RELATÓRIO N° 57 /03

PETIÇÃO 12.337

ADMISSIBILIDADE

MARCELA ANDREA VALDÉS DIAZ

CHILE[1]

10 de outubro de 2003

 

 

I.        RESUMO

 

1.      Em 4 de outubro de 2000, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “a Comissão” ou “CIDH”) recebeu uma petição apresentada pela Fundação Instituto da  Mulher (doravante denominada “a peticionária”), patrocinada pelos advogados Juan Pablo Olmedo Bustos e Ciro Colombara López, na qual se alega a violação por parte do Estado de Chile (doravante denominado “o Estado” ou “o Estado chileno”) dos  artigos 1(1), 2, 5, 8, 11, 24 e 25 da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada “a Convenção” ou “a Convenção Americana”) e 7 da  Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (doravante denominada “Convenção de Belém do Pará”) em detrimento de Marcela Andrea Valdés Diaz (doravante denominada “a suposta vítima”).

 

2.      A peticionária assinala que Marcela Valdés Diaz trabalhava como Carabinera de Chile. Após um sumário que investigou sua relação matrimonial e puniu outros dois carabineros com sanções menores, recebeu uma sanção de 15 dias de detenção. Antes da  decisão final, a vítima interpôs um recurso de proteção, recebendo em consequência outra sanção de detenção por utilizar recursos judiciais antes de esgotar a via administrativa. Como consequência destas sanções foi logo passada para a aposentadoria. A senhora Valdés então apelou judicialmente de sua aposentadoria mas os recursos foram denegados sem uma revisão substantiva de suas petições. A peticionária considera que o Estado é responsável pela  violação dos  direitos à igualdade perante a lei, a integridade pessoal, a proteção da  honra e a dignidade, a proteção judicial e as garantias judiciais, descumprindo ademais  a obrigação de respeitar e garantir os direitos humanos consagrados na  Convenção. A peticionária argumenta que o  Estado tampouco cumpriu com sua obrigação de adotar as medidas apropriadas para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra a mulher. Com relação à admissibilidade da petição, a peticionária alega que foram esgotados os recursos judiciais no  plano interno e que a petição cumpre com os requisitos de forma e de mérito para a admissibilidade. O Estado, por sua parte, considera que a petição é inadmissível pela  falta de esgotamento dos  recursos disponíveis na  jurisdição interna.

 

3.      Após analisar as posições das partes, a Comissão conclui que é competente para conhecer o caso apresentado pelos peticionários e que o caso é admissível, à luz dos  artigos 46 e 47 da  Convenção Americana e disposições regulamentares correspondentes.

 

II.       TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

4.      A petição foi recebida na  Comissão em 4 de outubro de 2000 e enviada ao  Governo em 1º de novembro de 2000, com um prazo de 90 dias para proporcionar a informação que considerasse oportuna em relação aos fatos denunciados e o esgotamento dos  recursos a nível da jurisdição interna. Em 17 de janeiro de 2001, o Estado solicitou uma prorrogação do prazo para apresentar a informação correspondente, que foi concedida por 30 dias a partir de 2 de fevereiro.  Em 26 de abril de 2001, a Comissão reiterou ao Estado o seu pedido de informação e outorgou-lhe o prazo até  1º de maio de 2001, de conformidade com o prazo máximo estabelecido pelo  artigo 34(6) do Regulamento.

 

5.      Em 13 de julho de 2001, o Governo remeteu suas observações, que foram  transmitidas à peticionária, outorgando-lhe o prazo de um mês para responder. Em sua comunicação de 5 de março de 2002, a peticionária apresentou suas observações à resposta do Estado.

 

6.      De acordo com a solicitação da  peticionária, em 6 de março de 2002, no  marco do 114° período ordinário de sessões da  Comissão, foi efetuada uma audiência na qual as partes discutiram a admissibilidade do presente caso.

