil. Este fato é coadjuvado pela conduta negligente e omissiva como foram utilizados os recursos internos disponíveis ao Estado, os quais não resultaram nem efetivos nem eficazes para reparar as lesões aos direitos humanos ocorridas na presente situação. Nesta linha de pensamento, requer-se que o Estado seja responsabilizado pelo assassinato de Henrique Trindade e pela lesão sofrida por seu filho, bem como por não ter tomado nenhuma medida punitiva contra os responsáveis pelos fatos, depois de transcorridos, na data constante da petição, 16 (dezesseis) anos desde que acontecerem.

 

16.              Afirmam os peticionários que na data aludida no parágrafo precedente, aproximadamente às 20h00 (vinte horas), Henrique Trindade foi assassinado perto de sua casa por um grupo de 6 (seis) pessoas, a mando do delegado policial Nelson Tokashike. A presumida vítima era posseiro de terras fiscais que não eram próprias nem destinadas a nenhum uso público federal, estadual, territorial ou municipal – não incorporadas ao domínio privado – vivia do cultivo agrícola da herança que possuía no Município de Alto Paraguai, Estado de Mato Grosso. Ele e outros posseiros da região, assim se alega, vinham sendo ameaçados por um fazendeiro da zona desde 1979, por questões de disputa da posse das terras em que os sujeitos estavam assentados. O latifundiário em questão tinha comprado uma fazenda vizinha às terras cultivadas pelos aludidos posseiros, tentando, segundo se refere, apoderar-se delas, momento em que encontrou a resistência destes, liderados por Henrique Trindade.

 

17.              Manifestam os peticionários, que em data 26 de agosto de 1981, Henrique acompanhado de outros possuidores, do fazendeiro de referência e do Presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Alto Paraguai, se reuniram na sede do órgão encarregado da administração das terras do Estado, para chegar a um acordo sobre as terras em questão, momento em que o fazendeiro ofereceu aos posseiros uma indenização em troca das terras que ocupavam. O advogado da instituição lhes manifestou que as terras pertenciam ao Estado e não podiam ser cedidas por eles, informações que deu a estes sujeitos segurança para permanecer em sua posse.

 

18.              Afirmam os peticionários que, a partir do momento em que os posseiros se negaram a assinar o pacto em questão, o fazendeiro de referência elucubrou um plano para matar Henrique Trindade, Benedito Gomes e Júlio Arao da Silva, contratando para isso certas pessoas, entre as quais estava o delegado de polícia de Alto Paraguai e o comissário do mesmo lugar. Na denúncia apresentada pelo Ministério Público em 4 de abril de 1984 alega-se que o aludido fazendeiro mandou matar Henrique Trindade sob o pretexto de que este possuía em sua casa objetos roubados.

 

19.              Manifestam os peticionários que em 4 de setembro de 1982, sob uma forte chuva, um grupo se dirigiu à casa de Henrique Trindade, com o objetivo de assassiná-lo. Sendo este encontrado sem camisa, o referido comissário lhe ordenou que fosse a seu quarto vestir-se. No momento em que entrou no quarto para cumprir o que lhe ordenaram, o delegado e o comissário entraram atrás dele disparando, sendo acertado em um braço, reagindo o afetado também disparando. Ao sair do quarto, se aduz Henrique recebeu dois tiros. Em outro quarto da casa estava o filho do ferido, Juvenal Ferreira Trindade, de 15 (quinze) anos, que portava uma espingarda para sua defesa. Ao vê-lo, o delegado disparou um tiro, acertando na mão direita dele, o qual levou o jovem a fugir para a casa de Benedito Gomes, outro posseiro também “jurado de morte”.

 

20.              Afirmam os peticionários que a esposa de Henrique, que presenciou os fatos grávida de 8 (oito) meses, fugiu para a casa de seu pai, levando consigo dois filhos. Depois destes acontecimentos, os assassinos obrigaram Enrique, ainda com vida, a levá-los às casas dos posseiros Júlio Arao da Silva e Benedito Gomes. Chegando ao local, ao encontrar as residências vazias, mataram Henrique Trindade ali mesmo com outro tiro, arrancando-lhe antes um olho por ordem do fazendeiro que os contratara. O corpo foi abandonado sob uma árvore ao lado da casa de Júlio, onde foi encontrado no dia seguinte por moradores locais que o buscavam, com sinais de tortura. O delegado da localidade de Diamantino, segundo os peticionários, foi informado do achado e negou-se a fazer as perícias.

