RELATÓRIO N° 85/03[1]

CASO 12.165

ADMISSIBILIDADE

MONSI LILIA VELARDE RETAMOZO

PERU

22 de outubro de 2003

 

 

I.        RESUMO

 

1.      Mediante petição apresentada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “Comissão”, “Comissão Interamericana” ou “CIDH”) em 13 de novembro de 1998 por Uldarico Velarde M. (doravante denominado o “peticionário”) durante a visita in loco da  CIDH à República do Peru (doravante denominado “Peru”, o “Estado” ou o  “Estado peruano”) se denunciou que o Peru violou, em prejuízo de Monsi Lilia Velarde Retamozo  (doravante denominada a “vítima”), certos direitos consagrados na  Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada “a Convenção” ou “a Convenção Americana”), ao detê-la, torturá-la, julgá-la por juízes “sem rosto” e condená-la à pena de prisão perpétua, devido a acusação de ser autora do delito de traição à pátria, sem que existissem as provas suficientes para tal decisão.

 

2.      Em sua defesa, o Estado peruano efetuou diversos argumentos sobre a denúncia do peticionário e, quanto aos requisitos de admissibilidade, defendeu que a petição deveria ser considerada inadmissível por ser manifestamente infundada, e por ter sido apresentada fora do  prazo previsto na  Convenção Americana.

 

3.      Neste relatório, a Comissão conclui que a petição é admissível em relação às alegadas violações ao direito, à integridade pessoal, à liberdade pessoal, às garantias judiciais, o princípio de legalidade, à proteção da  honra e a dignidade e a proteção judicial, consagrados respectivamente nos  artigos 5, 7, 8, 9, 11 e 25, em conjunção com o artigo 1(1) da  Convenção Americana, em detrimento da sra. Monsi Lilia Velarde Retamozo.

 

II.       TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

4.      Em 13 de novembro de 1998, durante a  visita in loco da  Comissão ao Peru, esta recebeu a denúncia de Uldarico Velarde M. a favor de sua filha, Monsi Lilia Velarde Retamozo. O 1º de março de 1999, a CIDH enviou nota acusando recebimento da  denúncia ao peticionário. Por comunicação de 21 de maio de 1999, recebida pela  Comissão no dia 27 do mesmo mês, o peticionário ampliou sua denúncia.

 

5.      Em 7 de junho de 1999, a Comissão abriu o caso Nº 12.165, encaminhou ao Estado as partes pertinentes das petições que recebeu em 13 de novembro de 1998 e em  27 de maio de 1999, solicitando-lhe que proporcionasse informação. Na  mesma data informou o  peticionário sobre este trâmite e lhe solicitou informações adicionais.

 

6.      Através de notas datadas de  26 de novembro de 1999, 6 de outubro de 2000, 21 de junho de 2001, 15 de janeiro de 2002, 5 e 11 de julho de 2002, 28 de novembro de 2002 e 15 de julho de 2003, o Estado apresentou suas observações.

 

7.      Mediante nota de 21 de fevereiro de 2000, o peticionário constituiu a advogada Carolina Loayza Tamayo como sua representante legal e autorizou Javier Mujica Petit a efetuar gestões a respeito do caso. Em 21 de maio de 1999, 21 de fevereiro de 2000, 19 de maio de 2000, 7 de fevereiro de 2001, 30 de agosto de 2001, 3 de setembro de 2001, 9 de abril de 2002, 3 de julho de 2002, 7 de agosto de 2002, 31 de outubro de 2002 e 9 de dezembro de 2002, a representante legal do peticionário apresentou suas observações adicionais.

 

8.      Em 28 de fevereiro de 2003, durante o 117º período de sessões, foi celebrada uma audiência sobre  o caso, na  qual a representante do peticionário apresentou informação atualizada sobre a situação jurídica da  suposta vítima com relação ao habeas corpus concedido em seu favor.