 

7.      Em 19 de março de 2002, a Comissão transmitiu ao Estado as partes pertinentes das observações apresentadas pela  peticionária em sua comunicação de 5 de março de 2002, com um prazo de um mês para enviar seus comentários.

 

8.      Em 21 de agosto de 2002, a peticionária solicitou que a Comissão se pronunciasse sobre a admissibilidade do caso dado que o prazo fixado para que o Estado enviasse suas observações havia vencido. Até esta data, o Estado não apresentou observações adicionais.  

 

III.     POSIÇÃO DAS PARTES

 

A.     Posição do peticionário

 

9.      A peticionária manifesta que a suposta vítima pertencia ao corpo de Carabineros de Chile desde 1991. Assinala  que no  ano 1999 prestava serviços na  Primeira Delegacia da  Prefeitura de Valdivia N° 23, com a patente de Tenente de Carabineros (E.F.). Em 1994 havia contraído matrimônio com Claudio Vázquez Cardinalli, Capitão de carabineros do Chile. A denúncia indica que a suposta vítima era objeto de maltrato físico e psicológico por parte de seu esposo, desde o começo de seu matrimônio.

 

10.  Segundo assinala a Resolução N° 15 da  Prefeitura de Valdivia N° 23 (ver infra) em 29 de março de 1999, o Delegado da 1a. Delegacia de Valdivia informou sobre uma representação interposta por Marcela Valdés Dias a respeito dos  problemas matrimoniais do casal,  situação que foi derivada ao Serviço de Assistência Social.[2] A mesma resolução assinala que em 23 de abril de 1999, a repartição na qual desempenhava a senhora Valdés foi informada que em 11 de abril de 1999, o mesmo Delegado apresentou-se no  domicílio do casal devido a um problema conjugal suscitado devido a uma conversa telefônica da senhora Valdez com outro carabinero amigo seu.

 

11.  A peticionária relata que estes maus tratos constam do expediente Carabineros N° 801 de 19 de maio de 1999 e deram origem a uma denúncia judicial por maltrato, apresentada em 19 de maio de 1999, junto ao  1. Juizado de Letra da  Cidade de Valdivia. Este processo foi concluido em 25 de maio de 1999,  mediante um acordo  judicial conseguido numa audiência de conciliação obrigatória estabelecida pela lei de violência intrafamiliar. Como consequência, a suposta vítima obteve uma  ordem judicial de proteção permanente que a autorizava a sair da  cidade com seus filhos para evitar “futuras perturbações  ou agressões tanto físicas como psicológicas”. 

 

12.  Após o acordo alcançado em sede judicial, durante o ano 1999, a suposta vítima e seu esposo solicitaram a seus superiores autorização para viver de forma separada, a que foi outorgada em 4 de junho de 1999 mediante Resolução N° 14 da  Prefeitura de Valdivia N° 23. Ao mesmo tempo, e devido a este pedido, a Prefeitura de Valdivia determinou o início de uma  investigação sumária. O sumário concluiu com a  Resolução N° 15 de 7 de junho de 1999.

 

13.  Esta última resolução impôs uma sanção de dez dias de detenção para a suposta vítima por ter incorrido em “uma conduta privada imprópria” ao manter uma amizade profunda com o Tenente (I) Manuel Andrés Suazo Erba com quem a  peticionária ‘iniciou uma ‘relação de amizade’ que ‘embora não se possa determinar que tenha derivado em uma  relação de tipo sentimental, permite presumir que deu margem a comentários em tal sentido e, também, provocou a ruptura definitiva do matrimônio’ com o Capitão Sr. Claudio Aurelio Vásquez Cardinalli, situação que transcendeu os Oficiais e alguns civis, transtornando os trabalhos da Unidade e comprometendo o prestígio da  Instituição.[3] Também foram impostas sanções de quatro dias de detenção para seu esposo por ter “provocado violência intrafamiliar em seu lar ao golpear a sua esposa” e de dez dias de detenção para o  Tenente Manuel Andrés Suazo Erba por ter “evidenciado uma série de atitudes inadequadas... prejudicando o prestígio da  Instituição, e dos trabalhos da  1a. Delegacia de Valdivia, sendo que com suas atitudes foi responsável pelo deterioramento irreversível das relações do casal”.[4]

