RELATÓRIO N° 12/03

PETIÇÃO 0322/2001

ADMISSIBILIDADE

COMUNIDADE INDÍGENA SAWHOYAMAXA DO POVO ENXET

PARAGUAI

20 de fevereiro de 2003

 

 

I.        RESUMO

 

1.       Em 15 de maio de 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “a Comissão” ou a “CIDH”) recebeu uma petição apresentada pela organização não governamental Terraviva para os Povos Indígenas de Chaco, TERRAVIVA (doravante denominada “os peticionários”) em representação da  Comunidade Indígena Sawhoyamaxa do Povo Enxet e seus membros, (doravante denominada a “Comunidade Indígena Sawhoyamaxa” ou a “Comunidade Indígena”), contra a República do Paraguai (doravante denominada o “Estado paraguaio” ou o “Estado”). A petição alega que o Estado paraguaio violou os artigos 1 (obrigação de respeitar os direitos), 2 (dever de adotar disposições de direito interno), 8(1) (garantias judiciais), 21 (direito à propriedade privada), 25 (proteção judicial) contemplados na  Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada a “Convenção” ou a ”Convenção Americana”) em detrimento  da Comunidade Indígena e seus membros.

 

2.       Os peticionários argumentam que transcorreram mais de 11 anos desde que deu-se início aos trâmites necessários para a recuperação de parte do território ancestral da  Comunidade Indígena Sawhoyamaxa, sem que, até esta data, este tenha sido resolvido  de forma favorável, apesar da legislação paraguaia reconhecer o direito dos  povos indígenas a desenvolver suas formas de vida em seu próprio habitat e que o Estado não protegeu as terras reivindicadas. Adicionalmente, os peticionários argumentam que os membros da  Comunidade estão  vivendo em condições desumanas, sendo que alguns menores de idade faleceram por falta de alimentos adequados e de atenção médica. Em relação aos requisitos de admissibilidade, os peticionários alegam que sua petição é admissível devido a aplicação das exceções aos requisitos de esgotamento dos  recursos internos previstas no  artigo 46(2) da  Convenção.

 

3.       A sua vez, o Estado, em sua primeira comunicação, expressou que, segundo a política de cooperação da  Chancelaria Nacional com os órgãos internacionais de direitos humanos, se considera que os casos que foram apresentados e que preenchem os devidos requisitos para serem tratados em uma instância internacional tem prioridade para o Governo de Paraguai, e tendo em vista que denúncia em favor da  Comunidade Indígena Sawhoyamaxa possui estas  características , manifestou seu interesse de chegar à uma solução amistosa.

 

4.       A Comissão, depois de analisar a posição das partes e o cumprimento dos  requisitos previstos nos  artigos 46 e 47 da  Convenção, concluiu que é competente para conhecer a reclamação e declarou a petição admissível em relação aos artigos 2, 8(1), 21, 25 da  Convenção, em conjunção com o artigo 1(1) do mesmo instrumento.

 

II.       TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

5.       Em 15 de maio de 2001, a Comissão recebeu a petição contra o Estado paraguaio e em 6 de junho recebeu informação adicional dos  peticionários. Em 7 de junho de 2001, a Comissão transmitiu as partes pertinentes ao Estado e solicitou que, num prazo de 2 meses, apresentasse uma resposta à petição.

 

6.       Em 1° de agosto de 2001, o Estado manifestou seu interesse em  iniciar um processo de solução amistosa e em 2 de agosto a Comissão solicitou aos peticionários que dentro de 15 dias apresentassem as observações que estimassem oportunas.   

 

7.       Em 27 de agosto de 2001, a Comissão convocou as partes à uma reunião de trabalho para o dia 1° de outubro,  a fim de  tratar questões vinculadas à petição, reunião que foi postergada para o dia 13 de novembro. Em 22 de outubro de 2001, o Estado remeteu à Comissão informação adicional, a qual foi encaminhada aos peticionários em 26 de outubro.

 

8.       Em 13 de novembro de 2001, durante o 113° período ordinário de sessões da  Comissão, no  marco de uma reunião de trabalho, as partes subscreveram um “Acordo de  Vontades”.

 

9.       Em 18 de junho de 2002, os peticionários remeteram informação adicional, que foi encaminhada ao Estado para suas observações. Em 28 de junho de 2002, o Estado remeteu informação adicional, a qual foi enviada aos peticionários para suas observações.

 

10.     Em 24 de dezembro de 2002, os peticionários informaram à Comissão sua decisão de retirarem-se do processo de solução amistosa, nota que foi remetida ao Estado em 27 de dezembro, solicitando-lhe que apresentasse seus argumentos de admissibilidade num  prazo de 30 dias.

