RELATÓRIO Nº 82/03

PETIÇÃO 12.330

ADMISSIBILIDADE

MARCELINO GÓMES PAREDES E CRISTIAN ARIEL NUÑEZ

PARAGUAI

22 de outubro de 2003

 

 

I.         RESUMO

 

1.      Em 17 de outubro de 2000, as senhoras Deogracia Lugo de Núñez e Zulma Paredes de Gómez, e as organizações Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), e Serviço Paz e Justiça – Paraguai (SERPAJ-PY) (doravante denominadas “peticionárias”) apresentaram perante à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “a Comissão” ou “a CIDH”), uma petição contra a República do Paraguai (doravante denominada “Paraguai” ou  “o Estado”).

 

2.      As peticionárias alegaram que os menores Marcelino Gómes Paredes e Cristian Ariel Núñez, de 14 anos de idade, desapareceram enquanto prestavam serviço militar obrigatório na  Forças Armadas do Paraguai.

 

3.      O Estado alegou falta de esgotamento dos  recursos da  jurisdição interna.

 

          4.       Após a análise da  petição e de acordo com o estabelecido nos artigos 46 e 47 da  Convenção Americana, bem como nos artigos 30, 37 e concordantes de seu Regulamento, a Comissão decidiu declarar a admissibilidade da  petição em relação à supostas violações dos  artigos 7, 5, 4, 19, 8, 25 e 1(1) da  Convenção Americana, assim como em relação aos artigos I, III, IV e concordantes da  Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas.

 

II.       TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

5.      Em 25 de outubro de 2000, a Comissão encaminhou as partes pertinentes da  denúncia ao Estado paraguaio e, de conformidade com seu Regulamento então vigente, lhe solicitou responder dentro de um prazo de noventa dias. Em 13 de novembro de 2000, o  Estado assinalou que desejava iniciar um processo de solução amistosa. A partir de tal oportunidade deu-se início a uma tentativa de solução amistosa, que incluiu audiências e reuniões de trabalho perante a CIDH, reuniões entre as partes no Paraguai, e remissão à CIDH de informação adicional em diversas oportunidades. Em 13 de maio de 2003, as peticionárias manifestaram à CIDH sua decisão de dar por finalizado o processo de solução amistosa. Em 20 de maio de 2003, a Comissão transmitiu tal comunicação ao Estado, e lhe outorgou dois meses para que apresentasse sua resposta à petição. Em 25 de julho de 2003, o Estado apresentou sua resposta.

 

 

III.      POSIÇÃO DAS PARTES

 

A.       Posição das peticionárias

 

          6.       As peticionárias argumentam que o regime de Serviço Militar Obrigatório (SMO) está vigente no Paraguai desde 1945, e que existe um alto número de acidentes e supostos homicídios de conscritos durante o cumprimento do serviço militar obrigatório. Afirmam que, entre 1989 e 2000, “foram registradas 101 mortes de conscritos durante o SMO, por diversas causas (...). Também houve, no  mesmo período, denúncias por 57 casos de incapacidade física por causa de acidentes ou castigos no  SMO ...”. Indicam que “foram constatados alguns casos de uso do pessoal incorporado em virtude do SMO como mão de obra gratuita e forçada nos trabalhos que beneficiam negócios particulares de oficiais das Forças Militares e Policiais”.

 

          7.       As peticionárias alegam que, não obstante os claros dispositivos legais que proíbem o recrutamento de crianças menores de 18 anos, e as sucessivas denúncias feitas  sobre este tema,  “a utilização por parte das Forças Armadas e Policiais de menores de 12 a 17 anos é uma prática sistemática, constante e numerosa, que até o momento não sofreu nenhuma sanção”.

 

          8.       As peticionárias afirmam que, em agosto de 1997, Marcelino Gómes Paredes e Cristian Ariel Núñez, tinham então 14 anos, apresentaram-se voluntariamente no  Centro de Recrutamento da  cidade de Caguazú, para cumprir com o serviço militar obrigatório nas Forças Armadas do Paraguai. Argumentam que, apesar de a legislação paraguaia requerer autorização judicial de seus pais, devido à idade que possuiam, as Forças Armadas os aceitaram sem ter cumprido com este requisito, e incorporaram ambas crianças para prestar serviço militar como conscritos. Indicam que ambas crianças foram destinadas a cumprir serviço militar no  Posto Militar Nº 1 “Gral. Patricio Colmán”, dependente da  V Divisão de Infantaria, localizada em Gerenza, estado de Alto Paraguai.

