RELÁTORIO Nº 59/03

PETIÇÃO 071/01

ADMISSIBILIDADE

SONIA ARCE ESPARZA

CHILE[1]

10 de outubro de 2003

 

 

 

I.        RESUMO

 

1.       O  presente relátorio refere-se à admissibilidade da  petição P071/01, cujo trâmite teve início pela  Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada  “a Comissão” ou “a CIDH”) depois de ter recebido uma petição em 30 de janeiro de 2001 e a documentação que a fundamenta, em 27 de agosto de 2001.  A petição foi interposta por Sonia del Carmen Arce Esparza, a suposta vítima, e a Corporação da  Morada (doravante denominada “os peticionários”) contra a República do Chile (doravante denominada “o Estado”).  Conforme o pedido dos  peticionários, foi aceito como co-peticionário, em outubro  de 2001, o Centro pela  Justiça e Direito Internacional (CEJIL).

 

2.       Os peticionários alegam que certos artigos do Código Civil chileno violam os direitos da  Sra. Arce Esparza consagrados nos artigos 1, 2, 17, 21, 24 e 25 da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada “a Convenção Americana”) e os artigos 1, 2, 5(a), 15(1), 15(2) e 16(1) da  Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher. En particular, los peticionários argumentan que el artigo 1749 del Código Civil chileno, que autoriza o cônjugue homem a atuar como único administrador dos  bens da cônjugue, viola os direitos da  suposta vítima. Os peticionários alegam que outros artigos do Código Civil chileno relacionados com a administração de bens entre cônjugues também violam os direitos da  suposta vítima, a saber, os artigos 1750, 1752 e 1754 deste Código.  Os peticionários afirmam que satisfizeram os requisitos de admissibilidade da  Comissão e que estão isentos de esgotar os recursos internos ou que, de forma alternativa, esgotaram todos os recursos.

 

3.       O Estado afirma, por sua parte, que a petição deve ser declarada inadmissível por não ter esgotado os recursos internos. Afirma que a Sra. Arce Esparza não invocou total ou devidamente dois recursos pertinentes: (1) o recurso de proteção, e (2) o recurso de inaplicabilidade por inconstitucionalidade (doravante denominados o “recurso de inaplicabilidade”).

 

4.       Como indicado mais adiante, de acordo com a sua análise, a Comissão conclui que é competente para examinar as denúncias dos  peticionários em relação a violação dos  artigos 1, 2, 17, 21, 24 e 25 da  Convenção Americana.

 

II.       TRâMITE PERANTE A COMISSÃO

 

5.       Em 30 de janeiro de 2001, a Comissão recebeu uma petição interposta pelos  peticionários Sonia del Carmen Arce Esparza e a Corporação da  Morada.  Em 21 de março de 2001, a Comissão informou aos peticionários que não se podia iniciar o trâmite correspondente a essa altura porque a informação apresentada não indicava que haviam esgotado os recursos internos.

 

6.       Em 25 de abril de 2001, os peticionários enviaram a Comissão uma resposta de quatro páginas em que alegavam que estavam isentos de esgotar a via interna devido à inexistência de recursos efetivos. Em 9 de maio de 2001, a Comissão enviou uma nota aos peticionários informando-lhes que continuava sendo insuficiente a informação sobre o esgotamento dos  recursos internos para iniciar o trâmite.

 

7.       Em 27 de agosto de 2001, os peticionários enviaram à Comissão informação adicional sobre o esgotamento dos  recursos internos. Em 25 de setembro de 2001, a Comissão informou aos peticionários que havia iniciado o trâmite da  petição. Na mesma data, a Comissão enviou ao Estado as partes pertinentes da  petição, solicitando-lhe uma resposta dentro dos  90 dias, de acordo com o artigo 30(3) do Regulamento. 

 

8.       Em 17 de outubro de 2001, o peticionário, Corporação da  Morada, enviou uma carta à Comissão solicitando que o Centro pela  Justiça e Direito Internacional (CEJIL) fosse também incorporado como co-peticionário.  Em  1 de novembro de 2001, a peticionária Sonia Arce Esparza solicitou também que CEJIL fosse  incorporado como co-peticionário.

 

9.       Em 28 de novembro de 2001, o Estado dirigiu-se por escrito à Comissão solicitando uma prorrogação para apresentar sua resposta. Em  7 de janeiro de 2002, a Comissão concedeu o pedido, de conformidade com o artigo 30(3) de seu Regulamento.

