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ELATÓRIO
Nº 83/06[1]

PETIÇÃO 641-03

ADMISSIBILIDADE

MANOEL LUIS DA SILVA

BRASIL

21 de outubro de 2006

 

 

I.         RESUMO

 

1.        Em 13 de abril de 2005, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante, “Comissãoou “CIDH”) recebeu uma petição apresentada pelo Centro de Justiça Global (CJG), pela Comissão Pastoral da Terra na Paraíba (CPT/PB) e pela Dignitatis – Assessoria Técnica Popular, representados por James Cavallaro, Andressa Caldas, Mahine Dorea, Noaldo Belo de Meireles e Eduardo Fernandes de Araújo (doravante, “peticionários”), na qual alegam a violação, por parte da República Federativa do Brasil (doravante, “Brasil” ouEstado”), dos artigos 4, 5, 8, 25 e 1 (1) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante, “Convenção Americana”), em prejuízo de Manoel Luiz da Silva.

 

2.         Mediante a presente petição é atribuída ao Estado a responsabilidade por violações dos direitos do Sr. Manoel Luiz da Silva, trabalhador rural sem-terra assassinado em 19 de maio de 1997 no lugar onde está localizada a Fazenda Engenho Taipu, em São Miguel de Taipu, Estado da Paraíba, Brasil. Essa fazenda particular, diz a petição, encontrava-se então submetida a um processo de expropriação a título de utilidade pública com fins de reforma agrária. Os peticionários assinalam que, no dia do aludido fato, a presumida vítima estava acompanhada por outros três trabalhadores sem-terra, e, ao atravessarem a fazenda, de propriedade do Sr. Alcides Vieira de Azevedo, depararam-se com três seguranças particulares a serviço deste, os quais os advertiram de que não poderiam circular pelo lugar, informando-os de que haviam recebido instruções de seu patrão no sentido de que deveriam matar os trabalhadores sem-terra que encontrassem em sua propriedade. Depois de uma discussão entre os dois grupos, diz a petição, um dos seguranças atirou na presumida vítima, que teve morte instantânea. Os fatos, conforme está dito, foram denunciados à polícia, nada havendo sido resolvido, contudo, até a data do exame da petição quanto ao esclarecimento dos mesmos nem sobre a atribuição de a quem cabe sua responsabilidade. Aduz-se a existência de conivência entre os membros da Polícia e do Poder Judiciário e os proprietários da área, donde se induz haver total impunidade com respeito aos crimes cometidos contra os agricultores da região, situação que aumenta a cada dia.

 

3.         Em 20 de junho de 2005, o Estado respondeu à alegada petição extemporaneamente, manifestando que não estavam esgotados os recursos internos a respeito da elucidação do caso, em vista do que opunha a exceção pertinente. Isso, diz, aconteceu quando estava tramitando perante o Juiz de Direito da Comarca de Pilar, Estado da Paraíba, uma ação contra os que estão sendo investigados como acusados do crime ocorrido, sobre o qual ainda não houve deliberação, estando o mesmo, afirma, dentro do prazo previsto em lei para tal efeito. Alega que, contra a decisão a ser adotada, procedem os recursos de revisão internos, procedimento que é preciso esgotar antes de se recorrer à instância internacional. Ademais, diz, não foi juntada qualquer prova acerca da instauração, junto ao órgão competente, de ações cíveis com vistas à obtenção de indenização por perdas e danos sofridos pela vítima, razão pela qual a petição deve ser rechaçada e arquivada.

 

4.          Após examinar a posição das partes à luz dos requisitos de admissibilidade previstos nos artigos 46 e 47 da Convenção Americana, a Comissão decidiu declarar a admissibilidade do caso em relação aos artigos 4, 8 e 25 da Convenção Americana, em conexão com a obrigação geral de que trata o artigo 1 (1) do mesmo instrumento. Por conseguinte, a Comissão resolveu notificar às partes e tornar público o presente Relatório de Admissibilidade, bem como incluí-lo em seu Relatório Anual.

 

II.       TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

5.       No dia 17 de fevereiro de 2005, a Comissão notificou o Estado sobre a instauração de uma petição contra o mesmo, encaminhando-lhe as peças pertinentes dos autos, além de notificá-lo do conhecimento do instante em que começava a ser computado o prazo estabelecido no artigo 30 (2) de seu Regulamento para a resposta da petição.