 

11.     Em 8 de dezembro de 2002, a Comissão, através da  Secretaria Executiva visitou a Comunidade Sawhoyamaxa.

 

12.     Em 27 de janeiro de 2003, o Estado informou à CIDH que apresentaria suas observações à nota da  Comissão datada de  27 de dezembro o mais breve possível, solicitando no dia 29 de janeiro 10 dias para apresentá-las. Em  10 de fevereiro de 2003, o  Estado apresentou suas observações.

 

 

A.      Processo de solução amistosa

         

13.     Em sua primeira nota de resposta o Estado solicitou à CIDH sua  intermediação a fim de chegar a uma solução amistosa entre as partes. Em 13 de novembro de 2001, durante o 113° período ordinário de sessões da  CIDH, as partes firmaram um “Acordo de Vontades”, no qual comprometeram-se a iniciar as negociações no processo de solução amistosa. No  marco deste processo as partes realizaram reuniões em Assunção, Paraguai.

 

14.     Em 24 de dezembro de 2002, os peticionários informaram à Comissão sobre a decisão da  Comunidade Sawhoyamaxa de retirar-se do processo de negociações diretas com o Governo e considerar concluído o acordo de vontades firmado em 13 de novembro de 2001 entre as partes, devido à falta de resultados obtidos durante a solução amistosa oferecida pelo  Estado paraguaio, o tempo transcorrido e a ausência de medidas concretas de reparação às violações denunciadas. O Estado, em suas observações datadas de 10 de fevereiro de 2003, lamentou a decisão dos  peticionários de encerrar o processo de solução amistosa e afirmou sua vontade de continuar realizando os esforços necessários para chegar a uma solução.  Afirmou também que o encerramento do procedimento de solução amistosa e a transferência do caso dos indígenas a uma etapa contenciosa poderia prejudicar ao invés de favorecer o interesse geral dos  direitos dos  povos indígenas.

 

III.      POSIÇÃO DAS PARTES

 

A.      Os peticionários

 

15.     Os peticionários alegam que o Estado paraguaio violou os artigos 1(1), 2, 8(1), 21 e 25 da  Convenção, em detrimento da Comunidade Indígena Sawhoyamaxa do Povo Enxet e seus membros por não restituir à Comunidade parte de suas terras ancestrais. Afirmam que a Constituição paraguaia reconhece o direito dos  povos indígenas a desenvolver suas formas de vida em seu próprio habitat ,[1] mas que até esta data o Estado negou-se a devolver as terras ancestrais da Comunidade Indígena.

 

16.     Os peticionários informam que em 1991 a Comunidade Indígena, através de seus líderes, iniciou gestões administrativas perante os organismos competentes, ou seja, o Instituto de Bem-estar Rural (IBR) e o  Instituto Paraguaio do Indígena (INDI), com o  objetivo de obter a restituição de parte de suas terras ancestrais. As gestões foram efetuadas no marco do procedimento estabelecido pela lei N° 904/81 sobre ”Estatuto de Comunidades Indígenas”, mediante o expediente administrativo N° 7.597/91 do IBR.

 

17.     Os peticionários afirmam que depois de vários anos de gestões, em 1997 o INDI[2] estabeleceu que os trâmites realizados no expediente N° 7.597/91 e o Estudo Antropológico realizado pelo  Centro de Estudos Antropológicos (CEADUC) da  Universidade Católica “Nossa  Senhora de Assunção” demonstravam que a reivindicação solicitada pela  Comunidade Indígena Sawhoyamaxa estava compreendida dentro do habitat tradicional do povo Enxet, afirmando que “cada tempo que passa atenta seriamente contra a integridade do habitat indígena reivindicada por pressão e ação de grupos econômicos interessados nos  recursos da  região oeste e  resolveu  “Apoiar plenamente a reivindicação das Comunidades Indígenas Sawhoyamaxa e sugerir ao IBR dar por terminada a gestão administrativa dentro de seu âmbito e solicitar, conforme o caso, a desapropriação dos  imóveis reivindicados pela  Comunidade Indígena”.