 

21.              Afirmam os peticionários que a investigação policial foi iniciada em 6 de setembro de 1982 na comarca de Cuiabá, Estado de Mato Grosso, apresentando sérios indícios de irregularidades em sua condução, pois os agentes dessa dependência estavam em conivência com alguns dos acusados, em razão de camaradagem. Um fato que se sustenta chama a atenção, a saber, a situação de que a prisão preventiva do delegado de polícia envolvido não foi decretada imediatamente, apesar da existência de provas indicando que assim se devia proceder. Alega-se que o delegado policial do lugar, responsável pelo inquérito, recebeu uma casa de presente do aludido fazendeiro como pagamento por ter mandado seus subalternos para matar Henrique Trindade, fato que foi denunciado, porém nunca investigado. O laudo de necropsia do falecido, também se manifesta, foi negligente, pois foram omitidos os sinais de tortura.

 

22.              Indicam os peticionários que em 6 de setembro de 1983, o inquérito registrado como N° 1182/84 foi dirigido ao Juiz da Vara Criminal de Diamantino/Mato Grosso, sendo a denúncia pelo Ministério Público em relação aos fatos apresentada em 4 de abril de 1984 contra 6 (seis) pessoas, inclusive contra o delegado de polícia e o comissário acima mencionados, sendo a partir deste ponto os réus mencionados por meio de “cartas precatórias” (ofícios judiciais que se diligenciam entre juízes com competência em diversas localidades), demorando o processo em demasia por não se poder localizar os sujeitos, até que em 6 de outubro de 1998 se decretou a rebeldia e a prisão preventiva dos mesmos, estando o processo criminal em fase de instrução, até o momento em que se emitiu a denúncia, sem qualquer condenação em relação aos fatos ou que pelo menos um dos sujeitos tivesse sido detido, o que demonstra a total impunidade existente na região.

 

23.              Afirmam os peticionários que todos os recursos internos foram ineficazes, pelo que os peticionários se consideram eximidos de esgotá-los, entendendo como razoável o prazo no qual se faz a petição, bem como que foram violados os direitos à vida, liberdade, segurança pessoal, inviolabilidade do domicílio, acesso à justiça, garantias judiciais, igualdade e proteção judiciais das presumidas vítimas, além da obrigação geral constante do artigo 1.1 da Convenção Americana.

 

24.              Na informação apresentada em 3 de outubro de 2006, os peticionários manifestaram que, transcorridos 24 (vinte e quatro) anos desde que o Ministério Público instaurou a ação penal, a causa ainda não foi julgada, tendo-se inclusive decretado a prescrição da pretensão punitiva em 2 de junho de 2006 pelo Juiz da “Vara Criminal” da cidade de Diamantino. Concluem que, além de ter tido que esperar mais de 20 (vinte) anos para serem investigados e julgados os responsáveis pelos fatos, se tem materializado uma absoluta impunidade em relação a estes, diante da aplicação do instituto da prescrição.

 

25.              Peticiona-se que se declare a admissibilidade do caso e se determine a existência de violações por parte do Estado a respeito dos artigos I, IX e XVIII da Declaração Americana, bem como dos artigos 8, 24, 25 e 1.1 da Convenção Americana.

 

B.         Posição do Estado

 

26.              O Estado, na concisa apresentação de 2 de dezembro de 1999, recebida pela Comissão em 6 do mesmo mês e ano, limita-se a indicar que em referência ao caso acompanha as informação anexa, a qual se compunha de uma única folha consistente em um relatório emanado de um funcionário da Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, na qual se manifesta que, segundo o Procurador-Geral de Justiça do Estado de Mato Grosso, a ação penal relativa ao caso foi registrada em 23 de abril de 1984. Quanto ao estado do processo, limita-se a referir que foi decretada a prisão preventiva de todos os acusados e foram ditadas as respectivas ordens de prisão, tendo-se marcado audiências para receber depoimentos.

