RELATÓRIO N° 84/06

PETIÇÃO 1068/03

ADMISSIBILIDADE[1]

NEUSA DOS SANTOS NASCIMENTO E GISELE ANA FERREIRA

BRASIL

21 de outubro de 2006

 

I.        RESUMO

 

1.       No dia 8 de dezembro de 2003, o Instituto da Mulher Negra (Geledés) apresentou perante a Comissão Americana de Direitos Humanos (doravante “a Comissão” ou a CIDH) uma petição contra a República Federativa do Brasil (doravante “Brasil”, “o Estado” ou “o Estado Brasileiro”). A referida petição denunciou a violação dos artigos 1 e 24 da CADH; 3, 6 e 7 do Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais- Protocolo San Salvador-; 1 e 2 da Conferência Internacional sobre Eliminação do Racismo; e 2 e 3 da Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho em prejuízo das Sr.as Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira.

 

2.       O Estado prestou informações alegando que os recursos internos ainda não esgotaram, que a CIDH é incompetente para apreciar matéria relativa ao Protocolo San Salvador, a Convenção Internacional sobre Eliminação do Racismo e da Organização Internacional do Trabalho. Ademais, afirmou que foi dada sentença favorável à pretensão das vítimas.

 

3.       Depois da análise da petição e de acordo com o estabelecido no artigo 46. 2. c da Convenção Americana de Direitos Humanos, a CIDH decidiu declarar a admissibilidade da petição relativamente a eventuais violações aos artigos 1,8, 24 e 25 do mesmo diploma regional. A Comissão decide ainda notificar esta decisão às partes, publicá-la em seu Relatório Anual à Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos.

 

II.       TRÂMITE ANTE A COMISSÃO

 

4.       No dia 8 de dezembro de 2003, a CIDH recebeu a denúncia contra o Estado Brasileiro. Em 18 de março de 2004, a CIDH notificou a República Federativa do Brasil, concedendo-lhe o prazo de dois meses para responder. No dia 19 de janeiro de 2006, o Estado Brasileiro apresentou suas manifestações acerca da denúncia apresentada, sendo aceita pela CIDH não obstante extemporâneo. Assim, as alegações foram acolhidas sem prejuízo do Estado, tendo o peticionário prazo para manifestar-se acerca das alegações apresentadas, tendo feito no dia 13 de março de 2006. Em 28 de julho de 2006, o Estado Brasileiro fez nova manifestação, sendo notificado o peticionário para manifestar-se das últimas alegações apresentadas pelo Estado Brasileiro. No dia 6 de setembro de 2006, foi protocolada na Secretaria da CIDH a resposta do peticionário.
 

III.      POSIÇÃO DAS PARTES

 

A.      Peticionário

 

5.       Na vestibular apresentada, é alegado que o Estado Brasileiro infringiu os artigos 1 e 24 da CADH; 3, 6 e 7 do Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais- Protocolo San Salvador-; 1 e 2 da Conferência Internacional sobre Eliminação do Racismo; e 2 e 3 da Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho.

 

6.       Segundo o peticionário, no dia 22 de março de 1998, foi publicado no jornal diário, Folha de São Paulo, anúncio em que a empresa NIPOMED Planos de Saúde- informava que estava recrutando candidatos para o cargo de representantes comerciais. A Sr.a Isabel, Lazzarini tomando conhecimento do anúncio, informou à Senhora Neusa dos Santos Nascimento sua colega de trabalha e amiga. Não fosse pela incompatibilidade de agenda da Sr.a Nascimento, teriam ido juntas à NIPOMED candidatem-se o serviço do anúncio.

 

7.       No dia 26 de março de 1998 pela manhã, as Sras. Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira, ambas negras, dirigiram-se à Empresa Nipomed, atendendo ao anúncio publicado. Chegando ao local, foram atendidas pelo Sr. Munehiro Tahara que as informou da não mais existência de vagas, pois todas haviam sido preenchidas. Este senhor não buscou obter informações profissionais das duas candidatas dando por encerrado atendimento.