 

III.      POSIÇÕES DAS PARTES

 

A.      O peticionário

 

9.      Uldarico Velarde M. alega que sua filha Monsi Lila Velarde Retamozo foi detida juntamente com seu companheiro, José Galindo Sedano, em 11 de outubro de 1996 às 6:00 p.m. em seu domícilio, localizado no assentamento Humano Cruz de Motupe Mz “Ñ” Lote 19 Distrito de San Juan de Lurigancho, Lima. Além da  detenção ter sido feita sem ordem de prisão nem justificativa para prisão em flagrante, a vítima foi mantida na  sede da  DINCOTE até 15 de janeiro de 1997, sendo que durante os cinco primeiros dias esteve sem comunicação (incomunicável) e sem ordem judicial. O peticionário alega que sua filha "permaneceu um  prazo maior que o previsto pela  Constituição peruana para a investigação do delito que lhe foi  imputado".[2]

 

10.  O peticionário informa que, durante o período em que esteve nas dependências de DINCOTE, sua filha foi “vítima de golpes na  cabeça contra a parede para que respondesse às perguntas que lhe eram  formuladas pelos policiais, que lhe punham corrente elétrica nos joelhos, no ouvido; que a vendavam, lhe atavam as mãos nas costas, que a colocavam sobre o chão com a boca para baixo, a cobriam com um pano e caminhavam por cima dela. Também lhe foi negada água para saciar sua sede e serviços médicos até limites insuportáveis. Ao mesmo tempo insistiam em chegar a um acordo econômico para liberá-la”.[3] Assinalou que o Certificado Médico 3720-DL, elaborado por médicos legistas do Ministério Público em 14 de outubro de 1996, indicando que a vítima não apresentava sinais  de lesões recentes, não é um documento válido porque foi produzido enquanto a vítima estava incomunicável.[4]

 

11.  Mediante o Atestado Policial 091-DIVICOTE2-DINCOTE de 30 de outubro de 1996, a polícia imputou contra Velarde Retamozo o delito de traição à pátria, transferindo o  caso ao Foro Militar. Nesse momento, a filha do peticionário foi apresentada à imprensa com outros detidos pela  Polícia como supostos integrantes do Sendero Luminoso, o que violou o  princípio de presunção de inocência bem como sua honra e dignidade.

 

12.  Em 27 de janeiro de 1997, o Juizado Militar de Marina, reservando a identidade dos  juízes, emitiu a sentença condenando  Velarde Retamozo à pena de trinta anos pelo  delito de traição à pátria estabelecido no  artigo 1, incisos a e b, segundo inciso a do artigo 2º do Decreto-Lei 25.659. De acordo com o peticionário, tal decisão baseou-se em depoimentos sem credibilidade porque as testemunhas haviam recebido benefícios para oferecer informações em relação ao Sendero Luminoso e porque algumas declarações foram extraídas sob  tortura nas investigações policiais e posteriormente negadas na  etapa judicial. O peticionário aduz que uma das evidências da  suposta responsabilidade penal de sua filha é o Atestado N 100-D4-DINCOTE de 25 de julho de 1994, no  qual o Sr. Aurelio Aquino Pari, vinculado a outro expediente, assinou um manuscrito em que assinalava Olga Lucelina Velarde Retamozo, ou "Gladys", como integrante do Sendero Luminoso. Também que outros depoimentos utilizados contra sua filha referem-se à suposta participação de Monsi Lilia Velarde Retamozo em atividades do Sendero Luminoso e a identificam como Gladys, apesar de que esse não era o nome da vítima.

 

13.  O peticionário relata que, no recurso de apelação, o Conselho Superior de Guerra emitiu a sentença de 10 de abril de 1997 confirmando o pronunciamento do juizado militar, sentença que posteriormente foi declarada nula pelo  Conselho de Justiça Militar em 4 de setembro de 1997. O Conselho Superior de Guerra, composto como tribunal “sem rosto”, prolatou a nova sentença em 10 de outubro de 1997. O peticionário alega que tal decisão foi baseada igualmente em depoimentos sem credibilidade e ressalta que um dos  documentos, o parecer do Procurador Militar Geral, menciona uma carta na qual a vítima teria dito que esteve detida em Santa Mónica e em Canto Grande, o que contradiz com o fato que Monsi Lilia Velarde Retamozo não tinha nenhum antecedente criminal.

 

14.  A vítima interpôs recurso de nulidade desta sentença, mas o Conselho Supremo de Justiça Militar, em sentença de 28 de janeiro de 1998, considerou que não havia nulidade na  condenação e que havia sim nulidade na  pena atribuida à vítima, modificando este requisito para condená-la à prisão perpétua. O peticionário novamente aduz argumentos semelhantes aqueles utilizados  para questionar as sentenças previamente emitidas, alegando que a decisão de 28 de janeiro de 1998 baseou a condenaçao na  declaração de Armando Huarancca Llactahuamán, um co-réu que obteve benefícios por colaboração. Também afirma que a sentença de forma errônea afirma que a vítima havia estado detida antes, o que não é verdade.

