RELATÓRIO N° 17/03

PETIÇÃO 11.823

INADMISSIBILIDADE

MARÍA ESTELA ACOSTA HERNÁNDEZ E OUTROS

(EXPLOSÕES NO SETOR REFORMA DE GUADALAJARA)

MÉXICO

20 de fevereiro de 2003

 

 

I.        RESUMO

 

1.       Em 10 de outubro de 1997, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “a CIDH” ou “a Comissão”) recebeu uma denúncia apresentada pela  Associação Jalisciense de Direitos Humanos (“AJDH”) e a Comissão Mexicana de Defesa e Promoção dos  Direitos Humanos (doravante denominada conjuntamente, os “peticionários”), contra os Estados Unidos Mexicanos (doravante denominado “o Estado” ou “o Estado mexicano”).  A denúncia alega que o Estado é responsável pelas explosões que ocorreram em 22 de abril de 1992 no  Setor Reforma da  cidade de Guadalajara, estado de Jalisco e resultou na  morte de María Estela Acosta Hernández e pelo menos mais 223 pessoas, além de numerosos feridos e danos materiais.  Os peticionários imputam responsabilidade do Estado pela  negligência de empregados da  empresa pública Petróleos Mexicanos (PEMEX), os quais acusam de ter causado um derrame de 1,2 milhões de litros de hidrocarbureto no aqueduto do  Setor Reforma de Guadalajara, o qual desencadeou as explosões.  Adicionalmente, alegam que o Estado é responsável pela  posterior falta de investigação dos  fatos e a consequente impunidade, e ainda por atos de repressão e intimidação contra pessoas e organizações que reclamavam justiça pelas explosões.

 

2.       Os peticionários alegam que os fatos violam os  seguintes direitos protegidos pela  Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada “a Convenção Americana”): direito à vida (artigo 4), direito à integridade pessoal (artigo 5), direito à liberdade pessoal (artigo 7), garantias judiciais (artigo 8), direito à proteção da  honra e dignidade (artigo 11), direito à liberdade de expressão (artigo 13), direito de reunião (artigo 15), direito de associação (artigo 16), direito de propriedade (artigo 21), direito de circulação (artigo 22), direito de igualdade perante a lei (artigo 24) e proteção judicial (artigo 25).  O Estado, por sua vez, argumenta que a petição foi apresentada de forma extemporânea, pois a sentença definitiva da  jurisdição interna foi prolatada em 28 de janeiro de 1994 e que, de todas as maneiras, não foram esgotados vários recursos disponíveis na  legislação mexicana.  Por outro lado, o Estado defende que os fatos não caracterizam violações de direitos humanos que lhe podem ser imputáveis, e assim solicita que a petição seja declarada inadmissível.

 

          3.       Neste relatório, a Comissão analisa a informação disponível à luz da  Convenção Americana e conclui que a petição foi apresentada fora do prazo de seis meses previsto no  artigo 46(1)(b).  Portanto, decide que a petição é inadmissível sob o artigo 47(a) da  Convenção Americana; transmite o relatório as partes; e determina sua publicação no  Relatório Anual da  Comissão.

 

 

II.       TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

          4.       Durante sua visita in loco a México em julho de 1996, a CIDH recebeu  informação de caráter geral da  AJDH acerca dos  fatos sob estudo.  Logo após uma solicitação de informação ao Estado, a Comissão Interamericana arquivou este expediente.

 

5.       A nova petição apresentada em 10 de outubro de 1997 pela  AJDH e a CMDPDH foi registrada sob o número 11.823.  Em 17 de novembro do mesmo ano a Comissão Interamericana solicitou informação ao Estado sobre os fatos alegados pelos  peticionários.  Em 24 de outubro de 1997, os peticionários apresentaram documentos adicionais, que foram  incorporados ao expediente da  petição.  A resposta do Estado foi apresentada em 13 de fevereiro de 1998 e suas partes pertinentes foram encaminhadas aos peticionários em 26 de fevereiro deste ano.  

