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RELATÓRIO N° 32/03[1] PETIÇÃO 12.281 ADMISSIBILIDADE GILDA ROSARIO PIZARRO JIMÉNEZ E OUTROS CHILE 7 de março de 2003
I. RESUMO
1. Em 20 de dezembro de 1999, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “a Comissão Interamericana”, “a Comissão” ou “CIDH”) recebeu uma denúncia apresentada pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) conjuntamente com a Clínica de Ações de Interesse Público da Universidade Diego Portales (doravante denominada “os peticionários”), contra a República do Chile (doravante denominada, “o Estado” ou “o Estado chileno”), na qual alegam que as senhoras Gilda Rosario Pizarro Jiménez, Elena del Carmen Ponce Jorquera, Gloria Lewelyn Ponce Jorquera, Myrna Janette Ponce Jorquera, Elizabeth del Luján Fuentes Ruiz e Angélica Soledad Pérez Fernández, todas elas cônjuges de funcionários policiais de Carabineros do Chile,[2] foram vítimas de várias violações a seus direitos humanos por terem manifestado pública e pacificamente, por considerar insuficientes, os benefícios econômicos recebidos por seus cônjuges em sua qualidade de carabineros.
2. Os peticionários alegaram que o Estado era responsável pela violação do direito à integridade pessoal, garantias judiciais, proteção da honra e da dignidade, liberdade de pensamento e expressão, direito de reunião, proteção à família, igualdade perante à lei e proteção judicial em conjunção com a obrigação do Estado de respeitar e garantir os direitos humanos e o dever de adotar disposições de direito interno consagrados nos artigos 1(1), 2, 5, 8, 11, 13, 15, 17, 24 e 25 da Convenção Americana. Com relação à admissibilidade da petição, os peticionários argumentam que dentro da jurisdição interna não existe o devido processo legal para a proteção dos direitos alegadamente violados e os tribunais que devem conhecer sobre estes recursos carecem da independência e imparcialidade requeridos pelo artigo 8 da Convenção, motivo pelo qual aplica-se a exceção ao esgotamento de recursos internos regulamentada no artigo 46(2)(a) e (b) da Convenção Americana. O Estado, por sua parte, negou que havia violado alguma norma da Convenção e solicitou à Comissão que desacolhesse os argumentos dos peticionários e declarasse a inadmissibilidade da petição por não cumprir com os requerimentos assinalados nos artigos 46(1)(a)(b) e 47(b)(c).
3. Após analisar as posições das partes, a Comissão conclui que é competente para conhecer a petição apresentada pelos peticionários e que esta é admissível, à luz dos artigos 46 e 47 da Convenção Americana. II. TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO
4. Em 20 de dezembro de 1999, a Comissão recebeu uma petição apresentada pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional e a Clínica de Ações de Interesse Público da Universidade de Diego Portales na qual denunciava o Estado do Chile pelas violações aos direitos das senhoras Gilda Rosario Pizarro Jiménez, Elena del Carmen Ponce Jorquera, Gloria Lewelyn Ponce Jorquera, Myrna Janette Ponce Jorquera, Elizabeth del Luján Fuentes Ruiz e Angélica Soledad Pérez Fernández, consignados nos artigos 1(1), 2, 5, 8, 11, 13, 15, 17, 24 e 25 da Convenção Americana.
5. Em 15 de maio de 2000, a Comissão encaminhou as partes pertinentes da denúncia ao Estado chileno e fixou o prazo de 90 dias para que apresentasse informação relativa aos fatos e ao esgotamento dos recursos internos.
6. Em 18 de julho de 2000, a Comissão recebeu a resposta do Estado e a remeteu aos peticionários em 25 de julho do mesmo ano, fixando o prazo de 30 dias para que apresentassem suas observações. Em 8 de setembro de 2000, a CIDH comunicou às partes que havia concedido uma audiência no curso de seu 108º período de sessões, a qual foi realizada em 10 de outubro de 2000.
7. As observações dos peticionários foram recebidas em 20 de outubro de 2000 e enviadas ao Estado chileno em 27 de outubro de 2000. A Comissão fixou o prazo de 30 dias para que o Estado apresentasse suas observações. O Estado absteve-se de apresentar observações.
