RELATÓRIO N° 9/03

PETIÇÃO 12.116

ADMISSIBILIDADE

MARÍA ESTELA GARCÍA RAMÍREZ E CELERINO JIMÉNEZ ALMARAZ

MÉXICO

20 de fevereiro de 2003

 

 

I.        RESUMO

 

1.       Em 1° de março de 1999, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “a Comissão Interamericana” ou “a CIDH”) recebeu uma denúncia apresentada por María Estela García Ramírez, Ação dos  Cristãos para a Abolição da  Tortura (ACAT), a Liga Mexicana para a Defesa dos  Direitos Humanos (LIMEDDH-FIDH) e o Centro de Direitos Humanos “Fray Francisco de Vitoria” (doravante denominados, conjuntamente, “os peticionários”), na qual se alega a responsabilidade internacional dos Estados Unidos Mexicanos (doravante denominado “o Estado”) pela  detenção ilegal, tortura e execução extrajudicial do senhor Celerino Jiménez Almaraz, fatos que ocorreram no dia 24 de abril de 1997; e pela  subsequente intimidação à senhora María Estela García Ramírez, esposa deste, e sua família.  Os peticionários também imputam responsabilidade internacional do Estado mexicano pela  falta de investigação e sanção dos  fatos denunciados.

 

2.       Os peticionários alegam que os fatos denunciados configuram a violação de várias disposições da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada a “Convenção Americana”): direito à vida (artigo 4); integridade pessoal (artigo 5); garantias judiciais (artigo 8); e proteção judicial (artigo 25). Os peticionários afirmam que foram cumpridos todos os requisitos de admissibilidade previstos neste instrumento internacional.  O Estado mexicano argumenta que não estão configuradas violações da  Convenção Americana, pois não foram demonstrados os fatos da  denúncia; alega igualmente que não foram esgotados os recursos da  jurisdição interna.  Em consequência, o Estado solicita à Comissão Interamericana que declare inadmissível a petição.

 

3.       Sem prejulgar sobre o mérito do assunto, a CIDH conclui neste relatório que o caso é admissível, pois reúne os requisitos previstos nos  artigos 46 e 47 da  Convenção Americana.  Portanto, a Comissão Interamericana decide notificar a decisão às partes e continuar com a análise de mérito relativo à suposta violação dos  artigos 4, 5, 7, 8 e 25 da  Convenção Americana a respeito de Celerino Jiménez Almaraz; e dos  artigos 5, 8 e 25 em relação à senhora Maria Estela García Ramírez  e sua família.

 

          II.       TRÂMITE PERANTE A CIDH

 

4.       Em 28 de agosto de 1997, os peticionários apresentaram uma solicitação de medidas cautelares para a proteção da  senhora María Estela García Ramírez.  Em 11 de setembro de 1997, a CIDH dirigiu-se ao Estado mexicano com o objetivo de informar que havia outorgado medidas cautelares a favor da  senhora García Ramírez, e solicitou ao Estado que informasse num prazo de 15 dias a respeito das medidas tomadas a fim de proteger sua vida e integridade pessoal. O Estado mexicano respondeu em 26 de setembro de 1997, e a comunicação foi encaminhada aos peticionários em 3 de outubro de 1997.   A resposta dos  peticionários foi recebida em 19 de dezembro de 1997 e apresentada à Comissão Interamericana.

 

5.       Em 1° de março de 1999, os peticionários apresentaram uma denúncia referente aos fatos que haviam afetado Celerino Jiménez Almaraz e María Estela García Ramírez, e reiteraram sua solicitação de medidas cautelares a favor desta. [1]  Em 18 de março de 1999, a Comissão Interamericana transmitiu as partes pertinentes desta comunicação ao Estado e iniciou o trâmite previsto no  artigo 48 da  Convenção Americana, tendo fixado um prazo de 90 dias para que o Estado apresentasse as observações pertinentes.  As observações do Estado foram recebidas em 17 de junho de 1999 e as partes pertinentes desta foram encaminhadas aos peticionários em 22 de junho de 1999.  Em 16 de agosto do mesmo ano, a CIDH recebeu a resposta dos  peticionários, e a enviou ao Estado mexicano em 25 do mesmo mês e ano.  As partes continuaram remetendo suas observações e informações adicionais até que a Comissão Interamericana considerou suficientemente definida a posição de cada uma delas.[2]

 