 

6.       Em 20 de junho de 2005, o Estado respondeu extemporaneamente a alegada petição.

 

7.       No dia 5 de agosto de 2005, foram transmitidas aos peticionários as observações apresentadas pelo Estado em relação à petição por eles formulada, havendo os mesmos, por nota recebida em 23 de agosto do mesmo ano, requerido a prorrogação do prazo que lhes fora concedido para que se manifestassem sobre tais observações.

 

8.        Em 21 de setembro de 2005, foi concedida aos peticionários a prorrogação requerida para a apresentação de suas observações à resposta do Estado, sendo tal decisão notificada aos mesmos naquela data.

 

9.        Em nota recebida no dia 24 de outubro do mesmo ano, os peticionários apresentaram suas observações à contestação da petição realizada pelo Estado.

 

10.      Mediante a apresentação realizada em 20 de abril de 2006, os peticionários fizeram chegar a informação adicional que lhes fora solicitada sobre os antecedentes da petição.

 

11.       Em 11 de maio de 2006, foi transmitida ao Estado a informação adicional apresentada pelos peticionários.

 

III.       POSIÇÕES DAS PARTES

 

 A.      Posição dos peticionários

 

12.     Segundo a informação apresentada pelos peticionários à CIDH na data supramencionada, a qual fundamenta a petição inicial, o Estado é denunciado como responsável pelo assassinato do trabalhador rural sem-terra, Manoel Luiz da Silva, ocorrido em 19 de maio de 1997 no lugar onde está situada a Fazenda Engenho Taipu, em São Miguel de Taipu, Estado da Paraíba, Brasil, fazenda essa que se encontrava sob processo de expropriação a título de utilidade pública com fins de reforma agrária.

 

13.       Aduzem os peticionários que em 19 de maio de 1997 a presumida vítima estava acompanhada por outros três trabalhadores sem-terra (Juan Silva, Manuel Silva e Sebastião Silva), que moravam num acampamento de agricultores sem-terra sob a tutela do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, localizado na Fazenda Amarelo da mesma localidade. Os quatro trabalhadores sem-terra haviam saído do assentamento onde moravam para ir a uma mercearia no lugarejo mais próximo. Quando voltavam ao acampamento, aproximadamente às 16 horas, vinham por uma estrada chamada “de carroça”, que passa pelas terras correspondentes à Fazenda Engenho Taipu, de propriedade do Sr. Alcides Vieira de Azevedo. Nessa estrada, encontraram três agentes de segurança particular a serviço de dito proprietário. Estes vinham a cavalo e fortemente armados. Avisaram aos agricultores sem-terra acima referidos que eles não podiam circular pela estrada em que se encontravam e que o citado proprietário daquelas terras lhes havia ordenado que matassem os agricultores sem-terra que estivessem nas imediações de sua fazenda. Logo após proferir tal ameaça, manifestam, os seguranças ordenaram aos trabalhadores que soltassem os objetos que portavam, que consistiam, dizem eles, de três foices e uma faca, e que, depois de alguns insultos proferidos pelos seguranças para os sujeitos, atribuídos a sua condição de sem-terra, a presumida vítima, Manuel ou Manoel Luiz da Silva, foi atingida por um tiro disparado à queima-roupa, tendo morte instantânea. Os outros dois sem-terra que o acompanhavam (Manoel Luiz da Silva, homônimo da presumida vítima, e Sebastião Félix da Silva) conseguiram fugir correndo, havendo recebido tiros pelas costas, enquanto Juan Maximiniano da Silva ficou detido pelos seguranças particulares por alguns minutos, sendo logo liberado.

 

14.        No mesmo dia, os trabalhadores do acampamento da presumida vítima foram à Delegacia de Polícia local denunciar o homicídio do Sr. Manoel Luiz da Silva. Não obstante, os peticionários mencionam que, passados 6 (seis) anos do fato, os responsáveis pelo assassinato ainda não foram julgados. Alegam quefortes indícios de conivência de membros da Polícia e do Poder Judiciário com os proprietários da região, que, dessa forma, conseguem manter a impunidade sobre crimes contra trabalhadores sem-terra, como o ora denunciado. Nesse sentido, informam que apenas dois dos seguranças particulares envolvidos foram denunciados pelo Ministério Público como autores do homicídio. Dizem que o fazendeiro Alcides Vieira de Azevedo sequer foi indiciado como autor moral do fato.