 

6.       As observações dos  peticionários foram remetidas à CIDH em 25 de março de 1998 e enviadas ao Estado mexicano em 29 de abril de 1998.  Os peticionários apresentaram documentos complementares de suas observações em 30 de abril de 1998, que foram  incorporados ao expediente da  petição.  A pedido do Estado, a CIDH concedeu uma prorrogação, e as correspondentes observações foram apresentadas em 6 de julho de 1998.

 

          7.       Em 14 de setembro de 1998, a Comissão Interamericana remeteu ao Estado as partes pertinentes das observações dos  peticionários de 17 de agosto de 1998.  Em 20 de outubro de 1998, a Dra. Guadalupe Morfin Otero, Presidenta da  Comissão Estatal de Direitos Humanos de Jalisco, enviou à CIDH informação adicional vinculada com a petição 11.823, que foi incorporada ao expediente. 

 

8.       Em 14 de outubro de 1998, o Estado mexicano remeteu suas observações, cujas partes pertinentes foram encaminhadas aos  peticionários em 26 de outubro do mesmo ano.  Em 14 de abril de 1999, os peticionários solicitaram que a CIDH efetue uma “intermediação” a fim de alcançar um acordo sobre o assunto.  Em 11 de junho de 1999, a Comissão Estatal de Direitos Humanos de Jalisco apresentou uma série de documentos vinculados às explosões no Setor Reforma de Guadalajara, que foram incorporados ao expediente. 

 

         

III.      POSIÇÕES DAS PARTES A RESPEITO DA ADMISSIBILIDADE

 

A.      Os peticionários

 

9.       Na  comunicação que deu início ao trâmite deste assunto, os peticionários descrevem os  fatos ocorridos depois das 10 da  noite de 22 de abril de 1992 como “a pior tragédia na  história de Guadalajara”.  Nesta data explodiu o Coletor Intermediário Oriental  (parte do aqueduto urbano profundo) que afetou 12.5 quilômetros de ruas e avenidas densamente povoadas do Setor Reforma desta cidade.  Os peticionários apresentaram cinco listas de vítimas que contêm, respectivamente, os nomes dos  224 falecidos conforme dados oficiais, as 15 pessoas denunciadas como desaparecidas, as 12 vítimas sobreviventes, os 30 “afetados e simpatizantes” do “Movimento Civil de Vítimas do 22 de abril A.C.”, e os nomes das organizações não governamentais que foram objeto de represálias por reclamar os direitos das vítimas.

 

10.     Os peticionários imputam às autoridades do Governo de Jalisco “direta responsabilidade administrativa, penal, civil e ecológica” por não ter evacuado a população civil do Setor Reforma de Guadalajara nos  dias e horas prévios às explosões, pois consideram que tinham pleno conhecimento dos  “riscos e previsíveis contingências” que poderiam resultar das emanações dos esgotos.  Alegam que o Governo Federal é responsável pela omissão porque não se aplicou as normas e procedimentos administrativos da  “Lei Geral do Equilíbrio Ecológico e a Proteção ao Ambiente”.  Igualmente consideram os peticionários que o Estado mexicano é responsável pela  denegação de justiça, pois “recusou assumir suas obrigações legais, administrativas e humanitárias para as vítimas e os sobreviventes a fim de providenciar-lhes –sem preferências, nem exclusões --o auxílio suficiente, o ressarcimento, as indenizações e o  acesso à justiça” para as vítimas e suas famílias.

 

          11.     Os peticionários invocam as disposições da  Convenção Americana e outros instrumentos internacionais que protegem o direito à vida, o direito à integridade pessoal, direito à liberdade pessoal, garantias judiciais, direito à proteção da  honra e dignidade, direito à liberdade de expressão, direito de reunião, direito de associação, direito de propriedade, direito de circulação, direito de igualdade perante a lei e proteção judicial.  Entretanto, a CIDH observa que não apresentam alegações específicas acerca da  suposta violação da  maior parte destas disposições.  Entre outras coisas, manifestam que “não foram centenas mas milhares de pessoas mortas e desaparecidas” e que “depois de 22 de abril del 92, os habitantes da cidade não eram mais os mesmos, pois perdemos nossa tranquilidade, unidade, convivência, patrimônio e a identidade pacífica e cortês que nos distinguía entre os mexicanos” (direito à integridade pessoal).  Alegam que “o direito às garantias judiciais foi o que mais sofreu violação no presente caso” pelos  seguintes motivos:

 

As vítimas que foram enunciadas nesta nota foram privadas de acesso a um julgamento justo, imparcial e rápido que lhes permitisse protegerem-se contra os atos violatórios e ilegais com que o governo do México eximiu-se  de suas responsabilidades em relação à população de S.R. de Guadalajara, motivo pelo qual esta CIDH deverá estabelecer os meios que o direito internacional dos  direitos humanos outorga à tais pessoas e grupos.  A imparcialidade e independência dos  juizados federais mexicanos que interviram no caso ficou para nós implícito, razão suficiente para interpor esta denúncia.[1]

 

12.     Quanto ao requisito do artigo 46(1)(a) da  Convenção Americana, os peticionários alegaram inicialmente que “tanto os recursos judiciais como os não judiciais” haviam sido “basicamente esgotados” no México e, simultaneamente, que havia demora injustificada na  decisão dos  mesmos.[2]   Depois da resposta do Estado, os peticionários afirmaram:

 

O arquivamento do Processo 70/92 decretado pelo Tribunal Federal do Terceiro Circuito determinou a  ausência de responsabilidade dos  9 funcionários inicialmente processados e a liberação dos  trabalhadores de PEMEX, do SIAPA e da Prefeitura de Guadalajara (que ficaram submetidos 21 meses à prisão preventiva).  Entretanto, o arquivamento do citado e único julgamento instaurado até hoje implicou na denegação de justiça, pois injustificadamente não se resolveu o mérito da  matéria,  favorecendo as pessoas acusadas nos pareceres do  Ministério Público Federal (MPF)  e deixando sem justiça pronta e célere milhares de vítimas e demandantes, bem como a cidade de Guadalajara.[3]

 

13.     Os peticionários ampliaram os seus argumentos a respeito da aplicabilidade das exceções ao esgotamento dos  recursos internos:

 

Como apelar ou interpor um amparo contra uma resolução que decretava o arquivamento e a liberdade imediata dos acusados cujo texto e fundamento lhes era desconhecido?  Que fazer contra as resoluções do MPF ou a PGR  [Procuradoria Geral da  República] que eram consideradas –naquela época-- inapeláveis?  E mais ainda, Como amparar-se contra os atos de um juiz e um “representante social” que atuava como advogado do Governo e dos acusados, que nunca avisou aos ofendidos para fazer valer seus recursos nem lhes informou sobre como fazê-lo?  Enfim, que podiam as ONG fazer  por si mesmas e para os prejudicados se careciam de personalidade jurídica  para atuar como parte dentro de um proceso judicial cujo objetivo e resultado lhe interessava, mas cujo procedimento lhes negava acesso?[4]

 

          14.     Adicionalmente, os peticionários alegam que não foram investigados todos os delitos cometidos, nem pode-se saber de maneira exata o número total de vítimas, devido à negligência e encobrimento das autoridades.  Ressaltam que o processo 70/92 esteve viciado desde o princípio e que, ao desacolher o parecer do Ministério Público Federal e arquivar o expediente, o juiz incorreu em uma conduta ilegal.  Analisam detalhadamente a conduta de todos os procuradores federais e estatais que intervieram, bem como dos  funcionários públicos de distintos níveis, incluindo os Presidentes da  República e Governadores de Jalisco que ocuparam estas funções desde a data dos  fatos até 1998.[5]  Solicitam que a CIDH rejeite os argumentos referentes ao atraso da apresentação da  petição, a declare admissível e determine a responsabilidade internacional do Estado mexicano pelos  fatos ocorridos em 22 de abril de 1992.

