RELATÓRIO N°05/03

PETIÇÃO 0519/2001

ADMISSIBILIDADE

JESÚS MARÍA VALLE JARAMILLO

COLÔMBIA

20 de fevereiro de 2003

 

I.        RESUMO

 

1.     Em 2 de agosto de 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “a Comissão” ou a “CIDH”) recebeu uma petição apresentada pelo Grupo Interdisciplinario   Direitos Humanos (doravante denominado “os peticionários”)  na  qual se alega a responsabilidade da  República de Colômbia (doravante denominada “o Estado” ou “o Estado colombiano”) no assassinato do advogado e defensor de direitos humanos Jesús María Valle Jaramillo, em 27 de fevereiro de 1998,  na  cidade de Medellín, Colômbia.

 

2.  Os peticionários alegaram que o Estado era responsável pela violação dos  direitos à vida, à integridade pessoal, à liberdade pessoal, à liberdade de expressão e à proteção judicial de Jesús María Valle Jaramillo, consagrados nos  artigos 4(1), 5, 7, 8, 13 e 25 da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada “a Convenção Americana” ou “a Convenção”) em detrimento da  vítima e seus familiares, bem como da  obrigação geral de respeitar e garantir os direitos protegidos no artigo 1(1) deste tratado.  Em resposta, o Estado colombiano argumentou que a petição era inadmissível porque havia cumprido com sua obrigação de esclarecer o assassinato de Jesús María Valle e que os recursos da  jurisdição interna – em particular a jurisdição contencioso-administrativa— estavam pendentes de resolução.  Os peticionários, por sua parte, alegaram que resultava aplicável a exceção ao prévio esgotamento dos  recursos internos por atraso judicial, prevista no artigo 46(2)(c) da  Convenção Americana.

 

3.  Após analisar as posições das partes, a Comissão conclui que era competente para decidir sobre a petição apresentada   peticionários, e que o caso era admissível, à luz dos  artigos 46 e 47 da  Convenção Americana.

 

II.      TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

4.     Em 25 de setembro de 2001, a CIDH deu início ao trâmite da petição N° 0519/2001 conforme as normas do Regulamento vigente a partir de 1° de maio de 2001, e enviou as partes pertinentes da  denúncia ao Estado, com um prazo de dois meses para apresentar observações.  Em 23 de novembro de 2001, o Estado solicitou uma prorrogação  para apresentar sua resposta, a qual foi concedida pela CIDH em 27 de novembro de 2001.  Em 17 de dezembro de 2001, o Estado apresentou sua resposta, a qual foi remetida aos peticionários em 18 de dezembro de 2001, com um prazo de 30 dias para apresentarem suas observações.

 

5.  Em 5 de março de 2002, a CIDH celebrou uma audiência sobre o presente caso no marco de seu 114° período de sessões.  Em 20 de maio de 2002, os peticionários apresentaram sua posição, por nota, sobre a admissibilidade do assunto.  Assim mesmo, solicitaram que fosse incluída a Comissão Colombiana de Juristas como organização co-peticionária.  Em 5 de junho de 2002, a CIDH encaminhou ao Estado a resposta dos  peticionários e solicitou que apresentassem suas observações no prazo de 30 dias.  Em 3 de julho de 2002, o Estado colombiano solicitou uma prorrogação de um mês, a qual foi  devidamente concedida.

 

6.  Em 15 de julho de 2002, a CIDH enviou aos peticionários a documentação apresentada pelo Estado  na  audiência celebrada durante o 114° período de sessões.  Em 15 de agosto de 2002,  o Estado colombiano apresentou suas observações.  Estas observações foram postas a conhecimento dos  peticionários, os quais acusaram recibo da  comunicação assinalando que não desejavam formular alegações adicionais aos já apresentados.

 

III.    POSIÇÕES DAS PARTES

 

A.    Posição do peticionário

 

7.     Jesús María Valle Jaramillo era um advogado antioquenho, professor universitário e líder cívico dedicado à defesa dos  direitos humanos.  Durante os anos 1996 e 1997 o doutor  Valle denunciou ativamente violações aos direitos humanos cometidas pelo paramilitarismo com a colaboração e aquiescência de membros do Exército Nacional no Município de Ituango, situado no noroeste do estado de Antioquia.