 

14.  A peticionária informa que a suposta vítima apelou da Resolução N° 15 mencionada supra, por meio de uma ação administrativa apresentada perante a IX Zona de Carabineros que, em 7 de julho de 1999, prolatou a Resolução N° 26 ratificando a medida imposta. A sua vez, esta resolução foi apelada perante a Direção de Ordem e Segurança dos Carabineros do Chile, que em 28 de outubro de 1999, decretou a resolução N° 161 indeferindo o recurso deduzido e aumentando a sanção a “15 dias de detenção com serviço” sem possível  apelação administrativa posterior.

 

15.  Paralelamente à sua petição em sede administrativa, em 14 de junho de 1999, a suposta vítima interpôs perante a Corte de Apelações de Valdivia um recurso de proteção em relação à resolução 15 já mencionada, mas desistiu do recurso posteriormente .

 

16.  A peticionária argumenta que devido ao recurso judicial interposto, a 1a. Delegacia de Valdivia prolatou a resolução N° 12 de 14 de julho de 1999, mediante a qual impôs a Marcela Valdés Diaz a sanção de “três dias de detenção com serviço”. Essa  resolução esclarece que a sanção foi imposta com base na “falta de tino e critério recorreu de uma situação propriamente administrativa aos tribunais de justiça, instância alheia ao âmbito institucional, sem esperar o resultado das instâncias regulamentares pertinentes a que tem  direito ”.[5]

 

17.  Explica que esta medida foi apelada perante a Prefeitura de Carabineros de Valdivia N° 23, mas seus recursos foram rejeitados e a sanção foi aumentada para cinco dias de detenção. Esta resolução foi também apelada perante a IXa. Zona de Carabineros da  Araucanía, que em 16 de setembro de 1999, mediante a Resolução N° 28, indeferiu o recurso intentado e confirmou a sanção imposta.

 

18.  Relata que, devido às sanções impostas, a Junta Qualificadora de Oficiais Subalternos procedeu a revisar a qualificação da  suposta vítima para o ano 1999. Em 11 de agosto de 1999, essa Junta considerou que apresentava “graves deficiências em suas condições pessoais, profissionais e morais” e modificou sua classificação de “Lista Dois De Satisfatórios” a “Lista Quatro de Eliminação”.  Esta decisão foi apelada perante a Junta de Méritos e Apelações, que em 1º de setembro de 1999 decidiu não acolher a apelação e manter a classificação na  lista Quatro de Eliminação.  Esta resolução foi também apelada de forma verbal perante a Junta Superior de Apelações, que em 21 de setembro de 1999 desacolheu a apelação.

 

19.  Como consecuencia disto, o Ministério de Defesa, através do Decreto Supremo N° 764, decidiu decretar sua “aposentadoria” a partir do dia 2 de janeiro de 2000.

 

20.  Tendo em vista as resoluções das Juntas Classificadoras, a suposta vítima interpôs um Recurso de proteção perante a Corte de Apelações de Santiago contra a  Direção de Pessoal Depto. P. 1 e a Direção de Ordem e Segurança, ambas de carabineiros do Chile. Ao interpor o recurso, a suposta vítima alegou que as resoluções que determinaram sua exoneração e investigação que lhe serviu de fundamento “importam em um ato arbitrário e ilegal, uma vez que  atenta contra as garantías constitucionais... consistentes na  ‘igualdade perante a lei’, ‘o devido processo legal ’ e o direito à integridade pessoal, privacidade e honra, a inviolabilidade do lar e de toda forma de comunicação privada”.[6]

 

21.   Em 14 de março de 2000, a Corte desacolheu a ação interposta por considerar que não houve nenhuma conduta ilegal ou arbitrária por parte da  instituição de carabineiros, que não existem incorreções formais no  procedimento de qualificação e que as atuações das autoridades policiais se basearam em “apreciações de mérito que, por uma parte, são privativas dessa autoridade e, pela  outra, não aparecem irracionais ou fora do contexto em que se move ou atua a instituição de que se trata”.[7] Esta sentença foi confirmada pela  Corte Suprema mediante resolução de 5 de abril de 2000.