 

15.         Alegam queresponsabilidade do Estado com respeito a violações dos artigos 1 (1), 4, 5, 8 e 25 em relação à pessoa da presumida vítima, representada por seus familiares.

 

16.        Na informação adicional recebida em 24 de outubro de 2005, sustentam que em novembro de 2004 o Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba decidiu que o processo criminal deveria prosseguir apenas contra o segurança Severino da Silva, uma vez que José Caetano da Silva não fora devidamente notificado da incriminação de sua pessoa, tendo sido fixada a data do julgamento para 21 de setembro de 2005, em cuja ocasião o mesmo foi adiado para 20 de dezembro de 2005, em virtude do não-comparecimento do advogado de defesa do réu.

 

17.         Peticionam, definitivamente, que seja recomendado às autoridades do Estado: investigar e punir criminalmente os responsáveis pelo assassinato da presumida vítima; indenizar os familiares da mesma; adotar medidas eficazes para proteger os direitos dos trabalhadores rurais, bem como medidas legislativas que visem ao desbloqueio da Justiça Federal com relação aos crimes contra os direitos humanos cometidos nas áreas sujeitas a conflitos agrários.

 

  B.       Posição do Estado

 

 18.       O Estado, em primeiro lugar, manifesta que não foram esgotados os recursos internos concernentes à elucidação do caso, em vista do que opõe a exceção pertinente. Nesse sentido, sustenta que se encontra em trâmite perante o Juiz de Direito da Comarca de Pilar, Estado da Paraíba, uma ação penal contra os acusados José Caetano da Silva e Severino Lima da Silva, processo em que se alega não haver sido dada resolução, encontrando-se dentro dos prazos previstos na legislação processual local para tal efeitoSustenta que, contra a decisão que venha a ditar o órgão jurisdicional em referência, procedem vários recursos hierárquicos internos, tais como o Recurso de Apelação e o Recurso Especial perante o Tribunal Superior de Justiça e perante o Supremo Tribunal Federal, os quais precisam ser esgotados. Aduz, ainda, que os peticionários não apresentaram qualquer prova que leve a demonstrar a instauração de ações cíveis destinadas a obter indenização pelas perdas e danos sofridos pela presumida vítima, razão pela qual não é possível pleitear uma indenização em instância internacional, como no caso presente, até que tal não aconteça.

 

19.         No que concerne ao Processo Criminal Nº 028.1997.000177-3, em tramitação perante o supracitado Juízo da Comarca de Paz de Pilar, indica que em tal processo foram expedidas 16 (dezesseis) cartas precatórias (ofício requerendo diligências), nas quais o Juiz solicita a juízes de outra competência territorial a realização de atos relativos a procedimento, situação que acarreta atrasos ao andamento da ação penal. Ademais, alega que em outubro de 2001, na causa em questão, incidiu uma declaração de nulidade de atos a partir de folhas 259 do processo, o que implicou que uma série de atos viciados deveriam voltar a ser realizados, com natural dilação do litígio. Em conclusão, requer que a petição seja declarada inadmissível e arquivada, em virtude dos motivos expostos.

 

IV.      ANÁLISE QUANTO A COMPETÊNCIA E ADMISSIBILIDADE

 

A.       Competência

 

1.       Competência rationae personae, rationae loci, rationae temporis e rationae materiae da Comissão

 

20.        O peticionário tem o amparo do artigo 44 da Convenção para apresentar denúncias perante a CIDH. A petição aponta Manoel Luiz da Silva como presumida vítima; portanto, a Comissão tem competência rationae personae para examinar a petição. No que concerne ao Estado, este ratificou a Convenção Americana em 25 de setembro de 1992.

 

21.       A Comissão tem competência rationae loci para receber a petição, porquanto nela são alegadas violações de direitos protegidos na Convenção Americana que teriam ocorrido dentro do território de um Estado parte em dito Tratado.