 

B.       O Estado

 

          15.     A primeira resposta apresentada pelo  Estado à petição refere-se ao pedido de declaração de inadmissibilidade por apresentação extemporânea da mesma.  O Estado afirma:

 

          Em 28 de janeiro de 1994, o Sexto Juiz em Matéria Penal do Estado de Jalisco suspendeu a causa penal 70/92, em virtude da qual os trabalhadores de Petróleos Mexicanos, Juan Antonio Delgado Escareño, José Adán Ávalos Solórzano, Ángel Bravo Rivadeneyra e Roberto Arrieta Maldonado, que estavam sendo processados na citada ação penal, obtiveram a liberdade, isto é, os peticionários apresentam esta petição 45 meses depois de conhecer a resolução definitiva que determinou a inexistência de responsabilidade dos réus, sendo que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos somente permite a apresentação da petição em um tempo não maior de seis meses a partir da data da  decisão final que tenha sido tomada pela autoridade.  Cabe destacar que da informação proporcionada pelos peticionários, esta resolução judicial não foi apelada, razão pela qual transitou em julgado.

 

            Sendo assim, o Governo de México considera que a questão jurídica principal que se depreende da comunicação dos  peticionários, a qual se refere as prováveis omissões e negligências que poderiam ter incorrido os trabalhadores de Petróleos Mexicanos que levaram ao acidente de 22 de abril de 1992, não foi aceita judicialmente pelo  Juiz da  causa ao decretar a arquivamento  do processo e a liberação dos  prováveis responsáveis, bem como a ratificação tácita da  resolução judicial, realizada pelos  peticionários, ao não ter solicitado ao Ministério Público, em seu carácter de coadjuvantes, que impugnara em tempo e forma o citado ato judicial.[6]

 

16.     O Estado argumenta ademais que “no  ordenamento jurídico nacional existem recursos judiciais internos que os peticionários não esgotaram em seu momento para imputar a PEMEX a responsabilidade penal dos  fatos ocorridos em 22 de abril de 1992”.[7]  No final de 1996, afirma o Estado, a Comissão Nacional de Direitos Humanos declarou totalmente cumprida a Recomendação 57/94 sobre este assunto; a queixa dos  peticionários a respeito da conduta dos  funcionários da  CNDH foi apresentada 10 meses depois de conhecer esta declaração de cumprimento.

 

17.     Sem prejuízo do mencionado anterior, o Estado aborda em sua resposta uma série de questões como “informação preliminar”.  Isto inclui uma descrição da  natureza jurídica de PEMEX e a legislação aplicável à indústria petroleira, bem como algumas “observações sobre as afirmações vertidas na petição referentes a Petróleos Mexicanos”.  O Estado afirma:

 

Os pareceres periciais prestados pelos  peritos propostos pela  defesa dos  acusados concluíram que o sistema de proteção do aqueduto  Salamanca-Guadalajara (no  qual no dia 22 de abril de 1992 houve uma fuga de gasolina Nova), funcionava normalmente até antes da  explosão dos  coletores e a fuga que ocasionada no  citado aqueduto foi posterior ao fechamento, bem como das explosões ocorridas.  Isto ficou  evidenciado pelo  resultado obtido das amostras de água tomadas nos  coletores antes da s 14:00 horas da  data citada.

 

(…)

 

O juiz da  causa penal 70/92 declarou encerrada a instrução no dia 3 de novembro de 1993, solicitando ao Ministério Público Federal que formulasse suas conclusões, o que aconteceu no  dia 5 de janeiro de 1994, sendo que estas não eram acusatórias, isto é, que pelas provas colhidas  durante o processo ficaram desvirtuados os elementos que no  momento da  consignação dos fatos e das pessoas detidas, configuraram os possíveis delitos antes referidos.  Em 27 de janeiro de 1994, o Procurador Geral da  República ratificou as conclusões não acusatórias.

 

Consequentemente, o juiz perante o qual tramitava a ação penal, em 28 de janeiro de 1994, decretou o arquivamento da causa, a qual restou sem matéria pela falta de elementos que sustentassem a suposta responsabilidade dos réus.