III.      POSIÇÕES DAS PARTES SOBRE A ADMISSIBILIDADE

 

A.      Os peticionários

 

6.       Na  comunicação que serviu de base para o início do trâmite deste assunto, os peticionários ofereceram a seguinte versão dos  fatos ocorridos na madrugada de 24 de abril de 1997:

 

          Aproximadamente às duas horas da manhã, enquanto dormia a senhora María Estela García Ramírez juntamente com seu esposo, Celerino Jiménez Almaraz, e sua família, em seu domicílio particular, conhecido como Rancho dos  Limares, em Santa María Jalatengo, Município de San Mateo Río Hondo, Mihuatlán, Oaxaca, entraram em sua casa cerca de sessenta e oitenta  pessoas com o rosto coberto com panos negros e caras pintadas de cor escura, as quais somente se via os olhos, de forma violenta, destruindo a porta da casa e tudo o que encontravam à sua frente, gritando “Polícia judicial, polícia judicial”.

 

Nesse momento, o senhor Celerino Jiménez Almaraz foi duramente golpeado e detido, quando sua esposa tentou ajudá-lo, um dos  policiais gritou: “ação, ação“, começaram então  a disparar, ferindo Celerino no ato, não podendo a denunciante precisar o lugar onde recebeu as balas, pois ela também estava sendo golpeada e atirada ao chão, e impedida de ver-lhes o rosto e de proteger seu marido.

 

O irmão de Estela, Aquilino García Ramírez, também foi ferido, e deixado sangrando no pátio da  casa.  Posteriormente, a polícia levou Celerino, e ordenou os membros da  família que permanecessem no chão, sem olhar para ninguém.

 

Aproximadamente às 10:00 horas da manhã do dia seguinte, a denunciante dirigiu-se até a Cidade de Oaxaca a fim de averiguar onde estava seu esposo.  A denunciante solicitou ajuda da  LIMEDDH-FIDH em Oaxaca para solicitar informação perante à Procuradoria Geral de Justiça do Estado en Oaxaca, a qual comunicou-lhe que o senhor Celerino havia falecido em um  enfrentamento de polícias judiciais com membros do Exército Popular Revolucionário (um grupo guerrilheiro), e que o corpo estava na  PGJ do  município de Pochutla.[3]

 

7.       Os peticionários alegam em uma nota posterior que o Estado mexicano “pretende responsabilizar as vítimas e os peticionários pelas omissões na  investigação deste assunto”.  Questionam também a vontade deste Estado para esclarecer os fatos:

 

A responsabilidade de investigar e sancionar é exclusivamente do Estado, sem importar para efeitos desta responsabilidade que as vítimas do delito tenham o direito a colaborar na  investigação dos  fatos ou no julgamento dos  supostos responsáveis, coisa que, também, nós  os peticionários fizemos, mas as diligências que sugerimos não foram atendidas devidamente, pois a maioria delas não foram levadas a cabo e, no  melhor dos  casos, foram feitas de maneira  incompleta, o que gera o desvio e atraso das investigações.

 

Dos fatos se depreende que existem suficientes elementos para acreditar que a morte do senhor Celerino Jiménez ocorreu devido a um homicídio e que as evidências que existem na  Recomendação da  Comissão Estatal de Direitos Humanos são uma amostra de que os supostos autores materiais do homicídio foram identificados.  È por isso que alegamos que o Governo, além

 de ser o responsável direto pelo homicídio do senhor Jiménez Almaraz, é responsável pela denegação de justiça que sofreram seus familiares.[4]

 

8.       Os peticionários alegam que a  exceção ao esgotamento dos  recursos internos prevista no  artigo 46(2)(c) da  Convenção Americana é aplicável ao presente caso, devido ao prolongado tempo transcorrido desde que ocorreram os fatos, sem que até agora tenham sido esclarecidos nem se tenha sancionado  todos os responsáveis.  Em uma das suas mais  recentes comunicações à CIDH, os peticionários  manifestam que “quatro anos para determinar a responsabilidade penal de uma pessoa excede em muito o que se poderia considerar como um prazo razoável, sendo que no  presente caso, transcorreram quatro anos somente para exercer a ação penal contra os  responsáveis, mas que ainda faltam outras etapas processuais”.[5]

 

B.       O Estado

 

9.       Em resposta à denúncia, o Estado mexicano argumenta que os peticionários cometeram diversos erros “sobre as circunstâncias de modo, tempo e lugar em que supostamente ocorreram os fatos”.  A versão dos  fatos segundo o Estado é a seguinte:

 

Na madrugada de 24 de abril de 1997, quando elementos da  Polícia Judicial do Estado Oaxaca dirigiram-se aos vilarejos de San Agustín Loxicha, Pochutla, Oaxaca a fim de cumprir diversas ordens de detenção, foram alvo de disparos com armas de fogo.  Estes agentes repeliram o  ataque.  Depois de finalizado o enfrentamento, um dos  agressores, que estava ferido, tratou de esconder a escopeta que trazia consigo no momento em que foi encontrado pelos  agentes.  Esta pessoa faleceu posteriormente, enquando era transferida ao hospital de Pochutla; não obstante, no  trajeto  identificou-se como sendo Celerino Jiménez Almaraz.  No  mesmo lugar foi encontrado um rifle marca Winchester, vários cartuchos de diversos calibre e um capuz verde oliva no  bolso desta pessoa.

 

Foi feita perícia no corpo do  Sr. Celerino Jiménez Almaraz à procura de rodizonato de sódio, a qual resultou positiva em ambas mãos, confirmando que havia disparado uma arma de fogo.  Também foram feitas perícias nas armas encontradas, e foi determinado que estas haviam sido disparadas recentemente.

 

A partir dos  fatos, deu-se início à investigação prévia 320(II)97, na qual foram realizadas diligências de inspeção ocular, colheita de depoimentos, e a necrópsia correspondente, a qual concluíu que a causa da  morte foi hemorragia massiva produzida por arma de fogo, cujo calibre não correspondia às armas  utilizadas por elementos da  polícia no dia dos  fatos.

 

As atuações praticadas e as constâncias do expediente não coincidem em absoluto com as asseverações dos  peticionários.[6]

 

          10.     O Estado mexicano informa que foi dado início de imediato à uma investigação prévia e que “deu-se continuidade às ações para esclarecer os fatos que motivaram o  presente assunto, o que demonstra que não há indício algum que permita sequer presumir a anuência ou tolerância das autoridades mexicanas no cometimento de prováveis delitos”.[7] Durante o trâmite deste caso, o Estado continuou informando acerca das gestões realizadas pela  Procuradoria Geral de Justiça do Estado de Oaxaca (PGJE) para a investigação dos  fatos, bem como os avanços no  cumprimento da  Recomendação 16/98 da  Comissão Estatal de Direitos Humanos de Oaxaca (CEDH).[8]

 

          11.     Posteriormente, o Estado informou que, em 27 de setembro de 2001, a PGJE “instarou ação penal contra Lucio Esteban Vásquez Ramírez como provável  responsável pelo delito de homicídio qualificado cometido contra Celerino Jiménez Almaraz”[9] e na  mesma data ordenou o início da  ação penal 279/2001 e decretou a ordem de prisão contra o acusado.  O senhor Vásquez foi capturado em 3 de outubro de 2001 e prestou sua declaração no dia seguinte perante o Segundo Juiz Penal.  Em virtude destas ações, em 9 de outubro de 2001, a CEDH determinou que a Recomendação 16/998 havia sido totalmente cumprida.

 

12.     O Estado defende que “o início de uma investigação prévia e a realização de diligências do Minist[erio P[ublico e periciais são prova indubitáveis  de que o Governo do México cumpriu e cumpre com seu dever de investigar os fatos” e que “não está configurada a violação de nenhum dos  artigos da  Convenção Americana”[10] no  presente caso.  O Estado solicita à CIDH que aplique o artigo 47 deste instrumento internacional e declare a inadmissibilidade da  petição, por falta de esgotamento dos  recursos internos e falta de caracterização de possíveis  violações de direitos humanos.

 

IV.      ANÁLISE

 

A.      Competência ratione pessoae, ratione materiae, ratione temporis e ratione loci da  Comissão Interamericana

 

13.     Os peticionários estão facultados pelo  artigo 44 da  Convenção Americana para apresentar denúncias perante a CIDH. A petição assinala  como supostas vítimas indivíduos, para os quais o México comprometeu-se a respeitar e garantir os direitos consagrados na  Convenção Americana.  No que se refere ao Estado, a Comissão assinala que o México é um  Estado parte na  Convenção Americana desde 24 de março de 1981, data em que depositou o  instrumento de ratificação respectivo.  Portanto, a Comissão tem competência ratione pessoae para examinar a petição.