 

          9.       As peticionárias assinalam que, em fevereiro de 1998, as famílias de ambas crianças foram notificadas que estes estavam desaparecidos. As Forças Armadas contaram diferentes versões aos familiares, como, por exemplo, que Marcelino havia saído com permissão por oito dias e não havia retornado, e que Cristian Ariel havia roubado um superior, e depois fugiu. Afirmam que as Forças Armadas mudaram posteriormente a versão por uma  outra, segundo a qual ambas crianças se haviam perdido quando foram buscar uma vaca que se havia extraviado, e por último, afirmaram que as crianças tinham desertado, e que não se sabia sobre seu paradeiro.

 

          10.     As peticionárias informam que, em 14 de junho de 2000,  interpuseram uma petição de habeas corpus reparador perante a Corte Suprema de Justiça, solicitando que se ordenasse ao Comandante-Chefe das Forças Armadas do Paraguai a apresentação das  crianças Marcelino e Cristian Ariel. Indicam que, em 19 de junho de 2000, as Forças Armadas alegaram no  expediente relativo a este recurso que as crianças Marcelino e Cristian Ariel desapareceram de um destacamento militar, e que haviam sido procurados sem êxito, motivo pelo qual presumiam que haviam desertado.  Informam que, em 12 de julho de 2000, a Sala Penal da  Corte Suprema de Justiça indeferiu o mencionado recurso.

 

          11.     As peticionárias indicam que, na jurisdição interna, existe uma investigação aberta de ofício pelo  Ministério Público perante o Juiz de Instrução Penal de Filadélfia, estado de Boquerón, para determinar as responsabilidades em relação aos fatos, que estava paralizada. Assinalaram ter conhecimento extra-oficial no sentido de que as Forças Armadas haviam dado baixa por deserção a  Marcelino e Cristian Ariel, a fim de “eximirem-se  das responsabilidades e livrarem-se do caso”.

          12.     As peticionárias alegam que os fatos denunciados configuram a violação por parte do Estado paraguaio dos artigos 4, 5, 7, 19 e 25 da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em conjunção com o artigo 1(1) deste tratado. Argumentam também que o Estado violou a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas.

 

B.      Posição do Estado

 

          13.     O Estado paraguaio alega que seus agentes, autoridades judiciais, promotores e membros das Força Armadas, ao longo do processo de solução amistosa perante a CIDH  realizaram esforços e levaram a cabo procedimentos com a participação dos familiares das supostas vítimas a fim de conhecer o paradeiro destas, afirmando que lamentavelmente tais esforços e procedimentos “não tiveram êxito até esta data”.

 

          14.     O Estado informa que, em sede interna foi aberta uma ação penal, intitulada  “Blas Vera s/ Investigação e Comprovação do  Desaparecimento dos  Conscritos Cristian Ariel Núñez e Marcelino Gómez Paredes na  Lagerenza”. Afirmou que esta ação foi iniciada em  1998, “sob o antigo sistema processual penal”; que mediante auto interlocutório de 1° de dezembro de 2000, o juiz penal a cargo da  causa indeferiu o incidente de arquivamento a favor do réu e que mediante outro auto de 3 de abril de 2002 , o juiz indeferiu outro incidente apresentado pela  parte acusada sobre o fechamento da  etapa sumária. Alegou que o anterior “demonstra o cumprimento do Estado de seu dever de investigar”, e indicou que no mês de julho de 2003, a causa estava “em primeira instância na  etapa plenária”, e que estava na Câmara de Apelações a espera de que fosse resolvida a exceção de extinção da  ação penal interposta pela  defesa.