 

8.       Neste mesmo dia (26 de março) pela tarde, a Sr.a Isabel Lazzarini, que é branca, foi ao mesmo local em que esteve Sr.a Nascimento e Sr.a Ferreira. Atendida pelo Sr. Tahara, este lhe entregou uma ficha para preencher, fez algumas perguntas e a encaminhou para um outro selecionador de nome Mauro, que a entregou pasta e material para começar a trabalhar. A Sr.a Isabel Lazzarini foi admitida de imediato e ainda questionada se conhecia outras pessoas com suas características.

 

9.       No mesmo dia à noite, a Sr.a Neusa Nascimento entrou em contato com a Sr.a Isabel Lazzarini, que estava muito feliz, pois conseguira o emprego. A Sr.a Nascimento ficou feliz pela colega e ao mesmo tempo ficou intrigada, pois a Sr.a Lazzarin havia ido pela tarde, ou seja, depois da ida da Sr.a Nascimento e Ferreira.

 

10.     Ao Saber pela Sr.a Nascimento das existência das vagas, a Sr.a Ferreira novamente dirigiu-se à empresa, sendo atendida por outro recrutador. Desta vez, preencheu ficha de seleção e foi informada que caso tivessem interesse entrariam em contato com ela o que jamais aconteceu.

 

11.     A par dos fatos, a Sr.a Nascimento e Ferreira foram ao Distrito Policial onde lavraram o Boletim de Ocorrência de n.º 2580/98 e depois entraram em contato com o Geledés, ora peticionário. Posteriormente, a denúncia foi submetida à apreciação do Sr. Juiz de Direito da 24º Vara Criminal do Foro Central da Capital de São Paulo, Dr. Walter da Silva, nos autos do processo de n.º 681/98, sendo também ouvido o Ilustre Representante do Ministério Público, Dr. Roberto Antonio de Almeida Costa, 92º Promotor de Justiça Criminal da Capital. O Ministério Público, através do promotor, ofereceu ação penal contra o Sr. Munehiro Tahara, com base no art. 4º da Lei 7.716/89.

 

12.     No decorrer da fase de cognição do processo penal, o Sr. Muheniro Tahara negou as acusações, argumentando que houve mal entendido, e que na data dos fatos apenas auxiliava um de seus franqueados, Sr. Mário Yamada. A testemunha de acusação, Sr.a Isabel Lazzarin, confirmou os fatos informados na fase de inquérito que permitiu a ação penal e ainda formou o juízo de que as Sr.as Neusa Nascimento e Gisele Ferreira foram obstadas ao emprego por serem negras, visto que somente este motivo justificaria um tratamento diferenciado na medida em que todas as três tinham currículos profissionais muito semelhantes.

 

13.     O juiz da 24ª Vara Criminal julgou improcedente a ação penal sob a justificativa de “resta dúvidas a respeito da verdadeira conduta do réu”. Ademais, afirmou que não havia certeza das provas apresentadas, visto que não se conseguiu demonstrar a real intenção do acusado.

 

14.     Irresignadas com a decisão de primeiro grau proferida, interpõem recurso de apelação perante o Tribunal de Justiça no dia 21 de novembro de 1999, como assistentes de acusação. Os autos com as respectivas petições de apelação e contra razões chegaram em 22 de março de 2000. Segundo informações do peticionário e informações trazidas nos autos, até a apresentação da denúncia perante a CIDH (8 de dezembro de 2003) a demanda não havido sido distribuída para uma das Câmaras do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Ademais, a empresa NIPOMED cerrou as portas e o paradeiro do Sr. Tahara é desconhecido trazendo mais prejuízos à pretensão das Sr.as Neusa Nascimento e Gisele Ferreira de obter uma devida tutela jurisdicional do Estado acerca das supostas violações alegadas, de acordo com o que informou o peticionário.

 

15.     Segundo o peticionário, o Estado Brasileiro assumiu o compromisso com a garantia de direitos individuais celebrados na Convenção Americana de Direitos Humanos no seu artigo primeiro. Ademais, violou o direito de igualdade perante a lei, também registrado neste diploma legal.