 

14.     A Comissão tem competência ratione loci para conhecer a petição, porque a petição alega violações de direitos protegidos na  Convenção Americana que teriam ocorrido dentro do território de um Estado parte neste tratado. A CIDH tem competência ratione temporis, porque a obrigação de respeitar e garantir os direitos protegidos na  Convenção Americana já se encontrava em vigor para o Estado na data em que haviam  ocorrido os fatos alegados na  petição. Por último, a Comissão tem competência ratione materiae porque na petição se denunciam violações a direitos humanos protegidos pela  Convenção Americana.

 

 

B.     Outros requisitos de admissibilidade da  petição

 

a.       Esgotamento dos  recursos internos

 

          15.     O artigo 46(1)(a) da Convenção Americana estabelece que para que um caso possa ser admitido é preciso que “se tenha interposto e esgotado os recursos de jurisdição interna, conforme os princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos”.  O artigo 46(2) estabelece exceções ao princípio geral de esgotamento dos  recursos internos, quando a) não exista na  legislação interna do Estado em questão o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que alegadamente violados; b) não se tenha permitido ao suposto ofendido em seus direitos o acesso aos recursos da  jurisdição interna, ou tenha sido impedido de esgotá-los, e c.) haja atraso injustificado na  decisão sobre os mencionados recursos.

 

16.     Conforme mencionado anteriormente, as partes no  presente caso alegam uma controvérsia sobre o esgotamento dos  recursos internos no México, motivo pelo qual cabe à  Comissão Interamericana pronunciar-se a respeito.  O Estado, por um lado,  argumenta que não foi cumprido este requisito convencional e que tampouco procede a aplicação de alguma das exceções acima mencionadas; e por outro lado, os peticionários alegam que houve um atraso injustificado que os isenta de guardar a conclusão das investigações iniciadas neste país a respeito dos fatos denunciados.

 

17.     Quando um Estado alega que não foram esgotados os recursos da  jurisdição interna, tem o ônus de indicar quais os recursos que devem ser esgotados e demonstrar sua efetividade.[11]  Logo então passa aos peticionários o dever processual de demonstrar que estes recursos foram esgotados ou que está configurada alguma das exceções do artigo 46(2) da  Convenção Americana.

 

18.     No  presente caso, o Estado mexicano argumenta que o recurso idôneo para solucionar a situação denunciada é a ação penal iniciada contra um dos  supostos responsáveis pela morte de Celerino Jiménez Almaraz.  Alega ademais que a investigação teve início  imediatamente depois de ocorridos os fatos, e que as autoridades deram seguimento oportuno ao caso.  Em contraposição, os peticionários destacam que a investigação não foi  oportuna nem efetiva, e assinalam uma série de deficiências e demoras na  realização de diligências fundamentais, tais como a reconstrução dos  fatos e a inspeção ocular da  cena do crime.  Os peticionários assinalam que o tempo transcorrido desde  24 de abril de 1997 sem que tenham sido esclarecidos os fatos nem punidos os responsáveis configura uma demora  injustificada de acordo com o a exceção do artigo 46(2)(c) da  Convenção Americana.

 

19.     Sem proceder à análise dos argumentos formulados pelas partes acerca da  suposta violação das garantias judiciais e proteção judicial, a Comissão Interamericana observa de maneira preliminar que, na data de aprovação deste relatório, transcorreram quase 5 anos desde a data em que ocorreu a morte  violenta de Celerino Jiménez Almaraz.  Durante este tempo, deu-se início à uma investigação prévia que conduziu à instauração da ação penal contra o senhor Lucio Esteban Vásquez Ramírez, suposto responsável pelos  fatos.  Este réu foi  detido em 3 de outubro de 2001.  Conforme a informação disponível, o processo penal contra esta pessoa ainda não foi concluído, nem foram esclarecidos completamente os fatos denunciados. 

 

20.     O fato de que o senhor Lucio Esteban Vásquez Ramírez foi um dos policiais judiciários que interveio na  operação efetuada no dia 24 de abril de 1997, que resultou na morte violenta de Celerino Jiménez Almaraz [e um fato não controvertido no  expediente P 12.116.  O expediente revela também que o senhor Vásquez Ramírez foi eleito e assumiu o  cargo de Prefeito de San Agustín dos  Loxichas em 1º de dezembro de 1998.  A CIDH entende que este funcionário alegou na região durante a época em que se investigavam os fatos e, definitivamente, no  momento em que foi capturado em dezembro de 2001.  Cabe destacar que tanto a suposta execução extrajudicial do senhor Jiménez Almaraz como as ameaças e intimidação sofridas pela senhora García Ramírez constituem fatos que devem ser investigados de ofício.