 

10.     Em 22 de janeiro de 2002, a Comissão recebeu uma carta dos  peticionários na  qual solicitavam uma audiência perante a Comissão e o Estado. A Comissão concedeu o solicitado em 6 de fevereiro de 2002. A audiência foi celebrada em 6 de março, no  curso do 114º período ordinário de sessões, para escutar as posições das partes  quanto à admissibilidade do caso. Ambas partes estiveram representadas e participaram devidamente.

 

11.     O Estado apresentou sua resposta à Comissão em 7 de março de 2002. A Comissão remeteu aos peticionários a resposta do Estado em 19 de março de 2002, solicitando-lhes as observações dentro do prazo de um mes. Até esta data, os peticionários não haviam respondido.

 

 

III.    POSIÇÃO DAS PARTES    

 

A.      Os peticionários

 

12.     Os peticionários argumentam que certos artigos do Código Civil chileno violam os direitos da  Sra. Arce Esparza protegidos pela  Convenção Americana e a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher. Em particular, os peticionários afirmam que os artigos do Código Civil relacionados com os direitos e obrigações dos  cônjugues na  administração de seus bens violam os artigos 1, 2, 17, 21, 24 e 25 da  Convenção Americana e os artigos 1, 2, 5(a), 15(1), 15(2) e 16(1) da  Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher.

 

13.     Em 28 de fevereiro de 1976, a Sra. Arce Esparza contraiu matrimônio com Patricio Salinas Arce, submetendo-se assim às disposições do Código Civil sobre a administração dos  bens entre cônjugues. Em 1994, depois do falecimento de seus pais, a Sra. Arce Esparza herdeu alguns imóveis. Quando tentou vendê-los, o agente imobiliário encarregado da  venda negou-se a concluir a transação sem o consentimento do esposo da  Sra. Arce Esparza, como requer o artigo 1749 do Código Civil chileno.

 

14.     Os peticionários argumentam que o artigo 1749, bem como os demais artigos relacionados com à administração de bens entre cônjugues, violam direitos protegidos da  Sra. Arce Esparza. O artigo 1749 do Código Civil considera o marido chefe da  união conjugal e, como tal, o único administrador dos  bens do casal e da  esposa. “O marido é chefe da  sociedade conugal, e como tal administra os bens sociais e os de sua mulher…”.[2]  Esta lei exige o consentimento do esposo para toda decisão que afete os bens de sua cônjugue, o que significa que a Sra. Arce Esparza não pode vender seus bens sem o consentimento do esposo.

 

15.     O artigo 1754 estabelece que a esposa não pode administrar seus próprios bens, exceto em circunstâncias extraordinárias. “A mulher não poderá alienar ou  gravar nem  dar em alienação ou ceder a posse  dos  bens de sua propriedade que administre o marido, exceto nos casos do artigo 138”.[3]  O artigo 1752 dispõe expressamente que a esposa não tem direitos sobre os bens do casal durante o matrimônio.  “A mulher por si só não tem direito algum sobre os bens sociais durante a sociedade”.[4]  Ademais, o artigo 1750 do Código Civil dispõe que os bens do esposo e os bens conjugais devem ser considerados um para efeitos  de terceiros tais como os credores.  “O marido é, a respeito de terceiros dono dos  bens sociais, como se eles e seus bens próprios formassem um só  patrimônio, de maneira que durante a sociedade os credores do marido poderão perseguir tanto os bens deste como os bens sociais; sem prejuízo dos  abonos ou compensações que, em consequência disto, deva o marido à sociedade ou a sociedade ao marido”.[5]  Os peticionários consideram que os artigos impugnados violam diretamente os direitos da  Sra. Arce Esparza protegidos pela  Convenção Americana, em particular, seu direitos à igual proteção e ao pleno gozo de seu direito à propriedade, como lo es la capacidad de comprar y vender tierras libremente.

 

16.     Os peticionários defendem que a lei não oferece alternativa real alguma à Sra. Arce Esparza para administrar seus próprios bens.  A alternativa seria a Sra. Arce Esparza pedir a seu esposo o consentimento para administrar seus próprios bens. Os peticionários argumentam que isto é impossível (pois o esposo da  Sra. Arce Esparza não pode ser localizado) e discriminatório, posto que estaria obrigada a depender do consentimento de seu cônjugue.  Outra alternativa seria a Sra. Arce Esparza solicitar autorização ao juiz para administrar seus próprios bens, o que exigiria demonstrar uma causa especial (por exemplo, que seu esposo nega o consentimento sem justificação).  Os peticionários consideram que ter que demonstrar uma causa especial limita injustificavelmente o direito da  Sra. Arce Esparza a administrar seus bens.