 

IV.        ANÁLISE SOBRE COMPETÊNCIA E ADMISSIBILIDADE

 

A.         Competência ratione personae, ratione loci, ratione temporis e ratione
                         materiae da Comissão

 

27.          Os peticionários encontram-se facultados pelo artigo 44 da Convenção a apresentar denúncias perante a CIDH. A petição indica como presumidas vítimas Enrique José Trindade e Juvenal Ferreira Trindade, cidadãos do Estado. Portanto, a Comissão tem competência ratione personae para examinar a petição. Em relação ao Estado, este ratificou a Convenção Americana em 25 de setembro de 1992 e depositou seu instrumento de ratificação da Carta da OEA em 13 de março de 1950.

 

28.              A Comissão tem competência ratione loci para conhecer a petição, porquanto nela se alegam violações de direitos protegidos na Declaração Americana e na Convenção Americana, que teriam ocorrido no território de um Estado parte nesses instrumentos.

 

29.              A Comissão tem competência ratione temporis, porquanto a obrigação de respeitar e garantir os direitos internacionalmente protegidos já estava em vigor para o Estado na data em que teriam ocorrido os fatos alegados na petição, tanto na Declaração Americana como na Convenção Americana. A Comissão esclarece que os fatos alegadamente violadores de direitos humanos dos Senhores Enrique José Trindade e Juvenal Ferreira Trindade ocorreram antes de 25 de setembro de 1992, data em que o Brasil ratificou a Convenção Americana, em virtude do que uma das fontes de direito aplicável a respeito é a Declaração Americana. Tanto a Corte como a Comissão têm-se expressado no sentido de que a Declaração Americana é uma fonte de obrigações internacionais para os Estados membros da OEA[2]. No tocante a fatos ocorridos antes de 25 de setembro de 1992, data da ratificação da Convenção Americana por parte do Brasil, esses alegações devem ser analisadas em relação com a Declaração Americana.

 

30.              Finalmente, a Comissão tem competência ratione materiae, porque na petição são denunciadas violações de direitos humanos protegidos pela Convenção Americana e pela Declaração Americana.

 

B.         Requisitos de Admissibilidade

 

1.         Esgotamento dos recursos internos

 

31.              O artigo 46 da Convenção Americana estabelece certos requisitos para uma petição ser considerada admissível, bem como exceções à aplicação do requisito sobre esgotamento dos recursos internos e apresentação do assunto em um prazo de seis meses. Em particular, o artigo 46.1 da Convenção Americana estabelece como requisito de admissibilidade de uma reclamação o prévio esgotamento dos recursos disponíveis na jurisdição interna do Estado, em conformidade com os princípios do Direito Internacional geralmente reconhecidos.

 

32.         Os peticionários indicaram que a denúncia origina-se da impunidade perante o assassinato de um cidadão brasileiro e a lesão de outro. Além disso, os peticionários indicaram que a causa penal permaneceu paralisada perante um sem número de dilações injustificáveis, em razão das travas existentes no sistema jurídico que confere exclusivo poder do exercício e impulso da ação penal pública ao Ministério Público. Assim, em 2 de junho de 2006, conforme informações adicional apresentada pelos peticionários em 3 de outubro de 2006, foi decretada a extinção da ação penal a respeito da questão.

 

33.        O Estado contestou a petição de maneira breve, não opondo a exceção de falta de esgotamento de recursos internos. A Corte Interamericana estabeleceu em reiteradas oportunidades que “A exceção de não-esgotamento dos recursos internos, para ser oportuna, deve ser estabelecida nas primeiras etapas do procedimento, em cuja falta se poderá presumir a renúncia tácita a valer-se da mesma por parte do Estado interessado[3].

 

34.        A Comissão observa que, ao ter-se decretado a prescrição da pretensão punitiva em 2 de junho de 2006, se produziu um esgotamento prévio das instâncias domésticas em conformidade com o disposto no artigo 46(1)(a) da Convenção.

 

35.         Ante o exposto, a CIDH considera que os recursos internos estão esgotados, tendo-se com isto dado cumprimento do estipulado no artigo 46(1)(a) da Convenção Americana.

 

2.         Prazo de apresentação

 

36.          O artigo 46(1)(b) da Convenção exige que a petição “que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha sido notificado da decisão definitiva.” Em conformidade com o artigo 46(2) da Convenção, o requisito do prazo dos seis meses previsto no artigo 46(1)(b) não se aplicará quando se configurar alguma das exceções nele previstas.

