RELATÓRIO N° 11/03

PETIÇÃO 0326

ADMISSIBILIDADE

COMUNIDADE INDÍGENA XAKMOK KÁSEK DO POVO ENXET

PARAGUAI

20 de fevereiro de 2003

 

I.        RESUMO

 

1.      Em 15 de maio de 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “a Comissão” ou a “CIDH”) recebeu uma petição apresentada pela  organização não governamental Terraviva para os Povos Indígenas de Chaco, TERRAVIVA (doravante denominada  “os peticionários”) em representação da  Comunidade Indígena Xakmok Kásek do Povo Enxet e seus membros, (doravante denominada a “Comunidade Indígena Xakmok Kásek” ou a “Comunidade Indígena”), contra a  República do Paraguai (doravante denominada o “Estado paraguaio” ou o “Estado”). Na  petição se alega que o Estado paraguaio violou os artigos 1 (obrigação de respeitar os direitos), 2 (dever de adotar disposições de direito interno), 8(1) (garantias judiciais), 21 (direito à propriedade privada) e 25 (proteção judicial) contemplados na  Convenção Americana dos  Direitos Humanos (doravante denominada a “Convenção” ou a ”Convenção Americana”) em detrimento da  Comunidade Indígena e seus membros.

 

2.       Os peticionários argumentam que transcorreram mais de 12 anos desde que foram iniciados os trâmites necessários para a recuperação de parte do território ancestral da  Comunidade Indígena Xakmok Kásek, sem que até hoje este trâmite tenha sido resolvido, apesar de a Constitução paraguaia reconhecer o direito dos  povos indígenas a desenvolver suas formas de vida em seu próprio  habitat. Com relação aos requisitos de admissibilidade, os peticionários alegam que sua petição é admissível por aplicação das exceções aos requisitos de esgotamento dos  recursos internos, previstos no  artigo 46(2) da  Convenção.

 

3.       A sua vez, o Estado, em sua primeira comunicação, expressou que, segundo a política de cooperação da  Chancelaria Nacional com os órgãos internacionais de direitos humanos, se considera que os casos que foram apresentados e que preenchem os devidos requisitos para serem tratados em uma instância internacional tem prioridade para o Governo do Paraguai, e tendo em vista que denuncía em favor da  Comunidade Indígena Xakmok Kásek possui estas características, manifestou seu interesse de chegar a uma solução amistosa.

 

4.       A Comissão, depois de analisar a posição das partes e o cumprimento dos  requisitos previstos nos  artigos 46 e 47 da  Convenção, concluiu que é competente para conhecer a reclamação e declarou a petição admissível em relação aos artigos 2, 8(1), 21, 25 da  Convenção, em conjunção com o artigo 1(1) do mesmo instrumento.

 

II.       TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

5.       Em 15 de maio de 2001, a Comissão recebeu a petição contra o Estado Paraguaio e em 25 de maio recebeu informação adicional dos  peticionários. Em 6 de junho de 2001, a Comissão enviou as partes pertinentes ao Estado e solicitou que num prazo de 2 meses apresentasse uma resposta à petição.

 

6.       Em 1° de agosto de 2001, o Estado manifestou seu interesse de iniciar um processo de solução amistosa, e em 2 de agosto, a Comissão solicitou  aos peticionários que apresentassem as observações pertinentes em um prazo de 15 dias.

 

7.       Em 27 de agosto de 2001, a Comissão convocou as partes à uma reunião de trabalho para o dia 1° de outubro, para tratar questões vinculadas com a petição dentro do 113° período de sessões. Esta reunião foi postergada para o dia 13 de novembro.

 

8.       Em 17 de setembro de 2001, a Comissão recebeu uma nota subscrita pelo  senhor Roberto C. Eaton K. na qualidade de resposta à petição. Em 20 de setembro, a Comissão informou ao senhor Eaton que as partes processuais perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos são as supostas vítimas por uma parte e o Estado respectivo pela  outra, razão pela qual lhe enviou uma nota de 17 de setembro afirmando que não era possível que esta fosse  considerada como resposta à petição. Em 31 de outubro  de ano 2001, o  senhor Eaton solicitou que sua anterior apresentação fosse recebida pela  Comissão na qualidade de amicus curie.