 

16.     O peticionário alega que o Estado Brasileiro não respeitou os artigos 3, que diz respeito a obrigação de não discriminação; 6, que confere o direito ao trabalho; e 7 sobre condições justas, eqüitativas e satisfatórias de trabalho, todos do Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais – Protocolo d San Salvador.

 

17.     O Estado Brasileiro não respeitou também o artigo 2 da Convenção pela Eliminação de todas as formas de discriminação racial e também os artigos 2 e 3 da Convenção 111 da Organização Internacional de Trabalho.

 

18.     O peticionário registra que no Brasil o racismo vem atingindo negros a despeito de a história do país não ter sido registrado um regime puramente segregacionista. O racismo está presente nas relações sociais de todas as naturezas possíveis, sem embargo da consolidação do “mito da democracia racial”, responsável por mitigar o problema vivido pela população negra do país. Ademais, anota que “a ideologia da democracia racial,(... )induziu negros e brancos a acreditarem que a situação de inferioridade social dos negros se deve a sua própria incompetência” (denúncia, pp 9).

 

19.     O peticionário traz informações acerca de estudo feito pelo Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial (INSPIR) que indica haver desigualdade para negros de ambos os sexos no mercado de trabalho independente da distribuição de negros nas regiões estudas. A conclusão do estudo é que a razão para as desigualdades, encontradas entre negros e brancos, reside na utilização de critérios discriminatórios baseados na cor/ raça.

 

20.     Registra que a discriminação é ainda mais contundente contra mulheres negras que recebem na faixa de um até dois salários mínimos. Mesmo quando possuem grau de instrução e mesma função, recebem salários diferentes sempre menores. Ademais, comparados os salários de mulheres negras e não negras, constata-se, segundo o peticionário, que as primeiras recebem 41,67% dos salários das não negras em média (denúncia, pp. 10).

 

21.     Registra que há diferenças entre negros e não negros em quase todos os níveis de trabalho (serviços de escritórios e atividades não operacionais) quanto à percepção salarial. Indica que em estudo feito por dois pesquisadores brasileiros, Marcelo Paixão e Marcelo Carconholo em dados produzidos pelo PED/DIEESE para região metropolitana de São Paulo nos anos de 1987 e 1998 houve um aumento muito significativo da diferença de percebimento de salário entre negros e brancos, passando de 72, 9% para 87,1%, concluindo que “as desigualdades de rendimentos no mercado de trabalho entre negros e brancos se ampliaram mostrando que a nova dinâmica do mercado daquele fator, em meio às mudanças de cunho neoliberal verificadas em nossa economia, não foram neutras do ponto de vista racial” (petição pp 12).

 

22.     Segundo o peticionário, os pesquisadores mencionados analisaram o comportamento das taxas de desocupação no período 1987/1998, observando que as mudanças ocorridas no período foram mais que proporcionais entre negros e brancos. A taxa de desemprego na Grande São Paulo, entre 1987 e 1998 teve uma acentuada elevação para a população economicamente ativa como um todo, contudo se verificou que estes efeitos atingiram mais os negros. Informam que, entre os negros, a taxa de desemprego era de 11,6% em 1987 e ultrapassou os 20% em 1998, enquanto a desocupação entre os brancos passou de 8,6% para 16,1% em 1998. Não obstante ter havido crescimento do desemprego para ambas etnias, percebe-se que o índice contra a população negra aumentou de mais de 95,7% ao passo que para os brancos o incremento foi de 87,2%.

 

23.     O cenário é ainda pior para as mulheres negras em que houve um aumento do índice de desemprego em 79,9% enquanto que para as mulheres brancas foi de 61, 3%. Assim, as mulheres negras são grandes vítimas da relação competitiva contemporânea, segundo o peticionário. Razão pela qual, a necessidade de adoção de medidas especiais para tentar reduzir a discriminação que reina no mercado de trabalho do Brasil (petição, pp. 12).

 

24.     Afirma que a situação da mulher negra no Brasil não vem evoluindo: “não apresenta condições de mobilidade social, tem o menor nível de escolaridade e mesmo quando apresenta grau de instrução, como no caso em discussão, encontra as portas fechadas à sua realidade, por ser mulher negra” (petição pp. 13).