 

          21.     De acordo com a informação que consta no expediente do caso perante à Comissão Interamericana, a senhora María Estela García Ramírez denunciou as ameaças que havia sofrido à Procuradoria Geral de Justiça de Oaxaca, o Governador do Estado, e à Comissão Estatal de Direitos Humanos.  Os peticionários também alegam que as ameaças nunca foram investigadas pelas autoridades mexicanas.  Destacam que a intimidação e a vigilância aumentaram desde  1º de dezembro de 1998, data em que o senhor Lucio Vásquez Ramírez foi eleito Prefeito.  As respostas do Estado mexicano alude aos trâmites de investigação da  morte do senhor Jiménez Almaraz, mas não submetem dados sobre alguma medida iniciada para esclarecer as ameaças denunciadas pela  senhora García Ramírez.

 

22.     Em face do exposto acima e de todas as constâncias do expediente deste caso, a Comissão Interamericana determina –para  efeito da  admissibilidade-- que houve uma demora injustificada na  decisão dos  órgãos judiciários mexicanos a respeito dos fatos denunciados.  Consequentemente, a CIDH aplica ao presente caso a exceção ao esgotamento dos  recursos da  jurisdição interna prevista no  artigo 46(2)(c) da  Convenção Americana. 

 

23.     A Corte Interamericana de Direitos Humanos entende que a invocação das exceções à regra do esgotamento dos  recursos internos previstas no  artigo 46(2) está estreitamente ligada à determinação de possíveis violações a certos direitos consagrados na  Convenção Americana, tais como o devido processo e a proteção judicial estabelecidos nos  artigos 8 e 25.[12] 

 

24.     Entretanto, o artigo 46(2), por sua natureza e objeto, é de conteúdo autônomo a respeito das normas substantivas da  Convenção Americana.  Portanto, a determinação sobre a aplicabilidade das exceções à regra de esgotamento dos  recursos internos ao assunto analisado em questão deve ser efetuada de maneira prévia e separada da análise de mérito do assunto, a qual depende de um parâmetro de apreciação distinto daquele  utilizado para determinar a violação dos  artigos 8 e 25 do instrumento internacional citado.  As causas e efeitos que impediram o esgotamento dos  recursos da  jurisdição interna no México a respeito da matéria do presente caso serão analisados no  relatório a ser adotado pela CIDH sobre o mérito da  matéria, a fim de constatar se efetivamente configuram violações à Convenção Americana.

 

b.       Prazo de apresentação

 

25.     Conforme o artigo 46(2) da  Convenção Americana, o atraso injustificado na  decisão sobre os recursos internos resulta na  inaplicabilidade dos  requisitos de esgotamento e de apresentação dentro do prazo de seis meses a partir da  data de notificação da  decisão definitiva. O artigo 32(2) do Regulamento da  CIDH dispõe:

 

Nos  casos em que são aplicáveis as exceções ao requisito do prévio esgotamento dos  recursos internos, a petição deverá ser apresentada dentro de um prazo razoável a critério da  Comissão.  Para tal efeito, a Comissão considerará a data em que tenha ocorrido a suposta violação dos  direitos e as circunstâncias de cada caso.

         

26.     A petição aqui analisada foi apresentada no dia  1º de março de 1999, quase dois anos depois da  morte violenta de Celerino Jiménez Almaraz.  De acordo com o  expediente, durante o período transcorrido desde  24 de abril de 1997 até a data de apresentação da  denúncia perante a CIDH, os peticionários fizeram várias gestões para impulsionar a investigação deste assunto e das ameaças sofridas pela senhora García Ramírez na  jurisdição interna.  Desde  28 de agosto de 1997 foram apresentadas diversas comunicações à Comissão Interamericana com as quais solicitaram medidas de proteção para garantir a vida e integridade física da  senhora García Ramírez.  Até esta data de adoção do presente relatório não se tem conhecimento de que tivesse concluído o procedimento na  jurisdição interna. 