 

37.               A CIDH nota que, embora “os requisitos convencionais de esgotamento de recursos internos e de apresentação dentro do prazo de seis meses de notificação da sentença que esgota a jurisdição interna” sejam independentes[4], as exceções previstas no artigo 46(2) da Convenção Americana são comuns para ambos os requisitos.

 

38.               No caso em questão, embora a petição tenha sido apresentada antes de se esgotarem os recursos internos, cumpre levar em conta que, na data em que se apresentou a petição, a instância local já apresentava um atraso injustificado na produção de resultados, uma vez que os fatos ocorreram em 4 de setembro de 1982, tendo até a presente data transcorrido mais de 24 (vinte e quatro) anos sem que tenha produzido resultados o processo interno instaurado para determinar quem deve ser responsabilizado pelos fatos ocorridos e ser condenado em conseqüência a pagar alguma pena privativa de liberdade, o qual também habilitaria os afetados a reclamarem alguma indenização em sede civil.

 

39.              Até esta data em que a petição foi apresentada já tinham transcorrido mais de 16 (dez e seis) anos desde que os fatos ocorreram sem que os remédios da jurisdição interna tivessem oferecido resultados em relação aos mesmos, motivo pelo qual a CIDH conclui que, como os fatos puníveis ocorreram em 4 de setembro de 1982 e a tramitação da ação penal teve início em 23 de abril de 1984, acusando-se no processo 6 (seis) pessoas, sendo lavrada a ordem de prisão dos mesmos, na data em que foi apresentada a petição a situação apresentava um evidente atraso injustificado no resultado que os recursos internos poderiam produzir, tendo-se inclusive em seguida decretado a prescrição da pretensão punitiva.

 

40.              Em virtude do artigo 32(2) do Regulamento da CIDH, nos casos nos quais forem aplicáveis as exceções ao requisito do prévio esgotamento dos recursos internos, a petição deverá ser apresentada em prazo razoável, a critério da Comissão. Na presente situação, levando em consideração todos os fatos aludidos, determina-se que a petição foi apresentada em um prazo razoável, dado que no momento de instaurar-se a petição já se teriam configurado os requisitos necessários para que opere a exceção ao esgotamento dos recursos internos prevista no artigo 46(2)(c) da Convenção.

 

3.         Duplicação de procedimentos e coisa julgada internacional

 

41.              Não surge do expediente que a matéria da petição esteja pendente de outro procedimento de acordo internacional, nem que reproduza uma petição já examinada por este ou outro órgão internacional.  Portanto, cabe dar por cumpridos os requisitos estabelecidos nos artigos 46(1)(c) e 47(d) da Convenção.

 

4.         Caracterização dos fatos alegados

 

42.              Para fins da admissibilidade, a CIDH deve decidir se são expostos fatos que poderiam caracterizar uma violação de direitos humanos resguardados nos instrumentos envolvidos, conforme estipula o artigo 47(b) da Convenção Americana, bem como se a petição é “manifestamente infundada” ou se é “evidente sua total improcedência”, segundo a alínea c do mesmo artigo.

 

43.              O padrão de apreciação destes extremos é diferente do requerido para decidir sobre os méritos de uma denúncia. A CIDH deve fazer uma avaliação prima facie para examinar se a denúncia fundamenta a aparente ou potencial violação de um direito garantido pela Convenção Americana ou a Declaração Americana e não para estabelecer a existência de uma violação. Esse exame é uma análise sumária que não implica um prejulgamento ou um adiantamento de parecer sobre o fundo[5].

 

44.              Da exaustiva análise do caso, a Comissão não encontra que a petição seja “manifestamente infundada” ou que seja “evidente sua improcedência”. Por conseguinte, a CIDH considera que, prima facie, os peticionários credenciaram os extremos requeridos no artigo 47, alíneas b e c da Convenção.

 

45.              Antes o exposto, a Comissão Interamericana considera que, se forem comprovados os fatos expostos com relação à violação de direitos a vida, à segurança, à inviolabilidade do domicilio, ao devido processo e à proteção judicial, inerentes a Enrique José Trindade e Juvenal Ferreira Trindade, poderia encontrar-se perante uma contravenção dos artigos I, IX e XVIII da Declaração Americana, bem como dos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, em conexão com a obrigação geral constante do artigo 1(1) do mesmo instrumento.