 

22.  A peticionária defende que o Estado chileno não atuou de conformidade com as normas internacionais impostas pela  obrigação de prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. Afirma que tampouco cumpriu com seu dever de adotar as medidas apropriadas para garantir a integridade física e psíquica da  suposta vítima. Argumenta que, pelo  contrário, perante a denúncia de maus tratos, Carabineiros do Chile atribuiu a violência a “conduta liberal e inapropriada” da  suposta vítima e decidiu sancioná-la por tal comportamento.

 

23.  Alega que a investigação sumária importou uma ingerência arbitrária na vida privada da  suposta vítima. Explica que tal ingerência não era necessária para determinar suas responsabilidades disciplinares na  Instituição e que, ademais, afetou seu direito à proteção da  honra e a dignidade.

24.  A peticionária considera que a suposta vítima foi punida, qualificada e transferida à “aposentadoria” de forma arbitrária e discriminatória. Defende que os fatos que motivaram a sanção não justificavam uma medida extrema tal como a que originou sua transferência à  aposentadoria. Aduz que foi tratada com maior severidade “pelo  fato de ser mulher e ser parte de uma determinada instituição cujo contexto particular permite a discriminação e imposição de estereótipos”. Assinala que esta conclusão “claramente se depreende que Carabineiros do Chile considera que uma relação de amizade é mais reprovável que o maltrato físico ou psicológico... [e que] reiterados quadros de violência doméstica foram  passados por alto, estimando inclusive que foi a recorrente a responsável pela separação do casal”.[8]

 

25.  A peticionária argumenta que a sentença da  Corte de Apelações de Santiago, que denegou o recurso de proteção e que foi depois confirmada pela  Corte Suprema de Chile, é violatória do direito de acesso à jurisdição. Considera que os tribunais judiciais se limitaram a verificar a legalidade dos  procedimentos e a suposta vítima não teve a oportunidade de ser ouvida por um tribunal imparcial e independente a respeito da arbitrariedade da  sanção e a qualificação.

 

26.  A peticionária considera que a suposta vítima esgotou os recursos da  jurisdição interna. Em particular, explica que não era necessário interpor um recurso perante a Controladoria Geral da  República, como advoga o Estado. Manifesta que se trata de um recurso facultativo e que, de conformidade com o  ordenamento jurídico chileno, a suposta vítima optou por não utilizá-lo e acudir diretamente à instância judicial.

 

27.  A peticionária considera que o artigo 46(1) da  Convenção Americana exige o esgotamento das instâncias judiciais internas e o recurso perante a Controladoria Geral da  República é um recurso administrativo. Conclui que, por tal motivo, não é necessário esgotá-lo  para acudir à instância internacional.

 

28.  Finalmente, alega que não se tratava de um recurso adequado e eficaz. Refere-se que a   Controladoria Geral da  República considerou, de forma reiterada e uniforme em suas decisões, que as “Juntas Qualificadoras de méritos são soberanas quanto às  apreciações técnicas sobre a idoneidade, eficácia profissional, condições pessoais e moralidade dos  funcionários que qualifica, razão pela qual esta Controladoria ... somente pode pronunciar-se sobre a validez dos  processos de qualificação do pessoal de Carabineiros quando existam vícíos de procedimento ou infrações ao regulamento de avaliação”.