III. POSIÇÕES DAS PARTES
A. Posição dos peticionários
8. Segundo a petição, no início de 1998 o Governo chileno promulgou o Decreto com força de lei Nº 2 do Ministério de Defesa Nacional, que estabelecia uma série de benefícios salariais e de previdência social para o pessoal de Carabineros do Chile. Os peticionários alegam que este decreto beneficiou em maior número e qualidade os oficiais. em detrimento dos suboficiais, o que gerou inconformidade dos suboficiais e suas famílias contra o Estado e os responsáveis pela instituição,.
9. Os peticionários alegam que as famílias dos Carabineros começaram a manifestar seu descontentamento através de pequenas reuniões privadas, principalmente entre as cônjuges dos carabineros, atitude que foi reprimida pelo Comando de Carabineros do Chile, o que proibiu o pessoal de suboficiais ou qualquer membro de suas famílias, manifestar “seu descontentamento a respeito do novo Decreto com força de lei sob ameaça de perda de seus empregos e de estarem submetidos a um sistema de sanções em consequência de atos desleais para com a instituição”.[3]
10. Os peticionários alegam que, apesar das ameaças recebidas, as supostas vítimas dirigiram-se em 23 de abril de 1998 à Prefeitura Metropolitana com o objetivo de solicitar autorização para levar a cabo um protesto pacífico em 27 de abril do mesmo ano, dia em que se comemora o Aniversário de Carabineros do Chile. A autorização foi concedida pelo Prefeito da Região Metropolitana em 24 de abril de 1998.
11. Os peticionários alegam que, no dia da manifestação, as esposas dos Carabineros foram até a Praça da Constituição e observaram que o lugar estava rodeado por mais de cem carabineros, ônibus institucionais, carros lança-gases e tanques, preparados para reprimir a manifestação, motivo pelo qual decidiram unir-se a outro grupo de esposas de carabineros que estavam na Praça Benjamín Vicuña Mackenna. Entretanto, nas proximidades deste lugar havia um cinturão de aproximadamente cinquenta carabineros membros das forças especiais que bloqueavam o caminho das manifestantes. Igualmente as manifestantes observaram a presença de três carros lança-água, dos carros lança-gases, dos tanques, efetivos policiais civis e vários ônibus institucionais. As manifestantes tentaram avançar pacificamente, mas os efetivos das forças especiais começaram a golpear aquelas que tentavam continuar mediante “patadas nas pernas, empurrões e joelhadas”. Os efetivos policiais também proferiam insultos que faziam referência “a suposta afiliação política a partidos de esquerda e a maneira desleal com que tratavam a Instituição de Carabineros do Chile”. Os peticionários informam que a este cenário de violência somaram-se mais carabineros e a intervenção de um carro lança-água que golpeou violentamente diferentes manifestantes.
12. Os peticionários assinalam que, apesar desses atos repressivos, as mulheres manifestantes persistiram no exercício pacífico de seus direitos constitucionais e voltaram a reunir-se na Avenida Libertador Bernardo O’Higgins para continuar com a manifestação, quando novamente foram interceptadas por Carabineros e por um veículo lança-água. Os peticionários alegam que as vítimas foram objeto de golpes, empurrões e patadas e privadas ilegitimamente de sua liberdade. Os peticionários mencionam que Gloria Lewelyn Ponce Jorquera foi objeto de golpes por parte dos carabineros apesar de seu estado de gravidez e também Patricia Elena del Carmen Ponce Jorquera sofreu uma fratura e esteve em tratamento de reabilitação por um ano.
13. Os peticionários mencionam que, em 3 de junho de 1998, foi apresentada uma ação penal pelos delitos de lesões menos graves, detenção ilegal e abuso contra particulares perante o Segundo Juizado Criminal de Santiago, o qual foi declarado incompetente para conhecer o caso porque a denúncia recaía sobre membros do corpo de Carabineros do Chile e, portanto, devia ser revisada por tribunais militares, ficando radicada a causa na Sexta Procuradoria Militar, onde até esta data a causa permanece em fase sumária. Segundo os peticionários, os fatos antes referidos tiveram como consequência direta e imediata a despedida dos carabineros casados com as mulheres individualizadas na presente petição.[4]
14. Com relação à admissibilidade, os peticionários alegam a exceção ao esgotamento dos recursos internos consagrada no artigo 46(2) da Convenção. Segundo os peticionários, as vítimas não tiveram acesso dentro da ordem interna a um devido processo legal para reclamar pela proteção dos direitos que alegam violados, posto que o tribunal carece da devida independência e imparcialidade requerida pelo artigo 8(1) da Convenção. Os peticionários argumentam que a falta de independência da Justiça Militar está manifestada pela subordinação dos juízes institucionais às autoridades superiores do serviço, por sua falta de inamovibilidade e pela falta de preparação jurídica.