 

          15.     O Estado informou que os recursos da jurisdição interna ainda não foram  esgotados, e complementou dizendo que

 

os órgãos juidiciários internos devem manifestar-se sobre os fatos denunciados, e se estas decisões não satisfazem os familiares das vítimas, elas, conforme as normas de procedimentos, têm garantido o direito de recorrer das sentenças via apelação ou ações perante a Corte Suprema de Justiça. Uma vez esgotados estes recursos, os familiares tem expedita a via subsidiária de reclamação perante os órgãos do Sistema Interamericano, pois o Estado lhes garante o acesso a estes órgãos de proteção internacional, com a ratificação da  Convenção Americana e outros instrumentos de direitos humanos, bem como a aceitação da  competência contenciosa da  Corte Interamericana de Direitos Humanos.

         

          16.     O Paraguai assinalou que existem atualmente mecanismos que exercem um controle adequado do Serviço Militar Obrigatório, o que demonstra “a abertura ou cooperação das Forças Armadas para facilitar os mecanismos internos de controle, o acesso à informação e os destacamentos militares para observar a situação dos  direitos humanos nestes lugares, fato inédito e sem precedentes no  Paraguai e no hemisfério”.

 

          17.     O Estado mencionou que as organizações não governamentais e inclusive organismos internacionais participam ativamente das Comissões Interinstitucionais do Estado que realizam visitas aos destacamentos militares e são testemunhas dos progressos e dificuldades registradas neste processo.

 

          IV.      ANÁLISE SOBRE A ADMISSIBILIDADE

 

A.      Competência ratione pessoae, ratione materiae, ratione temporis e ratione loci

 

          18.     Segundo o artigo 44 da  Convenção Americana e o artigo 23 do Regulamento da  CIDH, o peticionário tem legitimidade para apresentar petições perante a Comissão em relação a supostas violações dos  direitos estabelecidos na  Convenção Americana. Quanto ao Estado, Paraguai é parte de ambos tratados e, portanto, responde na  esfera internacional pelas violações a este instrumento. As supostas vítimas são pessoas naturais a respeito das quais o Estado comprometeu-se a garantir os direitos consagrados na  Convenção. De maneira que a Comissão tem competência ratione pessoae para examinar a denúncia.

 

          19.     A Comissão tem competência ratione materiae pois a petição refere-se a denúncias de violação dos  direitos humanos protegidos pela  Convenção Americana e pela  Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas.

 

          20.     A CIDH tem competência ratione temporis visto que a obrigação de respeitar e garantir os direitos protegidos na  Convenção Americana e na  Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas, já estavam em vigor para o Estado na data em que ocorreram os fatos alegados na  petição.

 

          21.     A Comissão tem competência ratione loci para conhecer a  petição, visto que nela se alegam violações de direitos protegidos na  Convenção Americana, que teriam  ocorrido  dentro do território de um Estado parte nestes instrumentos.

 

          B.       Requisitos de admissibilidade da  petição

 

a.       Esgotamento dos  recursos internos

 

          22.     A Comissão observa que em 14 de junho de 2000, as peticionárias interpuseram um habeas corpus perante a Corte Suprema de Justiça do Paraguai, que foi indeferido mediante decisão decretada pela  Sala Penal da  Corte Suprema de Justiça em 12 de julho de 2000. A este respeito, a Comissão considera que a interposição e decisão deste habeas corpus é suficiente para considerar esgotado o recurso interno idôneo e eficaz para tratar de resolver a  situação de violação de direitos humanos formulada, ou seja, o denunciado desaparecimento de Marcelino Gómes Paredes e Cristian Ariel Núñez.

 

          23.     Em relação ao esgotamento de recursos internos em casos de desaparecimentos forçados, a Corte Interamericana de Direitos Humanos entende que "...segundo o objeto e finalidade da  Convenção, de acordo com a interpretação do artigo 46.1.a. da  mesma, o recurso adequado em caso de desaparecimento forçado de pessoas, seria normalmente o de exibição pessoal ou habeas corpus, visto que nestes casos é urgente a atuação das autoridades (e é)...o recurso adequado para buscar uma pessoa supostamente detida pelas autoridades, averiguar se foi legalmente detida e, conforme o caso, providenciar sua liberação".[1]  Portanto, a interposição do recurso de habeas corpus, em casos de pessoas detidas e posteriormente desaparecidas, em que o resultado foi negativo por não ter sido localizadas as vítimas, é requisito suficiente para determinar que foram esgotado os recursos internos.[2]

 

          24.     Com referência ao processo penal pendente para determinar a responsabilidade pelo  alegado desaparecimento das supostas vítimas na  petição sob estudo, com base no  qual o Estado defende a falta de esgotamento dos  recursos internos, a Comissão reitera que tratando-se de uma situação de alegado desaparecimento forçado, a interposição e decisão de um recurso de habeas corpus é suficiente para que dar por esgotados os recursos internos.