 

25.     Registra que o Estado Brasileiro ao firmar tratados e convenções internacionais reconhece que estes diplomas passam a ser normas cogentes que obrigam o Estado nos planos interno e externo, sendo, destarte, inadmissível a vigência de um sistema que nivela os profissionais pela cor da pele.

 

26.     O peticionário pede que em função das alegações e, sobretudo, o atraso injustificado da demanda na fase recursal (frise-se mais de três anos) que o Estado Brasileiro seja intimado pela CIDH para se manifestar, que faça uma investigação, julgue e puna criminalmente os responsáveis, além de obrigá-lo a pagar indenização às vítimas.

 

B.       Estado

 

27.     O Estado Brasileiro manifestou-se em escrito datado de 23 de janeiro de 2006 e em 25 de julho de 2006, aduzindo, no primeiro comunicado, que os fatos alegados pelo peticionário deram origem ao Inquérito Policial 34/98, perante a Delegacia Especializada em Crimes Raciais na cidade de São Paulo. Que o Ministério Público ofereceu denúncia contra o Sr. Tahara por prática de preconceito de raça, nos termos do art. 4º da Lei 7.716/1889. Que em virtude da absolvição, as vítimas ofereceram recurso de apelação em 17.11.99, com parecer favorável do Ministério Público; o acusado ofereceu suas contra razões; e que até a data da apresentação da denúncia, a apelação não havia sido distribuída para uma das Câmaras do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

 

28.     O Estado alega que há incompetência e inadmissibilidade do pleito por falta de competência material e que o peticionário não cumpriu os requisitos necessários, respectivamente.

 

29.     O Estado alega incompetência ratione materiae quanto a supostas violações a instrumentos internacionais de Direitos Humanos. Argumenta que a Comissão não tem mandato para condenar o Estado Brasileiro por supostas violações contidas em instrumentos internacionais que não sejam aqueles que compõem o sistema interamericano de direitos humanos. Cita o artigo 23 do Regulamento da CIDH.

 

30.     Ademais, afirma que não compete à CIDH verificar violação de direitos contidos na ICERD e na Convenção 111 da OIT, sob a justificativa de serem diplomas legais celebrados em foros distintos da OEA, possuindo mecanismos próprios de implementação e supervisão, não conferindo a órgãos do sistema interamericano qualquer mandato para aplicação. Exemplifica a incompetência trazendo trecho de decisão da Corte IDH de exceções preliminares no caso Las Palmeiras (manifestação do Estado pp. 4).

 

31.     O Estado afirma que a CIDH também não tem competência para condenar o Estado Brasileiro por supostas violações dos artigos 3, 6, 7 do Protocolo Adicional à Convenção Americana em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais- Protocolo San Salvador-, pois de acordo com o art. 19.6 desta norma, a CIDH só tem mandato para examinar supostas violações dos artigos 8.a e 13. Ademais, afirma que a verificação e cumprimento dos demais dispositivos do Protocolo que foram alegados pelo peticionário, é feito por meio de relatórios periódicos pelos Estados, cuja implementação vem sendo objeto de organização por órgãos competentes da OEA.

 

32.     O Estado Brasileiro afirma que para as violações as quais a CIDH tem mandato, os artigos 1 e 24 da CADH, o peticionário não atendeu o requisito exigido que é o esgotamento dos recursos internos. Afirma que “Os processos judiciais internos para elucidação das imputações contra o Sr.  Munehiro Tahara na seara criminal encontram-se em estágio regular de tramitação avançada nos órgãos competentes” (Resposta, pp. 6). Ademais, informa que a Apelação veio a ser provida mediante acórdão da Quinta Câmara Criminal Extraordinária do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em 11.08.2004, condenando o acusado à pena de dois anos de reclusão, em regime inicial semi aberto pelo crime imputado.

 

33.     Afirma ainda o Estado, que o acórdão além de reformular a sentença a quo extinguiu a pretensão punitiva do Estado, em virtude da prescrição de acordo com o artigo 107, IV do Código Penal, sendo esta parte do decisum objeto de Embargos de Declaração interposta pelo Ministério Público em 29.09.2004 que alegou a imprescritibilidade do crime de racismo, conforme disposto no artigo 5º, LXII da Constituição Federal Brasileira. Em 22.09.2005, a Quinta Câmara Criminal Extraordinária reformou o acórdão excluindo a prescrição.