 

8.     Os peticionários assinalam que entre março de 1995 e junho de 1996,  os autores do conflito armado cometeram uma série de atos de intimidação contra a população civil de Ituango e havia rumores de que o Exército havia preparado uma lista de aproximadamente uma centena de civis –incluindo o próprio Dr. Valle— com o fim de orientar execuções seletivas por parte de grupos paramilitares.[1]  Segundo surge do expediente, Jesús María Valle alertou  diversas autoridades governamentais e estaduais sobre a necessidade de que adotassem  medidas para proteger a população civil do município de Ituango.[2]

 

9.     Jesús María Valle denunciou a situação perante o próprio Comandante da  IV Brigada e o então Governador de Antioquia.  Em 10 de julho de 1997, denunciou, através dos meios de comunicação, a ação conjunta de tropas adstritas à IV Brigada e grupos paramilitares, e depois foi acusado penalmente por calúnias perante os tribunais.

 

10. Conforme depreende-se da informação aportada   peticionários, em 27 de fevereiro de 1998,  dois homens ingressaram no escritório de Jesús María Valle Jaramillo  na  cidade de Medellín enquanto este realizava uma reunião com o senhor Fernando Jaramillo Correa, na presença de sua secretária e irmã, a senhora Nelly Valle.  Os desconhecidos amarraram os reféns no solo, e depois dispararam com pistola calibre 380 na cabeça de Jesús María Valle Jaramillo, que faleceu naquele instante.  Apesar de os agressores terem anunciado sua afiliação à guerrilha no momento de sua chegada, os peticionários alegam que antes de retirarem-se, admitiram que seus atos respondiam aos interesses de agentes do Estado dizendo: “nós não somos da coordenadora nacional guerrilheira; este homem era muito importante para nós e para o Exército, se havia metido muito com o Exército”.[3]

 

11. Os peticionários alegam que a animosidade de membros do Exército por Jesús María Valle Jaramillo teve origem em sua denúncias sobre graves violações aos direitos humanos no município de Ituango, e concretamente, sobre vínculos, colaboração ou tolerância entre membros do Exército e grupos paramilitares.  Asseguram que a Procuradoria Regional de Medellín conseguiu concluir que existia prova contundente para determinar que sua morte havia sido perpetrada por membros de grupos paramilitares, sob ordens do já falecido General Alfonso Manosalva Florez, Comandante da  IV Brigada do Exército.

 

12. Com relação à admissibilidade da petição, os peticionários alegam que o requisito do prévio esgotamento dos  recursos internos previsto no artigo 46(1) da  Convenção Americana não resulta aplicável, por aplicação da exceção prevista no artigo 46(2)(c) do tratado.  Concretamente alegam que houve um atraso injustificado  na  administração de justiça com relação ao esclarecimento sobre a morte de Jesús María Valle.

 

13. Com relação ao processo, os peticionários indicam que a Procuradoria de Medellín vinculou à investigação e ordenou a detenção de sete pessoas contra as quais formulou acusação formal em 21 de maio de 1999 por homicídio agravado e qualificado, formação de grupos ilegalmente armados e sequestro simples, juntamente com três réus ausentes.  Indicam que os procuradores que investigavam o caso tiveram que abandoná-lo e, em alguns casos,tiveram inclusive que buscar refúgio no estrangeiro por causa das ameaças de morte proferidas contra eles durante o curso da  investigação.  Em 15 de março de 2001, após uma demora de dez meses, o Juiz a cargo não admitiu as provas e prolatou sentença absolutória em favor de todos os acusados.

 

14. Os peticionários alegam que no momento da  apresentação da petição perante a CIDH não havia pessoas detidas em virtude da  investigação.  A Procuradoria, por sua parte, havia instaurado um recurso para que se revogasse a sentença absolutória.  Em vista da  ausência de acusados ou indiciados pela morte de Jesús María Valle Jaramillo, os peticionários alegaram nessa oportunidade que os tribunais locais não lhe deram trâmite oportuno ao caso.  Assinalaram a ausência de investigações disciplinares pelo envolvimento de membros do Exército, da  Polícia ou de funcionários públicos, e que o prazo de cinco anos para dar início a estas ações está por vencer.