 

Em face do exposto,  a Petróleos Mexicanos não tem  responsabilidade pelos fatos ocorridos em 22 de abril de 1992; o pessoal desta empresa, contra os quais foram imputados, por omissão, fatos supostamente delitivos, recobrou sua liberdade plena ao ser decretado o arquivamento da  arquivamento da  causa penal, decisão que transitou em julgado e teve todos seus efeitos legais.[8]

 

18.     De acordo com o Estado, na  zona metropolitana de Guadalajara estavam assentadas umas 21,750 empresas, que “por sua atividade contribuiam para  incrementar o fluxo de deságue dos aquedutos”, que havia piorado com a presença de um total de 900.000 veículos na  cidade nessa época.  Consequentemente, alega que “não é possível  atribuir às plantas de armazenamento e distribuição de Petróleos Mexicanos a responsabilidade de toda fuga de hidrocarburetos que contamine as águas dos aquedutos”. [9]   O Estado destaca adicionalmente que a PEMEX “assumiu uma atitude de colaboração com a comunidade afetada” mediante a doação de verbas destinadas à reparação de danos e pagamento de indenizações, embora alegue que “estes atos de solidariedade realizados pela PEMEX em relação às vítimas foram atos de boa-fé, pois não estava obrigado juridicamente a isto”.  

 

19.     Na  mesma nota, o Estado inclui uma relação dos processos civis em trâmite contra PEMEX.  Igualmente resume o trâmite efetuado pela  Comissão Nacional de Direitos Humanos a partir da  queixa apresentada pela  AJDH, devido aos  atropelos que havia sofrido em 1o. de junho de 1992 um grupo de manifestantes do “Movimento Civil de Vítimas de 22 de abril”, que resultou na  Recomendação N° 57/94.  Segundo esta recomendação, o Governador de Jalisco foi chamado a realizar todas as diligências para o esclarecimento dos  fatos, a identificação e submissão à justiça dos  responsáveis, todos eles integrantes da  Direção Geral de Segurança Pública de Jalisco.

 

20.     Por último, o Estado argumenta que a denúncia apresentada à CIDH tem por objeto “demonstrar que os servidores públicos pertencentes à citada paraestatal foram os responsáveis diretos da  tragédia que lamentavelmente ocorreu em 22 de abril de 1992”; e que o arquivamento da  causa penal 70/92 controverte desta posição, assim como o motivo que originou a petição.

 

 

IV.      ANÁLISE

 

A.      Competência ratione materiae, ratione pessoae e ratione temporis da  Comissão

 

21.     Os peticionários estão facultados pelo  artigo 44 da  Convenção Americana para apresentar denúncias perante a CIDH. A petição assinala  como supostas vítimas indivíduos, para os quais o México comprometeu-se a respeitar e garantir os direitos consagrados na  Convenção Americana.  Os fatos alegados na  petição ocorreram quando a obrigação de respeitar e garantir os direitos estabelecidos na  Convenção Americana já se encontrava em vigor para o Estado. Portanto, a Comissão tem competência ratione pessoae para examinar a petição.

 

22.     A Comissão tem competência ratione loci para conhecer a petição, porque a petição alega violações de direitos protegidos na  Convenção Americana que teriam ocorrido dentro do território de um Estado parte neste tratado. A CIDH tem competência ratione temporis, porque a obrigação de respeitar e garantir os direitos protegidos na  Convenção Americana já se encontrava em vigor para o Estado na data em que haviam  ocorrido os fatos alegados na  petição. Por último, a Comissão tem competência ratione materiae porque na petição se denunciam violações a direitos humanos protegidos pela  Convenção Americana.

 

          B.       Requisitos de admissibilidade da  petição

 

          23.     A petição  sob exame da CIDH formula  uma controvérsia a respeito do cumprimento dos  requisitos de admissibilidade previstos no  artigo 46(1)(a) e (b) da  Convenção Americana.  Igualmente, o Estado alega que os fatos não caracterizam uma violação de direitos protegidos por este instrumento internacional.