 

22.        A CIDH tem competência rationae temporis, visto que a obrigação de respeitar e garantir os direitos protegidos na Convenção Americana vigorava para o Estado à data em que os fatos alegados na petição ocorreram.

 

23.       Finalmente, a Comissão tem competência rationae materiae porque na petição são denunciadas violações de direitos humanos protegidos pela Convenção Americana.

 

  2.       Esgotamento dos recursos internos

 

24.      O artigo 46(1) da Convenção Americana dispõe que, para que uma denúncia apresentada de acordo com o artigo 44 do mesmo instrumento legal seja admitida pela Comissão será necessário que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de direito internacional geralmente reconhecidos. Esse requisito tem por objetivo permitir que as autoridades nacionais conheçam da presumida violação de um direito protegido e, se for pertinente, a solucionem antes que a controvérsia seja conhecida por uma instância internacional. Dos autos se depreende que o fato punível denunciado ocorreu em 19 de maio de 1997 e que foi iniciada a investigação tanto policial como judicial, estando esta em andamento. Segundo se infere do que está consignado nos autos, em 9 de outubro de 2001 o Juiz da Comarca de Pilar, Nieto Xavier de Lira, declarou a nulidade de todos os atos no processo a partir de folhas 259, havendo sido reiniciada, assim, a instrução criminal. Uma vez cumpridos esses trâmites, em 15 de setembro de 2003, depois de quase seis anos do fato punível, o mesmo Juiz proferiu a decisão que julgava procedente a denúncia contra os acusados José Caetano da Silva e Severino Lima da Silva, em vista do que foram os mesmos submetidos ao Tribunal do Júri Popular. Das observações apresentadas pelos peticionários no dia 24 de outubro de 2005 à resposta do Estado sobre a petição, consta que em novembro de 2004 o órgão jurisdicional de competência decidiu que o processo deveria prosseguir somente contra Severino da Silva, pois José Caetano da Silva não fora devidamente notificado do pronunciamento em questão, que o acusava da comissão do fato punível, segundo se depreende do Anexo F. Consta, ademais, que em 16 de março de 2005 o Ministério Público apresentou denúncia contra Severino da Silva, tendo sido fixada a data de 21 de setembro de 2005 para a sessão do Tribunal do Júri Popular de julgamento da causa. Nessa data a sessão foi adiada para 20 de dezembro do mesmo ano, tendo em vista o não-comparecimento do advogado de defesa do réu. Com relação a esse fato, a Comissão considerou que um período superior a nove anos desde a data de início do exame da petição, sem que os processos de instrução penal internos tivessem chegado a dar qualquer solução ao caso em questão, configura a hipótese denominada “demora injustificada” na administração da Justiça, com exceção, apenas, do requisito de esgotamento dos recursos internos, de acordo com o artigo 46 (2) (c) da Convenção e 37 (2) do Regulamento[2].

 

25.        A Comissão tem sustentado, de acordo com o princípio geral em vigor em matéria probatória, que, no caso de o Estado alegar não haverem sido esgotados os recursos internos, cabe ao mesmo indicar quais são os recursos a serem esgotados e, ao mesmo tempo, assinalar a prova de sua eficácia[3]. Embora o Estado tenha indicado os recursos que poderiam ser interpostos contra a resolução a ser proferida, como fora dito, o fato punível ocorreu há mais de nove anos, o que os torna patentemente ineficazes e implica uma muito provável demora injustificada no acesso à Justiça para as presumidas vítimas.

 

26.         resta assinalar que a invocação das exceções à regra do esgotamento dos recursos internos, previstas no artigo 46 (2) da Convenção, encontra-se estreitamente vinculada à determinação de possíveis violações de certos direitos nela consagrados, tais como as garantias do aludido acesso à Justiça. No entanto, o artigo 46 (2) por sua natureza e objeto, é uma norma com teor independente, em comparação com as normas substanciais da Convenção. Portanto, a determinação de se as exceções à regra de esgotamento dos recursos internos se aplicam ao caso em apreço deve ser estabelecida com antecedência e à parte da análise do mérito da questão, que depende de um critério de apreciação diferente daquele utilizado para determinar a possível violação dos artigos 8 e 25 da Convenção. Cabe esclarecer que as causas e os efeitos que impediram o esgotamento dos recursos internos serão analisados no relatório que a Comissão adotar sobre o mérito da controvérsia a fim de constatar se configuram violações à Convenção Americana, não constituindo a presente apreciação que se realiza prima facie qualquer prejulgamento sobre a decisão que, no futuro, após uma análise exaustiva da questão, venha a ditar-se.