15. Na resposta dos peticionários às observações que o Estado fez sobre a admissibilidade, manifestaram que a Comissão devia declarar a admissibilidade porque os fatos denunciados importam na violação de diversos direitos por parte de autoridades internas que envolve a responsabilidade internacional do Estado do Chile e porque não se protegeu nem se garantiu o direito ao devido processo legal das vítimas na tramitação das ações criminais interpostas no âmbito interno.
16. Por conseguinte, os peticionários argumentam que o Estado chileno violou os direitos humanos consagrados nos artigos 1(1), 2, 5, 8, 11, 13, 15, 17, 24 e 25 da Convenção Americana. B. Posição do Estado
17. O Estado manifestou que, em 12 de março de 1998, foram publicadas algumas modificações introduzidas no Decreto com força de Lei Nº 1, Estatuto do Pessoal de Carabineros do Chile, entre as quais se consideravam a distribuição de benefícios econômicos que criou certas inquietudes dentro da Instituição. O Estado afirma também que a raiz desta situação foi que algumas cônjuges dos carabineros fizeram manifestações públicas e recorreram aos meios de comunicação para formular declarações dissociáveis do ponto de vista da Instituição e de seu caráter não deliberante, obediente e hierarquizado.
18. O Estado informou que, no dia 27 de abril de 1998, houve uma manifestação pública que contou com a assistência de algumas cônjuges dos Carabineros. Segundo o Estado, esta manifestação avançou a lugares não autorizados por sua proximidade ao Palácio de Governo, razão pela qual as manifestantes foram interceptadas e seis senhoras foram detidas, as quais foram postas em liberdade provisória. Para o Estado, tanto as reuniões como a manifestação constituem um “ato de indisciplina, contrário à legalidade vigente e enfraquecedor dos fundamentos de qualquer instituição armada”.
19. Com respeito à admissibilidade, o Estado alegou que a Comissão deverá declarar inadmissível a petição de conformidade com o estabelecido no artigo 47(b) e (c) da Convenção porque considera que os fatos não caracterizam uma violação dos direitos e liberdades reconhecidos por este mesmo instrumento. Afirma também que não foram esgotados os recursos internos e que a falta de independência do Tribunal Militar e da Justiça Militar em geral não pode ser alegada sem ter-se obtido antes um pronunciamento ou resolução. O Estado defende que a Corte Suprema tem competência para exercer as faculdades conservadoras, disciplinares e econômicas em relação à administração da justiça militar em tempo de paz. Afirmou que as resoluções fundamentais das procuradorias militares e das cortes marciais são essencialmente revisadas pela Corte Suprema por via de cassação, recurso de revisão e recurso de queixa, motivo pelo qual qualquer arbitrariedade pode ser emendada pela justiça ordinária e por seu tribunal superior.
20. O Estado também alegou que a denúncia devia ser declarada inadmissível por ter sido apresentada fora do prazo estipulado no artigo 46(1)(b) da Convenção. Segundo o Estado, os peticionários deveriam ter apresentado a denúncia dentro do prazo de seis meses desde que foram notificados da declinação de competência do Segundo Juizado do Crime de Santiago.
21. Por último, o Estado solicitou à Comissão que declarasse inadmissível a petição e que desacolhesse os argumentos dos peticionários, visto que o Chile cumpriu com as obrigações impostas pela Convenção.
IV. ANÁLISE SOBRE COMPETÊNCIA E ADMISSIBILIDADE
A. Competência ratione pessoae, ratione loci, ratione temporis e ratione materiae da Comissão
22. Os peticionários estão facultados pelo artigo 44 da Convenção Americana para apresentar denúncias perante à CIDH. A petição assinala como supostas vítimas indivíduos, para os quais o Chile comprometeu-se a respeitar e garantir os direitos consagrados na Convenção Americana. No que se refere ao Estado, a Comissão assinala que o Chile é um Estado parte na Convenção Americana desde 21 de agosto de 1990, data em que depositou o instrumento de ratificação respectivo. Portanto, a Comissão tem competência ratione pessoae para examinar a petição.
