RELATÓRIO Nº 79/03

PETIÇÃO 139/02

ADMISSIBILIDADE

GUY ANDRÉ FRANçOIS

HAITI

22 de outubro de 2003

 

 

I.        RESUMO

 

1.       Em 1 de março de 2002, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “ a Comissão Interamericana” , “ a Comissão” ou “ a CIDH “) recebeu uma petição de Marie Alice François (doravante denominada "a peticionária"), esposa do Sr. Guy André François, contra a República de Haiti (doravante denominada “o Estado” ou “ Haiti” , na  qual figuram alegações que poderiam caracterizar violações dos  direitos humanos, à liberdade pessoal (Artigo 7), às garantias judiciais (Artigo 8) e à proteção judicial (Artigo 25), conjuntamente com a obrigação geral imposta ao Estado pelo artigo 1.1 de respeitar e garantir os direitos consagrados na  Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada “a Convenção Americana” ou “ a Convenção”).

 

          2.       A peticionária alega que em 19 de dezembro de 2001, o Sr. Guy André François, coronel aposentado do exército haitiano, foi preso por agentes da  polícia e detido na  Delegacia de Pétion-Ville e, depois nas instalações da  Administração Penitenciária Nacional (APENA) em Pétion-Ville. Em 7 de janeiro de 2002, o Tribunal de Primeira Instância de Port-au-Prince declarou ilegais a prisão e a detenção do Sr. François e ordenou sua liberação imediata. Os peticionários alegam que a promotoria de Port-au-Prince negou-se a executar a sentença.

 

          3.       O Estado não respondeu  aos fatos alegados pelos  peticionários nem impugnou a admissibilidade da  petição objeto da presente análise.

 

          4.       A CIDH, de acordo com as disposições dos artigos 46 e 47 da  Convenção Americana, decidiu admitir a petição por ter indícios de possíveis  violações dos artigos 1 (1), 7, 8 e 25 da  Convenção, e proceder à análise do mérito da mesma. A Comissão decidiu igualmente notificar as partes desta decisão, publicá-la e incluí-la no  Relatório Anual à Assembléia Geral da  OEA.

 

 

          II.       TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

          5.       Em 1 de março de 2002, a Sra. Marie Alice François apresentou à Comissão uma petição. Em 27 de março de 2002, a CIDH remeteu a petição ao Estado, solicitando-lhe o envio de informação sobre a matéria no  prazo de um mês, conforme o artigo 30 de seu Regulamento.

 

          6.       Em 17 de março de 2003, a Comissão solicitou a peticionária que submetesse, num prazo de 30 dias, toda a informação complementar relativa à petição. Na  mesma data, a CIDH remeteu novamente ao Estado cópia da  comunicação da  peticionária, reiterando o pedido de informação. Por nota de 24 de março de 2003, o Estado acusou recebimento das cartas de 27 de março de 2002 e de 17 de março de 2003, mas não encaminhou nenhuma  informação sobre a petição, como solicitado pela Comissão. Em 16 de abril de 2003, Sabine Carre, filha de Sr. Guy André François, remeteu, em nome de sua mãe, Marie Alice François, informação complementar que foi enviada ao Estado em 29 de maio de 2003, com um prazo de 30 dias para que apresentasse suas observações. Em 20 de setembro de 2003, a CIDH remeteu ao Estado uma comunicação de 1 de março de 2002 e recebida em 4 de março, bem como uma comunicação de 19 de agosto de 2002 e recebida em 23 de agosto, de parte do Sr. Rony François, em relação à situação de seu irmão, o Sr. Guy François.

 

 

III.      POSIÇÃO DAS PARTES

 

A.      A peticionária

 

7.       A peticionária alega que em 19 de dezembro de 2001, Guy André François foi preso  arbitrariamente em Pétion-Ville por integrantes da  Polícia, sem  ordem judicial e sem  a presença de nenhum fato que configurasse  um flagrante. Segundo a peticionária, Guy André François foi levado à Delegacia de Pétion-Ville e, depois à prisão de Pétion-Ville.