         

9.       Em 13 de novembro de 2001, durante o 113° período ordinário de sessões da  Comissão, no  marco de uma reunião de trabalho, as partes subscreveram um “Acordo de  Vontades”.

 

10.     Em 21 de novembro de 2002, os peticionários informaram à Comissão sua decisão de retirar-se do processo de solução amistosa, nota que foi encaminhada ao Estado em 10 de dezembro solicitando-lhe que apresentasse seus argumentos de admissibilidade num prazo de 30 dias.

 

11.   Em 8 de dezembro de 2002, a Comissão, através da  Secretaria Executiva visitou a Comunidade Xakmok Kásek.

 

12.     Em 15 e 16 de janeiro de 2003, o Estado enviou informação adicional à Comissão.

 

A.      Processo de solução amistosa

         

13.     Em sua primeira nota de resposta, o Estado solicitou à CIDH sua intermediação a fim de chegar à uma solução amistosa entre as partes. Em 13 de novembro de 2001, durante o marco do 113° período ordinário de sessões, as partes subscreveram um “Acordo de Vontades”, no qual se comprometeram a iniciar as negociações no processo de solução amistosa. No  marco deste processo as partes realizaram reuniões em Assunção, Paraguai.

 

14.     Em 21 de novembro de 2002, os peticionários informaram à Comissão a decisão da  Comunidade Xakmok Kásek de retirar-se do processo de negociações diretas com o  Governo e considerar concluído o acordo de vontades subscrito em 13 de novembro de 2001 entre as partes, devido à falta de resultados obtidos durante a solução amistosa oferecida pelo  Estado paraguaio, o tempo transcorrido e a ausência de medidas concretas de reparação às violações denunciadas.

 

III.      POSIÇÃO DAS PARTES

 

A.      Os peticionários

 

15.     Os peticionários alegam que o Estado do Paraguai violou os artigos 1(1), 2, 8(1), 21, 25 da  Convenção, em detrimento da  Comunidade Indígena Xakmok Kásek do Povo Enxet e seus membros, por não restituir à Comunidade parte de suas terras ancestrais, de cujo domínio e direitos de propriedade foram privados sem indenização alguma por atos contínuos de despejo iniciados com o confisco e  venda de suas terras a terceiros por parte do Governo paraguaio. Afirmam que a Constituição paraguaia reconhece o direito dos  povos indígenas a desenvolver suas formas de vida em seu próprio habitat,[1] sem que até esta data o Estado tenha concedido à Comunidade Indígena as suas terras ancestrais.

 

16.     Os peticionários manifestam que, no  ano 1990, a Comunidade Indígena, através de seus líderes, iniciou gestões administrativas perante os organismos competentes, ou seja, o Instituto de Bem-estar  Rural (IBR) e o Instituto Paraguaio do Indígena (INDI), com o objetivo de obter a restituição de parte de suas terras ancestrais. As gestões foram realizadas dentro do marco do procedimento estabelecido na  lei N° 904/81 sobre ”Estatuto de Comunidades Indígenas”, e foi dada abertura ao expediente administrativo N° 15.032/90 do IBR.

 

17.     Os peticionários alegam que, depois de vários anos de trâmite da  solicitação e em face da falta de resolução pela  via administrativa, os líderes da  Comunidade Indígena solicitaram, em 25 de junho de 1999, à Câmara de Senadores do Congresso a sanção de uma lei para a desapropriação de aproximadamente 10.700 hectares correspondentes a parte de seu habitat tradicional. O projeto de lei foi apresentado com o apoio da  senadora Nidia Ofelia Flores. Em 16 de novembro de 2000, a Câmara de Senadores rejeitou a solicitação de desapropriação mediante a Resolução N° 693.

 

18.     Em relação ao  esgotamento de recursos internos, isto é, a via administrativa e legislativa contemplada no  direito interno paraguaio, os peticionários argumentam que a Comunidade Xakmok Kásek tentou todos os meios possíveis, conforme os princípios de direito internacional, para efetivar seu direito à propriedade sobre suas terras tradicionais. 