 

B.       Posição do Estado

 

29.  O Estado assinala que não existiu violação das normas internacionais relativas à sua obrigação de prevenir, erradicar e sancionar a violência contra a mulher. Considera que a suposta vítima não denunciou a situação de violência à Instituição e optou por interpor uma ação judicial nos  termos da  Lei 19.325 de Violência Intrafamiliar. Informa que essa denúncia concluiu com um acordo judicial que, entre outros pontos, deixava vigente uma medida de proteção a favor da  suposta vítima e seus filhos. Alega que a suposta vítima “decidiu a solução que mais se ajustava a seus interesses... [e que] Carabineiros do Chile não fez nenhuma intervenção nem ingerência neste problema pela  expressa vontade da reclamante”.

 

30.  O Estado argumenta que a investigação sumária não pode ser considerada uma ingerência arbitrária na  privacidade da  suposta vítima. Explica que “a participação institucional não é efetuada somente pela violência que o cônjuge exerce sobre a peticionária (porque a ignorava) nem  pela  suposta infidelidade da  senhora Valdés (que também ignorava), mas sim pela  perturbação que a situação existente entre a peticionária e seu cônjuge causou à  Prefeitura e ao quartel em questão”. Afirma que “simplesmente tratou de investigar a conduta de três oficiais de Carabineros do Chile que haviam atuado impropriamente no  lugar de trabalho e de tarefas de funcionário público policial”.

 

31.  O Estado considera que não houve discriminação em detrimento da  suposta vítima pelo  fato de ser mulher. Alega que os agravos apresentados pela  peticionária neste ponto são meras conjeturas que não encontram fundamento no sumário administrativo. Manifesta que o Tenente Suazo recebeu a mesma sanção que a suposta vítima. Aduz que a suposta vítima foi sancionada e qualificada de conformidade com os regulamentos internos e seus antecedentes como funcionária.

 

32.  O Estado defende que não cabia aos tribunais judiciais realizar uma revisão ampla das decisões impugnadas e que isto não implica uma denegação de justiça nem uma violação às garantias do devido processo legal. Explica que a imposição de sanções e a qualificação de pessoal são faculdades discricionárias em que se avaliam questões de idoneidade e ética profissional. Considera que, numa instituição policial militarizada, estas apreciações não podem ser realizadas “por um terceiro alheio aos Carabineros, sem os conhecimentos para apreciar tecnicamente a idoneidade e eficácia profissional e impossibilitado de realizar a observação pessoal que leva a cabo quem qualifica”.

 

33.  Assinala que a regulamentação interna estabelece várias instâncias administrativas de apelação nas quais a suposta vítima teve a oportunidade de ser ouvida com todas as garantias do devido processo. Considera que, de todos modos, as decisões foram convalidadas por uma sentença judicial quanto aos procedimentos como as apreciações de mérito “já que estimou que a Instituição atuou dentro de suas facultades privativas, sem que tampouco pudessem ser avaliadas como carentes de razão ou alheias ao contexto de sua ação legal”.

 

34.  Com relação ao esgotamento dos  recursos internos, o Estado limita-se a afirmar que a suposta vítima não esgotou os recursos da  jurisdição interna. Argumenta “que a vítima poderia ter  recorrido à Controladoria Geral da  República, como o autoriza o Estatuto de Pessoal, mas não o fez[9]” sem assinalar  a procedência desse recurso.

 

IV.   ANÁLISE SOBRE COMPETÊNCIA E ADMISSIBILIDADE

 

A.      Competência ratione pessoae, ratione loci, ratione temporis e ratione materiae da  Comissão

 

35.  Os peticionários estão facultados pelo  artigo 44 da  Convenção Americana para apresentar denúncias perante a CIDH. A petição assinala  como supostas vítimas indivíduos, para os quais o Chile comprometeu-se a respeitar e garantir os direitos consagrados na  Convenção Americana.  No que se refere ao Estado, a Comissão assinala que o Chile é um  Estado parte na  Convenção Americana desde 21 de agosto de 1990, data em que depositou o  instrumento de ratificação respectivo.  Portanto, a Comissão tem competência ratione pessoae para examinar a petição.