 

15. Em face do argumento do Estado sobre a falta de esgotamento dos  recursos internos, os peticionários alegaram que embora a petição não esteja inserida no artigo 46(1) da  Convenção, isto não se deve ao fato de que a investigação disciplinar e o contencioso- administrativo estejam pendentes de resolução, mas sim que após transcorridos quatro anos desde que ocorreram os fatos, ainda existam investigações penais pendentes.[4]  Os peticionários consideram que o Estado não esclareceu os fatos nem sancionou todos os responsáveis dado que a sentença que condenou as duas pessoas como responsáveis pelo assassinato não esclareceu as circunstâncias que o rodearam, seus motivos, a identidade de seus autores, nem a relação do crime com as ameaças que Jesús María Valle Jaramillo havia sofrido antes de suas denúncias sobre os vínculos de membros do Exército com o paramilitarismo  na  zona.  Consequentemente, consideram que a investigação penal que o Estado considera concluída não funcionou como um recurso eficaz conforme os padrões do sistema interamericano.  Por último, os peticionários alegaram que os recursos administrativos e disciplinares não constituem, à luz da  jurisprudência do sistema interamericano, recursos adequados para proteger os direitos vulnerados.

 

16. Por outra parte, quanto à alegação do Estado conforme a qual configuraria quarta instância se a CIDH estudasse o processo penal levado a cabo no âmbito interno, os peticionários reconheceram  que a sentença emitida pelo tribunal local é um grande avanço na  administração de justiça. Contudo, consideram que os motivos do assassinato, a totalidade dos  co-autores do assassinato e os autores intelectuais do fato não haviam sido determinados.[5]  Alegam que ao não ter produzido resultados para os quais foi estabelecida, não considera um recurso eficaz à luz da  Convenção Americana.

 

B.         Posição do Estado

 

17. O Estado alega que cumpriu com sua obrigação de administrar justiça com relação ao assassinato de Jesús María Valle.  Alega que foram prolatadas sentenças condenatórias na esfera penal e que existem investigações abertas e ainda pendentes de resolução.  Indica também que existe resolução em matéria disciplinar e que o processo contencioso-administrativo está em plena dinâmica processual.[6]

 

18. A informação enviada pelo Estado em suas alegações indica que inicialmente a investigação penal pela morte de Jesús María Valle Jaramillo foi efetuada pela Procuradoria Regional de Medellín sob o expediente n. 26.017 e que foi decretada medida de segurança contra Jaime Angulo Osorio, Elkin Dario Granada López, Alexander Vallejo Echeverry, Carlos Alberto Bedoya Marulanda, Omar Tobón Echeverry e Gilma Patricia Gaviria Palacio.  Também foram vinculados à investigação Jorge Eliécer Rodríguez Guzmán, Alvaro Goez Mesa, Carlos Castaño Gil y Francisco Antonio Osorio.  Em 21 de maio de 1999, os senhores Jaime Alberto Angulo Osorio, Carlos Castaño Gil e Francisco Antonio Angulo Osorio foram objeto de resolução de acusação como responsáveis do assassinato de Jesús María Valle Jaramillo e co-autores do delito de formação, orientação  e financiamento de grupos armados à margem da  lei. A sua vez, foi proferida uma resolução acusatória contra Elkin Dario Granada López, Alexander Vallejo Echeverry, Gilma Patricia Gaviria Palacio, Jorge Eliécer Rodríguez Guzmán e Alvaro Goez Mesa, como co-autores materiais do delito de homicídio e como co-autores do delito formação de grupos armados ilegais.  Também foi emitida uma resolução de acusação contra Omar Tobón Echeverry como mandante do delito de homicídio agravado.