23. A Comissão tem competência ratione loci para conhecer a petição, porque a petição alega violações de direitos protegidos na Convenção Americana que teriam ocorrido dentro do território de um Estado parte neste tratado.
24. A CIDH tem competência ratione temporis, porque a obrigação de respeitar e garantir os direitos protegidos na Convenção Americana já se encontrava em vigor para o Estado na data em que haviam ocorrido os fatos alegados na petição.
25. Por último, a Comissão tem competência ratione materiae porque na petição se denunciam violações a direitos humanos protegidos pela Convenção Americana.
B. Requisitos de Admissibilidade
1. Esgotamento dos recursos internos
26. O artigo 46(1) da Convenção Americana estabelece que para que petição ou comunicação apresentada conforme os artigos 44 o 45 seja admitida pela Comissão é preciso que “se tenha interposto e esgotado os recursos de jurisdição interna, conforme os princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos”.
27. Os peticionários solicitaram que se fosse aplicada a excepção contida no artigo 46(2)(a) e (b) da Convenção porque o Estado do Chile não garantiu o devido processo legal das vítimas para a proteção dos direitos alegadamente violados, posto que o tribunal militar carece da devida independência e imparcialidade requeridos pelo artigo 8(1) da Convenção. Ademais, alegam que a ação penal que interpuseram permanece em fase sumária perante à Sexta Procuradoria Militar[5] e que as gestões de investigação não foram concluidas e ninguém foi declarado como processado na causa.
28. O artigo 46(2)(a) e (b), invocado pelos peticionários, estabelece que o requisito do prévio esgotamento dos recursos internos e o prazo de apresentação da petição não são aplicáveis quando:
a. não exista na legislação interna do Estado em questão o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos alegadamente violados;
b. não se tenha permitido ao suposto ofendido em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou tenha sido impedido de esgotá-los,
29. O Estado chileno se opôs à exceção relativa à falta de esgotamento dos recursos internos em sua nota de contestação à denúncia, e alegou que esta não é admissível conforme o artigo 46(1) da Convenção. Segundo o Estado, não se pode afirmar que o tribunal militar carece de independência e imparcialidade se não se obteve previamente um pronunciamento ou resolução que o demonstre. Afirmou ademais que se os peticionários consideravam que a justiça militar não lhes garantia o devido processo legal deveriam ter recorrido à Corte Suprema pela via de cassação, recurso de revisão ou queixa.
30. A Corte Interamericana e a CIDH entendem que a regra geral que requer o prévio esgotamento dos recursos internos reconhece o direito do Estado de “resolver o problema segundo o seu direito interno antes de enfrentar um processo internacional”[6], neste caso perante à jurisdição internacional dos direitos humanos, que é "coadjuvante ou complementar" da interna.[7] Esta regra geral não somente reconhece ao Estado o direito mas também impõe a obrigação de proporcionar às pessoas sob sua jurisdição recursos adequados para proteger a situação jurídica infringida e efetivos para produzir o resultado para os quais foram concebidos. Se os recursos oferecidos pelo Estado não reunem estes pressupostos, corresponde aplicar as exceções contempladas no artigo 46(2) da Convenção, que foram estabelecidas com o objetivo de garantir a ação internacional quando os recursos da jurisdição interna e o próprio sistema judicial interno não sejam céleres e efetivos para assegurar o respeito aos direitos humanos das vítimas.
31. A Comissão vem assinalando reiteradamente que não basta que o Estado alegue a exceção de falta de esgotamento dos recursos legais internos para que ela prospere. Como estabelecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, um Estado que invoca esta exceção deve também identificar os recursos internos a serem esgotados e provar sua efetividade e eficácia em tais circunstâncias. O Estado chileno mencionou os recursos, mas não provou sua efetividade. Os peticionários alegam que, tendo em vista tratar-se de um tribunal militar, as partes carecem das devidas garantias para tramitar o recurso e, portanto, este não é efetivo.