 

19.     Os peticionários defendem que, embora a comunidade tivesse acesso aos recursos previstos pela  jurisdição interna no Paraguai e que interpuseram em tempo e forma tais recursos, estes não mostraram-se efetivos para restituir o direito à Comunidade sobre suas terras.      Manifestam que transcorreram mais de 12 anos desde que a Comunidade Indígena iniciou os trâmites necessários para a reivindicação de parte de seu hábitat tradicional perante o Estado de Paraguai sem que, até esta data, se tenha conseguido uma solução definitiva de sua petição.

 

B.       O Estado

 

20.     Em sua primeira nota, o Estado em resposta manifestou:

 

[S]e considera que os casos que foram apresentados preenchendo os devidos requisitos para serem tratados em uma instância internacional são os que identificados desta maneira tem prioridade para o Governo do Paraguai e devem ser atendidos para avançar no  melhoramento  da  situação dos  direitos humanos no  país.

 

Tendo este caso tais características, o Governo do Paraguai deseja chegar a uma solução amistosa com os peticionários, motivo pelo qual solicita à Comissão Interamericana de Direitos Humanos sua intermediação para tal objetivo.

 

          21.     Em suas observações dos  dias 15 e 16 de janeiro de 2002, o Estado lamentou a decisão dos  peticionários de encerrar o procedimento de solução amistosa e ratificou seu  compromisso com a reivindicação dos  direitos dos  povos indígenas do Paraguai, mediante as gestões que seus órgãos vivem realizando a favor do gozo efetivo do direito à propriedade comunitária da terra da  comunidade Xakmok Kásek, em conexão com outros direitos consagrados na  Constituição nacional, a Convenção Americana e o Convênio N° 169 da  Organização Internacional do Trabalho.

 

22.     O Estado também afirma que o Presidente do Instituto Paraguaio do Indígena, Coronel Oscar Centurão, atualmente está realizando gestões para adquirir uma propriedade de 4.000 hectares de uma parte da fazenda N° 1418 que, quando unida a uma porção de terreno que está ligado aquele que pertence ao INDI, poderia ser oferecido à comunidade Xakmok Kásek.

 

23.     Sem prejuízo do antes exposto, e em relação aos requisitos de admissibilidade,  o Estado argumenta que a petição não é suscetível de ser admissível por falta de esgotamento de recursos de jurisdição interna, além do advento do fatos novos que exigiram do Estado reiniciar negociações com os novos proprietários da área reivindicada pela  Comunidade Indígena.

 

24.     A respeito do primeiro argumento, o Estado afirma que os peticionários não esgotaram os recursos de jurisdição interna e identifica três recursos pendentes: Em primeiro  lugar, as gestões  administrativas para a compra de uma fração de 4,000 hectares no terreno denominado “Potrerito” para depois ser transferida e titulada em nome da  Comunidade Indígena estão pendentes perante a instância administrativa, isto é, o INDI. Em segundo lugar, diante da eventual negativa dos  proprietários de oferecer à venda a fração de terra reclamada, será solicitado ao Congresso Nacional um projeto de lei de desapropriação. Em terceiro lugar, faltaria esgotar o mecanismo estabelecido no  Convênio 169 da  Organização Internacional do Trabalho, sobre Povos Indígenas e Tribais, em conjunção com os artigos 14 e 15 da  Lei 904/81 sobre Estatuto das Comunidades Indígenas, com o objetivo de solicitar o prévio, livre e expresso consentimento da  Comunidade quanto à possibilidade de uma transferência para outras terras de igual extensão e qualidade.

 

25.     O Estado informa que o país conta com a legislação adequada para a proteção do direito ou direitos alegadamente violados na  presente petição, em especial, o direito à propriedade comunitária da  Comunidade Xakmok Kásek e fundamenta tal afirmação no fato de que a instituição encarregada de impulsionar a tramitação das terras solicitadas pela  Comunidade, ou sejam o INDI, atualmente continua realizando gestões  para a aquisição da  propriedade reivindicada pela  Comunidade Indígena. Em relação à demora na solução definitiva da  petição da  Comunidade, o Paraguai manifesta que isto foi justificado pelas razões antes expostas.