 

46.              A descrição dos fatos que configuram o presente caso leva a Comissão a determinar que os mesmos não denotam uma potencial violação ao direito consagrado no artigo 24 da Convenção, pois deles não surge que as presumidas vítimas tenham sofrido um tratamento diferenciado em relação ao exercício dos direitos e liberdades protegidos pela Convenção a respeito de outros cidadãos em condição semelhante, pelo que a petição deve ser declarada inadmissível neste sentido.

 

V.         CONCLUSÕES

 

47.              Com fundamento nas considerações de fato e de direito expostas, sem prejulgar sobre o fundo da questão, a Comissão conclui que o caso atende aos requisitos de admissibilidade enunciados nos artigos 46 e 47 da Convenção Americana,
 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.         Declarar admissível a petição Nº 12.200, em conformidade com os artigos I, IX e XVIII da Declaração Americana, bem como a respeito dos artigos 8.1 e 25 da Convenção Americana, em conexão com a obrigação geral constante do artigo 1(1) do mesmo instrumento.

 

2.         Declarar inadmissível a mesma em relação à presumida violação do artigo 24 da Convenção Americana.

 

3.         Transmitir este relatório ao Estado e aos peticionários.

 

4.         Continuar a consideração das questões de fundo colocadas no presente caso.

 

5.         Publicar este relatório no Relatório Anual à Assembléia Geral da OEA.

 

Dado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., aos dezessete dias do mês de julho de 2007. (Assinado: Florentín Meléndez, Presidente: Paolo Carozza, Primeiro Vice-presidente; Victor Abramovich, Segundo Vice-presidente; Evelio Fernández Arévalos; Clare K. Roberts e Freddy Gutiérrez, membros da Comissão).


[1] Em conformidade com o disposto no artigo 17.2.a do Regulamento da CIDH, o Comissionado Paulo Sérgio Pinheiro, de nacionalidade brasileira, não participou da decisão sobre esta petição.

[2] Ver Corte Interamericana de Direitos Humanos, Interpretación de la Declaración Americana de los Derechos y Deberes del Hombre en el marco del artículo 64 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos. Parecer Consultivo OC-10/89 de 14 de julho de 1989. Série A e B Nº 10, par. 35-45; CIDH, James Terry Roach e Jay Pinkerton, Estados Unidos, Res. 3/87, Caso 9647, 22 de setembro de 1987, RELATÓRIO ANUAL 1986-87, par. 46-49, Rafael Ferrer-Mazorra y Outros, Estados Unidos, Relatório Nº 51/01, Caso 9903, 4 de abril de 2001. Ver o artigo 20 do Estatuto da CIDH..

[3] A Corte Interamericana assim se expressou: “A exceção de não-esgotamento dos recursos internos, para ser oportuna, deve ser estabelecida nas primeiras etapas do procedimento, em cuja falta se poderá presumir a renúncia tácita a valer-se da mesma por parte do Estado interessado”. Ver: Caso Velásquez Rodríguez. Excepciones Preliminares. Sentença de 26 de junho de 1987, Série C Nº 1, par. 88; Caso Fairén Garbi y Solís Corrales. Excepciones Preliminares. Sentença de 26 de junho de 1987, Série C Nº 2, par. 87;  Caso Godínez Cruz. Excepciones Preliminares. Sentença de 26 de junho de 1987, Série C Nº. 3, par. 90; Caso Gangaram Panday. Excepciones Preliminares. Sentença de 4 de dezembro de 1991, Série C Nº.12, párr. 38; Caso Neira Alegría y Otros. Excepciones Preliminares. Senteça de 11 de dezembro de 1991, Série C Nº.13, par. 30; Caso Castillo Páez. Excepciones Preliminares, Sentença de 30 de janeiro de 1996, Série C Nº. 24, par. 40; Caso Loayza Tamayo. Excepciones Preliminares. Sentença de 31 de janeiro de 1996, Série C Nº. 25, par. 40.

[4] CIDH, Relatório N° 81/01, Caso 12.228, , México, 10 de outubro de 2001, Alfonso Martín do Campo Dodd, par. 20.

[5] CIDH, Relatório Nº 21/04, Solicitação 12.190, Admisibilidad, José Luis Tapia González y outros, Chile, 24 de fevereiro de 2004, par. 33.