 

34.     Assegura o Estado de que está havendo regular tramitação do processo criminal. Salienta ainda que o Estado Brasileiro vem desenvolvendo esforços no combate ao racismo e na promoção da igualdade racial “muitos dos quais já extensamente informados a essa Colenda Comissão, seja mediante audiências públicas, seja pelo procedimento de exames de petições, como no caso Simone André Diniz” (Resposta,     pp. 7).

 

35.     Informa que ainda existem recursos idôneos e efetivos para proteção das supostas vítimas no âmbito criminal do Ordenamento Jurídico Brasileiro, inclusive no que se refere à aplicação de dispositivos da CADH. Aduz que ainda há possibilidade de Recurso Especial perante o Superior Tribunal de Justiça e Recurso Extraordinário perante o Supremo Tribunal Federal. Podendo haver, no caso de não seguimento de qualquer/quaisquer recursos mencionados Agravo de Instrumento com o fim de assegurar a tramitação do (s) recurso (os) que teve (tiveram) negado seguimento.

 

36.     O Estado Brasileiro aduz que a respeito de eventuais ações civis para reparação causadas pelo Sr. Tahara e a Clínica NIPOMED ou pelo próprio Estado Brasileiro, houve desrespeito por parte do peticionário quanto aos requisitos de admissibilidade previstos na CADH. Ademais menciona que não houve juntada de qualquer documento que comprovasse a propositura de qualquer ação civil de natureza de reparação de danos, acreditando que o peticionário e as supostas vítimas desprezaram a tutela jurisdicional do Judiciário para conseguir uma indenização contra os atos ilícitos alegados.

 

37.     Alega que não houve demora injustificada por parte do Judiciário brasileiro e que o peticionário não provou esta situação.

 

38.     Requer que a CIDH não conheça a petição encaminhada, em virtude de falta de competência quanto à ICERD e Convenção 111 da OIT, bem como aos dispositivos do Pacto de San Salvador. Quanto aos dispositivos do CADH argúi que o peticionário não atendeu requisitos para admissibilidade da denúncia. Ainda requer a publicação do relatório de incompetência e inadmissibilidade no próximo Relatório da Comissão e ad cautelum o direito no artigo 38.1 do Regulamento da CIDH para eventuais observações quanto o mérito.

 

IV.      ANÁLISE SOBRE ADMISSIBILIDADE

 

A.      Competência ratione personae, ratione materiae, ratione temporis e
ratione loci

 

39.     Competência ratione personae: art. 44 da CADH e art. 23 do Regulamento da CIDH.

 

40.     O peticionário é entidade não governamental legalmente reconhecido, tendo, portando, legitimidade para apresentar petição perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. No que diz respeito ao Estado, a República Federativa do Brasil ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos em 25 de setembro de 1992. A Comissão observa que os fatos que caracterizam discriminação racial não são atribuídos diretamente ao Estado, e sim a um particular. Em verdade, são alegadas violações por parte do Estado à resposta dada, através dos órgãos judiciais, a situação apresentada pelas supostas vítimas quando reivindicaram a tutela jurisdicional.

 

41.     A CIDH tem competência ratione materiae para acompanhar a denúncia ora apresentada, tendo em vista ser o órgão regional investido de poder para apurar denúncias de violações de direitos humanos no Continente Americano, conforme artigo 33 da CADH, alínea a. Há plena competência deste órgão quanto às violações elencadas aos artigos 1 (Obrigação de respeitar direitos) e 24 (Igualdade perante a lei) da CADH. Quanto aos artigos do Protocolo San Salvador, a CIDH somente tem competência para examinar supostas violações deste diploma embasados nos artigos 8, alínea a e 13, conforme artigo 19.6. Assim, a Comissão é incompetente para apreciar os artigos 3, 6 e 7 do Protocolo San Salvador.