 

26.     O Estado argumenta que a demora na solução do trâmite perante a autoridade administrativa deve-se a que a compra de terras que serão tituladas em favor das comunidades indígenas requerem negociações com seus proprietários, a fim de obter sua aceitação e, caso estes recusem-se a vender, seria necessário apresentar um projeto de lei  perante a autoridade legislativa com o objetivo de solicitar a desapropriação da  terra, tendo neste caso o Congresso Nacional a faculdade de aprovar ou rejeitar o projeto de lei respectivo. 

 

27.     Em relação à alegação de fatos novos que,  de acordo com o Estado, produz consequências jurídicas que a Comissão deve considerar, explica que o anterior proprietário da área reivindicada pela  Comunidade Xakmok Kásek transferiu seu título a uma Cooperativa Menonita, o que faz necessário reiniciar as negociações com os novos proprietários para que aceitem vender ao INDI a porção reclamada e assim ser transferida posteriormente à Comunidade Indígena. De acordo com a legislação paraguaia, o argumento de “fatos novos” está reconhecido no  direito positivo e, no presente caso poderia ser aplicado de forma suplementar para este procedimento quase-judicial a fim de dar ao INDI mais tempo para conseguir a compra do imóvel reclamado durante o ano 2003.

 

28.     O Estado argumenta que não obstruiu nem interferiu negativamente no  procedimento administrativo contra os legítimos direitos dos  Xakmok Kásek, através de nenhuma instituição governamental ou de seus agentes.

 

IV.      ANÁLISE SOBRE COMPETÊNCIA E ADMISSIBILIDADE

 

A.      Competência ratione pessoae, ratione loci, ratione temporis e ratione materiae da  Comissão.

 

29.     Os peticionários estão facultados pelo  artigo 44 da  Convenção Americana para apresentar denúncias perante a CIDH. A petição assinala  como supostas vítimas indivíduos, ou seja,  a Comunidade Xakmok Kásek e seus membros[2] para os quais o Paraguai comprometeu-se a respeitar e garantir os direitos consagrados na  Convenção Americana.  No que se refere ao Estado, a Comissão assinala que o Paraguai é um  Estado parte na  Convenção Americana desde 24 de agosto de 1989, data em que depositou o  instrumento de ratificação respectivo.  Portanto, a Comissão tem competência ratione pessoae para examinar a petição.

30.     A Comissão tem competência ratione loci para conhecer a petição, porque a petição alega violações de direitos protegidos na  Convenção Americana que teriam ocorrido dentro do território de um Estado parte neste tratado.

 

31.     A CIDH tem competência ratione temporis, porque a obrigação de respeitar e garantir os direitos protegidos na  Convenção Americana já se encontrava em vigor para o Estado na data em que haviam  ocorrido os fatos alegados na  petição.[3]  

 

32.     Por último, a Comissão tem competência ratione materiae porque na petição se denunciam violações a direitos humanos protegidos pela  Convenção Americana. 

 

B.       Requisitos de admissibilidade

 

1.       Esgotamento dos  recursos internos

 

33.     O artigo 46(1) (a) da Convenção Americana estabelece que, para que um caso possa ser admitido, é preciso que “se tenha interposto e esgotado os recursos de jurisdição interna, conforme os princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos”.  O artigo 46(2) estabelece exceções ao princípio geral de esgotamento dos  recursos internos, quando a) não exista na  legislação interna do Estado em questão o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos alegadamente violados; b) não se tenha permitido ao suposto ofendido em seus direitos o acesso aos recursos da  jurisdição interna, ou tenha sido impedido de esgotá-los, e c) haja demora injustificada na  decisão sobre os mencionados recursos.

 

34.     Em relação à recuperação do território ancestral da  Comunidade Indígena, motivo principal da  petição, a Comissão entende que no Paraguai existem dois procedimentos, um administrativo perante o INDI-IBR e outro legislativo perante o Congresso Nacional. Os peticionários utilizaram ambos.