 

8.       A peticionária alega que, depois de ficar detido por mais de 20 dias, a vítima, por intermédio de seus advogados Srs. Rigaud Duplan, Patrick Laurent e Leonel Jean Bart, interpôs uma ação de habeas corpus conforme o artigo 26-1 da  Constituição do Haiti. Em 7 de janeiro de 2002, o Tribunal de Primeira Instância declarou ilegais a prisão e a detenção do Sr. Guy André François e ordenou sua imediata liberação. A peticionária alega que, apesar dessa sentença entregue em mãos ao Commissaire du Gouvernement (Comissionado de Governo) em 8 de janeiro de 2002, com ordem de execução imediata, o Sr. Guy André François não foi liberado. Segundo informação submetida pela peticionária, o Sr. Guy André François continuava detido até  16 de abril de 2003.

 

B.       O Estado

 

9.       O Estado não respondeu os fatos alegados pelos  peticionários nem impugnou a admissibilidade da  petição objeto da presente análise. 

 

IV.      ANÁLISE DA  ADMISSIBILIDADE

 

A.      Considerações prévias

 

10.     Como precedentes[1], a CIDH ressalta que o Estado somente comunicou a Comissão que havia recebido as comunicações de 27 de março de 2002 e 17 março de 2003 e em nenhum momento apresentou resposta aos fatos alegados pelos  peticionários nem impugnou a admissibilidade da petição objeto da presente análise. A CIDH recorda que o Haiti contraiu diversas obrigações internacionais em virtude da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Em particular, o Artigo 48.1 (a) da  Convenção estabelece que, ao receber uma petição ou comunicação, a Comissão “ solicitará informações ao Governo do Estado ao qual pertença a autoridade assinalada como responsável pela violação alegada” e que “ estas informações devem ser enviadas dentro de um prazo razoável” (...). O artigo 48.1 (e) estipula que a Comissão "poderá pedir aos Estados interessados qualquer informação pertinente”. Estes dispositivos implicam na obrigação dos  Estados partes da  Convenção de enviar à Comissão a informação que esta lhes solicite dentro do marco de análise das petições individuais.

 

11.     A CIDH deseja ressaltar  a importância da  informação solicitada pela Comissão, pois é a partir da mesma que adota as decisões sobre as petições que recebe. A Corte Interamericana de Direitos Humanos afirmou que a cooperação dos  Estados é uma obrigação fundamental no  marco do processo internacional do sistema interamericano:

 

Diferentemente do Direito penal interno, nos  processos sobre violações de direitos humanos, a defesa do Estado não pode descansar sobre a impossibilidade do demandante de alegar provas que, em muitos casos, não podem ser obtidas sem a cooperação do Estado

 

É o Estado quem tem o controle dos meios para esclarecer  fatos ocorridos dentro de seu território.  A Comissão, embora tenha faculdades para realizar investigações, na prática depende, para poder efetuá-las dentro da  jurisdição do Estado, da cooperação e dos meios porporcionados pelo Governo.[2]

 

          12.     A Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos entendem igualmente que " o silêncio do demandado ou sua contestação elusiva ou ambígua podem  ser interpretadas como aceitação dos  fatos da  demanda, pelos menos enquanto o contrário não apareça nos autos ou não resulte da convicção do juiz.”[3] Consequentemente, a Comissão recorda ao Estado que está obrigado a colaborar com os órgãos do sistema interamericano de direitos humanos para permitir que esta cumpra com suas funções de proteger os direitos humanos.

 

B.       Competência ratione pessoae, ratione loci, ratione temporis e ratione materiae da  Comissão

 

13.     A peticionária está facultada pelo  artigo 44 da  Convenção Americana para apresentar denúncias perante a CIDH. A petição assinala  como suposta vítima um indivíduo, para os quais o Haiti comprometeu-se a respeitar e garantir os direitos consagrados na  Convenção Americana.  No que se refere ao Estado, a Comissão assinala que o Haiti  é um  Estado parte na  Convenção Americana desde 27 de setembro de 1977, data em que depositou o  instrumento de adesão respectivo.  Portanto, a Comissão tem competência ratione pessoae para examinar a petição.