 

27.     Na opinião da  CIDH, e com base nos exposto supra, a petição foi apresentada dentro de um prazo razoável.

 

c.       Duplicação de procedimentos e coisa julgada

 

28.     Não surge do expediente que a matéria da  petição esteja pendente de outro procedimento de acordo internacional, nem que reproduza uma petição já examinada por este ou outro órgão internacional.  Portanto, a CIDH conclui que não são aplicáveis as exceções previstas no  artigo 46(1)(d) e no  artigo 47(d) da  Convenção Americana.

 

d.       Caracterização dos  fatos alegados

 

29.     As alegações dos  peticionários referem-se à suposta detenção ilegal, tortura, e execução extrajudicial de Celerino Jiménez Almaraz; a intimidação e ameaças à sua esposa María Estela García Ramírez; e a falta de investigação e sanção dos responsáveis por tais fatos.  A sua vez, o Estado mexicano alega que os fatos não caracterizam possíveis  violações da  Convenção Americana.

 

30.     Não cabe estabelecer na  presente etapa processual se foi ou não violada  efetivamente a Convenção Americana.  Para efeitos da admissibilidade, a CIDH deve determinar se foram expostos fatos que caracterizam uma violação, como estipula o artigo 47(b) da  Convenção Americana.  O parâmetro de apreciação destes requisitos é diferente daqueles  requeridos para decidir sobre o mérito de uma denúncia. A Comissão Interamericana deve realizar uma avaliação prima facie para examinar se a denúncia fundamenta a aparente ou potencial violação de um direito garantido pela  Convenção Americana.  Esta é uma  análise sumária, que não implica prejuízo ou avance de opinião sobre o mérito da  controvérsia.  A distinção entre o estudo correspondente à declaração sobre a admissibilidade e aquele  requerido para determinar uma violação está refletido no próprio Regulamento da  CIDH, que estabelece de maneira claramente diferenciada as etapas de admissibilidade e mérito.

 

31.     As alegações dos  peticionários referem-se a fatos que, se provados verdadeiros, caracterizariam violações de vários direitos garantidos pela  Convenção Americana.  Apesar de o Estado alegar que não há violação alguma, a informação submetida  indica que um funcionário que havia participado nos  fatos que resultaram na  morte de Celerino Jiménez Almaraz está privado de sua liberdade e submetido a processo penal por homicídio; e que, apesar do tempo transcorrido, até esta data não foram determinados de maneira definitiva os fatos ocorridos a partir de 24 de abril de 1997.  A CIDH estima que os fatos expostos merecem um exame de maneira mais precisa e completa da  petição na  etapa de mérito.

 

32.     A  CIDH considera que os fatos, se provados verdadeiros, caracterizariam  violações dos  direitos garantidos nos  artigos 4, 5, 7, 8 e 25 da  Convenção Americana em relação ao  senhor Celerino Jiménez Almaraz; e dos  artigos 5, 8 e 25 do mesmo instrumento em relação à senhora María Estela García Ramírez e sua família.  Portanto, a CIDH considera que os peticionários cumpriram  prima facie com os requisitos estipulados no  artigo 47(b) da  Convenção Americana.

 

 

V.      CONCLUSÕES

 

33.     A Comissão Interamericana conclui que tem competência para conhecer o mérito deste caso e que a petição é admissível de conformidade com os artigos 46 e  47 da  Convenção Americana.  Com base nos  argumentos de fato e de direito antes expostos, e sem prejulgar sobre o mérito do assunto,

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.       Declarar o presente caso admissível no que se refere às possíveis violações de direitos protegidos pelos  artigos 4, 5, 7, 8 e 25 da  Convenção Americana em relação ao senhor Celerino Jiménez Almaraz; e dos  artigos 5, 8 e 25 deste instrumento internacional em relação à senhora Maria Estela García Ramírez e sua família.

 

2.         Notificar o Estado e o peticionário desta decisão.

 

3.         Iniciar o trâmite sobre o mérito do assunto.

 

4.         Publicar o presente relatório e incluí-lo em seu Relatório Anual a ser enviado à Assembléia Geral da OEA.

 

Dado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., no dia 20 de fevereiro de 2003.  Assinado:  Juan E. Méndez, Presidente; Marta Altolaguirre, Primeira Vice-Presidenta; José Zalaquett, Segundo Vice-Presidente; Comissionados: Robert K. Goldman, Julio Prado Vallejo, Clare Roberts e Susana Villarán.