 

35.     Com efeito,  consta que no  ano 1990 os peticionários iniciaram perante à instância administrativa respectiva, isto é, o INDI e o IBR, os trâmites contemplados na  legislação interna para a reivindicação do habitat tradicional da  Comunidade, sem conseguir até hoje uma solução definitiva para a petição. Os peticionários também procuraram resolver  o assunto perante o Senado da  República, mas não obtiveram êxito porque os projetos de lei de desapropriação foram rejeitados pelo  Senado, sendo que a última decisão está datada de 16 de novembro de 2000. Sendo assim, passados 12 anos de iniciados os trâmites pertinentes, a Comunidade indígena Xakmok Kásek ainda não recebeu as suas terras.

 

36.     O Estado, em seus argumentos sobre admissibilidade, manifestou que os peticionários não haviam esgotados estes dois recursos de jurisdição interna e, portanto, a presente petição era inadmissível. A Comissão observa a este respeito que quando o Estado alega a falta de esgotamento tem a obrigação de provar a efetividade dos  recursos que entende não foram esgotados. Em seus argumentos, o Estado não aportou elementos para demonstrar esta asseveração. Os recursos mencionados pelo Estado estão relacionados com as faculdades do Poder Executivo, seja para apresentar um novo projeto de lei de desapropriação perante o Congresso Nacional, seja para realizar novamente uma oferta de compra da área reivindicada pela  Comunidade Indígena ao proprietário. Os dois recursos mencionados pelo  Estado foram utilizados no âmbito interno com resultados negativos e o Estado não demonstrou  nenhuma perspectiva de eficácia.

 

37.     A respeito da  suposta falta de esgotamento do mecanismo estabelecido no  Convênio N° 169 da  OIT em conjunção com a lei paraguaia sobre Estatuto das Comunidades Indígenas, que se refere à falta de solicitação à Comunidade Indígena do seu consentimento quanto a possibilidade de ser transferida à outras terras diferentes daquelas que foram  reivindicadas, a Comissão determina que este não se trata de um recurso de jurisdição interna e, portanto, não deve ser esgotado pelos  peticionários.

 

38.     Assim sendo, dadas as características do presente caso, a Comissão considera que, com relação a via legislativa, foram esgotados os recursos na  jurisdição interna e, no que se refere à  via administrativa, houve uma demora injustificada na sua decisão, razão pela qual aplica-se a exceção prevista no  artigo 46(2)(c).

 

2.       Prazo de apresentação

 

39.     Conforme o artigo 46(1)(b) da  Convenção, toda petição deve ser apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o suposto ofendido tenha sido notificado da  decisão definitiva no âmbito nacional que esgote os recusos da jurisdição interna. O artigo 32 do Regulamento da  Comissão consagra que “nos casos em que sejam aplicáveis as exceções ao requisito do prévio esgotamento dos  recursos internos, a petição deverá ser apresentada dentro de um prazo razoável, à critério da  Comissão.  Para este efeito, a Comissão considerará a data em que tenha ocorrido a suposta violação dos  direitos e as circunstâncias de cada caso”.

 

          40.     No  presente caso, a Comissão pronunciou-se supra sobre a aplicabilidade da  exceção ao requisito de esgotamento dos  recursos internos. A este respeito, a Comissão considera que a petição apresentada à CIDH pelos  peticionários em 15 de maio de 2001 foi interposta dentro de um prazo razoável, tomando em consideração as circunstâncias específicas do presente caso, particularmente o fato de que o Senado rejeitou a solicitação de desapropriação em 16 de novembro de 2000.

 

3.       Duplicação de procedimentos

 

41.     O artigo 46(1)(c) estabelece que a admissão de uma petição está sujeita ao requisito de que o assunto "não esteja pendente de outro procedimento de acordo  internacional"; e o artigo 47(d) estabelece que a Comissão deve declarar inadmissível toda petição que “seja substancialmente a reprodução de uma petição ou comunicação anterior já examinada pela  Comissão, ou outro organismo internacional”. 

 

42.     Não surge do expediente que a matéria da  petição esteja pendente de outro procedimento de acordo internacional, nem que reproduza uma petição já examinada por este ou outro órgão internacional.