 

15.  Após a apresentação da  denúncia à CIDH, em 30 de setembro de 2002, a vítima impetrou um habeas corpus que foi denegado através da sentença de 2 de outubro de 2002. Interposta a apelação, a Primeira Sala Penal Corporativa para Processos Ordinários com Réus Livres da  Corte Superior de Justiça de Lima prolatou  sentença em 27 de outubro de 2002, que deu provimento à ação, anulou o  processo penal e indeferiu o pedido de liberdade solicitado. Não obstante o anterior, o peticionário informou que Monsi Lilia Velarde Retamozo não havia sido vinculada formalmente a nenhum processo e continuava presa

 

16.  Quanto ao princípio da legalidade, que está consagrado no  artigo 9 da  Convenção Americana, o peticionário aduz: "O Decreto-Lei 25.659 dispõe que os delitos estabelecidos no  Decreto-Lei No. 25.475 (norma que dispõe sobre os delitos de terrorismo e os procedimentos correspondentes) e sob certas circunstâncias estipuladas nesta mesma norma, consideram-se como delitos de traição à pátria. O peticionário argumenta que  tal determinação foi questionada pela  Comissão, no  Relatório 17/97 de 11 de março de 1997 (citado na  sentença de Exceções Preliminares do Caso Castillo Petruzzi), em que a CIDH assinalou que o delito de traição à pátria regulamentado pelo  ordenamento jurídico do Peru, viola “princípios de direito internacional universalmente aceitos, de legalidade, devido processo legal, garantias judiciais, direito à defesa e direito a ser ouvido por tribunais imparciais e independentes".[5]

 

17.  Segundo o peticionário, sua filha está atualmente detida no  Centro Penitenciário de Máxima Segurança de Mulheres de Chorrillos em “condições desumanas, em celas de uma área de dois metros por dois metros, úmida e fria, sem luz direta, sem ventilação, com escassa ventilação, onde realiza a maior parte de atividades humanas que este espaço permite, com um regime de visitas com todos os tipos de restrições”. Em uma comunicação posterior, o peticionário assinala que “nos  últimos meses, estas condições variaram, em resposta à instalação de um governo de transição em direção à democracia”.[6]

 

18.  Com respeito ao esgotamento de recursos internos, o peticionário informou que o primeiro advogado da  vítima foi detido por acusações de terrorismo. Os advogados que o substituíram solicitaram cópias do expediente em 12 de agosto de 1998, mas até a data da  denúncia perante a CIDH não haviam submetido as mesmas, motivo pelo qual o peticionário não conseguiu interpor um recurso de revisão em favor de sua filha.

 

19.  Ainda em relação ao esgotamento dos  recursos internos, o peticionário ressaltou que nunca foi notificado da  sentença do Conselho Supremo de Justiça Militar que condenou a vítima em 28 de janeiro de 1998. O conhecimento formal do conteúdo desta sentença somente ocorreu tempos depois, quando a nova advogada da  vítima, Dra. Gloria Cano, teve acesso ao expediente, o que possibilitou a interposição de um pedido de indulto em junho de 1998.[7]

 

20.  O peticionário defende que apresentou sua denúncia à CIDH em um prazo razoável considerando a data na qual tomou consciência dos  impedimentos para esgotar os recursos da  jurisdição interna a favor da  vítima.

 

21.  O peticionário indica que o Estado peruano violou em detrimento de sua filha, Monsi Lilia Velarde Retamozo, os artigos 7, 5, 8, 9, 11 e 25 da  Convenção Americana.

 

B.       O Estado

 

22.  O Estado manifestou que o processo penal contra a vítima não violou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assinalando que o Certificado Médico 3720-DL, elaborado por médicos legistas do Ministério Público em 14 de outubro de 1996, indicou que a vítima não apresentava sinais de lesões recentes.[8]

 

23.  Quanto à denúncia de detenção sem ordem judicial, nem flagrante delito, o Estado aduz que, de acordo com o Decreto Supremo 057-96DE/CCFFAA de 30 de outubro de 1996, a cidade de Lima estava em estado de emergência, sendo tal detenção permitida em casos de terrorismo inclusive sem ordem judicial. Também afirmou que as denúncias sobre irregularidades referentes ao processo penal perante o foro  militar deveriam ter sido feitas no próprio processo.[9]

 