 

19. Em março de 2001, o Juizado Especializado de Medellín condenou Alvaro Goez Mesa e Jorge Eliecer Rodríguez Guzmán a 40 anos de prisão como autores materiais do homicidio de Jesús María Valle Jaramillo e a Carlos Castaño Gil a 20 anos de prisão e pagamento de multa, por ser co-autor do delito de formação, orientação e financiamento de grupos à margem da lei.  Os outros acusados foram absolvidos na mesma sentença.  A decisão foi impugnada perante Juízes Criminais do Circuito Especializado tanto   defensores de ofício dos  condenados como pela Procuradoria Delegada.  Em 25 de junho de 2001, o Tribunal Superior de Medellín confirmou a decisão do juiz a quo e reduziu a sentença imposta a Carlos Castano Gil de 20 a 9 anos de prisão e a de Alvaro Goez Mesa e Jorge Eliecer Rodríguez Guzmán de 40 a 25 anos de prisão, em virtude do princípio da lei mais benéfica e da entrada em vigor do novo Código Penal.

 

20.          Ao executar-se a resolução de acusação foi determinada a ruptura da  unidade processual da  causa e se continuou com a investigação, expediente n. N° 343431.  Durante estas atuações, foi ordenada a captura de Nicolás Ángel García Graciano ou Fredy Hernández Ramírez ou Restrepo,   delitos de formação de grupos armados ilegais, homicídio agravado e sequestro simples de Jesús María Valle Jaramillo e sua irmã.  Em 16 de março de 2000, foi prolatada resolução acusatória contra as pessoas vinculadas à investigação.  Em 19 de dezembro de 2001, foi ordenada a prática de provas e outras diligências investigativas, com o objetivo de determinar a responsabilidade de outras pessoas no homicídio de Jesús María Valle Jaramillo.

 

21.          O Estado alega que, em matéria disciplinar, em 13 de junho de 2002, a Procuradoria Delegada para a Defesa dos  Direitos Humanos arquivou a indagação preliminar sobre a responsabilidade de agentes do Estado no homicídio de Jesús María Valle por falta de provas para vincular os servidores públicos.

 

22. Quanto à determinação da  possível responsabilidade do Estado perante a jurisdição contencioso-administrativa, o processo de reparação direta iniciado em 16 de março de 2000 por María Magdalena Valle Jaramillo perante o Tribunal Administrativo de Antioquia, contra o Estado Nacional, o Ministério de Defesa, o Exército Nacional, a Polícia Nacional, o Ministério do Interior, o DAS, o Departamento de Antioquia e o Município de Medellín estão em  etapa probatória.

 

23. Com base nesta informação, o Estado considera estar cumprindo com sua  obrigação de investigar, julgar e punir os responsáveis pelo crime dentro de um prazo razoável.  Alega que a petição do peticionário com relação à suposta falta de esclarecimento do crime  está baseada em seu desacordo com os resultados alcançados pelo processo judicial e que, portanto, deve ser indeferido pela CIDH por configurar uma quarta instância.

 

24. O Estado argumenta também que a petição é inadmissível por descumprir com o requisito do prévio esgotamento dos  recursos da  jurisdição interna, dado que o processo contencioso-administrativo está pendente de resolução e a investigação penal ainda está aberta.  Alega que as exceções ao cumprimento deste requisito não são aplicáveis dado que não houve atraso injustificado nos  processos tramitados em relação a este assunto.

 

IV.  ANÁLISE SOBRE COMPETÊNCIA E ADMISSIBILIDADE

 

A.    Competência

 

25. Os peticionários estão facultados pelo  artigo 44 da  Convenção Americana para apresentar denúncias perante a CIDH. A petição assinala  como supostas vítimas indivíduos, para os quais a Colômbia comprometeu-se a respeitar e garantir os direitos consagrados na  Convenção Americana.  No que se refere ao Estado, a Comissão assinala que a Colômbia é um  Estado parte na  Convenção Americana desde 31 de julho de 1973, data em que depositou o  instrumento de ratificação respectivo.  Portanto, a Comissão tem competência ratione pessoae para examinar a petição.

 

26.          A Comissão tem competência ratione loci para conhecer a petição, porque a petição alega violações de direitos protegidos na  Convenção Americana que teriam ocorrido dentro do território de um Estado parte neste tratado. A CIDH tem competência ratione temporis, porque a obrigação de respeitar e garantir os direitos protegidos na  Convenção Americana já se encontrava em vigor para o Estado na data em que haviam  ocorrido os fatos alegados na  petição. Por último, a Comissão tem competência ratione materiae porque na petição se denunciam violações a direitos humanos protegidos pela  Convenção Americana.