 

43.     Portanto, cabe dar por cumpridos os requisitos estabelecidos nos  artigos 46(1)(c) e 47(d) da  Convenção.

 

4.       Caracterização dos  fatos alegados

 

44.     O artigo 47(b) da  Convenção Americana estabelece que toda petição que não exponha fatos que caracterizem uma violação dos  direitos garantidos nela deve ser declarada inadmissível. 

 

45.     Em relação à alegação de fatos novos formulada pelo Estado, no sentido de que o proprietário da área reclamada pela  Comunidade transferiu a propriedade e,  portanto, se requer mais tempo para negociar com os novos titulares e assim conseguir a venda a favor do INDI, para posteriormente ser transferida em nome da  Comunidade, a Comissão considera que esta alegação não afeta os fatos que poderiam caracterizar uma violação dos  direitos garantidos na  Convenção, porque os fatos alegados na  denúncia subsistem e a mudança de proprietário da área reclamada pela  Comunidade Indígena não afeta os fatos em que se fundamenta a petição.

 

46.     Sendo assim, a Comissão considera que prima facie os fatos alegados pelos  peticionários podem caracterizar a violação da  Convenção Americana em seus artigos 2, 8(1), 21, 25 e 1(1) por eventual descumprimento da obrigação de adotar disposições de direito interno, direito às garantias judiciais e proteção judicial e à propriedade privada, em detrimento das  vítimas do presente caso.

 

47.     Tendo em vista o exposto, a Comissão considera satisfeitos os requisitos estabelecidos no  artigo 47(b) e (c) da  Convenção Americana.

 

 

V.      CONCLUSÕES

 

48.     A Comissão conclui que tem competência para conhecer a denúncia apresentada pelos  peticionários e que a petição é admissível de conformidade com os artigos 46 e 47 da  Convenção.

 

47.     Com base nos  argumentos de fato e de direito antes expostos, e sem prejulgar sobre o mérito do assunto, 

 

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.          Declarar admissível a denúncia dos  peticionários sobre a suposta violação dos  artigos 2, 8(1), 21, 25 e 1(1) da  Convenção Americana em prejuízo da  Comunidade Indígena Xakmok Kásek do Povo Enxet e seus membros.

 

          2.         Notificar o Estado e o peticionário desta decisão.

 

          3.         Iniciar o trâmite sobre o mérito do assunto.

 

4.         Publicar o presente relatório e incluí-lo em seu Relatório Anual a ser enviado à Assembléia Geral da OEA.

 

          Dado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., no dia 20 de fevereiro de 2003.  Assinado:  Juan E. Méndez, Presidente; Marta Altolaguirre, Primeira Vice-Presidenta; José Zalaquett, Segundo Vice-Presidente; Comissionados: Robert K. Goldman, Julio Prado Vallejo, Clare Roberts e Susana Villarán.

 


 


[1] Artigo 63. Da  identidade étnica. Fica reconhecido e  garantido o direito dos  povos indígenas a preservar e a desenvolver sua identidade étnica no  respectivo habitat. Tem direito, também, a aplicar livremente seus sistemas de organização política, social, econômica, cultural e religiosa, assim como a voluntária submissão à suas normas consuetudinárias para a regulamentação da  convivência interior sempre que elas não atentem contra os direitos fundamentais estabelecidos  nesta Constituição. Nos  conflitos judiciais  se terá em conta o direito consuetudinário indígena.

Artigo 64. Da  propriedade comunitária. Os povos indígenas têm direito à propriedade comunitária da  terra, em extensão e qualidade suficientes para a conservação e o desenvolvimento de suas formas peculiares de vida. O Estado lhes proverá gratuitamente destas terras, as quais serão inealienáveis, indivisíveis, intransferíveis, imprescritíveis, não suscetíveis à garantia de obrigações contratuais nem de serem arrendadas; além de estarem isentas de tributos.

Proibe-se a remoção ou transferência  de seu habitat sem o expresso consentimento dos  mesmos.

 

[2] Os peticionários aportaram censos da  comunidade Xakmok Kásek realizados nos anos 1995 e 1998.

[3] Paraguai ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos em 24 de agosto de 1989.