 

17.     Os peticionários argumentam que satisfizeram os requisitos de admissibilidade da  Comissão. Especificamente, quanto ao requisito de esgotamento dos  recursos internos, os peticionários alegam que estão isentos de cumprir com esse requisito em virtude do artigo 46(2)(a) ou, em caso alternativo, que esgotaram os recursos internos. 

 

18.     Os peticionários afirmam que estão isentos de esgotar a via interna porque os dois recursos disponíveis, o recurso de proteção e o recurso de inaplicabilidade, são inadequados.  Ambos formulam como requisito prévio para aceder ao recurso que exista um processo penal em curso em um tribunal inferior que esteja aplicando a suposta lei inconstitucional contra a Sra. Arce Esparza. Isto  significa que, para ter acesso ao recurso, a Sra. Arce Esparza, primeiramente, teria que apresentar-se perante um juiz e solicitar permissão para administrar seus próprios bens e essa permissão teria que ser negada. Os peticionários argumentam que esses recursos são inadequados, por duas razões: primeiramente, porque, ao ter que pedir permissão ao juiz para administrar seus próprios bens, a Sra. Arce Esparza teria que submeter-se precisamente à discriminação que está impugnando. Segundo, porque estes recursos não atendem à alegação da  Sra. Arce Esparza de que os artigos impugnados, ainda que na ausência de aplicação direta por um juiz para impedir-lhe de vender seus bens, são violatórios de seus direitos. 

 

19.     Alternativamente, os peticionários argumentam que a Sra. Arce Esparza esgotou os recursos internos. Em 2 de agosto de 2001, a Sra. Arce Esparza interpôs um recurso de proteção perante a Alta Corte de Apelações de Santiago, o qual foi indeferido em 6 de agosto de 2001.  A Corte declarou improcedente a apelação porque os fatos alegados estavam fora do âmbito desse recurso.[6]  Os peticionários defendem que esta negativa a sua apelação prova o esgotamento dos  recursos internos.

 

B.       O Estado

 

20.     O Estado não controverteu as denúncias dos  peticionários. Pelo  contrário, argumenta, primeiramente, que a legislação chilena protege os direitos da  Sra. Arce Esparza e, segundo, que a petição deve ser desacolhida por não ter esgotado os recursos internos.

 

21.     O Estado chileno defende que a legislação chilena protege os direitos da  Sra. Arce Esparza.  A Constituição do Chile protege o direito à igualdade perante a lei.[7] Ademais, a legislação chilena garante expressamente o direito à igualdade entre o  homem e a mulher. “[H]homens e mulheres são iguais perante a lei.”.[8]  Outra lei chilena garante expressamente o direito de todos ao pleno gozo de seus direitos à propriedade.  “[Todos tem] direito de propriedade em suas diversas espécies e sobre toda classe de bens [de tal maneira que] ninguém pode ser privado deste direito…”.[9]  Existe também uma doutrina chilena segundo a qual toda lei anterior à Constitução será  considerada tacitamente derrogada quando está em conflito com as garantias constitucionais. Neste caso –diz o Estado- o artigo 1749 é anterior à Constitução, motivo pelo qual não se aplica a ele.  Ademais, o Estado argumenta que aquele que tentar de fazer cumprir esta lei contra uma pessoa estará violando esse direito individual e, quando se viola um direito individual, a pessoa prejudicada tem acesso a recursos internos efetivos.

 

22.     No presente caso, o Estado afirma que a Sra. Arce Esparza tem acesso a dois recursos efetivos: (1) o recurso de proteção, e (2)o recurso de inaplicabilidade.  Enquanto os peticionários caracterizam os recursos como ineficazes, o Estado considera que a Sra. Arce Esparza não os invocou devidamente.  No  caso do recurso de proteção, a razão da  denegação da  apelação foi que a vítima não impugnou uma aplicação ilegal da  lei, como  exige o recurso. Na realidade, argumentou que a próprias leis violavam seus direitos. No  caso do recurso de inaplicabilidade, a suposta vítima ainda não invocou este recurso ou satisfez seu requisito prévio de que exista um processo legal em um tribunal inferior en que la lei alegadamente inconstitucional está sendo aplicando contra a vítima. Portanto, o Estado entende que os peticionários não podem argumentar que os recursos sejam inadequados até  que os tenha invocado devidamente. O Estado afirma também que o requisito de esgotamento não foi satisfeito porque os peticionários, por sua própria vontade, nunca invocaram o  recurso de inaplicabilidade.  O Estado defende que, por todas estas razões,  a petição não deve ser aceita pois não foram esgotados os recursos da  via interna.