 

 

B.       Requisitos de Admissibilidade

 

1.       Esgotamento dos  recursos internos e prazo de apresentação da petição

 

27. O Estado alega, por um lado, que cumpriu com sua obrigação de administrar justiça visto que foram decretadas duas sentenças condenatórias em relação ao assassinato de Jesús María Valle.  O  Estado também argumenta que a petição dos peticionários descumpre com o  requisito previsto no artigo 46(1) da  Convenção Americana sobre o prévio esgotamento dos  recursos internos.  Concretamente considera que os peticionários devem esgotar o recurso contencioso-administrativo e aguardar a resolução do processo penal pendente.  Os peticionários, por sua parte, alegam que o processo tramitado e concluído em relação aos três civis não esclareceu o assassinato de Jesús María Valle e que existe um atraso injustificado  na  conclusão da  investigação penal, e que não tem a obrigação de esgotar o recurso contencioso-administrativo antes de acudir a instância internacional.

 

28. Em segundo lugar, corresponde esclarecer quais são os recursos internos que devem ser esgotados no presente caso.  A Corte Interamericana assinalou que somente  devem ser esgotados os recursos adequados para sanar as violações supostamente cometidas.  E que os recursos sejam adequados significa que

 

a função desses recursos dentro do sistema de direito interno seja idônea para proteger a situação jurídica infringida.  Em todos os ordenamentos internos existem múltiplos recursos, mas não todos são aplicáveis em todas as circunstâncias.  Se, num caso específico, o recurso não é adequado, é óbvio que não há que esgotá-lo.  Assim o indica o princípio de que a norma está encaminhada a produzir um efeito e não pode ser interpretada no sentido de que não produza nenhum resultado ou este seja manifestamente absurdo ou irrazoável.[7]

 

A jurisprudência da  Comissão reconhece que toda vez que é cometido um delito de ação pública, o Estao tem a obrigação de promover e impulsionar o processo penal até as suas últimas consequências[8] e que, nesses casos, esta constitui a via idônea para esclarecer os fatos, julgar os responsáveis e estabelecer as sanções penais correspondentes, além de possibilitar outros modos de reparação de tipo pecuniário.  A Comissão considera que os fatos alegados   peticionários no presente caso envolvem a suposta vulneração de direitos fundamentais que estão caracterizados na  legislação interna como delitos de ação pública e que, portanto, é este processo impulsionado pelo próprio Estado, o que deve ser considerado para efeitos de determinar a admissibilidade da petição.

 

29. O Estado considera que o recurso contencioso-administrativo disponível  conforme a legislação interna deve ser também esgotado antes de considerar habilitada a jurisdição da  Comissão.  Entretanto, a CIDH estabeleceu em casos similares ao presente que a jurisdição contencioso-administrativa constitui exclusivamente um mecanismo de supervisão  da atividade administrativa do Estado destinada a obter indenização por danos e prejuízos  causados por abuso de autoridade.[9]  Em geral, este processo não constitui um mecanismo adequado, per se, para reparar casos de violações aos direitos humanos, motivo pelo qual não é necessário que seja esgotado num caso como o presente quando existe outra via para conseguir tanto a reparação do dano como o julgamento e sanções exigidos.[10]

 

30. No que respeita a exceção do cumprimento do requisito de esgotamento dos  recursos internos interposta   peticionários, o artigo 46(2)(a) da  Convenção estabelece que este requisito não é aplicável quando:

 

a)   não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados;

b)   não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; e

c)   houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.