 

42.     No que diz respeito à Convenção Internacional para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e a Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho, cabe ressaltar que falta à CIDH competência para examinar violações de direitos garantidos nestes diplomas legais, mas, em função do artigo 29 da CADH, a CIDH pode utilizá-los como pauta de interpretação das obrigações internacionais livremente assumidas pelo Estado.

 

43.     A CIDH tem competência ratione temporis em virtude dos fatos alegados terem acontecido depois do Estado Brasileiro ter assumido o compromisso de respeitar os Direitos Humanos, uma vez que ratificou a CADH em 25 de setembro de 1992.

 

44.     A CIDH tem competência ratione loci em virtude dos fatos alegados na denúncia terem acontecido em território brasileiro.

 

B.       Requisitos de Admissibilidade da Petição

 

a.       Esgotamentos dos Recursos Internos

 

45.     O peticionário apresentou a petição perante a CIDH em 08 de dezembro de 2003, alegando textualmente que se tratava de denúncia embasada no artigo 46, 2, c da CADH, exceção quanto ao esgotamento interno de recursos em virtude de existir demora injustificada para decisão. Frise-se que a petição foi encaminhada quando a demanda judicial no Brasil já tinha três anos sem qualquer movimentação por parte do Poder Judiciário de São Paulo.

 

46.     O peticionário indica que, não obstante provas nos autos do processo para a devida condenação do acusado na primeira instância, houve sentença contrária à condenação, e que o recurso de apelação por mais de três anos aguardou distribuição para uma das Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça de São Paulo.

 

47.     Ademais, o Estado não controverteu o fato do atraso apenas indicou que o recurso de apelação foi conhecido (mais de três anos depois do protocolo de apresentação das razões e contra razões) e que houve reforma da decisão a quo, não obstante o erro material, reformado posteriormente através de Embargos Declaração, do juízo ad quem ao extinguir a pretensão punitiva do Estado quando argüiu prescrição de um crime constitucionalmente imprescritível.

 

48.     As vítimas não estão obrigadas a propor ação de reparação de danos para a situação apresentada. Caso houvessem ingressado com ação cível, esta não estaria atrelada ao procedimento penal, pois para o Ordenamento Jurídico Brasileiro, tratam-se de demandas distintas que serão apreciadas por juízes diferentes, tendo dinâmicas processuais autônomas. Isto quer dizer que a pretensão de tutela jurisdicional às supostas vítimas pelo Estado brasileiro pode se encerrar com a demanda na esfera criminal. As supostas vítimas têm a faculdade de propor ação civil para reparação de danos, mas obrigatoriamente, necessitariam propor ação penal de acordo com a Lei 7.716/89 (Lei Caó) para ver punido o autor do ato de racismo, pois a Constituição Federal do Brasil em seu artigo 5º, XLII, estabelece que o racismo é crime imprescritível e inafiançável, sendo a supra citada lei o dispositivo regulamentador, descrevendo, inclusive os tipos penais. No caso em tela:

 

Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

 

Art. 4º Negar ou obstar emprego em empresa privada.

Pena: reclusão de dois a cinco anos[2].

 

49.     Como mencionado, trata-se de denúncia por demora injustificada por parte do Estado de conferir às vítimas a tutela jurisdicional pretendida. Algo demonstrado pelos expedientes trazidos pelos peticionários da vestibular e na réplica, e pelo próprio Estado em suas respostas encaminhadas à CIDH. Assim, não há controvérsia acerca do atraso para apreciação da demanda.

 

50.     Segundo informação trazida pelo peticionário, recebida pela CIDH em 6 de setembro de 2006, a sentença que já transitou em julgado (o que indica não haver mais recursos para serem interpostos) ainda não foi cumprida porque os autos do processo ainda necessitam ser encaminhados a uma das Varas de Execução Criminal da Comarca de São Paulo para se o réu for encontrado possa ser cumprida a pena de prisão.

 

51.     Assim, a sentença ainda não foi cumprida, em virtude de não ter sido encaminhada a Vara competente, conforme certidão juntada pelo peticionário, e também porque é desconhecido o paradeiro do Sr. Munehiro Tahara, de acordo com o que foi informado pelo peticionário em sua última manifestação datado de 6 de setembro de 2006.