 

36.  A Comissão tem competência ratione loci para conhecer a petição, porque a petição alega violações de direitos protegidos na  Convenção Americana que teriam ocorrido dentro do território de um Estado parte neste tratado.

 

37.  A CIDH tem competência ratione temporis, porque a obrigação de respeitar e garantir os direitos protegidos na  Convenção Americana já se encontrava em vigor para o Estado na data em que haviam  ocorrido os fatos alegados na  petição.

 

38.  Por último, a Comissão tem competência ratione materiae porque na petição se denunciam violações a direitos humanos protegidos pela  Convenção Americana  e a  Convenção de Belém do Pará.  

 

 

B.       Requisitos de Admissibilidade

 

1.       Esgotamento dos  recursos internos

 

39.  O artigo 46(1) da Convenção Americana estabelece que para que um caso possa ser admitido é preciso que “se tenha interposto e esgotado os recursos de jurisdição interna” do Estado. No  caso sob exame há uma controvérsia a respeito do recurso que a suposta vítima tinha disponível perante a Controladoria Geral da  República. Corresponde a  Comissão Interamericana determinar se era necessário esgotá-lo para aceder à instância internacional.

 

40.  Cabe esclarecer que o requisito de esgotamento dos  recursos internos não significa que as supostas vítimas tenham a obrigação de esgotar todos os recursos que tenham disponíveis. Tanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “a Corte”), como a Comissão afirmaram em reiteradas oportunidades que “(…) a regra que exige o prévio esgotamento dos  recursos internos está concebida no interesse do Estado, pois busca dispensá-lo de responder perante um órgão internacional por atos imputados contra ele, antes de ter tido a ocasião de remediá-los com seus próprios meios”.[10] Em consequência, se a suposta vítima formulou a questão por alguma das alternativas válidas e adequadas segundo o ordenamento jurídico interno e o Estado teve a oportunidade de remediar a questão em sua jurisdição, a finalidade da  norma internacional está cumprida.

 

41.  Por outra parte, “conforme reiterado pela Corte Interamericana em várias oportunidades, se num caso específico o recurso não é idôneo para proteger a situação jurídica infringida e capaz de produzir o resultado para o qual foi concebido, é óbvio que não é necessário esgotá-lo”.[11] Nesse ponto, a peticionária alega que, de conformidade com a jurisprudência da  Controladoria Geral da  República, esse recurso não era adequado para impugnar decisões como as que afetavam a suposta vítima.

 

42.  A este respeito, cabe observar que a peticionária alega o esgotamento dos  recursos, a que se opõe o  Estado, motivo pelo qual este último tem o ônus da prova tanto sobre a existência dos  recursos que estão disponíveis como respeito de sua efetividade.[12] No  caso, o Estado não explicou se o recurso perante a Controladoria Geral da  República era um recurso eficaz nem respondeu as observações que a peticionária fez a respeito. Em consequência, a Comissão considera que o Estado não cumpriu com o ônus de demostrar que o recurso perante a Controladoria Geral da  República era adequado para remediar as violações alegadas pelos peticionários.

 

43.  Tendo em vista o exposto, a Comissão considera que foi cumprido o  disposto no  artigo 46 da  Convenção quanto à interposição e o esgotamento dos  recursos de jurisdição interna.

 

2.      Prazo de apresentação da  petição

 

 

44.   O artigo 46(1)(b) da  Convenção Americana estabelece que para que uma petição ou comunicação apresentada conforme os artigos 44 ou 45 seja admitida pela  Comissão, é necessário que seja apresentada dentro dos  seis meses, a partir da data em que o suposto ofendido em seus direitos tenha sido notificado da  decisão definitiva a nível nacional.

 

45.  Como assinalado anteriormente, a comunicação que deu início a esta petição foi recebida em 4 de outubro de 2000 e a última sentença da  jurisdição interna foi prolatada pela  Corte Suprema de Chile em 5 de abril de 2000. Portanto, a petição foi apresentada dentro do prazo estabelecido pela  Convenção.