 

18.     Com base na citada resolução do INDI, em 13 de maio de 1997, os líderes da  Comunidade Indígena, com o apoio dos Deputados Andrés Avelino Diaz e Juan Carlos Ramírez Montalbetti, solicitaram perante à Câmara de Deputados do Congresso a sanção de uma lei para a desapropriação de aproximadamente 14.404[3] hectares correspondente a parte de seu habitat tradicional. Em junho de 1998, os deputados que patrocinaram a causa decidiram retirar o projeto-de-lei, frente à decisão negativa da  Comissão de Direitos Humanos e Assuntos Indígenas da  Câmara, e optaram por apresentá-lo em uma nova legislatura parlamentar. Em junho de 1999, os líderes indígenas da  Comunidade solicitaram à Câmara de Senadores, com o patrocínio do então Senador Juan Carlos Ramírez Montalbetti, uma nova solicitação de desapropriação. Em 16 de novembro de 2000, a Câmara de Senadores indeferiu a solicitação de desapropriação mediante a Resolução N° 692.

 

19.     Em relação ao esgotamento de recursos internos, isto é, a via administrativa e legislativa contemplada no  direito interno paraguaio, os peticionários alegam que a Comunidade Sawhoyamaxa tentou todos os meios possíveis, conforme os princípios de direito internacional, para fazer efetivo seu direito à propriedade sobre suas terras tradicionais. 

 

20.     Os peticionários argumentam que embora a Comunidade tenha tido acesso aos recursos previstos pela  jurisdição interna no Paraguai e que interpuseram a tempo e forma tais recursos, estes não mostraram-se efetivos para restituir o direito à Comunidade sobre suas terras. Os peticionários expressam que transcorreram mais de 10 anos desde que a Comunidade Indígena iniciou os trâmites necessários para a reivindicação de parte de seu habitat tradicional perante o Estado do Paraguai, sem que até esta data se tenha chegado à uma solução definitiva para sua petição.

 

21.     Durante o procedimento de reivindicação de seu habitat ancestral e de acordo com a legislação interna do Paraguai, em dezembro de 1993, a Comunidade solicitou uma medida judicial de não inovar e outra de anotação da  litis[4] sobre a propriedade ancestral da  Comunidade, com o objetivo de assegurar seus direitos em relação à propriedade reivindicada. Em julho de 1994, o tribunal concedeu as medidas solicitadas e ordenou sua inscrição no  registro público correspondente. Entretanto, apesar destas medidas de proteção, foi feita uma divisão indiscriminada de aproximadamente 1.250 hectares da  propriedade e transferiu-se o título de domínio para aqueles que apareciam como titulares da área reivindicada.

 

22.     Os peticionários argumentam que as 87[5] famílias que compõem a Comunidade Indígena estão vivendo em condições desumanas na margem da rodovia que une Pozo Colorado a Concepção, estado de Presidente Hayes, Chaco. Os peticionários manifestam que a situação deplorável na  qual vivem os membros da  Comunidade Indígena foi constatada pela  CIDH, durante a visita in loco realizada ao Paraguai no  ano 1999 e durante a visita realizada em dezembro do ano 2002.[6] Afirmam que o Estado paraguaio reconheceu a grave situação médica e alimentar que vive a Comunidade através do Decreto N° 3789/99 de 23 de junho de 1999, que declarou estado de emergência da Comunidade e ordenou que lhe concedesse ajuda médica e alimentar, enquanto durasse o processo de reivindicação de seu habitat tradicional.

 

23.     Apesar da  situação de emergência declarada pelo Poder Executivo, destacam os peticionários que a degradação das condições de vida da Comunidade nestes últimos anos acelerou-se com rapidez, chegando a uma situação limite que põe em perigo sua existência como grupo humano. Assinalam que as epidemias e a desnutrição são em Sawhoyamaxa mais recorrentes e de efeitos mortais, registrando-se mais de dez mortes por doenças curáveis entre crianças e idosos desde 1995. No início de 2001 faleceram três menores de idade por problemas gastrointestinais, produto das condições de vida, entre as quais mencionam a escassez de alimentos e a falta de água potável. Os menores não receberam atenção médica.

 

          24.     Os peticionários manifestam que transcorreram mais de 10 anos desde que a solicitação de reivindicação foi apresentada perante o Estado do Paraguai, e as autoridades nada fizeram para garantir ao menos uma porção mínima de terra para a Comunidade Indígena nem para reparar o despejo da divisão de suas terras ancestrais, incluindo as graves consequências para o bem-estar e a integridade da  Comunidade.

 

B.       O Estado

 

25.     O Estado em sua primeira nota  de observações manifestou:

 

[S]e considera que os casos que foram apresentados preenchendo os devidos requisitos para serem tratados em uma instância internacional são os que identificados desta maneira têm prioridade para o Governo do Paraguai e devem ser atendidos para avançar no  melhoramento  da  situação dos  direitos humanos no  país.