 

IV.     ANÁLISE DE  ADMISSIBILIDADE

 

A.      Competência da  Comissão ratione pessoae, ratione   materiae, ratione temporis e ratione loci

 

23.     Os peticionários estão facultados pelo  artigo 44 da  Convenção Americana para apresentar denúncias perante a CIDH. A petição assinala  como supostas vítimas indivíduos, para os quais o Chile comprometeu-se a respeitar e garantir os direitos consagrados na  Convenção Americana.  No que se refere ao Estado, a Comissão assinala que o Chile é um  Estado parte na  Convenção Americana desde 21 de agosto de 1990, data em que depositou o  instrumento de ratificação respectivo.  Portanto, a Comissão tem competência ratione pessoae para examinar a petição.

 

24.     A Comissão tem competência ratione loci para conhecer a petição, porque a petição alega violações de direitos protegidos na  Convenção Americana que teriam ocorrido dentro do território de um Estado parte neste tratado. A CIDH tem competência ratione temporis, porque a obrigação de respeitar e garantir os direitos protegidos na  Convenção Americana já se encontrava em vigor para o Estado na data em que haviam  ocorrido os fatos alegados na  petição. Por último, a Comissão tem competência ratione materiae porque na petição se denunciam violações aos direitos humanos protegidos pela  Convenção Americana.

 

B.       Outros requisitos da  admissibilidade da  petição

 

a.       Esgotamento dos  recursos internos

 

          25.     O artigo 46(1) da Convenção Americana estabelece que para que um caso possa ser admitido é preciso que “se tenha interposto e esgotado os recursos de jurisdição interna, conforme os princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos”.  Este requisito existe para garantir ao Estado afetado a oportunidade de resolver as disputas dentro de seu próprio contexto legal. Mas, quando, como questão de fato ou de direito, não existem recursos internos efetivos, se isenta do requisito de esgotá-los. O artigo 46(2) da  Convenção especifica que esta exceção é aplicável quando: a legislação do Estado afectado não oferece o devido processo legal para a proteção do direito supostamente violado; a parte que alega a violação viu-se impossibilitada de ter acesso aos recursos internos, ou houve demora indevida no  pronunciamento da  sentença definitiva. Em consequência, quando o peticionário alega incapacidade para provar o esgotamento, o artigo  31 do Regulamento da  Comissão estabelece que se transfere ao Estado o ônus de provar quais os recursos específicos devem ser esgotados e de oferecer uma reparação ao prejuízo  alegado.

 

26.     Ambas partes coincidem em indicar dois recursos que seriam aplicáveis à situação denunciada, a saber: o recurso de proteção e o recurso de inaplicabilidade.  Os peticionários alegam que ambos recursos são ineficazes, pois sua invocação e esgotamento exigiriam que as normas impugnadas primeiramente fossem  aplicadas através de uma decisão judicial ou processo específicos em relação à administração dos  bens da  Sra. Arce Esparza.  Os peticionários argumentam que a suposta vítima deve estar em condições de impugnar a constitucionalidade das normas em questão, pois atualmente a afetam devido ao seu carácter discriminatório, sem ter que satisfazer nenhuma outra condição. Afirmam que, alternativamente, a interposição pela  suposta vítima de um recurso de proteção satisfaz plenamente o requisito do artigo  46 de esgotamento da  via interna.  O Estado, em suma, afirma que a aplicação das normas em uma situação concreta é um requisito processual e que, uma vez satisfeito, ambos recursos oferecem todas as possibilidades de uma reparação efetiva.  Em consequência, argumenta que a suposta vítima não invocou devidamente o recurso de proteção segundo os requisitos aplicáveis, e não invocou em absoluto o recurso de inaplicabilidade, motivo pelo qual não satifez os requisitos do artigo 46.