 

          25.     A Comissão conclui que, com a decisão emitida pela  Sala Penal da  Corte Suprema de Justiça em 2 de julho de 2000, desacolhendo o habeas corpus interposto em favor dos menores Marcelino Gómes Paredes e Cristian Ariel Núñez, foram esgotados os recursos da  jurisdição interna.

 

b.      Prazo para a apresentação da  petição

 

          26.     A Comissão observa que o mencionado habeas corpus foi concluído mediante a sentença da  Sala Penal da  Corte Suprema de Justiça de 12 de julho de 2000, sendo que a petição foi apresentada à CIDH em 17 de outubro de 2000, dentro do prazo de seis meses estabelecido no  artigo 46 (1)(b)  da  Convenção Americana. 

 

c.       Duplicidade de procedimentos e coisa julgada

 

27.     A Comissão entende que do expediente não surge que a matéria da  petição esteja pendente de outro procedimento de acordo internacional e não recebeu nenhuma informação que indique a existência de uma situação dessa índole, nem que reproduza uma petição já examinada por este ou outro órgão internacional.  Portanto, a Comissão considera que foram satisfeitos os requisitos estabelecidos nos  artigos 46(1)(c) e 47(d) da  Convenção.

 

d.      Caracterização dos  fatos

 

          28.     A Comissão considera que a exposição do peticionário refere-se a fatos que, se provados verdadeiros poderiam caracterizar uma violação aos direitos à  liberdade pessoal, à integridade pessoal, à vida, à proteção especial da infância, à garantias judiciais e à proteção judicial, consagrados nos artigos 7, 5, 4, 19, 8 e 25 da  Convenção Americana, e a obrigação de respeitar os direitos a que se refere o artigo 1(1) deste tratado. Tais fatos poderiam também constituir violação dos artigos I, III, IV da  Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas.

 

 

V.      CONCLUSÃO

 

          29.     A Comissão Interamericana conclui que tem competência para conhecer o mérito deste caso e que a petição é admissível de conformidade com os artigos 46 e  47 da  Convenção Americana e os artigos 30, 37 e correlatos de seu Regulamento.

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.       Declarar, sem prejulgar o mérito da  presente denúncia, que a petição é admissível em relação aos fatos denunciados e os  artigos 7 (direito à liberdade pessoal), 5 (direito à integridade pessoal), 4 (direito à vida), 19 (direitos da criança), 8 (direito à garantias judiciais) e 25 (direito à proteção judicial) da  Convenção Americana, e a obrigação de respeitar os direitos a que se refere o artigo 1(1) deste tratado. A Comissão declara igualmente que a petição é admissível em relação aos artigos I, III, IV e correlatos da  Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas.

 

2.       Remeter o presente relatório ao Estado e ao peticionário.

 

3.       Publicar o presente relatório e incluí-lo em seu Relatório Anual a ser enviado à Assembléia Geral da OEA.

 

Dado e assinado na  sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na  cidade de Washington, D.C., no dia 22 de outubro de 2003.  (Assinado): José Zalaquett, Presidente, Clare K. Roberts, Primeiro Vice-Presidente, Susana Villarán, Segunda Vice-Presidente e Comissionados Robert K. Goldman e Julio Prado Vallejo.

 


 


[1] Corte IDH, Caso Velásquez Rodríguez, Sentença de 29 de julho de 1988, par. 65, e Caso Caballero Delgado e Santana. Exceções Preliminares, Sentença de 21 de janeiro de 1994, par. 64.

[2] Corte IDH, Caso Caballero Delgado e Santana, ob. cit, par. 67.