 

Tendo este caso tais características, o Governo do Paraguai deseja chegar a uma solução amistosa com os peticionários, motivo pelo qual solicita à Comissão Interamericana de Direitos Humanos sua intermediação para tal objetivo.

 

26.     O Estado proporcionou à Comissão informação sobre os trâmites administrativos para a aquisição de terras perante o Instituto de Bem-estar Rural (IBR) bem como das ações governamentais efetuadas para ajudar esta Comunidade indígena em virtude do decreto presidencial que os declarava em estado de emergência.

 

27.     O Estado também informou à Comissão sobre o Decreto Presidencial N° 3789/99 de 23 de junho de 1999, através do qual foi declarado  estado de emergência na Comunidade Sawhoyamaxa e ordenou que se concedesse ajuda médica e alimentar. O Decreto estabelece em suas partes pertinentes:

 

Que, a Comunidade Sawhoyamaxa do povo Enxet, composta por sessenta e três famílias, reivindica atualmente 15.000 hectares de seu território tradicional, e a espera da  solução de sua reclamação por parte dos  Organismos do Estado, várias famílias da  Comunidade estão  assentadas à espera na margem da rodovida que une Pozo Colorado e Concepção, perto das terras pretendidas, na altura do quilômetro 100 desta estrada.

[…]

Que, estas Comunidades foram privadas do acesso aos meios de subsistência tradicionais ligados à sua identidade cultural, pela  proibição dos  proprietários ao ingresso destes no  habitat reclamado como parte de seus territórios ancestrais.

 

Que, esta circunstância dirimida atualmente em instâncias administrativas e judiciais, dificulta o normal desenvolvimento da  vida destas Comunidades nativas, em razão da  falta de meios de alimentação e de assistência médica, mínimas e indispensáveis, é uma preocupação do Governo que exige uma resposta urgente aos mesmos.

 

Que, sendo de interesse público a tutela de preservação dos  povos indígenas da  nação conforme claras disposições contidas no  capítulo V da  Constituição Nacional, as leis 904/84 “Estatuto das Comunidadees indígenas” e 234/93 “Que aprova o Convênio 169 da  OIT”, e sendo obrigação do Estado prover assistência pública e socorro para prevenir ou tratar casos de necessidades peremptórias, conforme dispõe a norma citada, deve-se executá-la em favor das Comunidades Indígenas Yakye Axa e Sawhoyamaxa.

 

PORTANTO,

 

O PRESIDENTE DA  REPÚBLICA DO PARAGUAI DECRETA:

 

Artigo 1° Declare-se estado de emergência nas Comunidades indígenas Yaxye Axa e Sawhoyamaxa do Povo Enxet Lengua do Distrito de Pozo Colorado do estado de Presidente Hayes, Chaco Paraguaio.

 

Artigo 2° Disponha-se que o Instituto Paraguaio do Indígena conjuntamente com os Ministérios de Interior e de Saúde Pública e Bem-estar Social executem as ações necessárias para a imediata provisão de atenção médica e alimentar às famílias integrantes das Comunidades citadas, durante o tempo que durem os  trâmites judiciais referente à legislação das terras reclamadas como parte do habitat tradicional das mesmas.

 

28.     Em relação ao processo de reivindicação, o Estado informou que as terras solicitadas pela  Comunidade Indígena foram declaradas parte de seu habitat tradicional pelo  INDI; porém, manifestou em sua nota de 10 de fevereiro de 2003 que a área solicitada pela  Comunidade Indígena tem como proprietário um investidor alemão que recusou, em reiteradas ocasiões às autoridades governamentais, vender sua propriedade ao INDI para que posteriormente esta fosse transferida à Comunidade. Informa também que o proprietário do imóvel está amparado por um tratado entre a República do Paraguai e a República Federal Alemã sobre fomento e recíproca proteção de investimentos de capital, aprovado pelo  Poder Legislativo e promulgado pelo  Executivo, no qual se estabelece que “os investimentos de capital de nacionais ou sociedades de uma das partes contratantes não poderão, no  território da  outra parte contratante, serem desapropriadas, nacionalizadas ou submetidas a outras medidas que, em suas repercussões, equivalem à desapropriação ou nacionalização, mas que por motivo  de utilidade ou interesse público, deverão em tal caso ser indenizadas”.