24.  O Estado afirmou que a vítima esteve assistida por seu advogado ao longo do processo penal bem como no  momento em que declarou na polícia.[10] Relatou que a declaração instrutiva de Velarde Retamozo foi recebida em 30 de dezembro de 1996 e, em 20 de janeiro de 1997, foi emitido o parecer do Promotor. No dia 24 do mesmo mês, a defesa da  vítima interpôs uma Exceção de Declinação de Jurisdição (Exceção de Incompetência), que foi indeferida pela  sentença expedida em 27 de janeiro de 1997, a qual condenou Velarde Retamozo à pena de privação de liberdade de 30 anos pelo  delito de traição à pátria tipificado no  artigo 1º, incisos a e b, segundo o inciso a do artigo 2º, do Decreto-Lei 25.659.[11]

 

25.  O Estado também informou que: “O Conselho de Guerra Especial de Marinha confirmou esta sentença por Resolução de 10 de abril de 1997; mas esta foi declarada nula em 4 de setembro de 1997 pelo  Tribunal Supremo Militar Especial, ordenando que fosse emitida uma nova sentença. Por Resolução de 10 de outubro de 1997, o Conselho de Guerra Especial de Marinha emitiu uma nova sentença, confirmando a de primeira instância. Em 28 de outubro de 1997, a defesa de Velarde Retamozo interpôs recurso de nulidade, elevando os autos ao Tribunal Supremo Militar Especial,  e em 27 de janeiro de 1998, esta defesa apresentou suas alegações escritas e designou como novo advogado o Dr. Jorge Del Carpio Servillano. Em 28 de janeiro de 1998, o Tribunal Supremo Militar Especial declarou não haver nulidade na  condenação imposta a Velarde Retamozo; mas sim que havia nulidade quanto à extensão da  pena, razão pela qual modificou este requisito e impôs a pena privativa de liberdade em prisão perpétua. Em 7 de abril de 1998, Velarde Retamozo nomeou como nova advogada a  Dra. Gloria Cano Legua, e, a pedido desta defesa, o foro militar pôs a sua disposição o expediente em 26 de junho de 1998 na  Mesa de Partes Única para casos de Traição à Pátria.” Também observou que, depois da criação da  Comissão Ad-Hoc encarregada de propor ao Presidente da  República a concessão de indulto pela  Lei 26.655, a vítima solicitou tal benefício e a Comissão o denegou em  19 de julho de 1999. [12]

 

26.  Em relação ao tratamento que a  vítima recebe no  estabelecimento penal, o Estado afirmou que a sra. Velarde Retamozo está detida em uma cela de 3 X 3 metros, com luz e ventilação adequadas, recebendo visitas aos sábados e domingos e mantendo correspondência com seu esposo, José Galindo Sedano, que está internado na Penitenciária Castro Castro. Sobre o estado de saúde da  vítima, o Estado comentou que “em 22.07.98 o serviço médico informou  sobre o resultado do reconhecimento médico realizado na interna, a pedido de seu pai, de 17.07.98, sendo que o diagnóstico foi parasitose e gonalgia bilateral, e ela recebeu a correspondente atenção. Ela foi também atendida em 26.03.99 por cáries dentárias; em 03.04.99 por onicomicose; em 03.06.99 por leucorréia; em 05.05.99 por equimose e em 09.07.99 por faringo-traquitis, recebendo em todas essas ocasiões o tratamento médico correspondente, e encontra-se em bom estado de saúde no momento”. [13]

 

27.  Quanto aos requisitos de admissibilidade, o Estado argumenta que a petição é manifestamente infundada, aduzindo que: “o peticionário pretende que a CIDH determine neste caso, se as resoluções e sentenças dos  tribunais internos não examinaram e interpretaram corretamente as provas aportadas ao processo penal; porém, conforme a CIDH, em seu Relatório n 8/98, ‘A Comissão não é um tribunal de revisão de decisões  prolatadas pelas autoridades judiciais’ dos  Estados membros da  OEA, que tenham atuado dentro da  esfera de suas atribuções constitucionais e legais, motivo pelo qual carece de faculdade para conhecer e decidir a respeito do mérito da  petição formulada no  presente caso”. [14]

 

28.  O Estado também considera, em desacordo com o peticionário, que segundo o artigo 689 do Código de Justiça Militar, o recurso extraordinário de revisão de sentença excluía sua aplicação em casos de delito de traição à pátria estabelecido pelo  Decreto-Lei 25.659. Portanto, o Estado conclui que “ao não ter recorrido o peticionário oportunamente ao sistema interamericano desde junho de 1998, e apresentar sua petição em 7 de junho de 1999, um ano depois, incorreu na causal contemplada no  artigo 46.1.b) da  Convenção Americana operando a caducidade do prazo de apresentação da  petição, motivo pelo qual a mesma deve ser declarada inadmissível”.[15]