 

b.       Prazo para apresentação

 

52.     A presente denúncia está prevista na hipótese do artigo 46.2, c  da CADH, tendo em vista que é alegado demora injustificada na decisão. A petição por este fundamento foi apresentada dentro de um prazo razoável, visto vista que havia um aguardo da decisão do recurso interposto pelas supostas vítimas que ultrapassava 3 anos. Assim, encontra-se satisfeito o requisito relativo à tempestividade. 

 

c.       Duplicação dos Procedimentos e da Coisa Julgada

 

53.     Em relação com a duplicação de procedimentos, não consta que a denúncia em estudo tenha sido apresentada perante outra instancia, e o Estado não se manifestou a respeito. Assim, a Comissão considera que a petição é admissível em conformidade com o artigo 46, c e 47, d da Convenção Americana.

 

d.       Caracterização das Violações

 

54.     A Comissão considera que, prima facie, os fatos alegados pelo peticionário podem vir a caracterizar violação à Convenção Americana de Direitos Humanos, nos seus artigos 1, 8, 24 e 25, por eventuais violações da obrigação de respeitar direitos; do direito a qualquer pessoa de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável; da igualdade perante a lei; e do direito ao recurso simples e rápido perante juízes ou tribunais às Senhoras Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ferreira.

 

55.     A propósito da declaração feita pelo Estado acerca da improcedência da petição, pelas razões supra, a Comissão considera que não corresponde a esta etapa do procedimento estabelecer se há ou não uma violação da Convenção Americana de Direitos Humanos. Para fins de admissibilidade, a CIDH deve decidir se foram apresentados os fatos que poderiam caracterizar uma violação, para que a petição não seja considerada inadmissível à luz do artigo 47 da CADH.

 

56.     A CIDH observa que os fatos a respeito dos quais se alega discriminação racial não se atribuem ao Estado Brasileiro, mas sim a um particular. Entretanto, o peticionário alega que há violações à Convenção em relação à resposta dada pelo Estado através de seus órgãos judiciais para os fatos alegados, que correspondem ser analisadas pela CIDH na etapa de mérito do caso.

 

57.     Nesta fase não é, portanto, decidido o mérito da denúncia. A CIDH deve realizar uma apreciação preambular para examinar se a denúncia fundamenta a aparente ou potencial violação de direito garantido pela Convenção e não para estabelecer a existência de uma violação. Tal exame é uma análise sumária que não implica um prejuízo ou um avanço de opinião sobre o mérito. O próprio regulamento da Comissão, ao estabelecer duas etapas (admissibilidade e mérito) reflete essa distinção entre avaliação que deve realizar para fins de declarar uma petição admissível e a requerida para estabelecer uma violação. Da análise em comento, a CIDH considera que a denúncia alegada não cabe nas hipóteses das letras b  e c do artigo 47 e, assim, a petição satisfaz os requisitos exigidos pela Convenção Americana.

 

V.      CONCLUSÃO

 

58.     A Comissão conclui que é competente para tomar conhecimento da petição e que esta cumpre com os requisitos de admissibilidade de acordo com os artigos 46 e 47 da Convenção Americana.

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

DECIDE:

 

1.       Declarar, sem pré- julgar sobre o mérito da demanda, que a petição é admissível em relação aos fatos denunciados e a respeito dos artigos 1, 8, 24 e 25 da CADH.

 

2.       Transmitir este Relatório ao Estado e aos Peticionários;

 

3.       Publicar essa decisão e incluí-la em seu informe Anual para Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos.

 

Passado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., aos 21 dias de outubro do ano de 2006. (Assinado): Evelio Ferández Arévalos, Presidente; Florentín Meléndez, Segundo Vice-presidente; Comissionados: Freddy Gutiérrez, Paolo Carozza y Víctor Abramovich.


[1] Comissionado Paulo Sérgio Pinheiro não participou da votação por se tratar de denúncia relativa ao Estado Brasileiro de acordo com o artigo 17 do Regulamento da CIDH.

[2] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7716.htm.