32. Um dos pressupostos essenciais do devido processo legal é a independência, autonomia e imparcialidade dos órgãos nacionais encarregados tanto de investigar, como de sancionar as supostas violações dos direitos humanos. A este respeito, a Comissão considera que a justiça militar não tem a independência e autonomia necessárias para investigar de maneira imparcial as supostas violações aos direitos humanos supostamente cometidas por policiais que formam parte das forças armadas.[8]
33. Ao analisar a ausência de devido processo legal como exceção ao esgotamento dos recursos internos a Corte Interamericana assinalou que
O artigo 46(2)(a) refere-se àquelas situações nas quais a lei interna de um Estado parte não contempla o devido processo legal para proteger os direitos violados. O artigo 46(2)(b) é aplicável naqueles casos em que existem recursos da jurisdição interna mas seu acesso é negado ao indivíduo ou se lhe impede de esgotá-los. Estas disposições aplicam-se, então, quando os recursos internos não podem ser esgotados porque não estão disponíveis seja por uma razão legal ou por uma situação de fato.[9]
34. A Comissão recorda que a Corte determinou que a mera existência de recursos em sede interna não implica a obrigação de esgotá-los, mas que os recursos devem ser adequados e efetivos. Que sejam adequados significa que a função destes recursos, dentro do direito interno, seja idônea para proteger a situação jurídica infringida. Um recurso eficaz é o que permite produzir o resultado para o qual foi criado.[10]
35. A Comissão considera que se um processo por violações a direitos humanos perpetradas contra civis é tramitado perante um tribunal militar, este recurso não é um recurso efetivo, e portanto, não deve ser esgotado.
36. No caso em questão, a falta de efetividade do recurso está clara pela falta total de trâmite e avanço das investigações desde seu início. Com efeito, a ação penal tramitada perante o Tribunal Militar, iniciada em 3 de junho de 1998, está até hoje em fase sumária, não existindo nenhum avanço concreto nas investigações acerca dos responsáveis das supostas violações aos direitos humanos sofridas pelas senhoras. Tudo isto é suficiente para afirmar que os recursos da jurisdição interna não são efetivos.
37. Para efeito de oferecer um recurso apropriado para remediar as violações alegadas, corresponderia ao Estado, através do Ministério Público, na sua qualidade de titular da ação punitiva, iniciar os procedimentos tendentes a identificar e processar a todos os responsáveis, impulsionando diligentemente todas as etapas processuais até sua conclusão, num procedimento frente à justiça civil.
38. A Comissão considera importante esclarecer que as exceções à regra do esgotamento dos recursos internos estão estreitamente vinculadas à determinação de possíveis violações a certos direitos consagrados na Convenção, tais como o direito ao devido processo (artigo 8) e o direito à proteção judicial (artigo 25). Entretanto, o artigo 46(2), que estabelece três exceções à essa regra geral, por sua natureza e objeto, tem conteúdo autônomo com relação às normas substantivas da Convenção, razão pela qual, para determinar a aplicabilidade destas exceções é necessário utilizar um padrão de apreciação distinto daquele utilizado para determinar se existiu violação dos direitos substantivos estabelecidos nos artigos 8 e 25 do mesmo instrumento internacional. Portanto, a Comissão passa a resolver neste relatório a aplicabilidade das referidas exceções como uma questão de prévio e especial pronunciamento e deixa a análise das razões pelas quais não se esgotaram os recursos internos e o efeito jurídico da falta de esgotamento para quando a Comissão estude o mérito da questão controvertida com o objetivo de determinar se estão configuradas violações aos artigos 8 e 25 da Convenção.[11]
39. Tendo em vista o exposto, a Comissão estima que, neste caso, os recursos internos existentes não são efetivos para remediar a situação jurídica infringida, aplicando-se no presente caso a exceção de inexistência no direito interno do devido processo legal para investigar e julgar as violações aos direitos humanos, estabelecida no artigo 46(2)(a) da Convenção e exime os peticionários de esgotar a via jurisdicional interna.
2. Prazo de apresentação da petição
40. O Estado alegou que a petição havia sido apresentada fora do prazo assinalado no artigo 46(1)(b), por considerar que haviam transcorridos mais de seis meses desde a declinação de competência por parte do Segundo Juizado Criminal de Santiago.