 

          a.       Esgotamento dos  recursos internos

 

24.     A Corte Interamericana de Direitos Humanos entende que “a regra do prévio esgotamento dos  recursos internos permite ao Estado resolver o problema segundo seu  direito interno antes de ver-se enfrentado um processo internacional, o qual é especialmente válido na  jurisdição internacional dos  direitos humanos”.[10]  Tais recursos devem  ser adequados, ou seja,  que “sua função dentro do sistema de direito interno seja idônea para proteger a situação jurídica infringida” [11]

 

25.     A CIDH deve determinar  primeiramente qual era o recurso idôneo no México para remediar o presente assunto.  As explosões que tiveram lugar no  Setor Reforma de Guadalajara, em 22 de abril de 1992, formularam uma questão muito complexa, com impacto sobre um grande número de habitantes desta cidade.  Os peticionários imputam responsabilidade ao Estado mexicano em tais fatos devido à negligência de suas autoridades, em particular, os diretores e empregados da  empresa pública PEMEX que eram responsáveis pela gerência dos  hidrocarburetos. 

 

26.     Conforme a informação disponível no  expediente, a Procuradoria Geral da  República decidiu exercer sua faculdade de atração e iniciou uma investigação federal que serviu de base à causa penal 70/92.  Neste procedimento buscou-se determinar a responsabilidade dos  empregados e diretores da PEMEX que foram assinalados preliminarmente, e foram investigados os fatos.  Adicionalmente, tanto o Estado como os peticionários estão de acordo em que foram iniciadas paralelamente uma série de demandas civis e outros procedimentos vinculados aos fatos de 22 de abril de 1992 em Guadalajara.

 

27.     Conforme mencionado acima, os peticionários alegaram inicialmente que os recursos internos haviam sido “basicamente esgotados” e que dirigiram-se ao sistema interamericano porque não restavam “outros meios a interpor” no México.  Em face da resposta do Estado mexicano sobre a apresentação extemporânea, os peticionários ampliaram seus argumentos e alegaram a aplicabilidade das exceções previstas no  artigo 46(2) da  Convenção Americana.  Alegaram também que eles foram impedidos de aceder ao expediente porque atuavam como organização da  sociedade civil e não como representantes legais das vítimas.  Por tal motivo, alegam, não tiveram conhecimento do resultado da  investigação e estavam  impossibilitados de apresentar um amparo contra a decisão do Ministério Público de não exercer a ação penal contra os supostos responsáveis pelos fatos.

 

          28.     A CIDH observa que a petição foi apresentada em favor de todas as pessoas que faleceram, os feridos e os demais habitantes do Setor Reforma de Guadalajara que resultaram afetados pelas consequências das explosões de 22 de abril de 1992.  Os peticionários não detalham os seus argumentos a respeito da situação específica de cada uma das supostas vítimas individuais, nem acerca de cada um dos  fatos considerados de maneira particular.  Portanto, a idoneidade do recurso a ser esgotado deve ser determinada tomando em  consideração os fatos denunciados em seu conjunto, e a totalidade das pessoas que os peticionários apresentam como vítimas. 

 

29.     A questão principal neste assunto, na opinião da Comissão Interamericana,   refere-se à investigação da possível  responsabilidade direta dos  empregados e diretores da PEMEX nos fatos, bem como a responsabilidade em que poderiam ter incorrido outros funcionários estatais e federais depois de abril de 1992.  O procedimento iniciado pela  PGR que deu  origem à causa penal 70/92 relaciona-se, a critério da CIDH, com os elementos de idoneidade e efetividade requeridos conforme a jurisprudência do sistema interamericano para  efeito de esclarecimento dos  fatos, a determinação de responsabilidade pelos  mesmos e, eventualmente, a sanção dos culpados e a reparação às vítimas.