 

14.     A Comissão tem competência ratione loci para conhecer a petição pois esta refere-se a violações que teriam sido cometidas no  território de um Estado parte da  Convenção.

 

15.     A CIDH tem competência ratione temporis pois a petição refere-se a fatos que teriam sido cometidos em 2001, data na qual estavam em vigor as obrigações contraídas pelo  Estado em virtude de sua adesão à Convenção Americana. 

 

16.     Por último, a Comissão tem competência ratione materiae porque na petição se denunciam violações a direitos humanos protegidos pela  Convenção Americana, em  particular, os direitos à liberdade pessoal (Artigo 7), as garantias judiciais (artigo 8) e a proteção judicial (artigo 25).

 

C.      Outros requisitos para a admissibilidade da  petição

 

a.       Esgotamento dos  recursos internos

 

17.     O artigo 46(1)(a) da Convenção Americana estabelece que para que um caso possa ser admitido é preciso que “se tenha interposto e esgotado os recursos de jurisdição interna, conforme os princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos”. O Preâmbulo da  Convenção afirma que a mesma implica “ uma proteção internacional, de natureza convencional coadjuvante ou complementar daquela oferecida pelo direito interno dos  Estados". No  contexto dos  mecanismos internacionais de proteção dos  direitos humanos, a norma que requer o esgotamento prévio dos  recursos internos permite ao Estado reparar a situação a nível interno antes de enfrentar uma instância internacional.

 

18.     Neste caso, o Estado não alegou que não foram esgotados os recursos internos, motivo pelo qual se pode presumir que renuncia tacitamente em invocar tal exceção. A este respeito, a Corte Interamericana entende que a exceção do não esgotamento dos  recursos internos, para ser oportuna, deve ser invocada nas primeiras etapas do processo, caso  contrário, cabe presumir que o Estado afetado renuncia tacitamente em invocar o descumprimento.[4] A CIDH conclui que foi satisfeito o requisito de esgotamento dos  recursos internos.

 

b.       Prazo para a apresentação da  petição

 

19.     Conforme o artigo 46(1)(b) da  Convenção, toda petição deve ser apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o suposto ofendido tenha sido notificado da  decisão definitiva no âmbito nacional.  Quanto   à petição objeto de análise, a CIDH estabeleceu que o Estado renunciou tacitamente em invocar o descumprimento do requisito de esgotamento da via interna e que foram satisfeitas as condições do Artigo 46.1 (b) da  Convenção em virtude da atitude do Estado. Não obstante, as exigências da  Convenção de esgotamento da  via interna e apresentação da  petição dentro dos  seis meses a partir da  sentença que esgota esta via são independentes uma da  outra. Em consequêcia, a Comissão deve determinar se a petição em questão foi apresentada dentro de um prazo razoável. A este respeito, a CIDH comprova que a peticionária assinala que o Sr. Guy André François foi preso em 19 de dezembro de 2001 e que em 16 de abril de 2003 continuava detido pelas autoridades. A Comissão observa que a petição original foi apresentada em 1 de março de 2002, e entende que nestas circunstâncias, a petição foi apresentada dentro de um período razoável.

 

c.       Duplicidade de procedimentos e coisa julgada

 

20.     Nenhuma das partes alega que a matéria da  petição esteja pendente de outro procedimento de acordo internacional, nem que reproduza uma petição já examinada por este ou outro órgão internacional.  Portanto, cabe dar por cumpridos os requisitos estabelecidos nos  artigos 46(1)(c) e 47(d) da  Convenção.