41. Dado que na presente petição foi decidido aplicar uma das exceções do artigo 46(2) da Convenção, a CIDH conclui que não são aplicáveis os requisitos contemplados no artigo 46(1)(b). Portanto, conforme o estabelecido no artigo 32(2) do Regulamento da Comissão, corresponde determinar se a petição foi apresentada dentro de um período de tempo razoável. Neste sentido, considerando a natureza do caso, e que a denúncia em sede interna foi apresentada em 3 de junho de 1998 e a petição foi apresentada à CIDH em 20 de dezembro de 1999, ou sejam um ano e seis meses mais tarde, a Comissão considera que foi apresentada dentro de um prazo razoável.
3. Duplicação de procedimentos e coisa julgada
42. Não surge do expediente que a matéria da petição esteja pendente de outro procedimento de acordo internacional, nem que reproduza uma petição já examinada por este ou outro órgão internacional. Portanto, cabe dar por cumpridos os requisitos estabelecidos nos artigos 46(1)(c) e 47(d) da Convenção.
4. Caracterização dos fatos alegados
43. O Estado solicitou à Comissão que desestime a denúncia porque cumpriu com as obrigações impostas pela Convenção à respeito dos artigos que os peticionários alegam como violação.
44. A Comissão considera que não corresponde nesta etapa do procedimento estabelecer se há ou não uma violação da Convenção Americana. Para fins de admissibilidade, a CIDH deve decidir se a petição expõe fatos que caracterizam uma violação, conforme estipulado pelo artigo 47(b) da Convenção Americana, e se a petição é “manifestamente infundada” ou seja “evidente sua total improcedência”, segundo o inciso (c) do mesmo artigo.
45. O padrão de apreciação destes extremos é diferente do requerido para decidir sobre os méritos de uma denúncia. A CIDH deve realizar uma avaliação prima facie para examinar se a denúncia fundamenta a aparente ou potencial violação de um direito garantido pela Convenção e não para estabelecer a existência de uma violação. Tal exame é uma análise sumária que não implica num prejulgamento ou uma opinião antecipada sobre o mérito. O próprio Regulamento da Comissão, ao estabelecer duas claras etapas de admissibilidade e mérito, reflete esta distinção entre a avaliação que deve ser realizada pela Comissão a fim de declarar uma petição admissível e aquela requerida para estabelecer uma violação.
46. Com relação à presente petição, a Comissão considera que é necessário uma análise de mérito do assunto para resolver os argumentos apresentados por ambas partes. A CIDH não entende, assim, que a petição seja “manifestamente infundada” ou que seja “evidente sua improcedência”. Adicionalmente, a CIDH considera que, prima facie, os peticionários acreditaram os requisitos exigidos no artigo 47(b) e (c).
47. A Comissão considera que, no presente caso, é competente para avaliar as supostas violações aos direitos à integridade pessoal, garantias judiciais, proteção contra ingerências abusivas ou arbitrárias à vida privada, liberdade de pensamento e expressão, direito de reunião, proteção à família, igualdade perante à lei e acesso a um recurso judicial simples e rápido em conjunção com a obrigação do Estado de respeitar e garantir os direitos humanos e o dever de adequar a legislação interna aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado, os quais poderiam caracterizar violações aos direitos das supostas vítimas, consagrados nos artigos 1(1), 2, 5, 8, 11, 13, 15, 17, 24 e 25 da Convenção Americana.
V. CONCLUSÕES
48. A Comissão conclui que tem competência para examinar o caso apresentado pelos peticionários sobre a suposta violação dos direitos à integridade pessoal, garantias judiciais, proteção contra ingerências abusivas ou arbitrárias à vida privada, liberdade de pensamento e expressão, direito de reunião, proteção à família, igualdade perante à lei e acesso a um recurso judicial simples e rápido em conjunção com a obrigação do Estado de respeitar e garantir os direitos humanos e o dever de adequar a legislação interna aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado.
49. Em virtude dos argumentos de fato e de direito antes expostos, e sem prejulgar sobre o mérito do assunto,
A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,
DECIDE:
1. Declarar admissível a petição sob estudo, em relação aos artigos 1(1), 2, 5, 8, 11, 13, 15,17, 24 e 25 da Convenção Americana.