 

27.     Ao analisar o requisito de esgotamento dos  recursos internos, a Comissão observa primeiro que a situação denunciada refere-se ao efeito das normas impugnadas nos direitos da  suposta vítima. O argumento básico é que as normas violam os direitos da  Sra. Arce Esparza a não sofrer discriminação e a igual proteção da  lei simplesmente por estarem vigentes.  A Comissão observa que a jurisprudência do sistema confirma que as distinções da  lei baseadas em uma condição pessoal podem por si, sem necessidade de aplicação, dar lugar à responsabilidade do Estado por não observar as obrigações acerca da  igualdade e a não discriminação.[10]  No  presente caso, nenhum dos  recursos disponíveis permite à Sra. Arce Esparza impugnar diretamente as normas contestadas enquanto afetam seus direitos por sua simples vigência. Ambos recursos exigem que a suposta vítima se submeta a posteriores aplicações das normas para poder impugná-las. Portanto, a Comissão conclui que os recursos internos disponíveis são inadequados e que, em consequência, os peticionários estão isentos de esgotar os recursos internos, segundo o artigo 46 da  Convenção Americana. 

 

28.     Além disso, as disposições do artigo  46 requerem que a substância da  situação denunciada perante a Comissão tenha sido planteada perante a justiça interna. Como reiterado pela jurisprudência do sistema, não é necessário esgotar todos os recursos teórica ou formalmente disponíveis, mas aqueles adequados e efetivos para reparar a situação denunciada. Como indicado, as partes concordam que existem dois possíveis recursos aplicáveis. Embora os peticionários aleguem que nenhum oferecia a possibilidade de uma reparação realmente efetiva, a Sra. Arce Esparza invocou o recurso de proteção como meio de reparação perante a justiça interna. O fundamento de suas denúncias foi levada a la justiça, mas a ação foi indeferida por não impugnar uma decisão ou processo judicial concreto referido à legislação impugnada. A Sra. Arce Esparza interpôs assim sua denúncia perante a justiça interna pela  via de um dos  recursos que o Estado assinala como válido. Em princípio, uma vez que o peticionário tenha apresentado uma denúncia perante a justiça pela  via de um recurso válido, não é necessário que continue invocando e esgotando outros recursos, e o Estado não explicou a razão porque o recurso de inaplicabilidade oferecia uma reparação diferente ou melhor para a situação denunciada.[11]  Sendo assim, a Comissão conclui também que os peticionários esgotaram os recursos internos conforme requerido pelo  artigo 46.

 

b.                 Prazo para a apresentação da  petição

 

29.     De acordo com o artigo  46(1)(b) da  Convenção, as petições devem ser apresentadas dentro do prazo para serem admitidas, a saber, dentro dos  seis meses a partir da  data em que a parte denunciante tenha sido notificada da  sentença definitiva no nível interno. 

 

30.     Segundo consta do expediente, a notificação sobre o indeferimento do recurso de proteção foi recebida pela  Sra. Arce Esparza em 6 de agosto de 2001, e a petição foi recebida pela  Secretaria em 30 de janeiro de 2002.  De modo que a Comissão conclui que a petição satisfaz o requisito de apresentação no prazo.

 

c.                  Duplicação de procedimentos e res judicata

 

31.     O artigo 46(1)(c) dispõe que a admissão das petições está sujeita ao requisito de que a matéria “não esteja pendente de outro procedimento de acordo internacional” e o artigo  47(d) da  Convenção estipula que a Comissão não admitirá uma petição que  “seja substancialmente a reprodução de petição ou comunicação anterior já examinada pela  Comissão ou outro órgão internacional”.  No  presente caso, as partes não indicaram, nem  surge do trâmite, a existencia de alguma destas circunstâncias para a inadmissibilidade.

 

d.                 Caracterização dos  fatos alegados

 

32.     O artigo 47(b) da  Convenção Americana dispõe que não serão admitidas as alegações que não assinalem fatos que tendem a estabelecer uma violação. O Estado opô-se à admissiblidade da  presente petição argumentando, em essência, que a proteção constitucional do direito à igualdade está por cima das distinções potencialmente incompatíveis estabelecidas na  legislação impugnada, e que a petição não é completa porque não se impediu que a suposta vítima administre seus bens. 