 

29.     O Estado manifesta que não existe falta de vontade e compromisso do Estado para encontrar a solução para os problemas formulados, “mas sim que, no  caso em questão, o fato de que as terras estejam sob domínio privado e não em terras públicas, além da  difícil situação que atravessa o Estado em matéria financeira, constitui um obstáculo no  processo, sendo que é insolúvel”. O Estado sente-se obrigado a afirmar expressamente  “que o mesmo não obstruído nem interferido negativamente no  procedimento administrativo contra os legítimos direitos da  Comunidade Sawhoyamaxa, seja através de instituição governamental ou seus agentes”. O Poder Executivo, através do INDI, realizou todos seus esforços a favor da  desapropriação da área reivindicada pela  Comunidade Indígena com resultados desfavoráveis  porque o Poder Legislativo não aprovou a desapropriação.

 

          30.     O Estado manifesta que a decisão de retirar-se do procedimento de solução amistosa a que chegaram os membros da  Comunidade Sawhoyamaxa, assessorados pela  organização não governamental TERRAVIVA, “põe em risco a solução definitiva do problema da  terra ao menosprezar os esforços do Estado para reivindicar o direito dos  Sawhoyamaxa, conforme a Constituição, a  Convenção e outros instrumentos internacionais e legais internos”.

 

31.     Em relação aos requisitos de admissibilidade, o Estado argumenta que a petição não é suscetível de ser declarada admissível por falta de esgotamento dos  recursos de jurisdição interna e porque alguns pontos da  denúncia não expõem fatos que caracterizam  violação de direitos, tal como estabelece o artigo 34 do Regulamento.

 

32.     A respeito do primeiro argumento, o Estado afirma que os peticionários não esgotaram os recursos de jurisdição interna e identifica três recursos pendentes: em primeiro lugar, a instituição encarregada de impulsionar a tramitação das terras, ou seja o INDI, planeja solicitar ao novo Congresso Nacional, a ser instalado em julho de 2003, um novo pedido de desapropriação das terras reclamadas pela Comunidade. Em segundo lugar, a compra direta da  propriedade que eventualmente poderia ser negociada com o proprietário, com base numa nova solicitação relativa à extensão da  terra, garantindo o interesse da  Comunidade. Em terceiro lugar, ainda não foi esgotado o mecanismo estabelecido no  Convênio 169 da  Organização Internacional do Trabalho, sobre Povos Indígenas e Tribais, em conjunção com os artigos 14 e 15 da  Lei 904/81 sobre Estatuto das Comunidades Indígenas, com o objetivo de solicitar o prévio, livre e expresso consentimento da  Comunidade para a possibilidade de uma transferência à outras terras de igual extensão e qualidade.

 

33.     O Estado informa que o país conta com a legislação adequada para a proteção do direito ou direitos alegadamente violados na  presente petição, em especial, o direito à propriedade comunitária da  Comunidade Sawhoyamaxa e fundamenta tal afirmação no fato de que a instituição encarregada de impulsionar a tramitação das terras solicitadas pela  Comunidade, ou seja o INDI, atualmente continua realizando gestões  para a aquisição da  propriedade reivindicada pela  Comunidade Indígena. Em relação à demora na solução definitiva da  petição da  Comunidade, o Paraguai manifesta que isto foi justificado pelas razões antes expostas.

 

34.     Com referência à falta de caracterização de violação de direitos e do artigo 2 da  Convenção, o Estado argumenta que foram adotadas todas as medidas necessárias para cumprir com as obrigações derivadas do direito internacional dos direitos humanos, em particular,  no que tange aos direitos de povos indígenas, e no  caso da  Comunidade Sawhoyamaya o Estado adotou a legislação adequada para que hoje a mencionada Comunidade esteja em condições de reclamar suas terras ancestrais. Sobre a suposta violação dos artigos 8 e 25 da  Convenção, o Estado não aceita que os peticionários lhe atribua   a responsabilidade, porque em sede administrativa foram realizadas, com eficácia,  todas as gestões necessárias para que a Comunidade Indígena pudesse interpor a reclamação da  posse e propriedade de suas terras ancestrais. Entretanto, a reivindicação não pôde ser efetiva por problemas orçamentários e a negativa do Poder Legislativo no  presente caso de aceitar o pedido de desapropriação à favor da  Comunidade. Em relação à suposta violação do artigo 21 da  Convenção, manifesta que não desconhece nem rejeita o direito à propriedade comunitária da  terra da  Comunidade Sawhoyamaxa.

 

35.     O Estado argumenta que, tanto o Governo Nacional como as organizações que representam os Sawhoyamaxa, buscam a reivindicação das terras ancestrais das mesmas, razão pela qual recorreu a uma solução amistosa no  procedimento perante a Comissão, e informa que o estado atual de tramitação da  petição da  Comunidade Indígena perante às autoridades paraguaias não implica a denegação de direitos por parte do Estado, mas sim a impossibilidade de fazê-los  efetivos e satisfazer dessa maneira as necessidades básicas da  Comunidade Sawhoyamaxa para que possa desenvolver suas atividades tradicionais.