2. Notificar as partes desta decisão.
3. Iniciar a análise do mérito do assunto.
4. Publicar o presente relatório e incluí-lo em seu Relatório Anual a ser enviado à Assembléia Geral da OEA.
Dado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., no dia 7 de março de 2003. (Assinado): Marta Altolaguirre, Presidenta; Clare K. Roberts Segundo Vice-Presidente; Comissionados Robert K. Goldman, Juan Mendez, Julio Prado Vallejo, e Susana Villarán.
[1] O Comissionado José Zalaquett, Primeiro Vice-Presidente, nacional do Chile, não participou no exame e votação deste caso, de conformidade com o artigo 17(2)(a) do Regulamento da CIDH. [2] Carabineros do Chile é uma instituição policial, técnica e de carácter militar, criada em 1927, que integra as Forças de Ordem e Segurança Pública do Chile. [3] Nota dos peticionários de 20 de dezembro de 1999, pág. 3. [4] Em 4 de agosto de 1999, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e a Clínica de Ações de Interesse Publico da Universidade Diego Portales apresentaram perante à Comissão uma petição contra a República do Chile na qual alegam que os senhores Mario Alberto Jara Oñate, Julio Cesar Cid Deik, Marcelino Esteban López Andrade, José Exequel Tobar Muñoz, Fernando Villa Molina, Ciro Elías Rodríguez Uribe, Mario Eduardo Araya Marchant e Sergio Iván González Bustamante, todos eles membros de Carabineros do Chile, foram vítimas de um processo de qualificação realizado pelas autoridades de Carabineros do Chile violatório de seus direitos às garantias judiciais, à igualdade perante a lei, a proteção da honra e da dignidade, a proteção à família e a proteção judicial. [5] O artigo 25 do Código de Justiça Militar estabelece que as funções dos procuradores em matéria penal são as de instrução e tramitação dos procedimentos, devendo para isto colher todos os antecedentes e elementos de convicção do caso. [6] Corte IDH, Caso Velásquez Rodríguez. Sentença de 29 de julho de 1988. Serie C. Nº 4, par. 61. [7] Corte IDH, Caso Velásquez Rodríguez, sentença de 29 de julho de 1988, Serie C Nº 4 (1988), par. 61. [8] A Comissão entende que o problema da impunidade na justiça penal militar não se vincula exclusivamente à absolvição dos acusados, mas também que “a investigação de casos de violações aos direitos humanos leva problemas para o acesso a um recurso judicial efetivo e imparcial” (CIDH, Segundo Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Peru, OEA/Ser.L/V/II.106, Cap. II, Par. 210), e que
A investigação do caso por parte da justiça militar preclui a possibilidade de uma investigação objetiva e independente executada por autoridades judiciais não ligadas à hierarquia de comando das forças de segurança. As investigações sobre a conduta de membros das forças de segurança administradas por outros membros destas forças somente servem para encobrir os fatos ao invés de esclarecê-los. Desta maneira, uma investigação iniciada na justiça militar pode impossibilitar uma condenação ainda que o caso passe logo à justiça ordinária, dado que geralmente não se terá colhido as evidências necessárias de maneira oportuna e efetiva. Nos casos que permanecem no foro militar, a investigação pode ser conduzida de maneira que não permita que o caso chegue à etapa de decisão final.
[9] Corte IDH, Exceções ao esgotamento dos Recursos Internos (Arts. 46(1), 46(2)(a) e 46(2)(b) Convenção Americana sobre Direitos Humanos), Opinião Consultiva OC-11/90 de 10 de agosto de 1990, Serie A N° 11, Par. 17. [10] Corte IDH, Caso Velásquez Rodríguez, Sentença de 29 de julho de 1988, Série C N° 4, pars. 63-64; Caso Godínez Cruz, Sentença de 20 de janeiro de 1989, Série C N° 5, pars. 66-67; Caso Fairen Garbi e Solís Corrales, Sentença de 15 de março de 1989, Série C N° 6, pars. 87-88. [11] Ver CIDH, Relatório Nº 54/01, Caso 12.250, Massacre de Mapiripán, Colômbia, par. 38 e CIDH Juan Humberto Sánchez- Honduras, Relatório Nº 65/01- Caso 11.073, 6 de março de 2001, par. 51.
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