 

3.       Prazo de apresentação da petição

 

27.      Na petição em consideração, a CIDH concluiu que não foram esgotados suficientemente os recursos internos que a legislação previa para os peticionários a fim de obterem a reivindicação dos direitos que dizem conculcados, diferindo, não obstante, seu estudo para o momento em que for analisada a questão de mérito. Da mesma forma, as disposições da Convenção que requerem o prévio esgotamento dos recursos internos e a apresentação da petição dentro do prazo de seis meses, a partir da data da sentença definitiva da jurisdição interna, são independentes.

 

28.       Deixando de lado essa situação, a Comissão deve determinar se a petição em apreço foi apresentada dentro de um prazo razoável, de acordo com o artigo 32 do seu Regulamento. É válido ressaltar que a petição denuncia precisamente a impossibilidade de acesso à Justiça por parte dos familiares da presumida vítima, em virtude do excessivo e injustificado atraso ocorrido na mesma. Como foi dito, o fato punível data de 19 de maio de 1997. Em que pese haver sido iniciada sua investigação e, no seu contexto, terem surgido fatos que puderam justificar um atraso, como, por exemplo, a aludida declaração de nulidade de atos processuais, e mesmo tendo sido fixada a data do julgamento com relação a um dos réus, à data do exame deste caso haviam-se passado nove anos da ocorrência do fato, o que constitui um lapso demasiadamente prolongado para que os órgãos pertinentes do Estado ofereçam alguma solução. Nesse sentido, a Comissão tem sustentado que: “... num caso em que, desde que ocorreram os fatos, a lentidão da investigação e sua falta de resultados configuravam um claro caso de demora injustificada na administração da Justiça que, de fato, implicava a negação de justiça...”[4], premissa que leva a afirmar que o cumprimento do requisito da apresentação da petição no prazo de seis meses, contados desde que se esgotaram os meios previstos na legislação interna, guarda relação com o adequado funcionamento e a eficácia dos mesmos para apresentar resultados às presumidas vítimas, em vista do que cabe, da mesma forma, diferir a determinação de se o prazo estabelecido no artigo 46 (1) (b) da Convenção Americana é exigível neste caso.

 

  4.       Duplicação de processos e trânsito em julgado internacional

 

29.       Não se depreende do processo que a matéria da petição esteja pendente de outro processo de solução internacional nem que seja reprodução de petição examinada pela Comissão ou por outro organismo internacional. Portanto, cabe dar por cumpridos os requisitos estabelecidos nos artigos 46 (1) (c)  e 47 (d) da Convenção.

 

 5.       Caracterização dos fatos alegados

 

30.       Para os fins de admissibilidade, a CIDH deve decidir se os fatos expostos poderiam caracterizar uma violação, como estabelece o artigo 47 (b) da Convenção Americana, se a petição é “manifestamente infundadaou se é “evidente sua total improcedência”, nos termos do inciso c do mesmo artigo.

 

31.      O critério de apreciação desses extremos é diferente do que se requer para decidir sobre o mérito de uma denúncia. A CIDH deve realizar uma avaliação prima facie para examinar se a denúncia se fundamenta na aparente ou potencial violação de um direito garantido pela Convenção e não na determinação da existência de violação. Tal exame constitui uma análise sumária que não implica prejulgamento ou avanço de resolução sobre o mérito[5]. Como nesta hipótese estamos diante de um relato que descreve uma possível violação de direitos básicos, como, por exemplo, os referentes à vida, à integridade pessoal e às garantias judiciais, com relação à presumida vítima, cometidos por particulares em conivência ou com a aquiescência das autoridades locais, cabe aprofundar o estudo dessa controvérsia.