 

IV.      ANÁLISE SOBRE COMPETÊNCIA E ADMISSIBILIDADE

 

A.      Competência ratione loci, ratione pessoae, ratione temporis e ratione materiae da  Comissão

 

36.     Os peticionários estão facultados pelo  artigo 44 da  Convenção Americana para apresentar denúncias perante a CIDH. A petição assinala  como supostas vítimas indivíduos, ou seja,  a Comunidade Sawhoyamaxa e seus membros[7] para os quais o Paraguai comprometeu-se a respeitar e garantir os direitos consagrados na  Convenção Americana.  No que se refere ao Estado, a Comissão assinala que o Paraguai é um  Estado parte na  Convenção Americana desde 24 de agosto de 1989, data em que depositou o  instrumento de ratificação respectivo.  Portanto, a Comissão tem competência ratione pessoae para examinar a petição. 

 

37.     A Comissão tem competência ratione loci para conhecer a petição, porque a petição alega violações de direitos protegidos na  Convenção Americana que teriam ocorrido dentro do território de um Estado parte neste tratado.

 

38.     A CIDH tem competência ratione temporis, porque a obrigação de respeitar e garantir os direitos protegidos na  Convenção Americana já se encontrava em vigor para o Estado na data em que haviam  ocorrido os fatos alegados na  petição.  

 

39.     Por último, a Comissão tem competência ratione materiae porque na petição se denunciam violações a direitos humanos protegidos pela  Convenção Americana. 

 

B.       Requisitos de admissibilidade

 

1.       Esgotamento dos  recursos internos

 

40.     O artigo 46(1) (a) da Convenção Americana estabelece que para que um caso possa ser admitido é preciso que “se tenha interposto e esgotado os recursos de jurisdição interna, conforme os princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos”.  O artigo 46(2) estabelece exceções ao princípio geral de esgotamento dos  recursos internos, quando a) não exista na  legislação interna do Estado em questão o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos alegadamente violados; b) não se tenha permitido ao suposto ofendido em seus direitos o acesso aos recursos da  jurisdição interna, ou tenha sido impedido de esgotá-los, e c) haja demora injustificada na  decisão sobre os mencionados recursos. A jurisprudência do sistema interamericano é clara em indicar que somente devem ser esgotados aqueles recursos que sejam adequados e eficazes.

 

41.     Em relação à recuperação do território ancestral da  Comunidade Indígena, motivo principal da  petição, a Comissão entende que no Paraguai existem dois procedimentos, um administrativo perante o INDI-IBR e outro legislativo perante o Congresso Nacional. Os peticionários utilizaram ambos.

 

42.   Com efeito,  consta que, no  ano 1991, os peticionários iniciaram perante a instância administrativa respectiva, isto é, o INDI e o IBR, os trâmites contemplados na  legislação interna para a reivindicação do habitat tradicional da  Comunidade, sem conseguir até hoje uma solução definitiva para a petição. Os peticionários também procuraram resolver  o assunto perante o Senado da  República, mas não obtiveram êxito porque os projetos de lei de desapropriação foram rejeitados pelo  Senado, sendo que a última decisão está datada de 16 de novembro de 2000. Sendo assim, passados 11 anos de iniciados os trâmites pertinentes, a Comunidade indígena Sawhoyamaxa ainda não recebeu as suas terras.

 

43.     O Estado, em seus argumentos sobre admissibilidade, manifestou que os peticionários não haviam esgotados estes dois recursos de jurisdição interna e, portanto, a presente petição era inadmissível. A Comissão observa a este respeito que quando o Estado alega a falta de esgotamento tem a obrigação de provar a efetividade dos  recursos que entende não foram esgotados. Em seus argumentos, o Estado não aportou elementos para demonstrar esta asseveração. Os recursos mencionados pelo Estado estão relacionados com as faculdades do Poder Executivo, seja para apresentar um novo projeto de lei de desapropriação perante o Congresso Nacional, seja para realizar novamente uma oferta de compra da área reivindicada pela  Comunidade Indígena ao proprietário. Os dois recursos mencionados pelo  Estado foram utilizados no âmbito interno com resultados negativos e o Estado não demonstrou  nenhuma perspectiva de eficácia.