 

3.       Duplicação de procedimentos e coisa julgada

 

46.   Não surge do expediente que a matéria da  petição esteja pendente de outro procedimento de acordo internacional, nem que reproduza uma petição já examinada por este ou outro órgão internacional.  Portanto, cabe dar por cumpridos os requisitos estabelecidos nos  artigos 46(1)(c) e 47(d) da  Convenção.

 

4.       Caracterização dos  fatos alegados

 

47.  O Estado solicitou à Comissão que declare inadmissível a denúncia, já que dela surge que não existem fatos que caracterizem violações à Convenção Americana nem a Convenção de Belém do Pará.

 

48.  A Comissão considera que não corresponde nesta etapa do procedimento estabelecer se há ou não uma violação da  Convenção Americana. Com relação à   admissibilidade, a CIDH deve decidir se foram expostos fatos que possam caracterizar uma violação, como estipulado pelo artigo 47(b) da  Convenção Americana, e se a petição é “manifestamente infundada” ou seja “evidente sua total improcedência”, segundo o  inciso (c) do mesmo artigo.

 

49.  O padrão  de apreciação destes extremos é diferente do requerido para decidir sobre os méritos de uma denúncia. A CIDH deve realizar uma avaliação prima facie para examinar se a denúncia fundamenta a aparente ou potencial violação de um direito garantido pela  Convenção e não para estabelecer a existência de uma violação. Este exame é uma análise sumária que não implica num prejulgamento ou um avanço de opinião sobre o mérito. O próprio Regulamento da  Comissão, ao estabelecer duas claras etapas de admissibilidade e mérito, reflete esta distinção entre a avaliação que deve realizar a Comissão para fins de declarar uma petição admissível e aquela requerida para estabelecer uma violação de direitos humanos.

 

50.  No  presente caso, de acordo com o disposto no artigo 47(b) da  Convenção Americana, a Comissão considera que os argumentos da  peticionária são fundados e condizentes que permitem determinar, durante o exame do mérito do assunto, se os fatos constituem violações da Convenção Americana e da Convenção de Belém do Pará.

 

51.  Nesse sentido, na análise sobre o mérito do presente caso, a Comissão analisará a investigação do sumário administrativo em relação ao alcance do direito à honra e a dignidade, bem  como o direito à integridade psíquica. Quanto a esta investigação e a correspondente sanção e aposentadoria compulsória, a Comissão analisará os argumentos  relativos ao direito de ser tratado de maneira igual e sem discriminação por razões de gênero.

 

52.  Em relação à violência imposta pelo esposo da suposta vítima contra esta, a peticionária não alegou nenhuma violação ao dever de prevenção nem  de investigação desses fatos de violência. A principal alegação da  peticionária refere-se à falta de sanção adequada, uma vez que as autoridades tomaram conhecimento desses fatos de violência. Nesse  sentido, a Comissão considera que a informação apresentada pela peticionária é suficiente para permitir uma  análise deste argumento à luz do artigo 5 da  Convenção Americana e do artigo 7 da  Convenção de Belem do Pará.

 

53.  Ao mesmo tempo, a Comissão deve determinar se a suposta vítima teve acesso à proteção e as garantias judiciais contempladas nos  artigos 8 e 25 da  Convenção Americana, quanto à revisão judicial da  decisão de passar à aposentadoria. Em relação ao artigo 25 da  Convenção, a Comissão deverá também considerar a aplicação de uma sanção de detenção devido à utilização do recurso judicial de proteção.

 

54.  Por conseguinte, a CIDH não entende que a petição seja “manifestamente infundada” ou que seja “evidente sua improcedencia”. Portanto, a Comissão considera que as alegações dos  peticionários sobre violações aos direitos protegidos pelos artigos 1(1), 2, 5, 8, 11, 24 e 25 da  Convenção Americana e 7 da  Convenção de Belém do Pará, no  assunto matéria do presente relatório, poderiam caracterizar violações aos direitos da  suposta vítima.