 

30.     A informação disponível neste expediente revela que nenhuma das outras ações civis, procedimentos e gestões extrajudiciais iniciados por particulares ou pelos  peticionários englobou de maneira total os fatos aqui analisados.  Portanto, nenhuma delas poderia ter resultado na  determinação de responsabilidade do Estado mexicano por todos os fatos denunciados pelos peticionários nem na reparação às vítimas que aparecem nas listas apresentadas por estes.  Os argumentos dos  peticionários sobre as exceções ao esgotamento dos  recursos internos referem-se  fundamentalmente à demora e falta de eficácia de todos estes procedimentos acessórios, motivo pelo qual a Comissão Interamericana estima que não são aplicáveis à matéria fundamental deste caso.

 

31.     Com base no exposto anteriormente, a CIDH conclui que os recursos da  jurisdição interna neste caso foram esgotados em 28 de janeiro de 1994 mediante a sentença do Juiz Sexto em Matéria Penal que arquivou a ação penal 70/92.

 

          b.       Prazo de apresentação

 

32.     Ao referir-se ao artigo 46(1)(b) da  Convenção Americana, a CIDH entende que o prazo de seis meses “tem um propósito duplo: assegurar a certeza jurídica e proporcionar à pessoa envolvida tempo suficiente para considerar sua posição”.[12]  Por tratar-se de um prazo convencional, sua estrita observância é de indubitável importância dentro do sistema de petições individuais.  Contudo, deve ter-se presente que a Convenção Americana tem como objeto a proteção dos  direitos fundamentais da  pessoa humana, motivo pelo qual a jurisprudência do sistema interamericano determinou que pode-se aplicar alguma flexibilidade aos prazos processuais, segundo as circunstâncias do caso concreto e dentro de certos limites razoáveis.

 

33.     No  presente caso, o prazo de seis meses deve ser contado a partir da  notificação da  sentença que esgotou a jurisdição interna, ou desde a data em que os peticionários tomaram conhecimento dela.  Conforme mencionado anteriormente, esta sentença foi emitida em 28 de janeiro de 1994, e o expediente revela que os peticionários tiveram conhecimento imediato da  mesma:

 

Ao conhecer a decisão, a cidade sobressaltou-se pois já levava um ano e 9 meses a espera do resultado do longo processo iniciado durante o Presidente [Carlos Salinas de Gortari] no  Poder Judicial da  Federação. (...)  `A espera de melhores dados, diversos grupos civis --entre eles nossa  ONG--  e representantes de diversos partidos políticos da  cidade nos dirigimos ao Edifício da  PGR em Guadalajara em 29 e 30 de janeiro.[13]

 

34.     Adicionalmente, em 7 de fevereiro de 1994, os peticionários apresentaram uma nota à Comissão Nacional de Direitos Humanos na qual reclamavam sobre a  atuação das autoridades judiciárias e do Ministério Público na  investigação das explosões.  Nesta nota, os peticionários manifestam sua confiança na  intervenção da  CNDH, e esclarecem que “já estamos preparando o trâmite perante as instâncias internacionais, pois a gravidade dos  fatos merece esta providência”.[14]

 

35.     Apesar do exposto, a petição que deu origem ao expediente P11.823 foi recebida em 10 de outubro de 1997 na  sede da  Comissão Interamericana.  Esta data excede amplamente o prazo de seis meses desde a  sentença final da  jurisdição interna, motivo pelo qual a petição não reúne o requisito previsto no  artigo 46(1)(b) da  Convenção Americana.

 

         

V.      CONCLUSÕES

 

36.     A CIDH determina no  presente relatório que foram esgotados os recursos internos, mas a petição foi apresentada fora do prazo previsto na  Convenção Americana.  Uma vez que a Comissão Interamericana conclui que o caso é inadmissível pela  falta de cumprimento de um dos  requisitos previstos nesta Convenção, não é necessário pronunciar-se a respeito dos demais requerimentos.

 

          37.     A Comissão conclui que a petição é inadmissível, de conformidade com o artigo 47(a) da  Convenção Americana.  Com base nos  argumentos de fato e de direito antes expostos,

 

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

DECIDE:

 

1.       Declarar inadmissível a presente petição.

 

2.       Notificar o Estado e o peticionário desta decisão.

 

3.       Publicar o presente relatório e inclui-lo em seu Relatório Anual a ser enviado à Assembléia Geral da OEA .

 

          Dado e assinado na  sede da  Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na  cidade de Washington, D.C., no dia  20 de fevereiro de 2002.  (Assinado): Juan E. Méndez, Presidente; Marta Altolaguirre, Primeira Vice-Presidenta; José Zalaquett, Segundo Vice-Presidente; Comissionados: Robert K. Goldman, Julio Prado Vallejo, Clare Roberts e Susana Villarán.