 

44.     A respeito da  suposta falta de esgotamento do mecanismo estabelecido no  Convênio N° 169 da  OIT em conjunção com a lei paraguaia sobre Estatuto das Comunidades Indígenas, que se refere à falta de solicitação à Comunidade Indígena do seu consentimento quanto a possibilidade de ser transferida à outras terras diferentes daquelas que foram  reivindicadas, a Comissão determina que este não se trata de um recurso de jurisdição interna e, portanto, não deve ser esgotado pelos  peticionários.

 

45.     Assim sendo, dadas as características do presente caso, a Comissão considera que, com relação a via legislativa, foram esgotados os recursos na  jurisdição interna e, no que se refere à  via administrativa, houve uma demora injustificada na sua decisão, razão pela qual aplica-se a exceção prevista no  artigo 46(2)(c).

 

2.       Prazo de apresentação

 

46.     Conforme o artigo 46(1)(b) da  Convenção, toda petição deve ser apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o suposto ofendido tenha sido notificado da  decisão definitiva no âmbito nacional que esgote os recursos da jurisdição interna. O artigo 32 do Regulamento da  Comissão consagra que “nos casos em que sejam aplicáveis as exceções ao requisito do prévio esgotamento dos  recursos internos, a petição deverá ser apresentada dentro de um prazo razoável, a critério da  Comissão.  Para este efeito, a Comissão considerará a data em que tenha ocorrido a suposta violação dos  direitos e as circunstâncias de cada caso”.

 

          47.     No  presente caso, a Comissão pronunciou-se supra sobre a aplicabilidade da  exceção ao requisito de esgotamento dos  recursos internos. A este respeito, a Comissão considera que a petição apresentada à CIDH pelos  peticionários em 15 de maio de 2001 foi interposta dentro de um prazo razoável, tomando em consideração as circunstâncias específicas do presente caso, particularmente o fato de que o Senado rejeitou a solicitação de desapropriação em 16 de novembro de 2000.

 

3.       Duplicação de procedimentos

 

48.     O artigo 46(1)(c) estabelece que a admissão de uma petição está sujeita ao requisito de que o assunto "não esteja pendente de outro procedimento de acordo  internacional"; e o artigo 47(d) estabelece que a Comissão deve declarar inadmissível toda petição que “seja substancialmente a reprodução de uma petição ou comunicação anterior já examinada pela  Comissão, ou outro organismo internacional”. 

 

49.     Não surge do expediente que a matéria da  petição esteja pendente de outro procedimento de acordo internacional, nem que reproduza uma petição já examinada por este ou outro órgão internacional.

 

50.     Portanto, cabe dar por cumpridos os requisitos estabelecidos nos  artigos 46(1)(c) e 47(d) da  Convenção.

 

 

4.       Caracterização dos  fatos alegados

 

51.     O artigo 47(b) da  Convenção Americana estabelece que toda petição que não exponha fatos que caracterizem uma violação dos  direitos garantidos nela deve ser declarada inadmissível.

 

52.     O Estado defende que a denúncia não expõe fatos que caracterizem violações aos direitos humanos e que,  portanto, não violou, como expressam os peticionários, os direitos consagrados nos  artigos 2, 1(1), 8, 25 e 21 da  Convenção Americana.

 

          53.     A Comissão considera que não corresponde nesta etapa do procedimento estabelecer se há uma violação ou não da  Convenção Americana. Para fins de admissibilidade, a CIDH deve decidir se a petição expõe fatos que caracterizam uma violação, como estipula o artigo 47(b) da  Convenção Americana, e se a petição é “manifestamente infundada” ou seja “evidente sua total improcedência”, segundo o  inciso (c) do mesmo artigo.

 

54.     O padrão de apreciação destes requisitos é diferente daquele requerido para decidir sobre o mérito de uma denúncia. A Comissão Interamericana deve realizar uma avaliação prima facie para examinar se a denúncia fundamenta a aparente ou potencial violação de um direito garantido pela  Convenção Americana.  Esta é uma  análise sumária, que não implica prejuízo ou antecipação de opinião sobre o mérito da  controvérsia.  A distinção entre o estudo correspondente à declaração sobre a admissibilidade e aquele  requerido para determinar uma violação está refletido no próprio Regulamento da  CIDH, que estabelece de maneira claramente diferenciada as etapas de admissibilidade e mérito.[8]

 

55.     Em relação à presente petição, a Comissão considera que os argumentos apresentados pelo  Estado requerem uma análise de mérito do assunto, para serem resolvidos. A CIDH não entende, por conseguinte, que a petição seja “manifestamente infundada” ou que seja “evidente sua improcedência”.  Adicionalmente, a CIDH considera que, prima facie, os peticionários preencheram os requisitos do  artigo 47(b) e (c).