 

29.  Como a representante do peticionário indicou que a primera petição de denúncia foi recebida pela  Comissão em 13 de novembro de 1998, o Estado alegou que recebeu as partes pertinentes da  denúncia em 7 de junho de 1999, sem que ele tenha sido comunicado sobre a data de interposição da  denúncia e, portanto, "o Estado deve entender que a comunicação a que se refere o peticionário, como apresentada em novembro de 1998, sofreu omissões insolúveis, sendo regularizada de forma válida em 7 de junho de 1999, razão pela qual operou a caducidade do prazo de apresentação a que se refere o artigo 46.1.b da  Convenção Americana".[16]

 

30.  Em suas  últimas comunicações, o Estado assinalou que, depois das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos questionando a legislação antiterrorista nos  casos Loayza Tamayo e Castillo Petruzzi, foram adotadas “medidas concretas para estudar a reforma” de tal legislação, mas que isso não “implica que esteja reconhecendo sua responsabilidade em todos os fatos denunciados pela  peticionária, mais ainda quando não ficaram devidamente acreditados”.[17] Ademais, argumenta que “no  processo contra Monsi Lilia Velarde Retamozo foram avaliadas as provas suficientes e necessárias para sancioná-la  pelos fatos que motivaram o processo judicial”. Que pelo  momento não teria razão para emitir pronunciamento por ter sido beneficiada pelo habeas corpus.  Em referência a dispositivos do Código de Execução Penal que exclui os benefícios como a semi-liberdade e a liberdade condicional nos casos de terrorismo, o Estado afirmou que não seria possível qualquer acordo de solução amistosa porque incluiria benefícios que não estão previstos no  ordenamento legal peruano.[18]

 

31.  Além disso, o Estado indicou que, em 13 de março de 2003, a Primeira Promotoria Especializada em Delitos de Terrorismo formulou uma denúncia penal perante o Juizado Quarto Penal de Terrorismo contra Monsi Lilia Velarde Retamozo, por fatos diferentes daqueles já mencionados que são matéria de outra investigação penal.

 

IV.      ANÁLISE

 

A.      Competência ratione materiae, ratione pessoae e ratione temporis da  Comissão

 

32.  Os peticionários estão facultados pelo  artigo 44 da  Convenção Americana para apresentar denúncias perante a CIDH. A petição assinala  como suposta vítima um indivíduo, para o qual o Peru comprometeu-se a respeitar e garantir os direitos consagrados na  Convenção Americana.  No que se refere ao Estado, a Comissão assinala que o Peru é um  Estado parte na  Convenção Americana desde 5 de setembro de 1984, data em que depositou o  instrumento de ratificação respectivo.  Portanto, a Comissão tem competência ratione pessoae para examinar a petição.

 

33.  A Comissão tem competência ratione loci para conhecer a petição, porque a petição alega violações de direitos protegidos na  Convenção Americana que teriam ocorrido dentro do território de um Estado parte neste tratado. A CIDH tem competência ratione temporis, porque a obrigação de respeitar e garantir os direitos protegidos na  Convenção Americana já se encontrava em vigor para o Estado na data em que haviam  ocorrido os fatos alegados na  petição. Por último, a Comissão tem competência ratione materiae porque na petição se denunciam violações a direitos humanos protegidos pela  Convenção Americana.

 

B.       Requisitos de admissibilidade da  petição

 

34.  No presente caso, foi formulada uma controvérsia a respeito do descumprimento dos  requisitos de admissibilidade previstos no  artigo 46(1)(a) da  Convenção Americana, sendo que o Estado defende que os fatos não caracterizam uma violação de direitos protegidos por este instrumento internacional.

 

a.       Esgotamento dos  recursos internos e prazo de apresentação

 

35.  O artigo 46 da  Convenção Americana dispõe que a admissibilidade de um caso está condicionada a

 

a.       que tenham sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, conforme os princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos.

b.       que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da  data em que o suposto ofendido em seus direitos tenha sido notificado da  decisão definitiva.

36.  O inciso 2º do artigo 32 do Regulamento da  Comissão Interamericana de Direitos Humanos estabelece:

 

Nos  casos em que são aplicáveis as exceções ao requisito do prévio esgotamento dos  recursos internos, a petição deverá ser apresentada dentro de um prazo razoável, na opinião da   Comissão. Para tal efeito, a Comissão considerará a data em que tenha ocorrido a suposta violação dos  direitos e as circunstâncias de cada caso.