 

32.        A Comissão não considera que a petição seja “manifestamente infundadaou que seja “evidente a sua improcedência”. Por conseguinte, a CIDH entende que, prima facie, o peticionário observou os extremos requeridos no artigo 47, b e c. No entanto, a natureza dos fatos descritos leva este órgão a concluir, ex officio, que a violação em potencial do artigo 5 da Convenção Americana se enquadra, neste caso, no artigo 4 do mesmo Tratado, em vista do que deve ser declarada inadmissível a alegação de que o primeiro tenha sido infringido.

 

33.        Em vista do exposto, a Comissão Interamericana considera que, se forem comprovados os fatos expostos com relação à violação do direito à vida, ao gozo das garantias judiciais e à proteção judicial, o caso presente caracterizaria uma possível violação dos direitos protegidos pelos artigos 4, 8, 25 e 1 (1) da Convenção Americana, pois, prima facie, ante a descrição fática da situação, asseveramos, de forma verossímil, que nos encontramos diante de uma vulneração em potencial dos direitos garantidos pelas aludidas normas. Agora cabe esclarecer que a violação em potencial dos direitos consagrados nas normas alegadas diz respeito ao Sr. Manoel Luiz da Silva em relação ao artigo 4 da Convenção Americana, e a seus herdeiros diretos, em relação aos artigos 8 e 25 do mesmo instrumento.

 

34.         As possíveis violações serão analisadas em conexão com as obrigações gerais previstas nos artigos 1 (1) e 2 da Convenção Americana.

 

   V.      CONCLUSÕES

 

35.       Com base nas considerações de fato e de direito expostas, e sem prejulgar o mérito da questão, a Comissão conclui que o caso em apreço atende aos requisitos de admissibilidade enunciados nos artigos 46 e 47 da Convenção Americana.

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

DECIDE:

 

1.       Declarar admissível a petição em exame, em relação aos artigos 4, 8, 25, no que tange às obrigações gerais constantes dos artigos 1 (1) e 2 da Convenção Americana.

 

2.       Declarar inadmissível a petição em relação ao artigo 5 da Convenção Americana.

 

3.       Notificar esta decisão ao Estado e ao peticionário.

 

4.       Iniciar o trâmite sobre o mérito da questão.

 

5.       Publicar esta decisão e incluí-la no Relatório Anual a ser apresentado à Assembléia Geral da OEA.

 

          Dado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na Cidade de Washington, D.C., aos vinte e um dias do mês de outubro do ano dois mil e seis. (Assinado: Evelio Fernández Arévalos, Presidente; Paulo Sérgio Pinheiro, Primeiro Vice-Presidente; Florentín Meléndez, Segundo Vice-Presidente; Freddy Gutiérrez, Paolo G. Carozza e Víctor E. Abramovich, membros da Comissão).


[1] De acordo com o disposto no artigo 17, 2, a do Regulamento da CIDH, o Delegado Paulo Sérgio Pinheiro, de nacionalidade brasileira, não participou na decisão sobre esta petição.

[2] Corte I.D.H., Caso Bámaca Velásquez, sentença de 25 de novembro de 2000, parágrafo 191, Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni, sentença de 31 de agosto de 2001, parágrafo 114, CasoCinco Pensionistas”, sentença de 28 de fevereiro de 2003, e Caso Juan Humberto Sánchez, sentença de 7 de junho de 2003, parágrafo 121.

[3] CIDH, Relatório Nº 32/05, petição 642/03, Admissibilidade, Luis Rolando Cuscul Pivaral e outras pessoas afetadas pelo HIV/AIDS, Guatemala, 7 de março de 2005, parágrafos 33-35; Corte I.D.H., Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni. Exceções Preliminares, nota 3 supra, parágrafo 53; Caso Durand e Ugarte. Exceções Preliminares. Sentença de 28 de maio de 1999. Série C, Nº 50, parágrafo 33; e Caso Cantoral Benavides. Exceções Preliminares. Sentença de 3 de setembro de 1998. Série C, Nº 40, parágrafo 31.

[4] Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Resolução Nº 17/87, Caso 9425, Peru, de 28 de março de 1987, in Relatório Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 1986-1987, Secretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos, Washington, D.C., 1987, p. 127, parágrafo 6 dos considerandos.

[5] CIDH, Relatório Nº 21/04, Petição 12.190, Admissibilidade, José Luis Tapia González e outros, Chile, 24 de fevereiro de 2004, parágrafo 33.