 

 

V.      CONCLUSÕES

 

56.     A Comissão conclui que é competente para examinar o caso dos autos e que a petição é admissível conforme o disposto nos artigos 46 e 47 da Convenção Americana.

 

57.       Com base nos  argumentos de fato e de direito antes expostos, e sem prejulgar sobre o mérito do assunto,  

 

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.       Declarar o presente caso admissível no que se refere às possíveis violações de direitos protegidos pelos  artigos 2, 8(1), 21, 25 e 1(1) da  Convenção Americana em detrimento da  Comunidade Indígena Sawhoyamaxa do Povo Enxet e seus membros.

 

          2.       Notificar o Estado e o peticionário desta decisão.

 

          3.         Iniciar o trâmite sobre o mérito do assunto.

 

4.         Publicar o presente relatório e incluí-lo em seu Relatório Anual a ser enviado à Assembléia Geral da OEA.

 

          Dado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., no dia 20 de fevereiro de 2003.  Assinado:  Juan E. Méndez, Presidente; Marta Altolaguirre, Primeira Vice-Presidenta; José Zalaquett, Segundo Vice-Presidente; Comissionados: Robert K. Goldman, Julio Prado Vallejo, Clare Roberts e Susana Villarán.

 


 


[1] Artigo 63. Da  identidade étnica. Fica reconhecido e  garantido o direito dos  povos indígenas a preservar e a desenvolver sua identidade étnica no  respectivo habitat. Tem direito, também, a aplicar livremente seus sistemas de organização política, social, econômica, cultural e religiosa, assim como a voluntária submissão a suas normas consuetudinárias para a regulamentação da  convivência interior sempre que elas não atentem contra os direitos fundamentais estabelecidos  nesta Constituição. Nos  conflitos judiciais  se terá em conta o direito consuetudinário indígena.

Artigo 64. Da  propriedade comunitária. Os povos indígenas têm direito à propriedade comunitária da  terra, em extensão e qualidade suficientes para a conservação e o desenvolvimento de suas formas peculiares de vida. O Estado lhes proverá gratuitamente destas terras, as quais serão inealienáveis, indivisíveis, intransferíveis, imprescritíveis, não suscetíveis à garantia de obrigações contratuais nem de serem arrendadas; além de estarem isentas de tributos.

Proibe-se a remoção ou transferência  de seu habitat sem o expresso consentimento dos  mesmos.

[2] Resolução P.C. N° 138/97 artigo 1°, do Instituto Paraguaio do  Indígena, de 7 de maio de 1997.

[3] O Decreto Presidencial N° 3789 de 23 de junho de 1999 que declarou  estado de emergência para a comunidade Sawhoyamaxa, dispôs que a comunidade reclamava a reivindicação de 15.000 hectares de seu território ancestral.

[4] O artigo 1° da  Lei 43/89 estabelece: Não se admitirá inovação de fato e  de direito em detrimento dos  assentamentos das comunidades indígenas durante a tramitação dos  expedientes administrativos e judiciais a que deram origem à titulação definitiva das terras.

[5] O Decreto Presidencial N° 3789 dispõe que a comunidade está constituida por 63 famílias.

[6] Durante a visita in loco ao Paraguai no  ano 1999, a “CIDH dirigiu-se ao Distrito de Pozo Colorado a fim de reunir-se com as comunidades indígenas Yakye Axa e Sawhoyamaxa do Povo Enxet. A Comissão conheceu a situação deplorável na  qual se encontram estes povos, vivendo na margem da rodovia  nacional sem nenhum tipo de serviços, à espera de que os organismos competentes lhes conceda as terras requeridas. A Comissão valoriza a importância do Decreto Presidencial N° 3789 de 23 de junho de 1999, mediante o qual se declarou estado de emergência destas comunidades indígenas, em virtude da  situação extrema na  qual vivem. Não obstante, a Comissão foi informada por estas comunidades indígenas, que os organismos competentes ainda não adotaram as medidas efetivas ordenadas pelo  Decreto Executivo, para a imediata provisão de atenção médica e alimentar às famílias integrantes desta comunidade. A Comissão acompanhará com atenção o resultado dos  procedimentos iniciados, a fim de dotar as comunidades indígenas das terras requeridas”. Comunicado de Imprensa 23/99 da  CIDH.

[7] Os peticionários aportaram um censo da  comunidade Sawhoyamaxa realizado no ano 1997.

[8] CIDH, Relatório 45/02, Admissibilidade, Petição 12.219, Cristián Daniel Salí Vera e Outros, Chile, 9 de outubro de 2002, par. 32.