 

37.  Em sua primeira comunicação, o peticionário afirmou que a vítima deixou de interpor o recurso extraordinário de revisão por não ter acesso ao expediente e que dirigiu-se à Comissão no prazo razoável desde que teve conhecimento de tal obstáculo para recorrer. O Estado, a sua vez, argumentou que, conforme o artigo 689 do Código de Justiça Militar, o recurso extraordinário de revisão era claramente inaplicável ao caso e que, em consequência, o prazo para interpor denúncia perante à Comissão já havia excedido em 7 de junho de 1999, quando o peticionário supostamente havia apresentado sua primeira petição à CIDH. A este  respeito, a representante do peticionário indicou que a primeira petição de denúncia foi recebida pela  Comissão em 13 de novembro de 1998, durante a visita da  CIDH ao Peru. Em sua comunicação de 6 de outubro de 2000, o Estado alega que recebeu as partes pertinentes da  denúncia em 7 de junho de 1999, sem  que tivesse sido comunicada a data de interposição da  denúncia e, portanto, "o Estado deve entender que a comunicação a que se refere  o peticionário, como apresentada em novembro de 1998, sofreu omissões insolúveis, tendo sido regularizada de forma válida em 7 de junho de 1999, razão pela qual operou a caducidade do prazo de apresentação a que se refere o artigo 46(1)(b) da  Convenção Americana".[19]

 

38.  A este respeito, a CIDH observa que a denúncia do peticionário foi recebida em 13 de novembro de 1998 durante a visita in loco ao Peru e não em 7 de junho de 1999 como indicou o Estado. O Estado concorda que a petição apresentada em 1998 sofria de omissões que foram regularizadas em 7 de junho de 1999. Contudo, a Comissão observa que a denúncia apresentada em 13 de novembro de 1998 não continha  tais omissões, por isso a aceitou e acusou recebimento ao peticionário em 1º de março de 1999.  Em 27 de maio de 1999, o peticionário enviou nova informação, que foi remetida juntamente com as partes pertinentes da  denúncia ao Estado em 7 de junho de 1999, data que inicialmente o Estado considerou como a de apresentação da  petição. Está claro então que a data e lugar de recepção da  denúncia foi em 18 de novembro de 1999 às 2.20 da  tarde na  cidade de Lima por um funcionário da  Secretaria Executiva da  CIDH, data que deve ser considerada para os efeitos do prazo estabelecido no  artigo 46(1)(b) da  Convenção.

 

39.  Ao  apresentar informações adicionais, o peticionário alegou que a vítima nunca foi notificada da  sentença que concluiu o processo penal, ressaltando que sua defesa, incluindo o estudo de um eventual recurso extraordinário de revisão, foi obstruída pela  detenção de seu advogado, sob a  acusação de terrorismo, e subsequente falta de acesso de seus novos advogados ao expediente. Afirma que, depois que a  advogada Gloria Cano revisou o  expediente, em junho de 1998, foi apresentado um pedido de indulto, que não havia sido resolvido até a data de interposição da  denúncia perante a CIDH. Quanto a estes fatos, o Estado não fez nenhuma objeção em suas comunicações posteriores, informando inclusive que o pedido de indulto foi denegado em 19 de julho de 1999.

 

40.  De acordo com a informação proporcionada pelo  Estado, a Comissão considera que os recursos internos apropriados foram esgotados ao ser expedida a sentença de 28 de janeiro de 1998 pelo  Tribunal Supremo Militar Especial, que  condenou  Monsi Lilia Velarde Retamozo à pena de prisão perpétua. Portanto, a CIDH considera que os recursos internos foram esgotados, observando ademais que a vítima também utilizou a solicitação de indulto ao Presidente da  República e o recurso de habeas corpus quando estavam disponíveis.[20]

 

41.  Quanto ao prazo para interposição da  denúncia perante a Comissão estabelecido no  artigo 46(1)(b), a CIDH entende que a vítima foi notificada da  sentença do Tribunal Supremo Militar Especial em 26 de junho de 1998, data em que o expediente do processo penal foi posto à disposição de sua advogada. Portanto, os seis meses de prazo para interposição de denúncia perante a Comissão deve ser contado a partir do dia 26 de junho de 1998. A CIDH conclui que a petição interposta em 13 de novembro de 1998 cumpriu com o requisito previsto no  artigo 46(1)(b) da  Convenção Americana.