 

31. Segundo assinalado anteriormente, e conforme surge da  informação aportada por ambas partes, transcorridos cinco anos do assassinato de Jesús María Valle, a investigação do caso não foi concluida, nem as ordens de prisão proferidas contra os condenados ausentes, nem executadas as ordens contra os acusados vinculados à investigação, o que constitui uma manifestação de atraso.  Como regra geral, uma investigação penal deve ser realizada prontamente para proteger os interesses das vítimas, preservar a prova e salvaguardar os direitos de toda pessoa que no contexto da  investigação seja considerada suspeita.  Segundo assinalado pela Corte Interamericana, embora toda investigação penal deva cumprir com uma série de requisitos legais, a regra do prévio esgotamento dos  recursos internos não deve conduzir a que a atuação internacional em auxílio das vítimas seja impedida ou se demore até a inutilidade.[11]

 

32. Cabe fazer referência também à alegação do Estado no sentido de que está cumprindo com sua obrigação convencional de investigar seriamente o assassinato dentro de um prazo razoável.  Neste sentido, cabe ressaltar que a condenação judicial de três civis pelo assassinato, incluindo o líder das AUC Carlos Castano, constitui um elemento significativo  na  consideração do funcionamiento dos  mecanismos internos no presente assunto.  Contudo, além de seu significado formal, a Comissão deve considerar em que medida estas condenações podem ser traduzidas em um remédio efetivo.  Neste sentido, a CIDH observa que os condenados ausentes não foram capturados, que o Estado não apresentou informação específica sobre os esforços iniciados neste sentido e que do contexto de público conhecimento se depreende que existem poucas perspectivas de dar conteúdo substantivo a estas condenações e dessa forma oferecer um remédio efetivo.[12]

 

33. A este fato se soma o contexto no qual deu-se a investigação, o qual supostamente, afeta sua eficácia como recurso para o esclarecimento judicial dos  fatos.  As ameaças das que foram vítimas os procuradores encarregados da  investigação, que motivaram seu rumo ao exílio, demonstram que as perspectivas de efetividade da  investigação judicial estão longe de ser equivalentes àquelas de um recurso que necessariamente deve ser esgotado antes de recorrer à proteção internacional dos  direitos humanos.

 

34. Portanto, dadas as características e o contexto do presente caso, a Comissão considera que é aplicável a exceção prevista no artigo 46(2)(c) da  Convenção Americana, além de certas considerações em relação às perspectivas de efetividade dos  recursos disponíveis, motivo pelo qual não são aplicáveis os requisitos previstos  na Convenção Americana em matéria de esgotamento dos recursos internos e, em consequência, o prazo de seis meses para a apresentação da petição.

 

35. Cabe assinalar que a invocação das exceções à regra do esgotamento dos  recursos internos prevista no artigo 46(2) da  Convenção está estreitamente ligada à determinação de possíveis violações a certos direitos nela consagrados, tais como as garantias de acesso à justiça.  Entretanto, o artigo 46(2), por sua natureza e objeto, é uma norma com conteúdo autônomo vis á vis as normas substantivas da Convenção.  Portanto, a determinação de se as exceções à regra de esgotamento dos  recursos internos previstas nas letras (a), (b) e (c) desta norma são aplicáveis ao caso em questão deve ser efetuada de maneira prévia e separada da análise de mérito do assunto, visto que depende de um padrão de apreciação distinto daquele utilizado para determinar a violação dos  artigos 8 e 25 da  Convenção.  Cabe esclarecer que as causas e os efeitos que impediram o esgotamento dos  recursos internos serão analisados no Relatório a ser adotado pela CIDH sobre o mérito da controvérsia, a fim de constatar se configuram violações à Convenção Americana.

 

2.     Duplicação de procedimentos e coisa julgada

 

36. Não surge do expediente que a matéria da  petição esteja pendente de outro procedimento de acordo internacional, nem que reproduza uma petição já examinada por este ou outro órgão internacional.  Portanto, cabe dar por cumpridos os requisitos estabelecidos nos  artigos 46(1)(c) e 47(d) da  Convenção.

 

3.     Caracterização dos  fatos alegados

 

37.          A Comissão considera que as alegações dos  peticionários relativas à suposta violação dos  direitos à vida, à integridade pessoal, à liberdade pessoal, e à proteção judicial das vítimas e seus familiares poderiam caracterizar uma violação dos  direitos garantidos nos artigos 4, 5, 7, 8 e 25, em conjunção com o artigo 1(1), da  Convenção Americana.  Com relação à alegada violação ao artigo 13 da  Convenção Americana, a Comissão entende que não foi especificamente fundamentada   peticionários.