 

d.       Caracterização dos  fatos

 

21.     No  caso, a peticionária não invoca expressamente uma norma específica da  Convenção Americana, da  Declaração Americana ou de outro instrumento internacional aplicável pela CIDH. Tampouco a Convenção ou o Regulamento exigem que os peticionários especifiquem quais são os artigos cuja violação alegam. A este respeito, os artigos 46 e 47 da  Convenção, que estabelecem as condições que devem ser satisfeitas para que uma petição seja admissível, não exigem que se especifique os artigos que, na opinião do peticionário, foram violados. O artigo 28 do Regulamento da  CIDH, que enumera certas condições exigidas para a consideração das petições, não especifica tampouco que tenha que precisar os artigos que se considera violados.

 

22.     A Comissão estima que as alegações da  peticionária a respeito da suposta detenção ilegal e não execução de uma ordem de liberação, se provadas verdadeiras, poderiam caracterizar uma violação dos  direitos à liberdade pessoal (artigo 7), às garantias judiciais (artigo 8) e à proteção judicial (artigo 25) garantidos pela Convenção Americana, conjuntamente com a obrigação geral de respeitar e garantir o exercício de tais direitos (artigo 1.1). Portanto, a Comissão entende que, de acordo com as disposições do Artigo 47 (b) e (c) da  Convenção, não pode rejeitar esta petição.

 

V.      CONCLUSÕES

 

23.     Após examinar a presente petição, a Comissão conclui que tem competência para conhecer a mesma e que as alegações da  peticionária em relação a violação dos  artigos 7, 8 e 25 da  Convenção são admissíveis, conforme as disposições dos artigos 46 e 47 da  Convenção Americana. A Comissão decidiu igualmente notificar as partes desta decisão, publicá-la e incluí-la no  Relatório Anual à Assembléia Geral da  OEA.

 

24.     Com base nos  argumentos de fato e de direito antes expostos, e sem prejulgar sobre o mérito do assunto,

 

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.       Declarar admissível a presente petição, posto que a mesma refere-se a alegações de violação dos  direitos protegidos pelos  Artigos 1.1, 7, 8 e 25 da  Convenção Americana, conforme as disposições dos  artigos 46 e 47 da  mesma.

 

2.         Notificar o Estado e o peticionário desta decisão.

 

3.         Iniciar o trâmite sobre o mérito do assunto.

 

4.         Publicar o presente relatório e incluí-lo em seu Relatório Anual a ser enviado à Assembléia Geral da OEA.

 

Dado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., no dia 22 de outubro de 2003. Assinado: José Zalaquett, Presidente; Clare Kamau Roberts, Primeiro Vice-Presidente; Susana Villarán, Segunda Vice-Presidenta; Comissionados Robert K. Goldman e Julio Prado Vallejo.

 


 


[1] Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relatório Anual 2001, Relatório Nº 129/01, Caso Nº 12.389, Jean Michel Richardson (Haiti), par. 11 e  seguintes.

[2] Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velásquez Rodríguez, Sentença de 29 de julho de 1988, Serie C, Nº4, pars 135 e 136. Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relatório Nº 28/96, Caso Nº 11.297, Juan Hernández (Guatemala), 16 de outubro de 1996, párrafo 43. 

[3] Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velásquez Rodríguez, Sentença de 29 de julho de 1988, Serie C, Nº4, par 138.  Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relatório Nº 28/96, Caso 11.297, Juan Hernández (Guatemala), 16  de outubro de 1996, par. 45.

[4] Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velásquez Rodríguez, Exceções preliminares, Sentença de 26 de junho de 1987, Serie C, Nº 1, par. 88;  Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Fairén Garbi e Solís Corrales, Exceções preliminares, Sentença de 26 de junho de 1987,  Serie C, Nº 2, par. 87; Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Godínez Cruz, Exceções preliminares, Sentença de 26 de junho de 1987, Serie C, Nº 3, par. 90; Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Gangaram Panday, Exceções preliminares, Sentença de 4 de dezembro de 1991, Serie C, Nº 12, par. 38; Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Loayza Tamayo, Exceções preliminares, Sentença de 31 de janeiro de 1996, Serie C, Nº 25, par. 40.

Ver também Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relatório Anual 1996, Relatório Nº 30/96, Caso 10.897, Arnoldo Juventino Cruz (Guatemala), 16 de outubro de 1996, par. 35.