 

b.      Duplicidade de procedimentos e coisa julgada

 

42.  A Comissão entende que a matéria da  petição não está pendente de outro procedimento de acordo internacional, nem reprodu uma petição já examinada por este ou outro órgão internacional.  Portanto, cabe dar por cumpridos os requisitos estabelecidos nos  artigos 46(1)(c) e 47(d) da  Convenção.

 

c.       Caracterização dos  fatos

 

43.  O peticionário alega violações à liberdade pessoal, à integridade pessoal, às garantias judiciais, ao princípio da legalidade e à proteção judicial, consagrados respectivamente nos  artigos 5, 7, 8, 9, 11 e 25 da  Convenção Americana, motivo pelo qual o Estado peruano descumpriu sua obrigação internacional estabelecida no  artigo 1(1) desse tratado internacional.

 

44.  O Estado sustenta que a petição é manifestamente infundada posto que não aduz fatos que tendem a representar uma violação à Convenção Americana. Alega que a denúncia do peticionário refere-se a questões que devem ser apreciadas pelos  tribunais internos e que não é  objetivo da  Comissão funcionar como “tribunal de revisão de decisões” nacionais.

 

45.  Os incisos (b) e (c) do artigo 47 estabelecem:

 

A Comissão declarará inadmissível toda petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos 44 ou  45 quando:

 

b.         não exponha fatos que caracterizem uma violação dos  direitos garantidos por esta Convenção.

c.        resulte da exposição do próprio peticionário ou do Estado manifestamente       infundada a petição ou comunicação ou seja evidente sua total improcedência.

 

46.  O  inciso b do artigo 47 da  Convenção Americana deve ser aplicado quando os fatos relatados na  denúncia não dizem respeito à violações de direitos humanos. Por sua vez, o inciso c do mesmo artigo tem como objetivo excluir da  apreciação de mérito da  Comissão aquelas petições que, por seu próprio conteúdo, demonstram ser manifestamente infundadas ou improcedentes. Nesse sentido, a Comissão entende que:

 

A Comissão Interamericana deve realizar uma avaliação prima facie para examinar se a denúncia fundamenta a aparente ou potencial violação de um direito garantido pela  Convenção Americana.  Esta é uma  análise sumária, que não implica prejuízo ou antecipação de opinião sobre o mérito da  controvérsia.  A distinção entre o estudo correspondente à declaração sobre a admissibilidade e aquele  requerido para determinar uma violação está refletido no próprio Regulamento da  CIDH, que estabelece de maneira claramente diferenciada as etapas de admissibilidade e mérito.[21]

 

47.  No  presente caso, o peticionário indica que o Estado peruano incorreu em  violações aos artigos 5, 7, 8, 9, 11 e 25, em detrimento de sua filha, Monsi Lilia Velarde Retamozo. Alega também que tais violações não foram suspensas nem reparadas porque o Estado não lhe ofereceu as garantias judiciais (artigo 8) nem a proteção judicial (artigo 25) necessárias.

 

48.  O Estado, em suas últimas comunicações, referiu-se às decisões da  Corte Interamericana de Direitos Humanos que questionam a legislação antiterrorista estabelecida pelos  Decretos-Leis 25475, 25659 e outros. Enfatizou também que havia efetuado um processo de revisão dos  processos penais relativos a delitos estabelecidos nesta legislação. O Estado informou que o Tribunal Constitucional do Peru, em 3 de janeiro de 2003, proferiu uma sentença em que declarou a inconstitucionalidade de algumas normas dos  decretos 25475 e 25659, sem afetar o artigo 2o do decreto 254750 que tipifica o delito de terrorismo no qual se baseou o tipo penal de traição à pátria.

 

49.  Além disso, o Governo peruano emitiu os decretos legislativos 923, 924, 925, 926 e 927 de data 19 de fevereiro de 2003, dentro dos quais dispôs que a Sala Nacional de Terrorismo, progressivamente num prazo não maior de sessenta dias hábeis desde a  vigência desta legislação, anulará de ofício, salvo renúncia do réu, a sentença, o julgamento oral e declarará, conforme o caso, a insubsistência da  acusação nos  processos penais pelos  delitos de terrorismo tramitados na  jurisdição penal ante juízes ou promotores com identidade secreta. A CIDH entende que a nova legislação, com a qual o Estado peruano pretende oferecer novos julgamentos às pessoas que foram investigadas, julgadas e condenadas pelos  delitos de terrorismo e traição à pátria, e sua incidência no  presente caso, será matéria de análise de mérito no momento oportuno. Da mesma forma, no que concerne ao segundo processo contra Velarde Retamozo que, segundo o Estado, está tramitando atualmente perante o Quarto Juizado Penal de Terrorismo pelo  delito de terrorismo, por fatos aparentemente distintos mas sob o mesmo tipo penal e para a mesma época.