 

33.     Se a situação denunciada caracteriza ou não uma violação dos  direitos da  Sra. Arce Esparza protegidos pela  Convenção Americana, isto é matéria para a  etapa de exame do  mérito. Contudo, sobre  a caracterização, a Comissão deseja reiterar que a existência de uma legislação que inclui distinções baseadas na  condição pessoal pode, per se,  caracterizar uma possível  violação. “[U]ma norma que despojara de alguns de seus direitos uma parte da  população, em razão, por exemplo, de sua raça, automaticamente lesiona todos os indivíduos dessa raça.”[12]  A este respeito, a Comissão conclui, no  caso presente, que os peticionários  estabeleceram denúncias que, se compatíveis com outros requisitos e se demonstrarem sua veracidade, poderiam tender a estabelecer a violação dos  direitos protegidos pelos  artigos 1, 2, 17, 21, 24 e 25 da  Convenção Americana.  De conformidade com o disposto no  artigo  29 da  Convenção Americana, a respeito da  interpretação e aplicação, a Comissão se referirá aos termos da  Convenção sobre a Eliminação de Todas las Formas de Discriminação contra a Mulher na  medida pertinente, como fonte de direito para interpretar os direitos e obrigações do Estado em virtude da  Convenção Americana.

 

V.                CONCLUSÕES

 

34.     A Comissão conclui que é competente para examinar o caso presente e que a petição é admissível, de acordo com os artigos 46 e 47 da  Convenção Americana.

 

35.     Em virtude dos  argumentos de fato e de direito antes expostos, e sem prejulgar sobre o mérito do assunto,

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

          1.       Declarar admissível o presente caso a respeito da suposta violação dos  direitos reconhecidos nos artigos 1, 2, 17, 21, 24 e 25 da  Convenção Americana.

 

          2.       Notificar as partes desta decisão.

 

          3.         Iniciar a análise do mérito do assunto.

 

4.         Publicar o presente relatório e incluí-lo em seu Relatório Anual a ser enviado à Assembléia Geral da OEA .

 

 

                Dado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., no dia 10 de outubro de 2003. (Assinado): Clare Kamau Roberts, Primeiro Vice-Presidente; Susana Villarán Segunda Vice-Presidenta; Comissionados Robert K. Goldman e Julio Prado Vallejo.


 


[1] O Comissionado José Zalaquett, Primeiro Vice-Presidente, nacional do Chile, não participou no exame e votação deste caso, de conformidade com o artigo 17(2)(a) do Regulamento da  CIDH.

[2] Artigo 1749 do Código Civil de Chile.

[3] Artigo 1754 do Código Civil de Chile.

[4] Artigo 1752 do Código Civil de Chile.

[5] Artigo 1750 do Código Civil de Chile.

[6] Em sua decisão, a Alta Corte de Apelações de Santiago declarou que “os fatos descritos na  apresentação de folhas  1 sobrepassam as margens do procedimento do recurso de proteção, quando se questiona disposições de uma lei, cuja aplicação, de conformidade com a Constituição Política do Estado, não é suscetível de ser impugnada por esta via…”.  Ver nota dos  peticionários à Comissão de data 27 de agosto de 2001 em que se cita a Alta Corte de Apelações de Santiago.

[7] Constituição da  República de Chile, artigo 2, Nº 2.

[8] Artigo Nº 19.611 do Código Civil do Chile , 16 de junho de 2001.

[9] Artigo Nº 24 do Código Civil do Chile , 16 de junho de 2001.

[10] Ver CIDH, Relátorio Nº 4/01, Caso 11.625, María Eugenia Morais de Sierra (Guatemala), 19 de janeiro de 2001,  par. 39; Corte IDH, Responsabilidade internacional pela  promulgação e aplicação de leis em violação a  Convenção (Arts. 1 e 2 da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos), Opinião Consultiva OC-14/94 de 9 de dezembro de 1994, Ser. A Nº 14, par. 43.

[11] Como indicado no  artigo 31(3) do Regulamento da  Comissão, o Estado que alegue o não esgotamento dos  recursos internos tem a carga de demostrar quai recursos são disponíveis e efetivos. Conforme esse artigo e a jurisprudência aplicável, a parte que alega o não esgotamento deve formular alegações específicas, e não genéricas, sobre os  recursos disponíveis e de sua eficácia. As alegações do Estado a respeito da justificação para invocar outro recurso, sujeito às mesmas condições daquele  invocado e indeferido, foram genéricas. Ver CIDH, Relátorio Nº 72/01, Caso 11.804, Juan Angel Greco (Argentina), 10 de outubro  de 2001, par. 49; Relátorio Nº 52/97, Caso 11.218, Arges Sequeira Mangas (Nicaragua), Relátorio Anual da  1997, par. 95.  Com referência à invocação e o esgotamento de um recurso aplicable seja, em princípio, suficiente, ver, por exemplo, Corte Européia de Direitos Humanos, McCann e outros contra Reino Unido, 18984/91, 3 de setembro de 1993.

[12] Corte IDH, OC-14/94, supra, párr. 43.