 


[1] Comunicação dos  peticionários de 10 de outubro de 1997, págs. 21 a 23.  Quanto ao direito à liberdade pessoal, alegam que “as vítimas tiveram que manter-se no exílio para curar suas feridas, não deixar suas camas, suas cadeiras de rodas e seus centros hospitalares e psiquiátricos, para não tropeçarem ao caminhar pelas ruas de SR materialmente “reconstruido”; direito à vida privada: “quando a serpente de fogo e pó entrou nos lares,  templos e escolas de SR, derrubando a sua frente as portas e janelas, terminou a  privacidade das pessoas, os namorados e as famílias, e entramos num mundo oposto, do desprezo pela  honra e a dignidade das pessoas; direito à liberdade de expressão: “as marchas de luto e protesto foram apagadas pelos  despejos e os golpes baixos da imprensa.  Se a princípio éramos vítimas da  negligência e materialismo das autoridades, porque solicitávamos e exigíamos atenção à nossa dor e necessidades urgentes, agora ninguém nos busca porque nossa  voz  foi sendo apagada pouco a pouco de tanto silêncio, indiferença e impunidade”; direito de reunião: “...se antes do colapso os vizinhos reuniam-se nos  bairros e colônias para celebrar os aniversários, as formaturas e os casamentos, agora isto já não ocorre, pois nossos vizinhos já não existem.  E nós não queremos estar sozinhos com nossa desgraça, motivo pelo qual passamos a viver com com pessoas de outras idéias e costumes que não nos entendem como afetados, pois nossa vida é cada dia que passa mais breve e mais isolada”; direito à propriedade privada: “[O então Governador de Jalisco] Cosio e seus subordinados, como o alquimista, converteram nossos bens móveis e imóveis em pó.  O resto das casas foi saqueado por aqueles que chegaram depois das explosões para proteger os restos que continuam em pé de nossas casas sacudidas pela  hecatombe, desde o chão até o teto.  Quem veio nos proteger do roubo desses policiais e militares saqueadores?”; direito de acesso à justiça: “O Municipio obrigou a muitos afectados(as) a assinar --várias vezes, -- convênios que os obrigaram a renunciar a interpor ação na via civil ou penal.  Aproveitaram-se da  extrema pobreza, urgência e ignorância das pessoas.  Todo dia 22 de abril em nossa cidade nós nos reunimos e gritamos: Queremos justiça!  Os jovens pintam muros clamando por justiça mas esta parece que foi embora do país e seguramente estará escondida longe, muito longe dos  mexicanos.  Nós sentimos muitas saudades dela e esperamos o dia que retorne a nosso seio”.

[2]  Idem, pág. 48.

[3] Comunicação dos  peticionários de 25 de março de 1998, pág 4.

[4] Idem, pág. 6.

[5] Idem, págs.10 a 19.

[6] Comunicação do Estado de 13 de fevereiro de 1998, págs. 1 e 2.

[7] Idem, pág. 2.

[8] Idem, págs. 6 e 7.

[9] Idem, pág. 9.

[10] Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velásquez Rodríguez, Sentença sobre exceções preliminares, 26 de junho de 1987, par. 61.

[11] Idem, par. 64.

[12] CIDH, Caso 11.230 - Francisco Martorell, Chile, Relatório Anual 1996, Relatório N° 11/96, par. 33.

[13] Comunicação dos  peticionários de 10 de outubro  de 1997, pág. 35.

[14] Carta dos  peticionários ao Dr.  Jorge Madrazo Cuéllar, Presidente da  Comissão Nacional de Direitos Humanos, 7 de fevereiro de 1994, pág. 7.