 

50.  Assim sendo, a CIDH considera que a discusão sobre a existência de violações aos artigos 5, 7, 8, 9, 11 e 25 deve ser objeto de análise de mérito do caso. Para efeitos de admissibilidade, a Comissão conclui que existem elementos suficientes para que os fatos tendam a indicar violações de direitos humanos e que a denúncia não se qualifica como manifestamente infundada nem evidentemente improcedente.

 

V.      CONCLUSÕES

51.  A CIDH determina no  presente relatório que foram esgotados os recursos internos e que a petição foi apresentada de acordo com o prazo previsto para tal efeito na  Convenção Americana. 

 

52.  A Comissão conclui que a petição é admissível conforme o disposto nos artigos 47(a) da Convenção Americana. Com base nos  argumentos de fato e de direito antes expostos, e sem prejulgar sobre o mérito do assunto,

 

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

DECIDE:

1.       Declarar admissível a presente petição em relação aos artigos 5, 7, 8, 9, 11 e 25 da  Convenção Americana.

          2.         Notificar o Estado e o peticionário desta decisão.

 

       3.         Publicar o presente relatório e incluí-lo em seu Relatório Anual a ser enviado à Assembléia Geral da OEA.

 

Dado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., no dia 22 de outubro de 2003. Assinado: José Zalaquett, Presidente; Clare Kamau Roberts, Primeiro Vice-Presidente; Comissionados Robert K. Goldman e Julio Prado Vallejo.


 


[1] Conforme o estipulado no artigo 17(2) do Regulamento da  Comissão, a Comissionada Susana Villarán, de nacionalidade peruana, não participou no  debate nem na decisão do presente assunto.

[2] Comunicação do peticionário de 7 de fevereiro de 2001, recebida pela  CIDH em 5 de março de 2001.

[3] Parágrafo 12 da  Comunicação do peticionário recebida pela  CIDH em 13 de novembro de 1998.

[4] Comunicação do peticionário de 7 de fevereiro de 2001, recebida pela  Comissão em 5 de março de 2001.

[5] Comunicação do peticionário de 7 de fevereiro de 2001, recebida pela  Comissão em  5 de março de 2001.

[6] Comunicação do peticionário de 7 de fevereiro de 2001, recebida pela  Comissão em  5 de março de 2001.

[7] Parágrafos 28 e 29 da  Comunicação do peticionário de 7 de fevereiro de 2001, recebida pela  Comissão em  5 de março de 2001.

[8] Comunicação do Estado peruano de 26 de novembro de 1999.

[9] Comunicação do Estado peruano de 6 de outubro de 2000.

[10] Comunicação do Estado peruano de 26 de novembro de 1999.

[11] Comunicação do Estado peruano de 26 de novembro de 1999.

[12] Comunicação do Estado peruano de 26 de novembro de 1999.

[13] Comunicação do Estado peruano de 26 de novembro de 1999.

[14] Comunicação do Estado peruano de 26 de novembro de 1999.

[15] Comunicação do Estado peruano de 26 de novembro de 1999.

[16] Relatório Nº 02, enviado à CIDH mediante nota de 6 de outubro de 2000.

[17] Relatório No 05-2002-JUS/CNDH-SE, enviado à CIDH mediante nota de 15 de janeiro de 2002.

[18] Relatório 51-2002-JUS/CNDH-SE, enviado à CIDH mediante nota de 11 de julho de 2002.

[19] Relatório Nº 02, enviado à CIDH mediante nota de 6 de outubro de 2000.

[20] O  decreto 25659 de agosto 12 de 1992, que regulamentou os procedimentos para julgamentos de delitos de traição à pátria, em seu artigo 6 suspendeu o exercício das ações de habeas corpus para estes delitos e os de terrorismo. O artigo 2 da  lei 26248 de 25 de novembro de 1993 restabeleceu de forma parcial e restringida a ação de habeas corpus para os mesmos, sendo tramitadas perante tribunais especializados em terrorismo com identidade reservada, sem que fossem admissíveis as ações de habeas corpus  baseadas nos  mesmos fatos ou causas ou fossem  matéria de um procedimento em trâmite ou já resolvido.

[21] CIDH, Relatório Nº 128/01, Herrera e Vargas (A Nação), Costa Rica, Caso 12.367, 3 de dezembro de 2001, par 50.