 

V.    CONCLUSÕES

 

38.          A Comissão conclui que o caso é admissível e que é competente para examinar a petição apresentada   peticionários sobre a suposta violação dos  artigos 4, 5, 7, 8 e 25 em concordância com o artigo 1(1) da  Convenção, conforme os requisitos estabelecidos nos  artigos 46 e 47 da  Convenção Americana.

 

39.          Em virtude dos  argumentos de fato e de direito antes expostos, e sem prejulgar sobre o mérito do assunto,

 

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.        Declarar admissível o caso sob estudo, em relação aos artigos 1(1), 4, 5, 7, 8 e 25 da  Convenção Americana.

 

2.         Notificar o Estado e o peticionário desta decisão.

 

3.         Iniciar o trâmite sobre o mérito do assunto.

 

4.       Publicar o presente relatório e inclui-lo em seu Relatório Anual a ser enviado à Assembléia Geral da OEA.

 

Dado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., no dia 20 de fevereiro de 2003. (Assinado): Juan Méndez, Presidente; Marta Altolaguirre, Primeira Vice-Presidenta; José Zalaquett, Segundo Vice-Presidente; Comissionados:  Robert K. Goldman, Clare Kamau Roberts, Júlio Prado Vallejo e Susana Villarán.


 


[1] As apreciações contidas em suas denúncias coincidiam com as observações formuladas em relatórios de entidades oficiais.  O Relatório de Avaliação 139, Expediente 1144 da  Procuradoria estadual de Antioquia de 22 de outubro de 1996, bem como os relatórios do chamado Comitê de Segurança de maio e junho de 1996, dão conta da presença paramilitar  na  zona.

[2] Entre os alertas antecipados e as violações aos direitos humanos denunciadas por Jesús María Valle as execuções e deslocamentos que ocorreram nos corregimentos da  Granja e El Aro no início de 1996, com relação aos quais a CIDH está estudando alegações sobre a possível responsabilidade do Estado pela violação da Convenção Americana.  Ver Relatório 57/00 A Granja, Ituango, Relatório Anual da CIDH 2000, e Relatório 75/01 El Aro, Ituango, Relatório Anual da  CIDH 2002.

[3] Petição original apresentada pelo GIDH em 2 de agosto de 2001.  Estes dois agressores aparecem extraídos literalmente da  Resolução que qualifica o sumário dos réus no Expediente Nº 26. 017, Procuradoria Geral da  Nação, Procuradoria Delegada perante os Juízes Regionais de Medellín, página 3.

[4] Comunicação apresentada   peticionários em 20 de maio de 2002.

[5] Comunicações apresentadas   peticionários em 20 de maio de 2002 e 18 de novembro de 2002.

[6] Nota EE. 50988 do Ministério de Relações Exteriores da  República de Colômbia de 17 de dezembro de 2001, e Nota DDH 30216 do Ministério de Relações Exteriores da  República de Colômbia de 15 de agosto de 2002.

[7] Corte IDH. Caso Velásquez Rodríguez, Sentença de 29 de julho de 1988, parágrafo 63.

[8] Relatório Nº 52/97, Caso 11.218, Arges Sequeira Mangas, Relatório Anual da  CIDH 1997, parágrafos 96 e 97.  Ver também Relatório N° 55/97, parágrafo 392. Relatório 57/00 La Granja, Ituango, Relatório Anual da CIDH 2000, parágrafo 40.

[9] Relatório N° 15/95, Relatório Anual da  CIDH 1995, parágrafo 71; Relatório N° 61/99, Relatório Anual da  CIDH 1999, parágrafo 51.

[10] Relatório N° 5/98, Caso 11.019, Alvaro Moreno Moreno, Relatório Anual da  CIDH 1997, parágrafo 63.

[11] Corte IDH Caso Velásquez Rodríguez, Exceções Preliminares, Sentença de 26 de junho de 1987, parágrafo 93.

[12] Ver também Relatório N° 55/97, parágrafo 392. Relatório 57/00 La Granja, Ituango, Relatório Anual da  CIDH 2000, parágrafo 40.