 

V.     CONCLUSÕES

 

55.  A respeito das supostas violações aos direitos protegidos pelos artigos 1(1), 2, 5, 8, 11, 24 e 25 da  Convenção Americana e 7 da  Convenção de Belém do Pará, a Comissão conclui que tem competência para examinar o presente caso e que a petição é admissível conforme aos artigos 46 e 47 da  Convenção Americana.

 

56.       Em virtude dos  argumentos de fato e de direito antes expostos, e sem prejulgar sobre o mérito do assunto, 

 

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.         Declarar admissível a petição sob estudo em relação aos artigos 1(1), 2, 5, 8, 11, 24 e 25 da  Convenção Americana de Direitos Humanos e 7 da  da  Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.

 

2.         Notificar as partes desta decisão.

 

3.         Iniciar a análise do mérito do assunto.

 

4.         Publicar o presente relatório e inclui-lo em seu Relatório Anual a ser enviado à Assembléia Geral da OEA

 

          Dado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., no dia 10 de outubro de 2003. (Assinado): Clare Kamau Roberts, Primeiro Vice-Presidente; Susana Villarán Segunda Vice-Presidenta; Comissionados Robert K. Goldman e Julio Prado Vallejo.


 


[1] O Comissionado José Zalaquett, Primeiro Vice-Presidente, nacional do Chile, não participou no exame e votação deste caso, de conformidade com o artigo 17(2)(a) do Regulamento da  CIDH .

 

[2] Cfr. Resolução N° 15 da  Prefeitura Valdivia N° 23, IX Zona Carabineros Araucania, par. 2.

[3] Ver, nota da  peticionária de 4 de outubro de 2000, pág. 5.

[4] Ver, nota da  peticionária de 4 de outubro de 2000, pág. 6.

[5] Ver, nota da  peticionária de 4 de outubro de 2000, pág. 8.

[6] Ver, recurso de proteção apresentado perante a Corte de Apelações de Santiago em 18/11/99, pág. 3.

[7] Ver, nota da  peticionária de 4 de outubro de 2000, pág. 10.

[8] Ver, nota da  peticionária de 4 de outubro de 2000, pág. 27.

[9] Contestação do Estado em relação à petição, de 13 de julho de 2001, pág. 13.

[10] Ver Corte IDH, Decisão do Assunto Viviana Gallardo e Outros de 13 de novembro de 1981, Ser. A N° G 101/81, parágrafo 26. Ver também CIDH, Relatório N° 5/02 (Admissibilidade), Caso 12.080, Sergio Schiavini y María Teresa Schnack de Schiavini, Argentina, 27 de fevereiro de 2002; e Relatório Nº 74/99, Caso 11.810, Sebastián Sánchez López,  Sebastián López López e Mateo López Pérez, México, 4 de maio de 1999.

[11] Ver, por exemplo, Corte Interamericana de Direitos Humanos, Exceções ao esgotamento dos  recursos internos (Art. 46.1, 46.2.1 e 46.2.b da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos), Opinião Consultiva OC-11/90 de 10 de agosto de 1990, par. 36 e Corte IDH, Caso Velásquez Rodríguez, Sentença de 29 de julho de 1988, Ser. C N° 4, parágrafo 63; Ver em igual sentido, CIDH, Relatório Nº 68/01 (Admissibilidade), Caso 12.117, Santos Soto Ramírez e outros, México, 14 de junho de 2001, parágrafo 14; e Relatório Nº 83/01 (Admissibilidade), Caso 11.581, Zulema Tarazona Arriate e outras, Peru, 10 de outubro de 2001, parágrafo 24.

[12] A este respeito, a Corte Interamericana de Direitos humanos assinalou que "o Estado que alega o não esgotamento tem a seu cargo a indicação dos  recursos internos que devem ser esgotados e de sua efetividade". Caso Velásquez Rodríguez, Exceções preliminares, sentença de 26 de junho de 1987, par. 88.