 


 


[1] Na  mesma comunicação,  a CIDH fixou ao Estado mexicano um prazo de 15 dias para que informasse acerca da  solicitação de medidas cautelares formulada  pelos  peticionários.  Este Estado remeteu uma nota em 30 de março de 1999, na  qual informou sobre as medidas adotadas a fim de proteger a senhora García Ramírez; e esta foi encaminhada aos peticionários em 31 de março de 1999, sendo que lhes foi solicitado que apresentassem as observações correspondentes num prazo de 15 dias.  A resposta dos  peticionários, recebida em 7 de maio de 1999, foi enviada à Comissão Interamericana em 18 de maio do mesmo ano.

[2] A CIDH recebeu notas do Estado contendo informação adicional sobre a petição, sobre as medidas de proteção e outras considerações em 24 de setembro de 1999; 29 de novembro de 1999; 13 de dezembro de 1999; 28 de dezembro de 1999; 9 de agosto de 2000; 2 de outubro de 2000 e 20 de dezembro de 2001.  A sua vez, os peticionários remeteram comunicações em  3 de dezembro de 1999; 12 de janeiro de 2000; 19 de janeiro de 2000; 22 de junho de 2000;  14 de agosto de 2000;  24 de novembro de 2000; 31 de março de 2001; 23 de julho de 2001; 19 de outubro de 2001 e 21 de janeiro de 2002.

[3] Comunicação dos  peticionários de 1° de março de 1999, págs. 1 e 2.

[4] Comunicação dos  peticionários de 16 de agosto de 1999, “Anexo único: Análise  a respeito dos pontos relevantes da  comunicação do Governo mexicano”, pág. 1.

[5] Comunicação dos  peticionários de 31 de março de 2001, pág. 3.

[6] Comunicação do Estado de 17 de junho de 1999, pág. 1.

[7] Idem, pág. 4.

[8] A recomendação Nº 16/998 da  CEDH de Oaxaca, emitida em 30 de setembro de 1998, foi dirigida ao Procurador Geral de Justiça deste estado.  O ombudsman  recomendou ao Ministério Público que “se revista de absoluta imparcialidade” a investigação prévia iniciada para investigar o homicídio de Celerino Jiménez Almaraz, “a fim de determinar a provável  responsabilidade pelos efetivos policiais que intervieram” e que esta investigação “deve concluir dentro do término de trinta dias” conforme o artigo 65 da  Lei Orgânica da  Procuradoria Geral de Justiça do Estado (Primeira Recomendação).  Também recomendou a este funcionário “que na  investigação prévia seja investiguada a provável participação de outros elementos da  Polícia Judicial que tivessem participado na operação na qual perdeu a vida Celerino Jiménez Almaraz” (Segunda Recomendação).

[9] Comunicação do Estado de 20 de dezembro de 2001, pág. 1.

[10] Comunicação do Estado de 17 de junho de 1999, págs. 4 e 5, respectivamente.

[11] Corte IDH, Caso Velásquez Rodríguez, sentença sobre exceções preliminares citada, par. 88.  Ver igualmente, Caso Fairén Garbi e Solís Corrales, Exceções Preliminares, Sentença de 26 de junho de 1987, Serie C No. 2, par. 8; Caso Godínez Cruz, Exceções Preliminares, Sentença de 26 de junho de 1987, Serie C No. 3, par. 90; Caso Gangaram Panday, Exceções Preliminares, Sentença de 4 de dezembro de 1991, Serie C No.12, par. 38;  Caso Neira Alegría e Outros, Exceções Preliminares, Sentença de 11 de dezembro de 1991, Serie C No.13, par. 30; Caso Castillo Páez, Exceções Preliminares, Sentença de 30 de janeiro de 1996, Serie C No. 24, par. 40; Caso Loayza Tamayo, Exceções Preliminares, Sentença de 31 de janeiro de 1996, Serie C No. 25, par. 40; Exceções ao Esgotamento dos  Recursos Internos (Art. 46.1, 46.2.a e 46.2.b Convenção Americana sobre Direitos Humanos), Opinião Consultiva OC-11/90 de 10 de agosto de 1990, Serie A No.11, par. 41.

[12] Corte IDH, Caso Velásquez Rodríguez, Exceções Preliminares, Sentença de 26 de junho de 1987, Serie C No. 1, par 91.  Ver, no  mesmo sentido, Corte IDH, “Garantias Legais nos Estados de Emergência (Arts. 27.2, 25 e 8 da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos)”, Opinião  Consultiva OC-9/87 de 6 de outubro de 1987, Serie A No. 9, par. 24.